Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
121/08.1TELSB-J.L1-9
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: RECLAMAÇÃO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
CONEXÃO
SUBIDA DO RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2015
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA O PRESIDENTE
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Os recursos cuja retenção os torna absolutamente inúteis são apenas aqueles cujo efeito não mais poderá ser obtido, ainda que revogada a decisão sob recurso.

II - A conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: RECLAMAÇÃO

J..., arguido nos autos, apresenta reclamação, nos termos do disposto no art.° 405.° do C. P. Penal, do despacho de 4/3/2015, a fls.1683 (fls.13735 dos autos principais), que admitiu o recurso por ele interposto a fls. 1616 (fls. 13685 dos autos principais), do despacho de 22/1/2015, a fls. 1437 (fls. 13157 dos autos principais), a subir diferidamente, com o recurso interposto da decisão que puser termo à causa, com fundamento, em síntese, em que:
- no recurso pretende que o Tribunal onde corre termos o P.° n.° 4910/08.9TDLSB, seja declarado competente por conexão para proceder ao julgamento do reclamante e dos arguidos destes autos que sejam comuns a este e ao P.° n.° 4910/08.9TDLSB; - da procedência do recurso no P.° n.° 4910/08.9TDLSB resultará a necessidade de no processo n.° 121/08.1TELSB se fazer separação de processos para o julgamento dos arguidos não comuns a ambos;
- por sua vez, no recurso interposto nestes autos pretende o reclamante que seja decidida a suspensão do processo até que seja decidida definitivamente a questão da competência suscitada no P.° n.° 4910/08.9TDLSB;
- encontrando-se em curso o julgamento nestes auto desde o início de março de 2015 e encontrando-se também em curso o julgamento no P.° n.° 4910/08.9TDLSB, a não subida imediata torna impossível o julgamento conjunto, porque a conexão apenas poderá ser decretada enquanto os processos se encontrem na mesma fase, deixando-se sem tutela recursória o direito do arguido a um julgamento conjunto, em violação do art.° 8.° da CEDH e do art.° 20.°, n.° 5, da CRP;
- caso o recurso venha a subir a final e os processos se encontrem já em fases diferentes, a finalidade visada pelo reclamante é posta em causa por ser absolutamente inútil que o tribunal determine a suspensão deste processo até ser definitivamente julgada a questão da competência por conexão suscitada no P.° n.° 4910/08.9TDLSB e pendente de recurso;
- a interpretação dos art.°s 407.°, n.° 1, 7.°, e 24.°, n.°s 1 e 2 e 30.°, n.° 1, do CPP, no sentido de atribuir subida diferida a este recurso, onde se discute a obrigatoriedade de se aguardar pela decisão da questão da competência por conexão. é materialmente inconstitucional, por violação dos art.°s 18.°, n.°s 2 e 3, 20.°, n.° 5 e 32.°, n.°s 1 e 9 da CRP, por restrição desnecessária dos direitos de defesa do arguido;
O despacho reclamado, de 4/3/2015, admitiu o recurso, a subir diferidamente, com o recurso interposto da decisão que puser termo à causa, com fundamento, em síntese, em que nada impede que os atos praticados sejam anulados e repetidos com acolhimento das regras de competência invocadas pelo arguido, pelo que o regime de subida fixado ao recurso o não torna absolutamente inútil.
Por sua vez, o despacho recorrido, de 22/1/2015, depois de referir que, segundo as informações recebidas do P.° n.° 4910/08.9TDLSB, a produção de prova iniciou-se nesse processo em 25/1/2011, tendo sido ouvidas 101 testemunhas e faltando inquirir 5 testemunhas de acusação e 98 de defesa, decidiu "Pelo exposto, indefere-se à requerida declaração de incompetência deste tribunal para proceder ao julgamento do arguido requerente e dos demais co-arguidos do Proc. N.° 4910/08.9TDLSB. bem como à remessa de certidão integral àquele tribunal para o efeito de ali serem julgados os fatos imputados aos arguidos em ambos os processos" e mais decidiu, reportando-se ao fato de na sua contestação o reclamante ter requerido a suspensão do processo até que no P. n.° 4910/08.9TDLSB seja apreciada a questão da competência por conexão para julgar também o P.° n.° 121/08.1TELSB, que "O tribunal já se pronunciou...Não tem, pois, que fazê-lo, uma vez mais...".

Conhecendo.
Como decorre da decisão do tribunal a quo que acabamos de transcrever e porque é essa decisão e não o recurso que a impugna que baliza o ato processual que foi praticado nos autos, o que está em causa no recurso a que respeita esta reclamação não é a suspensão deste processo até que seja decidida definitivamente a questão da competência suscitada no P.° n.° 4910/08.9TDLSB, como pretende o reclamante, mas a existência de uma situação de competência por conexão, tendo o tribunal reclamado indeferido a pretensão do reclamante, declarado a sua competência e iniciado o julgamento.
As decisões proferidas em ambos os processos são harmónicas, convergindo no mesmo sentido, de indeferimento do julgamento conjunto, em que este tribunal se declarou competente e aquele incompetente, sendo que a decisão definitiva num dos processos põe fim à questão, não podendo ser prejudicada pela outra.

