Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1834/11.6TYLSB.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
RESPONSABILIDADE
ESTADO
IGFEJ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- As situações previstas nos artigos 29.º n.º 1 e 30.º n.º1 do Estatuto do Administrador Judicial são aquelas em que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas dos credores.
II - A lei teve em vista a remuneração fixa e obrigatória do administrador de insolvência, conforme prevista no art.º 23.º do EAJ. Ou seja, no caso em que a remuneração do administrador é automática e decorre da sua nomeação pelo Tribunal. Por isso, caso a massa insolvente não seja suficiente para suportar tal despesas, compreende-se que tenha sido criado um mecanismo de garantir o pagamento pelo próprio Estado.
III - No caso dos autos, em que foi fixada uma remuneração em assembleia de credores, por deliberação desta, não tendo a massa insolvente meios de a pagar, não pode tal remuneração ser suportada pelo Estado, pois não seria razoável que este fosse chamado a suportar uma dívida que sempre seria imprevisível, indeterminada, comprometendo-se assim, a criteriosa aplicação de dinheiros públicos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
A, Administrador de Insolvência nomeado nos presentes autos de insolvência, interpôs recurso do despacho proferido, com o seguinte teor:
(…)
 “O Administrador da Insolvência veio requerer o pagamento da remuneração fixada na Assembleia de Credores para a elaboração do plano de insolvência.
Cumpre apreciar e decidir:
Na Assembleia de Credores o Administrador da Insolvência foi incumbido de elaborar plano de insolvência.
A Assembleia de Credores fixou a remuneração do Administrador da Insolvência pela elaboração do plano em €5.000,00 .
O Administrador da Insolvência elaborou o plano de insolvência, que previa a liquidação da sociedade, mediante a alienação do estabelecimento de farmácia ou subsidiariamente a reabertura da farmácia e a sua exploração e subsequente alienação. O plano foi aprovado e homologado.
Sucede que, em virtude da decisão de cassação do alvará da farmácia pelo Infarmed, foram apenas vendidos bens móveis, tendo sido obtido o montante de 778,82 €.
Subsequentemente o processo foi encerrado por insuficiência da massa insolvente.
Pretende o Administrador da Insolvência que seja o IGFEJ a pagar a remuneração que lhe foi fixada na Assembleia de Credores.
Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Administrador da Insolvência.
Se não vejamos: 
Estabelece o artigo 29.º, n.º 1 do Estatuto dos Administradores Judiciais que “(…) a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pela massa insolvente, salvo o disposto no artigo seguinte”.
Já nos termos do n.º 1 do artigo 30.º do mesmo diploma “nas situações previstas nos artigos 39.º e 232.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça”.
Sucede que a remuneração prevista neste preceito é apenas a remuneração fixa, i. e a que se encontra prevista no artigo 23.º do mesmo diploma. Isto porque é esta a remuneração cujo valor se encontra legalmente fixado. Com efeito, nos restantes casos (remuneração pela elaboração de plano, remuneração pela gestão do estabelecimento após a assembleia de credores e remuneração de Administrador da Insolvência nomeado em Assembleia de Credores), a remuneração é fixada pelos credores, sem que o Tribunal possa exercer qualquer controlo quanto à adequação do respectivo valor.
Entendimento contrário implicaria que o Estado fosse responsável pelo pagamento de quantia que não determinou, nem foi determinada pelo Tribunal e que poderá ascender a vários milhares de euros.
Mais, o Administrador da Insolvência pode recusar elaborar o plano se não concordar com o respectivo valor, ou seja, em última análise, é o próprio Administrador da Insolvência que condiciona o valor a fixar pelos credores.
Por outro lado, no artigo 30.º, n.º 1, o legislador quis assegurar que o Administrador da Insolvência não exerceria as suas funções sem ser ressarcido pelo menos de um montante que fixou e que considerou adequado à remuneração da tramitação corrente do processo de insolvência.
Acresce que, nos casos de insuficiência da massa insolvente há dívidas da massa que não são pagas.
