Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2464/16.1T8PDL.L1-6
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO DE SUPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Os credores sociais por suprimentos não têm legitimidade para requerer, na qualidade de titulares de tais créditos, a insolvência da sociedade, não estando porém impedidos de poderem requerer a falência com base em créditos que lhe sejam devidos a outro título.
-O contrato de suprimento pressupõe o empréstimo - de sócio à sociedade - de dinheiro ou outra coisa fungível, ou o diferimento do vencimento de créditos do sócio sobre a sociedade.
-Pressupondo outrossim o contrato de suprimento que o crédito tenha carácter de permanência , elemento objectivo este imprescindível, pode ele inferir-se v.g. se, não tendo sido estipulado prazo para o reembolso , não foi este último exigido durante um ano.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.

                                                          
1.Relatório:

                      
A, residente em Ponta Delgada, intentou acção com processo especial contra B, Sociedade Unipessoal, Lda., com sede em Ponta Delgada, requerendo a declaração de insolvência desta última.

Alegou, para tanto e em síntese, que :
-Sendo gerente remunerado da requerida, a verdade é que há muito que a sociedade demandada – por falta de liquidez – não lhe paga qualquer  remuneração, devendo-lhe já a quantia total de €18.745,95 de remunerações vencidas e não pagas;
-Acresce que, porque a requerida tem vindo a desenvolver uma trajectória financeira deficitária, com decréscimo contínuo da facturação , é o próprio requerente que tem pago do seu próprio bolso as contas da sociedade, sendo o requerente já credor de quantia que calcula em €115.848,82;
-De resto, credores da sociedade requerida são também os seus ex-funcionários, além de alguns fornecedores;
-Não gerando a requerida receitas suficientes para as responsabilidades que tem, a continuação da sua actividade é de todo inviável, razão porque deve ser decretada a sua insolvência.
1.1. - Conclusos os autos para apreciação liminar ( cfr. artº 27º, do Cire ), foi então proferido despacho de indeferimento, sendo o respectivo teor o seguinte :
“(…)
No plano do processo de insolvência a legitimidade a que a lei se refere é, nitidamente, não a legitimidade substantiva - mas a legitimidade processual, ad causam (artigo 20.°, n.° 1 do CIRE).
Portanto, essa legitimidade é aferida nos termos gerais (artigo 17.° do CIRE).
Retornando ao caso concreto, resulta que o requerente da insolvência, não obstante ser o único sócio da sociedade comercial requerida e a alegação de que é credor da mesma, a verdade é que, embora integre a classe dos credores a que alude o artigo 20.°, n.° 1 do CIRE, assume uma concreta específica qualidade - sócio único da aqui requerida - que nos leva a tratá-lo de maneira diferenciada em relação aos demais credores ( é a diferença específica, differentia specifica ).
Caso contrário, não haveria diferenciação das espécies do mesmo género: não haveria especificação, não haveria especificidades.
Claro que, em termos epistemológicos, a generalidade/especialidade tanto se pode referir a seres, ou entes, como pode referir-se a casos previstos, ou outras realidades. Dentro do género credores, pode haver especificação, designadamente conforme a qualidade do sujeito ( imaginemos: credor sócio ou não sócio) ou conforme a fonte ou a natureza do crédito respectivo (v.g. crédito por mútuo, crédito por locação, crédito por suprimento, etc....): nessa configuração, teríamos várias espécies dentro do mesmo género. Evidentemente, a consideração de espécies dentro do género só tem relevância no campo do direito se este associar à especificação alguma diferenciação jurídica, como no caso em apreço onde o ente colectivo não pode agir por si só, mas perante a acção do particular, o que se agudiza, exponencialmente, no caso de estarmos perante sociedades unipessoais por quotas ( como acontece no caso em apreço, que se encontram previstas no artigo 270.°-A e segs. do CSC).
Assim, não tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência o concreto requerente, sendo certo que deverá, querendo, lançar mão da apresentação da sociedade requerida à insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 18.° e segs. do CIRE.
Aqui chegados, importa esclarecer o que consiste o pressuposto processual legitimidade das partes.
A legitimidade é, no campo do direito material, um conceito de relação - relação entre o sujeito e o objecto do acto jurídico. Encarada essa relação na perspectiva do sujeito, exprime a posição pessoal deste nessa relação, justificativa de que se ocupe juridicamente do objecto [ Castro Mendes, apud José Lebre de Freitas - Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. I, 1999, p. 50 ].
A legitimidade processual não é o mesmo que legitimidade substantiva, dando, de facto, aquela falta lugar à absolvição da instância e esta à absolvição do pedido. Consequentemente, facilmente se conclui que o requerente é parte ilegítima, ilegitimidade que é de conhecimento oficioso e determina a absolvição da requerida da instância [ cfr. artigos 577.°, alínea e), 578.° e 278.°, n.° 1, alínea d), todos do C.P.Civil ].
Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerandos e face aos fundamentos supra explanados, julgo verificada a excepção de ilegitimidade do requerente e, em consequência, indefiro liminarmente a petição apresentada.
Custas a cargo do requerente [artigo 7.°, n.° 1 do RCP].
Registe e notifique.”.

