Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
376/11.4TBAGH-B.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PENSÃO DE ALIMENTOS
INCUMPRIMENTO
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1- Não é pela circunstância de se ter apurado, no incidente de incumprimento, que a situação patrimonial do obrigado a alimentos se alterou e que já se pode proceder à cobrança coerciva da prestação mensal pelo mesmo devida, através da dedução daquela prestação no subsídio de desemprego que foi apurado o mesmo estar a receber, que há lugar à cessação da intervenção do FGADM, apenas cessando essa intervenção quando ocorrer o cumprimento efectivo da obrigação pelo devedor originário, neste caso através da dedução efectiva no referido subsídio de desemprego.
2- Não decorrendo do quadro normativo que regula a determinação da prestação a suportar pelo FGADM, a correspondência directa entre a mesma e a prestação de alimentos a que está obrigado o devedor originário, nada autoriza a concluir que na decisão que fixou o valor daquela prestação social no valor mensal de € 100,00, se queria afirmar o valor mensal de € 200,00, por corresponder ao valor total que havia sido fixado em sede de regulação das responsabilidades parentais, só se tendo afirmado o valor mensal de € 100,00 por erro material.
3- Não se evidenciando exteriormente o erro material a que alude o nº 2 do art.º 613º do Novo Código de Processo Civil, carecia o tribunal recorrido de poder jurisdicional para decidir que o FGADM entregasse mais € 100,00 mensais desde a data da produção de efeitos (Agosto de 2012) da decisão que fixou o valor da prestação social em questão no valor mensal de € 100,00.
4- Assim, deve tal decisão, proferida sem poder jurisdicional para tanto, ter-se por não escrita, por inexistência jurídica, não havendo sequer lugar a falar de nulidade da mesma.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
No incidente de incumprimento iniciado em 23/11/2011 e que corre por apenso ao processo de regulação das responsabilidades parentais relativas às menores Maria A. e Miriam A., foi proferida, em 6/6/2012, decisão que declarou o incumprimento do pagamento da pensão de alimentos relativamente ao progenitor Carlos A.
Nessa decisão de 6/6/2012 foi ainda determinado que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (doravante FGADM), gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (doravante IGFSS), pagasse mensalmente à mãe das menores (Alda A.) a quantia de € 100,00, até que estas atingissem a maioridade.
Nos factos provados de tal decisão de incumprimento ficou a constar que o pai das menores ficou obrigado a pagar a quantia mensal de € 100,00 a título de alimentos devidos às mesmas.
Em 3/4/2014 foi proferido, nesse incidente de incumprimento, decisão de manutenção do pagamento da prestação de alimentos devida às menores pelo FGADM.
Em 14/3/2016 foi proferido, nesse mesmo incidente de incumprimento, decisão que renovou a manutenção do pagamento da prestação de alimentos devida às menores pelo FGADM.
E em 10/12/2016 foi proferido, no mesmo incidente de incumprimento, despacho onde, para além do mais, se decidiu que:
o Fundo de Garantia reponha o dinheiro em falta desde Agosto de 2012, até agora, à ordem de mais 100 € por mês”;
e bem ainda que:
deve continuar o Fundo de Garantia a suportar o valor dos alimentos devidos às menores em causa, e a entregá-los à mãe das mesmas, pelo que mantenho a decisão já este ano proferida sobre a revisão dos pressupostos de pagamentos do Fundo”.
O IGFSS recorre deste despacho, limitado às referidas duas decisões, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões (aperfeiçoadas, após convite para tanto) que aqui se reproduzem:
I. Na douta decisão recorrida, determinou-se que:
- “… o Fundo de Garantia reponha o dinheiro em falta desde Agosto de 2012, até agora, à ordem de 100 € por mês.
- “deve continuar o Fundo de Garantia a suportar o valor dos alimentos devidos às menores, e a entrega-los à mãe das mesmas, pelo que mantenho a decisão já este ano proferida sobre a revisão dos pressupostos de pagamentos do Fundo de garantia prolatada em 14.03.2016, fls. 70, com as alterações monetárias acabadas de determinar supra.