Em face do exposto, indefere-se o requerido.
Notifique.”
Inconformado com o teor desta decisão, vem o Administrador de Insolvência interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto do douto Despacho proferido a fls. (refª 376289566) que indeferiu o pedido de pagamento pelo IGFEJ da remuneração fixada ao AI em sede de Assembleia de Credores para a elaboração do plano de insolvência.
2. Salvo o devido respeito, o douto Despacho recorrido faz uma indevida interpretação e aplicação das regras de direito às quais a matéria em causa neste Recurso é efectivamente subsumível.
3. O ora Recorrente foi nomeado para o exercício das funções de AI neste processo de insolvência pelo Tribunal, concretamente (e desde logo) na douta Sentença de insolvência proferida em 21/02/2012.
4. Em sede de Assembleia de Credores de apreciação do Relatório realizada em 03/05/2012 e sob proposta dos credores "OCP Portugal - Produtos Farmacêuticos, S.A" e "Udifar II - Distribuição Farmacêutica, SA", foi deliberado por unanimidade dos credores aí presentes fixar a remuneração devida ao AI pela elaboração do plano de insolvência no valor de 5.000,00 Euros, o que foi declarado aprovado por despacho judicial proferido nessa mesma diligência.
5. O plano de insolvência [de liquidação do único activo da insolvente (estabelecimento e alvará de farmácia)] foi efectivamente elaborado, oportunamente junto aos autos pelo AI, aprovado em sede de (nova) Assembleia de Credores realizada para esse efeito em 27/09/2012 e posteriormente homologado por Sentença proferida em 21/11/2012.
6. Sucede porém que, a posterior decisão administrativa tomada pelo INFARMED de cassação do alvará veio impedir de forma categórica e irrevogável a execução e/ou implementação do plano de liquidação aprovado pelos credores e homologado pelo Tribunal e, em consequência, eliminar o único activo da insolvente apreendido nos autos (estabelecimento comercial denominado «Farmácia Central de Carcavelos» e respectivo alvará de funcionamento nº 2248 emitido pelo INFARMED).
7. Não restaram assim quaisquer activos da insolvente passíveis de liquidação, uma vez que os poucos bens móveis existentes naquele estabelecimento estavam obsoletos e não tinham por si qualquer valor venal de venda.
8. Pelo que, a conta da massa insolvente apresentava um saldo residual proveniente de juros líquidos resultantes da aplicação a prazo temporária do sinal depositado pelo promitente-comprador daquele activo (e que, naturalmente, lhe foi devolvido) - e não resultante da venda de bens móveis, conforme certamente por lapso consta do douto Despacho recorrido.
9. Assim e por decorrência legal, em 11/12/2017 foi proferido despacho de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente, ex vi artigos 230º nº 1 d) e 232º nº 2 ambos do CIRE (cfr. fls. dos autos).
10. Dispõe o artigo 60º nº 1 do CIRE que «O administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto (…)».
11. O artigo 26º do Estatuto do Administrador Judicial aprovado pela Lei nº 22/2013 de 26/02 e alterado pela Lei nº 17/2017 de 26/05 (abreviadamente EAJ) prevê sob a epígrafe «Remuneração pela elaboração do plano de insolvência» que: «Caso os credores deliberem, na assembleia referida no nº 1 do artigo anterior, instruir o administrador da insolvência no sentido de elaborar um plano de insolvência, devem, na mesma deliberação, fixar a remuneração devida pela elaboração deste, podendo o administrador da insolvência recusar-se a elaborar o plano se considerar que a remuneração que lhe seja fixada não é adequada.»
12. Nos termos do disposto no artigo 51º nº 1 b) do CIRE: «(…) são dívidas da massa insolvente (…): b) As remunerações do administrador da insolvência (…)».
13. No mesmo sentido, dispõe o artigo 29º nº 1 do EAJ: «(…) a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pela massa insolvente, salvo o disposto no artigo seguinte.»