1.2.-Discordando da decisão referida em 1.1, e inconformado,  da mesma apelou então o requerente A, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

1-O Tribunal a quo por douta decisão decidiu verificada a excepção de ilegitimidade do requerente e, em consequência, indeferiu liminarmente a petição apresentada:
2-fundamentando que, embora integre a classe dos credores a que alude o artigo 20.°, n.° 1 do CIRE , assume uma concreta específica qualidade - sócio único da aqui requerida - que nos leva a tratá-lo de maneira diferenciada em relação aos demais credores.
3-a lei é clara no seu artigo 20 do CIRE ao legitimar para requerer a declaração de insolvência e citamos "por qualquer credor"
4-são pessoas distintas o requerente A, contribuinte n.° 229517692.
5-e a pessoa colectiva, sociedade comercial requerida insolvente B - Restauração Sociedade Unipessoal Lda, NIPC 0000000.
6-o requerente alegou e juntou prova documental de que é credor da requerida insolvente por salários em atraso.
7-o que aliás o tribunal a quo não contesta.
8-e sem que a lei o preveja, o tribunal a quo dá um tratamento diferenciado ( nas palavras do tribunal a quo ) sem que a lei o preveja, a um credor que é o único sócio da sociedade
9-ora para além de a decisão recorrida ir contra o texto expresso da lei
10-a decisão recorrida é também contrária à posição vertida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, n.° 73/10.8TBPNC.C1 Disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf
11-onde se pode ler "dentro do género credores, pode haver especificação, designadamente conforme a qualidade do sujeito ( imaginemos: credor sócio ou não sócio ).
12-onde é aceite que o credor/requerente pode ser sócio.
13-e mais extensamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 1646/14.5TBFAR.E1
14- disponível em http://www.dgsi.pt/itre.nsf
15-onde se demonstra à exaustão que o sócio não pode pedir a insolvência quando o seu crédito nasce de suprimentos - por força do artigo 245º do CSC.
16-ora no caso concreto a requerida sociedade é devedora de salários ao requerente.
17-facto alegado, comprovado por documento junto, e não contestado pelo tribunal a quo.
18-assim, e sem necessidade de mais fundamento, pois a lei é clara no artigo 20º do CIRE
19-e a jurisprudência aqui citada é exemplar
20-possibilitam a este Venerando Tribunal da Relação que decida em contrário à decisão de primeira instância, decidindo prosseguir os autos e assim sendo feita a costumada JUSTIÇA.