Assim corrigida a configuração da reclamação dela passamos a conhecer.
O cerne da questão submetida à nossa apreciação no âmbito desta reclamação consiste, de forma imediata, em saber se deve manter-se o regime de subida fixado ao recurso pelo tribunal reclamado ou se o mesmo deve ser mandado subir de imediato, e de forma mediata, se a retenção do recurso o torna absolutamente inútil, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 407.°, n.° 1, do C. P. Penal.
Na apreciação dessa questão observaremos duas regras processuais cuja existência é pacífica na doutrina e na jurisprudência nacionais.
Pela primeira, resultante da conjugação dos princípios jura novit curia, consagrado no art.° 5.° do C. P. Civil, e do dever de pronúncia do tribunal, consagrado nos art.°s 608,0, n.° 2 e 615.°, n.° 1, al. d) do mesmo código, aplicáveis, ex vi, art.° 4.°, do C. P. Penal, limitar-nos-emos a conhecer da questão, ela mesma, e não também de todos os fundamentos que em relação a ela são invocados.
Pela segunda, uma inerência da função de administração da justiça, constitucionalmente cometida aos tribunais pelo art.° 202.° da Constituição da Republica Portuguesa, limitaremos o nosso conhecimento ao concreto conflito processual que nos é presente, abstendo-nos da formulação e apreciação de situações hipotéticas ou projeções de atos processuais futuros, em tudo o que não seja estritamente necessário à delimitação do disposto no art.° 407.°, n.° 1, do C. P. Penal, invocado como enquadramento legal imediato da pretensão do reclamante,

O art.° 407.°, n.° 1, do C. P. Penal dispõe que:
"Sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis". E dispõe o art.° 408.°, n.° 3, do C. P. Penal que:
"Os recursos previstos no n.° 1 do artigo anterior têm efeito suspensivo do processo quando deles depender a validade ou a eficácia dos actos subsequentes, suspendendo a decisão recorrida nos restantes casos".
Como desde há muito é jurisprudência uniforme dos tribunais portugueses, os recursos cuja retenção os torna absolutamente inúteis são apenas aqueles cujo efeito não mais poderá ser obtido, ainda que revogada a decisão sob recurso.