14. O «artigo seguinte» - artigo 30º do EAJ - intitulado «Pagamento da remuneração do administrador da insolvência suportada pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça estatui especificamente no seu nº 1 que «Nas situações previstas nos artigos 39º e 232º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça.»
15. Nos termos do disposto no artigo 59º nº 1 a) da Constituição da República Portuguesa: «1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna».
16. O Tribunal a quo entendeu que, não obstante a insuficiência da massa insolvente, o AI não tem direito a que a remuneração que lhe foi atribuída e fixada pela tarefa de elaborar e apresentar o plano de insolvência
- que executou, relembra-se (!) - seja suportada pelo IGFEJ.
17. Com o devido respeito falecem, quer os argumentos, quer a conclusão constantes da douta Decisão recorrida.
18. Por um lado, porque o artigo 30º nº 1 do EAJ não faz qualquer distinção da remuneração a que se refere - se apenas à remuneração fixa ou se também às demais remunerações legalmente previstas para as tarefas não correntes que podem ser atribuídas ao AI, tais como as de elaborar um plano de insolvência ou de assegurar a gestão de um estabelecimento,
19. Razão pela qual, se todos esses tipos de remuneração têm cabimento e previsão legal, quer no CIRE, quer no EAJ, não se compreende como, em caso de insuficiência da massa, apenas um será a suportar pelo IGFEJ.
20. Entendimento diverso - que naturalmente não se aceita - redundaria numa clara violação do princípio constitucionalmente consagrado da retribuição do trabalho prestado, pois que, na ausência / insuficiência da massa insolvente - como é o caso destes autos - impõe-se proceder ao pagamento do valor fixado a adiantar pelos cofres de forma a cumprir com digno sinalagma aquele princípio constitucional.
21. Por outro lado, conforme é referido no douto Despacho recorrido, a remuneração fixa prevista pelo legislador como o mínimo que considerou adequado que fosse pago ao AI, foi-o para as tarefas correntes do processo de insolvência.
22. Ora, certamente que será unanimemente considerado e aceite que a elaboração de um plano de insolvência não se insere na tramitação corrente de um processo de insolvência, consubstanciando antes uma empreitada extraordinária que pode ser acometida ao AI, e que, uma vez realizada, dever ser-lhe paga nos termos legais - ou pela massa insolvente ou, na ausência / insuficiência desta, pelo IGFEJ.
23. Por outro lado ainda, não se pode afirmar com inteira correcção que o Tribunal não pode ou não exerceu qualquer controlo quanto à adequação do valor fixado em sede de Assembleia para a realização pelo AI de tal tarefa.
24. É que, para além de a lei prever - cfr. artigo 53º nº 3 do CIRE - um mecanismo de controlo pelo Juiz de retribuições do AI aprovadas pelos credores que poderia (caso assim fosse entendido pelo Tribunal) ter sido aqui accionado, a verdade é que, (também) no caso dos autos, a Assembleia de Credores no decurso da qual foi deliberado fixar a remuneração do AI pela elaboração do plano de insolvência no valor de 5.000,00 Euros foi presidida pela Exma. Senhora Juíza (então) em funções no Tribunal de 1ª Instância que sindicou a deliberação tomada, considerando-a aprovada.
25. Por fim, o AI não condicionou o valor deliberado pelos credores para realização dessa tarefa, pois a sua remuneração foi fixada sob proposta de dois credores, com a qual todos os intervenientes processuais (demais credores, AI e Tribunal) se conformaram e aceitaram.
26. Atente-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo 3667/04.7TJVNF-AF.P1, data: 06/05/2013, Relator: Carlos Querido (disponível em www.dgsi.pt): «No que concerne aos honorários e despesas referentes ao período anterior à homologação do plano de insolvência, tendo o administrador da insolvência sido nomeado pelo juiz e verificando-se a inexistência de massa insolvente nos autos, nos termos do artigo 27º do Estatuto do Administrador da Insolvência (Lei nº 32/2004, de 22.07) deverão ser suportados pelo Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, I.P.»