1.3.-Não existem contra-alegações.
                                                          
Thema decidendum
1.4.-Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,a questão a apreciar e a decidir  é tão só a seguinte:
a)Aferir se in casu existia fundamento bastante para o indeferimento liminar da petição inicial, com base na verificação da excepção de ilegitimidade do requerente;
                                                          
2.Motivação de Facto.
O circunstancialismo fáctico assente e a atender é tão só aquele que resulta da tramitação dos autos e que se mostra explanado no Relatório do presente Acórdão e para o qual se remete.
                                                          
3.Motivação de Direito.
Intentou o apelante, no tribunal a quo, um processo de insolvência, impetrando nele, naturalmente, a declaração de insolvência da sociedade requerida.
Porém, logo em sede de despacho liminar, foi o pedido de declaração de insolvência liminarmente indeferido, com fundamento na ilegitimidade do requerente, decisão que o apelante não aceita, impetrando portanto que seja a mesma revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.

Vejamos.
Emerge a decisão apelada de um processo de insolvência, acção que no artº 1º do Cire (1) se diz que “ é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.”

Por sua vez, diz-nos o artigo 3º, nº1, que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, sendo que, a respectiva declaração de insolvência, pode ser requerida ( para além do próprio devedor – cfr. artºs 18º e 19º ) por “ quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados (…)“ – cfr. artº 20º,nº1, sob a epígrafe de “Outros legitimados”.

Mas, sendo o pedido de insolvência deduzido por outrem que não pelo devedor, nomeadamente por um seu credor, deverá ele - o credor – fundar o pedido em algum dos factos mencionados no nº 1 , do artigo 20º, sendo que todos eles consubstanciam verdadeiros factos-índices, factos presuntivos, ou sintomas que exteriorizam a situação de insolvência, os quais, para todos os efeitos, porque integram autênticas presunções de insolvência (2) , ao devedor incumbirá  ilidir.

E, porque o pedido de declaração de insolvência há-se necessariamente deduzir-se por meio de petição escrita ( cfr. artºs 23º e 25º ), deverá nela o credor ( sendo ele o requerente ) justificar/indicar  ( alicerçados em factos concretos) a origem, natureza e o montante do seu crédito, oferecendo juntamente com a mesma os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor e, obrigatoriamente, oferecer desde logo todos os meios de prova de que disponha, ficando obrigado a apresentar as testemunhas arroladas ( cfr. artº 25º).

Do mesmo modo, e como é óbvio, na respectiva petição inicial há-de ainda o credor fundar o pedido em algum dos factos presuntivos do nº 1 do artigo 20º, expondo com clareza a respectiva facti species e para, a partir dela,  habilitar o Juiz do processo ( em sede de apreciação liminar ) a proferir despacho de citação do devedor ( cfr. artº 29º ), despacho de aperfeiçoamento da petição ou , ao invés, um despacho de indeferimento liminar ( cfr. artº 27º, nº1).

Dito isto, e incidindo de seguida a nossa atenção –  compreensivelmente, em razão do objecto da apelação  - sobre o legitimado Credor, importa começar por dizer que, a doutrina (3) e a jurisprudência (4) têm vindo, e sem divergências , a reconhecer a legitimidade para requerer a declaração de insolvência a qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do crédito, a tal não obstando , sequer , tratar-se de um crédito litigioso, ou não vencido, não se exigindo também que o credor possua título executivo, devendo tão só o credor justificar na petição inicial a natureza, origem e montante do crédito (art. 25.º/1).

É assim que, v.g. no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães já citado se concluiu que “Um trabalhador, mesmo que o seu crédito ainda não esteja reconhecido por sentença do Tribunal de Trabalho, tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência do devedor, justificando na petição a origem, natureza e montante do seu crédito”.

Por outra banda, e tendo presente o thema decidenduum da apelação, importa precisar que, para efeitos do disposto no artº 20º, nº1, o que interessa aferir é se o credor/requerente da insolvência dispõe de  legitimidade processual, ad causam , ou seja, se tem ele interesse directo em demandar, o qual se há-de exprimir pela utilidade derivada da procedência da acção [ cfr. artº 30º,nºs 1 e 2, do CPC, ex vi do artº 17º ].

Daí que, da conjugação do artº 30º,nºs 1 e 2, do CPC, ex vi do artº 17º , e 20º,nº1, ambos estes dois últimos do Cire, o credor será parte legítima em acção de insolvência por si intentada caso seja ele, na qualidade de titular de interesse relevante, o sujeito da relação controvertida , e tal como é esta última por si configurada na petição inicial   ( cfr. artº 30º, nº 3, do CPC, ex vi do artº 17º , do Cire .