Ou seja, o recurso só é inútil se o efeito que se propõe obter deixar de ser possível.
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/02/84 (in www.dgsi.pt): "só se verifica a inutilidade absoluta do recurso quando, seja qual for a solução que o Tribunal Superior lhe der, ela é já absolutamente inútil no seu reflexo sobre o processo; só existirá essa inutilidade absoluta se o recurso não servir para nada, caso não suba imediatamente".
Conhecedor desta estabilizada orientação jurisprudencial, o reclamante aduz argumentos que, no seu conjunto, se propõem demonstrar que, sendo a sua pretensão processual a de um julgamento conjunto da matéria de dois processos já com julgamentos em curso, terminados tais julgamentos deixará de ser possível esse julgamento conjunto, e que essa situação integra o conceito de "...absolutamente inúteis", constante do n,° 1, do art.° 407.° do C. P. Penal.
Esta asserção, na sua aparência, apresenta-se verosímil, uma vez que, na realidade, realizados os dois julgamentos não vislumbramos fundamento legal para
a sua anulação, em ordem a que os respetivos ilícitos sejam, de novo, julgados, agora em conjunto, por força do instituto da competência por conexão, consagrado nos art.°s 24.° a 31.° do C. P. Penal.
Trata-se, todavia de uma inutilidade naturalística e não daquela inutilidade absoluta que, como conceito jurídico, o art.° 407.0, n.° 1, do C. P. Penal, imputa à não subida imediata do recurso para, evitando-a, determinar, precisamente, que o recurso suba de imediato.
Ora, esta inutilidade absoluta, no caso sub judice, não resulta da retenção do recurso, mas do momento do iter processual em que o reclamante suscitou a questão nos autos.
É a questão, tal como suscitada, que se inutiliza a si própria e aos efeitos processuais que se propõe atingir.
Quando é suscitada nos autos a questão já é inútil, pois, o julgamento no P.° n.° 4910/08.9TOLSB já se encontra numa fase tão adiantada que já não é possível um julgamento conjunto, com observância das regras e princípios próprios de um julgamento criminal, tal como previsto pela nossa ordem jurídica.
Quando a questão é suscitada nos autos, a proceder por hipótese académica, exigiria ao tribunal reclamado a criação de uma forma processual própria, com a provável paralisação de ambos os julgamentos, o que, de todo, lhe está constitucionalmente vedado.
Como refere o tribunal a quo na sua criteriosa decisão, quando a questão lhe foi suscitada, no julgamento do P.° n.° 4910/08.9TDLSB, a produção de prova, que teve inicio em 25/1/2011, encontrava-se em estado adiantado, tendo já sido ouvidas 101 testemunhas e faltando inquirir 5 testemunhas de acusação e 98 de defesa.
No momento em que é recebido o recurso e fixado o regime de subida, a inutilidade absoluta que o reclamante imputa à subida a final já existe porque os julgamentos estão em curso, pelo que o prejuízo para o efeito útil do recurso lhe é pré-existente, mas pelo atraso do arguido em suscitar a questão e não pela retenção do recurso,
A inutilidade do recurso será ditada pela forma atípica com que o reclamante invocou o instituto da competência por conexão e não pelo regime de subida que lhe foi fixado, limitando-se este e o próprio recurso a transportar a inutilidade da questão suscitada nos autos.
Com efeito, sem prejuízo do direito e das garantias de defesa que estão presentes em todo o processo penal, a ratio legis do instituto da competência por conexão que, grosso modo, possibilita o julgamento conjunto, pelo mesmo tribunal, de crimes para cujo julgamento seriam competentes tribunais distintos (art.° 28.° do C. P. Penai), quando praticados pelo mesmo agente ou por agentes distintos em comparticipação (art.° 24.°, do C. P. Penal) situa-se, essencialmente, ao nível da economia processual, como resulta, desde logo, do fato de à organização de um só processo ou à tradicional forma de operar a competência por conexão, a apensação de processos (art.° 29.° do C. P, Penal), poder corresponder um ato processual de sinal contrário, a separação dos processos, em face do interesse ponderoso da pretensão punitiva do Estado, do interesse do arguido, do interesse do ofendido ou do lesado e da celeridade processual (art.° 30.° do C. P. Penal).
E assim é que, como estabelece o art.° 24.°, n.° 2, do C. P. Penal "A conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento".
Não queremos com isto dizer que o interesse do arguido e as suas garantias de defesa não estejam presentes no julgamento conjunto, determinado pelas regras de competência por conexão, mas apenas que este não é o escopo principal do
instituto, e que o exercício pleno do direito de defesa até poderá determinar o julgamento em separado.
O direito e as garantias de defesa, que o reclamante invoca como podendo sair prejudicados pela apreciação tardia do recurso e pela impossibilidade de julgamento conjunto que, como referimos, não poderá ser atribuída ao efeito fixado ao recurso, encontram-se devidamente acautelados peia ação de outros institutos processuais, dos quais, apesar de não ser este o momento nem a forma processual próprios, indicamos os princípios do caso julgado e ne bis in idem (art.° 29.°, n.° 5, da Constituição) em conjugação com as figuras do concurso de crimes e crime continuado e respetivo regime de punição (art.°s 30.° e 77.° a 79.°, do C. Penal), cujo funcionamento impedirá que o arguido seja prejudicado pela não realização de julgamento conjunto, v. g. por ocorrer uma das situações previstas no n.° 2 do art.° 24.°, do C. P. Penal.
Não abordamos aqui, por desnecessária para decisão da reclamação, ao contrário do que aconteceu quanto à inutilidade do recurso, a questão de saber se, encontrando-se um dos processos em estado adiantado de julgamento e outro no seu início, se devem considerar na mesma fase processual, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 24.°,n.° 2, do C. P. Penal.
Por último, invocando o reclamante, com alguma insistência, a violação de preceitos constitucionais, entre eles, os art.°s 18.°, n.°s 2 e 3, 20.°, n.° 5, 29.°, n.° 5 e 32.°, n.°s 1 e 9 da CRP pela projeção que faz das consequências possíveis do efeito que o tribunal reclamado fixou ao recurso, não explicita, contudo, qual o concreto prejuízo para a sua defesa que lhe advém do julgamento individual dos processos que identifica, o que, aliás, lhe seria muito difícil, uma vez que um dos julgamentos se arrasta por mais de quatro anos e o outro se iniciou no princípio do ano corrente, o que nos impede de apreciar a existência de tais inconstitucionalidades.
Não vislumbramos, pois, fundamento para a derrogação do que constitui orientação jurisprudencial estabelecida no que respeita ao alcance do disposto no art.° 407.°,n.° 1, do C. P. Penal.
Neste, como em todos os casos semelhantes que permitiram a fixação dessa orientação jurisprudencial, o que poderia acontecer com a procedência do recurso
retido, sena a simples inutilização dos atos subsequentes, mas esta circunstância não determina a sua inutilidade, que imponha uma subida imediata.
A simples sujeição a julgamento é, em si, um ato com alguma significância/desvalor social, pois a realização desse ato tem e deve ter na sua base um juízo de verosimilhança quanto à prática do crime, mas o evitar/protelar o julgamento é um desvalor a evitar em si mesmo, sem prejuízo do necessário equilíbrio entre os diversos valores em presença, entre eles os direitos de defesa do arguido e a celeridade processual.
No que à matéria desta concreta retenção do recurso diz respeito, esse equilíbrio é atingido com o prosseguimento do processo, sem prejuízo da anulação posterior dos atos praticados, no caso de procedência do recurso retido.
A situação dos autos não é, pois, recondutível ao disposto no art.° 407.°, n.° 1, do C. P. Penal.
Improcede, assim, a reclamação, que indeferimos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 405.°, n.° 4, do C. P. Penal.

Custas do incidente pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 1/2 UC.

Notifique.

Baixem os autos.

Lisboa, 4 de Junho de 2015.

(Orlando Nascimento — Vice-presidente)