II. Um dos requisitos de que depende a intervenção do FGADM é a impossibilidade de recurso à cobrança coerciva da prestação de alimentos, nos termos previstos no art. 48º do RGPTC, anterior art. 189º da OTM (2ª parte da alínea a) do nº 1 do art. 3º do DL 164/99 de 13 de Maio).
III. Na sentença ora recorrida é dado por provado que o obrigado a alimentos “… neste momento encontra-se a receber subsídio de desemprego no montante mensal de 419,10 € e posteriormente, receberá tão só 377,10 €.”.
IV. Nos termos do nº 4 do art. 738º do CPC, quando o crédito exequendo for de alimentos, apenas é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo.
V. À data em que a sentença recorrida foi proferida o único valor que havia a considerar para efeitos de cobrança coerciva da prestação de alimentos era o do subsídio de desemprego que o obrigado a alimentos se encontrava a receber, e esse era de € 419,10, não sendo relevante “o valor que viria, futuramente, a receber”.
VI. Em 2016 o valor da pensão social do regime não contributivo, era de € 202,34, sendo este o valor impenhorável nos termos do nº 4 do art. 738º do CPC.
VII. Recebendo o obrigado a alimentos uma prestação social a título de subsídio de desemprego no valor de € 419,10, é possível efectuar sua a penhora nos termos do do nº 4 do art. 738º do CPC, pois fica salvaguardado o limite imposto nesta disposição legal.
VIII. Não se verifica, pois, um dos pressupostos necessários à intervenção do FGADM, a saber: a impossibilidade de efectuar a cobrança coerciva da prestação de alimentos nos termos do art. 48º do RGPTC, pelo que não poderia a Mma. Juiz a quo ter determinado nos presentes autos o pagamento pelo FGADM da prestação substitutiva de alimentos a favor das menores.
IX. Caso não fosse possível a cobrança coerciva integral dos alimentos, poderia a Mma. Juiz a quo ter feito operar o disposto nas normais legais acima mencionadas até à concorrência do valor impenhorável, não fazendo recair exclusivamente sobre o FGADM a obrigação de pagamento das prestações substitutivas de alimentos, quando o progenitor das menores é titular de rendimentos sobre os quais podem incidir, pelo menos parcialmente, a cobrança coerciva de alimentos.
X. Ao decidir como decidiu, violou a Mma. Juiz a quo, o disposto no nº 2 do art. 2º, e no nº 1, al. a), do art. 3º, do DL 164/99, de 13 de Maio, todos com a redacção dada pela Lei 64/2012, de 20 de Dezembro de 2012.
XI. Para fundamentar a sua decisão de reposição das quantias ditas em falta desde Agosto de 2012, diz a Mma. Juiz a quo, considera que “… houve um manifesto lapso na decisão sentença/decisão acima referida ao determinar que o Fundo pagasse apenas os 100 € à mãe destas meninas.”.
XII. Aceita o FGADM que tenha existido na sentença proferida em 06.06.2012 um lapso na transcrição do acordado em sede de regulação do poder paternal relativamente ao valor dos alimentos a que o pai das menores se vinculou.
XIII. No entanto, da existência de tal lapso, não se pode extrapolar agora, quatro anos depois, que tenha havido erro de julgamento por parte do Mmo. Juiz que proferiu aquela sentença.
XIV. Na Fundamentação da sentença de 06.06.2012, diz aquele Mmo. Juiz o seguinte, em cumprimento do disposto no nº 1 do art. 158º (actual nº 1 do art. 154º) do CPC: “Tendo em conta a capacidade económica do agregado das menores, o montante da prestação fixada -€ 100,00 – e a inexistência de referência a necessidades especiais por parte daqueles, considero a quantia de € 100,00 necessária e suficiente.” (sublinhado nosso).
XV. Na data em que aquela decisão proferida estava no auge a querela doutrinária e jurisprudencial em que se discutia se a prestação substitutiva de alimentos paga pelo FGADM podia ser, ou não, fixada em valor superior ao que se encontra vinculado o devedor originário, querela essa a que o supra referido Acórdão Uniformizador de jurisprudência veio por fim.
XVI. Se o Mmo. Juiz que proferiu a sentença de 06.06.2012 entendesse que o valor de € 100,00 era insuficiente face à necessidades das menores teria fixado ao FGADM um valor que poderia, à data, atingir o montante de 4 UC’s.
XVII. A decisão que agora se pretende corrigir, foi analisada e mantida anualmente por diferentes magistrados, os quais entenderam não alterar o montante fixado ao FGADM quando o poderiam ter feito.
XVIII. Podendo a Mma. Juiz a quo corrigir um lapso de escrita na decisão proferida 06.06.2012, de tal correcção não pode surgir como consequência a condenação rectroactiva do FGADM nos termos ali determinados - “… o Fundo de Garantia reponha o dinheiro em falta desde Agosto de 2012, até agora, à ordem de 100 € por mês.” -, pois, estar-se-á a violar os princípios da segurança e da certeza resultantes do caso julgado.
XIX. A decisão recorrida, constitui um caso paradigmático de decisão surpresa, pois viola flagrantemente o disposto art. 3º do CPC, ao não ter dado qualquer oportunidade ao IGFSS do exercício do contraditório quanto à nova questão com que este ora se depara já como decisão final, sendo, consequentemente, nula, (Neste sentido veja-se o Acórdão 572/11.4TBCND.C1, do Tribunal da Relação de Coimbra, disponível em www.dgsi.pt, que nas Alegações supra se reproduziu).
Não foi apresentada qualquer alegação de resposta.
O tribunal recorrido pronunciou-se sobre a nulidade arguida, concluindo pela inexistência da mesma.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Novo Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso prendem-se:
· Com a cessação da intervenção do FGADM, na satisfação da pensão de alimentos devida às menores;
· Com a violação do caso julgado formado pela decisão de 6/6/2012 e do princípio do contraditório a que respeita o art.º 3º do Novo Código de Processo Civil.
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A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede, a que acresce a que se enuncia de seguida, constante da decisão recorrida mas sem qualquer individualização:
1. No processo principal de regulação das responsabilidades parentais relativas às menores Maria A., nascida em (…), e Miriam A., nascida em (…), foi proferida sentença em 16/6/2011 que homologou o acordo constante da acta de fls. 15 a 16, ficando estabelecido na cláusula 5ª do mesmo que “O pai entregará a título de alimentos, € 100 até ao dia 15 e € 100 até ao dia 30 de cada mês, quantias que depositará na conta bancária do Banif com o nib (…)”.
2. Com referência a 1/7/2016 foi apurado no incidente de incumprimento que o progenitor Carlos A. encontrava-se a receber subsídio de desemprego no montante mensal de € 419,10, indo posteriormente receber tão só € 377,10.
3. Mais foi apurado que o recebimento do subsídio de desemprego se mantinha até 2/9/2017.
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Da cessação da intervenção do FGADM, na satisfação da pensão de alimentos devida às menores
De acordo com o disposto no nº 1 do art.º 1º da Lei 75/98, de 19/11, “Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.
O pagamento de tais prestações é assegurado pelo FGADM, como decorre do art.º 6º, nº 2, do mesmo diploma regulador da garantia dos alimentos devidos a menores.
E do nº 1 do art.º 3º do D.L. 164/99, de 13/5, que veio regulamentar a Lei 75/98, de 19/11, decorre que o FGADM assegura o pagamento das prestações de alimentos em questão quando:
a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro; e
b) O menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
O referido art.º 189º do D.L. 314/78, de 27/10, que dispunha sobre os meios de tornar efectiva a prestação de alimentos, mostra-se substituído pelo art.º 48º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (doravante RGPTC), aí se dispondo que:
1 – Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;
b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;
c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.
2 – As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las”.
Ou seja, quando não for possível efectivar a prestação de alimentos devidos a menor, pelos meios referidos no art.º 48º do RGPTC, e desde que estejam verificados os demais pressupostos a que alude o art.º 3º, nº 1, do D.L. 164/99, de 13/5, é ao FGADM que cabe assegurar o pagamento das prestações de alimentos.
Por outro lado, e como decorre do art.º 3º, nº 4, da Lei 75/98, de 19/11, e no art.º 9º do referido D.L. 164/99, de 13/5, o montante fixado pelo tribunal como sendo devido pelo FGADM mantém-se enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado, podendo o IGFSS, o ISS ou o representante do menor comunicar ao tribunal qualquer facto que possa determinar a alteração ou a cessação das prestações a cargo do FGADM, cabendo ao tribunal proferir decisão que determine tal alteração ou cessação.
No caso concreto considerou o tribunal recorrido que se continuam a verificar todos os pressupostos para que o FGADM assegure o pagamento das prestações de alimentos devidas às menores Maria A. e Miriam A., por considerar que, apesar do progenitor obrigado ao pagamento da pensão de alimentos fixada judicialmente estar a receber subsídio de desemprego, não podia afirmar-se a possibilidade de efectivação da prestação de alimentos através dos meios referidos no art.º 48º do RGPTC.
E, para tanto, considerou que o valor do subsídio de desemprego que o mesmo aufere (com referência à data da decisão recorrida), descontado do valor da pensão de alimentos (€ 200,00), é inferior ao limite a que respeita o art.º 738º, nº 4, do Novo Código de Processo Civil (e que corresponde a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo). Mais considerou que o valor limite em questão corresponde a € 219,95.
Todavia, e como decorre da Portaria 65/2016, de 1/4 (em vigor à data da decisão recorrida), o valor da pensão social do regime não contributivo ascende a € 202,34, e não ao referido valor de € 219,95 (e desde logo porque o mesmo não compreende o complemento extraordinário de solidariedade fixado em € 17,61, o qual é uma prestação não confundível com a pensão social do regime não contributivo).
Assim, auferindo o referido progenitor um subsídio de desemprego no valor de € 419,10, e mesmo sendo-lhe deduzida a quantia de € 200,00 (correspondente ao valor da prestação de alimentos devida às suas filhas menores), ainda lhe resta a quantia de € 219,10, superior, portanto, ao referido limite mínimo de € 202,34.
Pelo que, como bem conclui o IGFSS, tendo presente o disposto conjugadamente na al. c) do nº 1 do art.º 48º do RGPTC e no art.º 738º, nº 4, do Novo Código de Processo Civil, podia ser deduzido no subsídio de desemprego do mesmo a quantia que o mesmo estava obrigado a pagar mensalmente, a título de prestação de alimentos, e cujo incumprimento foi oportunamente verificado.
Ou seja, terão deixado de estar reunidos os pressupostos a que alude o nº 1 do art.º 1º da Lei 75/98, de 19/11, e o nº 1 do art.º 3º do D.L. 164/99, de 13/5, de que decorre o pagamento pelo FGADM da prestação de alimentos devida por Carlos A. às suas filhas menores, já que aquela prestação (que foi fixada em € 200,00 por sentença homologatória do acordo realizado em sede de regulação das responsabilidades parentais) podia ser tornada efectiva através do recurso ao disposto no art.º 48º, nº 1, al. c), do RGPTC.
Todavia, aquilo que refere a parte final do nº 1 do art.º 1º da Lei 75/98, de 19/11, é que “o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.
O que equivale a afirmar que não é pela circunstância de se ter apurado, no incidente de incumprimento, que a situação patrimonial do obrigado a alimentos se alterou e que já se pode proceder à cobrança coerciva da prestação mensal pelo mesmo devida, através da dedução daquela no subsídio de desemprego que foi apurado o mesmo estar a receber, que há lugar à cessação da intervenção do FGADM. Pelo contrato, tal intervenção só cessa quando ocorrer o cumprimento efectivo da obrigação pelo devedor, neste caso através da dedução efectiva no referido subsídio de desemprego.
Neste mesmo sentido decidiu já o Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão de 10/9/2013 (relatado por Maria da Graça Mira e disponível em www.dgsi.pt), quando aí se afirmou que “com efeito, de acordo com a parte final do estabelecido pelo artº 1º, do primeiro dos diplomas legais citados acima, cabe ao Estado assegurar as prestações em causa até ao início do efectivo cumprimento da obrigação, o que não decorre ter acontecido, aqui”.
E bem ainda o mesmo Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão de 25/11/2014 (relatado por João Diogo Rodrigues e igualmente disponível em www.dgsi.pt), quando aí se afirmou que:
Podemos, então, dar como certo que, para além de outros requisitos, a intervenção do citado Fundo deve ocorrer quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a um menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e deve manter essa intervenção até ao início do efetivo cumprimento daquela obrigação.
Esta última exigência é particularmente importante para o caso presente porque nos ajuda a perceber porque é que não basta ser conhecido património ao devedor de alimentos para que cesse a garantia que, nesse aspecto, o Estado concede ao menor que deles carece. É que só depois do cumprimento efectivo da referida obrigação alimentar por parte do devedor se justifica a cessação da referida garantia comunitária.
Nem seriam, de resto, necessárias maiores justificações para se perceber que, no caso em apreço, sem notícia da prestação de alimentos à menor, B…, por parte do seu pai, a intervenção do FGADM se deve manter.
Mas o legislador, para evitar quaisquer dúvidas a este propósito, teve o cuidado de esclarecer, como vimos, que não se torna necessário sequer aguardar pela efectiva cobrança em processo executivo. Basta que essa cobrança não tenha sucesso pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro; ou seja, por recurso aos mecanismos que habitualmente se designam de pré-executivos: através de desconto na retribuição, rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes. O que importa, no fundo, é que o sustento do menor possa ser imediatamente assegurado mediante liquidez monetária que permita adquirir os bens e serviços necessários a essa finalidade”.
E não se vendo fundamento para divergir de tal jurisprudência, que aqui se acolhe, a decisão recorrida que determinou a continuação do pagamento da prestação de alimentos pelo FGADM é de manter, ainda que com fundamentação distinta daquela expendida pelo tribunal recorrido, improcedendo o recurso, nesta parte.
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Da violação do caso julgado formado pela decisão de 6/6/2012 e do princípio do contraditório a que respeita o art.º 3º do Novo Código de Processo Civil
Invocando tratar-se de manifesto lapso da decisão de 6/6/2012, que determinou que o FGADM entregasse à mãe das menores a quantia de € 100,00, quando a prestação devida pelo devedor (o pai das menores) era de € 200,00, correspondente a € 100,00 para cada filha, o tribunal recorrido decidiu corrigir a mesma decisão, determinando que “o Fundo de Garantia pague de ora em diante a favor das duas menores em causa a quantia mensal de 200 €, 100 € para cada uma delas, valor este a entregar à mãe das menores”.
E verificando que desde Agosto de 2012 o FGADM havia pago apenas € 100,00, quando considera que deveria ter entregue € 200,00, determina a reposição desse “dinheiro em falta desde Agosto de 2012, até agora, à ordem de mais 100 € por mês”.
O IGFSS não impugna a primeira parte da decisão em questão, aceitando que o FGADM deve pagar a quantia mensal de € 200,00 (tendo presente o teor do acordo de regulação das responsabilidades parentais que foi homologado por sentença), mas entende que a decisão tomada, relativamente à fixação da prestação a pagar pelo FGADM, não corresponde a qualquer erro (que qualifica de julgamento), assim discordando da correcção (com efeitos retroactivos) do mesmo erro através do despacho de 10/12/2016, que entende corresponder à violação do princípio do caso julgado.
O caso julgado desdobra-se numa vertente positiva (a autoridade do caso julgado) e numa vertente negativa (a excepção dilatória do caso julgado, que previne a repetição de causas), assim respondendo, segundo Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, LEX, 1997, pág. 568), à “exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir”.
De acordo com Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, 2º volume, 2ª edição, pág. 354), “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”. Já “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
Por isso é que decorre do art.º 619º do Novo Código de Processo Civil que o despacho ou sentença transitada em julgado que conheça do mérito da causa faz com que a decisão respectiva sobre a relação material controvertida fique a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, mais decorrendo do art.º 613º do Novo Código de Processo Civil que, proferido o acto decisório, esgota-se o poder jurisdicional do tribunal para conhecer (novamente) a matéria em questão.
A respeito do esgotamento do poder jurisdicional, após a prolação da decisão, ensina Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 126/127):
O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela, um todo incindível.
Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível.
Convém atentar nas palavras «quanto à matéria da causa». Estas palavras marcam o sentido do princípio referido. Relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se. Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida.
(…)
Que o tribunal superior possa, por via de recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo em todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão”.
Todavia, do nº 2 do art.º 613º do Novo Código de Processo Civil decorre que “é lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”.
Os erros materiais são aqueles a que se reporta o art.º 614º do Novo Código de Processo Civil, correspondendo à omissão do nome das partes, à omissão da determinação da responsabilidade tributária, a erros de escrita ou de cálculo, ou a quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, e que podem ser corrigidos por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
A respeito da qualificação de erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, ensina Amâncio Ferreira (Manual dos recursos em processo civil, pág. 43) que “trata-se de erros que pressupõem que a vontade declarada na sentença não corresponde à vontade real do juiz. Daí não valer aqui o princípio da intangibilidade da decisão judicial que tem como fundamento a vontade do juiz. Sempre que a vontade declarada seja desconforme à vontade real, pode o juiz proceder ao seu ajustamento, mediante rectificação”.
E já Alberto dos Reis ensinava (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 63) que “o erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando em suma, a vontade declarada diverge da vontade real”.
Ou seja, só se torna possível a alteração de uma decisão judicial, pelo mesmo tribunal que a proferiu, quando da mesma resultar que aquilo que o juiz pretendia afirmar como expressão da sua vontade decisória não corresponde ao que ficou expresso, quer essa divergência se manifeste como um erro de escrita ou de cálculo (nos termos em que o mesmo é caracterizado pelo art.º 249º do Código Civil, ou seja, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita), quer se manifeste como lapso susceptível de ser apreendido por qualquer destinatário da mesma, na medida em que não corresponda ao sentido normal da declaração decisória que devia ser produzida (segundo o critério de interpretação e integração da declaração de vontade a que alude o art.º 236º do Código Civil).
Caso contrário, está vedado ao tribunal efectuar qualquer alteração à decisão, dado que, com a prolação da mesma, esgotou-se o poder jurisdicional do mesmo, passando a mesma a ter força obrigatória, quer para o tribunal, quer para os intervenientes processuais.
E, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/5/2010 (relatado por Álvaro Rodrigues e disponível em www.dgsi.pt), “nem colhe aqui o argumento de que a rectificação oficiosa das decisões judiciais pode ter lugar a todo o tempo se nenhuma das partes recorrer, como estatui o nº 2 in fine do artº 667º do CPC [actualmente o nº 3 do art.º 614º do Novo Código de Processo Civil], pois tal rectificação só pode ser efectuada independentemente do decurso de tempo, nos exactos termos a que se refere aquele preceito legal, isto é, quando ocorra erro material «externo», isto é, revelado no próprio contexto da decisão, o denominado «erro na expressão», que é diferente do « erro no pensamento» ou erro de julgamento.
Esse erro tem de ser manifesto (lapso manifesto, na expressão legal), isto é, notório, como, por exemplo, o que deriva da nítida contradição entre as premissas e a conclusão tirada”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, logo se constata que pela decisão ora em crise o tribunal recorrido alterou decisão anterior já transitada em julgado, e sem que ocorressem os pressupostos do nº 2 do art.º 613º do Novo Código de Processo Civil.
Com efeito, na decisão de 6/6/2012 considerou-se o incumprimento por Carlos A. da sua obrigação de prestação de alimentos às menores Maria A. e Miriam A. E em sede de factualidade aí provada ficou a contar que o mesmo estava obrigado a pagar a quantia mensal de € 100,00, a título de alimentos devidos às mesmas.
Sendo certo que tal obrigação decorria do acordo homologado por sentença de 16/6/2011, onde ficou a constar que o referido Carlos A. entregaria a título de alimentos a quantia mensal de € 200,00, sendo € 100,00 até ao dia 15 de cada mês e € 100,00 até ao dia 30 de cada mês.
E sendo certo, ainda, que a consideração do incumprimento em questão teve em vista a determinação do pagamento da quantia mensal de € 100,00 pelo FGADM.
Ora, da aplicação do instituto que regula a garantia dos alimentos devidos a menores (positivado na Lei 75/98, de 19/11, e no D.L. 164/99, de 13/5), não ocorre a equivalência automática entre o valor da pensão de alimentos fixada judicialmente e o valor da “nova prestação social” que o FGADM deve pagar, em execução do mecanismo criado para o “reforço da protecção social devida a menores” (nas palavras do preâmbulo do D.L. 164/99, de 13/5).
E desde logo porque o valor dessa prestação social a suportar pelo FGADM pode não ter correspondência com o valor da prestação alimentícia a que ficou vinculado o devedor originário, já que na fixação do valor mensal daquela prestação social deve o Tribunal atender à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos judicialmente fixada e às necessidades específicas do menor, como decorre do art.º 2º, nº 2, da Lei 75/98, de 19/11, e do art.º 3º, nº 5, do D.L. 164/99, de 13/5.
Aliás, é por não ocorrer tal equivalência automática que, até ao AUJ de 19/3/2015, a jurisprudência se dividia entre permitir ou não que a prestação a suportar pelo FGADM fosse fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que estava vinculado o devedor originário.
Ou seja, não decorrendo do quadro normativo que regula a determinação da prestação a suportar pelo FGADM a correspondência directa entre a mesma e a prestação de alimentos a que está obrigado o devedor originário (no caso dos autos, o referido Carlos A.), nada autoriza a concluir que na decisão de 6/6/2012, quando se fixou o valor daquela prestação social no valor mensal de € 100,00, se queria afirmar o valor mensal de € 200,00, por corresponder ao valor total que havia sido fixado em sede de regulação das responsabilidades parentais, só se tendo afirmado o valor mensal de € 100,00 por erro material consistente em lapso manifesto.
E desde logo porque o mesmo lapso manifesto não se evidencia exteriormente.
O que equivale a afirmar que, a tratar-se de algum erro, é de erro de julgamento que se trata, e não de erro de escrita ou de cálculo, ou de inexactidão devida a lapso manifesto.
Mas o erro de julgamento não autoriza o tribunal a corrigir a sua própria decisão, já que a mesma correcção só podia ser alcançada por via da impugnação em sede de recurso (inexistente).
Que é o mesmo que afirmar que o caso julgado que se formou impedia o tribunal recorrido de rectificar a decisão de 6/6/2012, com efeitos retroactivos, determinando que o FGADM entregasse à mãe das menores a quantia mensal de € 100,00, desde Agosto de 2012 (para além daquela de € 100,00 que já havia sido entregue desde então).
Assim, e tendo-o feito com falta de poder jurisdicional para tanto, a decisão em questão é juridicamente inexistente (não havendo sequer lugar a falar de nulidade da mesma), como vem afirmando repetidamente o Supremo Tribunal de Justiça, não só no já referido acórdão de 6/5/2010, como igualmente no acórdão de 20/5/2010 (relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) ou no acórdão de 12/3/2015 (relatado por Mário Belo Morgado), todos disponíveis em www.dgsi.pt, devendo pois considerar‑se como não escrita.
Por outro lado, e estando-se perante uma decisão juridicamente inexistente, fica prejudicada a apreciação da questão relativa à violação do princípio do contraditório aquando da prolação da mesma.
O que equivale a afirmar, nesta parte, a procedência do recurso do IGFSS, dando-se por não escrito o referido segmento decisório que determinou que o FGADM repusesse “o dinheiro em falta desde Agosto de 2012, até agora, à ordem de mais 100 € por mês”.
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso quanto à decisão recorrida que determinou que “deve continuar o Fundo de Garantia a suportar o valor dos alimentos devidos às menores em causa, e a entregá-los à mãe das mesmas, pelo que mantenho a decisão já este ano proferida sobre a revisão dos pressupostos de pagamentos do Fundo”, mantendo-se a mesma.
Mais se julga procedente o recurso quanto à decisão recorrida que determinou que “o Fundo de Garantia reponha o dinheiro em falta desde Agosto de 2012, até agora, à ordem de mais 100 € por mês”, dando-se a mesma por não escrita.
Sem custas – art.º 4º, nº 1, al. v), do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 12 de Julho de 2018

António Moreira

Lúcia Sousa

Magda Geraldes