É que, como bem se concluiu no douto Ac. do STJ já citado, “porque tal não contraria qualquer disposição do CIRE e em homenagem ao preceituado no art. 17º, deverá aquele conceito de legitimidade processual ser definido ou determinado mediante a convocação da pertinente regulamentação constante do CPC . Sendo, pois, dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não – necessariamente – quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado (Cfr. art. 26º do CPC). 
É que a questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade “ad causam” para deduzir o pedido de insolvência, a qual apenas contende com a verificação de um pressuposto processual positivo, consubstanciador, em caso de inverificação, de correspondente excepção dilatória, não podendo, pois, aquele ser privado da subsequente possibilidade processual de justificar e provar a real existência do seu invocado crédito”.
Em suma, para nós, e tal como já decidiu este mesmo tribunal da Relação de Lisboa (5) “ qualquer credor pode desencadear o processo de insolvência, para isso tendo legitimidade, bastando para tal que na petição inicial indique as razões da origem, natureza e montante do seu crédito, configurando uma relação jurídica creditícia, nisso consistindo a “justificação” a que alude o referido art 20º – sendo que tratando-se de credor por crédito litigioso essas razões compreenderão, em termos sintéticos, os termos em que se desenvolve o litigio. A partir daí o processo segue os seus termos “.

Postas estas breves onsiderações, e arrogando-se o apelante aqualidade  de credor da requerida/devedora,

justificando/indicando  a origem, natureza e o montante do seu crédito, prima facie nada justificava a prolação pelo Exmº Juiz titular do processo da decisão apelada, maxime com o fundamento de carecer o requerente da insolvência de legitimidade para requerer a declaração de insolvência , ainda que arrogando-se a qualidade de credor.
Será que, os fundamentos [ no essencial extraídos de Ac. proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/5/2011 (6), e o qual , quiçá por mero lapso, não é porém mencionado ]  invocados pelo Exmº Juiz a quo, ainda que em termos não satisfatoriamente/facilmente acessíveis e entendíveis, justificavam a decisão apelada ?.

É o que se impõe aferir já de seguida.

Em primeiro lugar, importa reconhecer que, não havendo motivo para indeferimento liminar, e impondo-se de seguida proceder à citação do devedor ( cfr. artº 29º,nº1, in fine, do Cire ),  uma possível consequência inevitável é a de se verificar um conflito de interesses entre a sociedade/devedora e o seu representante/gerente, sendo que nesta matéria , compreensivelmente, licito não é um sócio intervir simultaneamente numa acção na qualidade de demandante  e na qualidade de representante legal da sociedade devedora demandada.

É que, nas referidas situações, a vontade do sócio único coincide com a própria vontade da sociedade. (7)

Tal contrariedade, porém, não justifica o indeferimento liminar da petição inicial, antes obriga a que o juiz, confrontado com a existência de conflito de interesses entre a Ré e um seu representante , providencie nos termos do disposto no artº 25º, nº2, do CPC [ reza o referido dispositivo que, “ sendo demandada pessoa colectiva ou sociedade que não tenha representante ou ocorrendo conflito de interesses entre a ré e o seu representante, designará o juiz representante especial, salvo se a lei estabelecer outra forma de assegurar a respectiva representação em juízo ] , que o mesmo é dizer, proceda à  regularização da instância, nomeando à sociedade/devedora um representante especial como forma de assegurar a respectiva representação em juízo.

O fundamento para o indeferimento da petição, alicerçado na falta de  pressuposto processual da legitimidade das partes, só se justifica, assim, caso se imponha concluir que, apesar de credor, certo é que a natureza dos créditos do qual se arroga o requerente/apelante credor da demandada/devedora, não lhe conferem ainda assim a exigível “qualidade” para requerer a declaração de insolvência da requerida.

Vejamos, se tal é a situação dos autos.