27. E ainda no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo 2504/05.0TBPNF.P1, data: 14/09/2010, Relator: Guerra Banha (também disponível em www.dgsi.pt): «Neste caso, está apenas em causa o pagamento da remuneração pela elaboração do plano da insolvência, (…). Com a particularidade de que o administrador da insolvência foi nomeado pelo Tribunal, e não pelos credores (…). Não havendo liquidez na massa insolvente, o nº 8 do art. 26º do Estatuto, na redacção dada pelo mesmo Decreto-Lei anteriormente referido, manda aplicar o nº 1 do artigo seguinte (27º), segundo o qual a remuneração do administrador da insolvência é suportada pelo Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, I. P.»
28. Face a tudo o que fica exposto dúvidas certamente não restam que o douto Despacho recorrido padece de um erro de julgamento, por violação do disposto nos artigos 60º nº 1 e 51º nº 1 b) ambos do CIRE, artigos 26º, 29º nº 1 e 30º nº 1 todos do EAJ e artigo 59º nº 1 a) da Constituição da República Portuguesa,
29. Impondo-se então que a Decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que defira o pedido de pagamento pelo IGFEJ da remuneração fixada ao AI em sede de Assembleia de Credores para a elaboração do plano de insolvência no valor de 5.000,00 Euros, acrescida e deduzida da legal tributação em sede de IVA e IRS. 
 Termos em que, bem como nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve, 
Ser concedido provimento ao presente Recurso interposto pelo ora Recorrente e, consequentemente, ser o douto Despacho de primeira instância revogado e substituído por outro que defira o pagamento requerido pelo AI nos termos das conclusões ora apresentadas.
Assim se fazendo a costumada Justiça.”

O Ministério Público apresentou contra alegações, pronunciando-se pela confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Os elementos constantes da decisão são os constantes do relatório supra.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, a única questão que cumpre apreciar consiste em saber se o IGFEJ deverá ser chamado a suportar a remuneração fixada ao AI em sede de Assembleia de Credores para a elaboração do plano de insolvência no valor de 5.000,00 Euros.
Conforme refere o artº 29 nº 1 do Estatuto do Administrador Judicial  (EAJ)[1], “a remuneração do administrador da Insolvência e o reembolso das despesas são suportadas pela massa insolvente, salvo o disposto no artigo seguinte”.
Por seu turno, o art.º 30.º n.º1 do mesmo diploma determina que “nas situações previstas nos artigos 39 e 232 do CIRE, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportadas pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça”.
As situações previstas naqueles preceitos legais são aquelas em que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas dos credores.
Contudo, cremos que a lei teve em vista a remuneração fixa e obrigatória do administrador de insolvência, conforme prevista no art.º 23.º do EAJ. Ou seja, no caso em que a remuneração do administrador é automática e decorre da sua nomeação pelo Tribunal. Por isso, caso a massa insolvente não seja suficiente para suportar tal despesas, compreende-se que tenha sido criado um mecanismo de  garantir o pagamento pelo próprio Estado. E nesse caso, sabe-se de antemão qual o valor a ser suportado pelo Estado.
Porém, no caso como o dos autos, em que a remuneração depende da decisão dos credores e do próprio administrador de insolvência, pois é fixada em assembleia de credores, por deliberação desta, já não cremos que a solução legal seja a mesma. E entendemos assim, pelas razões plasmadas quer no despacho recorrido quer nas contra alegações do Ministério Público. Na verdade, não seria razoável que o Estado fosse chamado a suportar uma dívida que sempre seria imprevisível, indeterminada, na dependência daquilo que fosse aprovado pela assembleia de credores, comprometendo-se assim, a criteriosa aplicação de dinheiros públicos, como bem refere o Ministério Público.
Entendemos assim que não merece censura o despacho recorrido, devendo manter-se.
IV-DECISÃO
Face ao exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante.
Lisboa, 24 de Janeiro de 2019

Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho

[1] Aprovado pela Lei n.º 22/2013 de 26-02.