Ora, o nº2, do artº 245º, do CSC, dispõe que “ Os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade. Todavia, a concordata concluída no processo de falência produz efeitos a favor dos credores de suprimentos e contra eles “.

A referida disposição legal (8) , sendo uma regra especial que prevalece sobre a regra geral atinente à legitimidade (9) constante no art.º 20º do C.I.R.E. , como que reduz o “leque” dos credores com legitimidade para requerer a insolvência,   ainda que o não faça em termos absolutos.

É que, como bem salienta João Aveiro Pereira (10), sempre os mesmos credores ( por suprimentos ) podem requerer a falência com base em créditos sobre a sociedade/ devedora, não por suprimentos, mas a um outro título. (11)

Isto dito, diz-nos o artº 243º,nº1, do CSC, que “ Considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência .

O CSC, portanto, e ao invés do que ocorria em data anterior à sua vigência, também integra no âmbito do conceito/modalidade de contrato de suprimento o diferimento do vencimento de créditos do sócio sobre a sociedade, sendo que, “o crédito do sócio sobre a sociedade já existe no momento da convenção, não importando a origem do mesmo, apenas se acordando numa dilatação do seu prazo de vencimento “ . (12)

No essencial, o referido contrato pressupõe a especifica relação entre o sócio e a sociedade, sendo meramente consensual ( cfr.nº6, do artº 243º, do CSC) , e não estando dependente da entrega da quantia mutuada ( porque é uma espécie do mútuo ) , não é assim um contrato real quoad constitutionem . (13)

Por outra banda, e para como tal poder ser considerado ( como suprimento ) , exigível é ainda verificar-se um outro elemento relevante, qual seja o da “permanência” do negócio, elemento este que pode revelar-se/presumir-se  ao estipular-se um prazo de reembolso superior a um ano, ou decorrer da não utilização - pelo sócio - da faculdade de exigir o reembolso devido pela sociedade durante um ano, contado da constituição do crédito, quer não tenha sido estipulado prazo, quer tenha sido convencionado prazo inferior ( cfr. nºs 2 e 3, do artº 243º, do CSC).

Em termos conclusivos, dir-se-á que o contrato de suprimento tem em regra por objecto imediato a entrega de dinheiro ou de outra coisa fungível ( cfr. artº 243.º, n.º 1 do CSC) , mas , todavia, apenas os créditos que desempenhem na sociedade “ a função económica de substituição do capital próprio”  -  função  esta que há-de brotar do carácter de “permanência dos créditos dos sócios na sociedade”, elemento objectivo este que é decisivo/relevante, e que , por não ser de fácil apreensão, criou o legislador criou “índices de permanência”, isto é, presunções (ilidíveis) da existência de um contrato de suprimento, como a duração efectiva e o prazo estipulado  -  é que devem ficar sujeitos ao regime especial do mesmo. (14)

Aqui chegados, e descendo agora ao concreto, certo é que é o próprio credor/apelante que no requerimento inicial reconhece que ab initio se confrontou a demandada sociedade com falta de meios de pagamento e de bens suficientes para garantir a satisfação dos sus compromissos, ou seja, com  falta de liquidez para garantir a satisfação dos seus compromissos perante os credores em geral ( fornecedores, trabalhadores , e o próprio sócio demandante ), tendo o recurso sistemático, duradouro e permanente ao demandante [ através do pagamento pelo sócio de créditos de terceiros sobre a sociedade, e através do diferimento do vencimento de créditos do próprio sócio sobre ela ] sido o meio encontrado para suprir a debilidade financeira da sociedade demandada.

É igualmente o próprio credor/apelante que, no seu requerimento inicial ,reconhece que a insuficiência económica da sociedade demandada cedo deixou de se ocasional, antes passou a revelar-se congénita e estrutural,   razão porque há muito ( se é que alguma vez chegou a fazê-lo ) que não utiliza a faculdade de exigir o reembolso dos financiamentos concedidos à sociedade e o pagamento dos créditos remuneratórios que sobre a mesma detém.
Ou seja, tudo aponta, portanto, para que os créditos dos quais o demandante se arroga titular em relação à sociedade demandada, devam integrar a previsão do n.º 1, do art.º 243º do Código das Sociedades Comerciais, que o mesmo é dizer, e em rigor , se arrogue o apelante como credor da apelada com base em contratos de suprimento ( credor de suprimentos ), e na modalidade de “ diferimento do vencimento de créditos sobre  a requerida sociedade” .

Destarte, porque como vimos supra, nos termos do nº 2, do artº 245º, do CSC, “ Os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade”, bem andou portanto o tribunal a quo em indeferir liminarmente a petição inicial .
Em suma, impõe-se pois a improcedência da apelação e a confirmação da decisão apelada .
                                                          
4-Concluindo   ( cfr. nº 7, do artº 663º, do cpc ) .

I-Os credores sociais por suprimentos não têm legitimidade para requerer, na qualidade de titulares de tais créditos, a insolvência da sociedade, não estando porém impedidos de poderem requerer a falência com base em créditos  que lhe sejam devidos a outro título.
II-O contrato de suprimento pressupõe o empréstimo  - de  sócio à sociedade - de  dinheiro ou outra coisa fungível, ou o diferimento do vencimento de créditos do sócio sobre a sociedade.
III-Pressupondo outrossim o contrato de suprimento que o crédito tenha  carácter de permanência , elemento objectivo este imprescindível, pode ele inferir-se v.g. se, não tendo sido estipulado prazo para o reembolso , não foi este último exigido durante um ano.
                                                          
5.-Decisão.

Em face de tudo o supra exposto,
acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa, na ...ª Secção Cível, em, julgando improcedente a apelação, manter/confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.



LISBOA, 24/11/2016

                            
António Manuel Fernandes dos Santos(Relator) 
Francisca da Mata Mendes (1ª Adjunta)
Eduardo Petersen Silva (2º Adjunto)

                                                        
1)Código daInsolvênciae da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março, e ao qual pertencerão doravante todas as disposições legais mencionadas sem qualquer outra menção de origem.
(2)Cfr. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, Quid Júris – Sociedade Editora, 2015, 3ª Edição, pág. 06, Vol. I, págs. 196 e segs..
(3)Cfr. v.g. Luís de Menezes Leitão, in  Direito da Insolvência, 5.ª ed., 2013, pág. 124; Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, ibidem, pág. 198; Catarina Serra, in A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, pág. 230 e ss. , e Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 2014, 6ª Edição, pág. 36.
(4)Cfr. v.g. o Ac. do STJ de 29/3/2012, proferido no proc. 1024/10.5TYVNG.P1.S1 e Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. nº 894/14.2T8GMR.G1, de 17/12/2014, ambos  in www.dgsi.pt.
(5)Cfr. Ac. de 21/3/2013, proc. nº 1620/11.3TYLSB.L1-2 e in www.dgsi.pt.
(6)Proferido no processo nº 73/10.8TBPNC.C1 , e in www.dgsi.pt.
(7) Cfr. Paulo Olavo Cunha, in Direito das Sociedades Comerciais, 4ª Edição, Almedina, pág.626.
(8)Sobre a actual vigência do n.º 2 do art.º 245.º do CSC, que não foi revogado pelo CIRE, vide por todos o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25/6/2015, proc.º 1011/14.4TYLSB.L1-2, in www.dgsi.pt.
(9)Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 10/9/2015, proc.º 1646/14.5TBFAR.E1, in www.dgsi.pt.
(10)  In O Contrato de Suprimento, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 98.
(11)Cfr. também o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 13/5/1997, proc.º 9621557, in www.dgsi.pt
(12)Cfr. João Aveiro Pereira, ibidem, pág. 77.
(13)Cfr. Paulo Olavo Cunha, in Direito das Sociedades Comerciais, 4ª Edição, Almedina, pág.478/479.
(14)Cfr. Jorge M. Coutinho de Abreu, in Código das Sociedades Comercias, Vol. III, Almedina, 2001, págs.  637 e segs. .
Decisão Texto Integral: