Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2153/13.9TYLSB.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO DE SOCIEDADES COMERCIAIS
RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O art. 165º do C.S.Com. é inaplicável à situação em que, por força do procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais, a sociedade se mostra já extinta.
Em tal caso, quando subsista passivo social não satisfeito, devem ser demandados os primitivos sócios, na medida em que, nos termos do art. 163º daquele diploma, os mesmos respondem até ao montante que receberam, ou lhes viesse a caber, na partilha do património respectivo.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:       Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.Condomínio do prédio sito na Rua Castilho, nº..., em Lisboa, propôs, contra V..., SA, T..., M... e M..., acção com processo comum, distribuída à comarca de Lisboa - Secção de Comércio, pedindo, na qualidade de respectivo credor, a liquidação da Sociedade ... Lda, extinta por força de dissolução administrativa.

Proferida decisão, absolvendo os RR. da instância, por impossibilidade da lide, dela veio o A. interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :
- A Sociedade ... Lda, foi dissolvida oficiosamente, no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais.
- Nesse procedimento administrativo, não foi apurada a existência de qualquer atívo e passivo a liquidar e a sociedade foi, imediatamente e sem fase de liquidação, declarada extinta, nos termos do nº4 do art. 11° do RJPADLEC.
- No entanto, a sociedade extinta tem considerável ativo - pelo menos, as fracções autónomas referidas nos arts. 5° e 6° da p.i. - e também passivo, conforme alegou e demonstrou o recorrente, resultante de relações jurídicas anteriores à data da extinção e por dívidas vencidas antes da extinção.
- Apesar de o recorrente ser credor da sociedade, confronta-se, contudo, com uma sociedade extinta e, por isso, sem personalidade jurídica ou judiciária.
- Por outro lado, os seus ex-sócios, nada tendo recebido em partilha - porque não a houve - também não podem ser responsabilizados nos termos do art. 163º do CSC.
- Temos, pois, que a sociedade não seria, em princípio e de acordo com as regras processuais da legitimidade, bem como à luz do requisito do art. 163°, nº1, do CSC (existência de partilha), sequer judicialmente demandável, razão pela qual o recorrente intentou a presente ação ao abrigo da aplicação analógica do art. 165° do CSC.
- Porém, o Tribunal a quo entendeu que o legislador, no RJPADLEC, não optou pela possibilidade de "reabertura" da liquidação uma sociedade extinta com ativo ainda por partilhar, pelo que julgou liminarmente que improcederia a pretensão do recorrente de proceder à liquidação judicial da sociedade nestes autos, entendendo que, ao invés, o recorrente deveria demandar pessoalmente os sócios de acordo com a ação prevista no art. 163º,  nº2, do CSC.
- Ora, a doutrina vem identificando claramente a questão problemática em apreço, reconhecendo que a ação prevista no art. 163º do CSC não é um meio adequado a tutelar os interesses de um credor na situação em que se encontra o ora recorrente, pois este artigo tem como pressuposto a existência de uma partilha, constituindo o quantum aí adjudicado a cada sócio, aliás, o próprio limite das suas responsabilidades.
- Não existindo partilha e nada tendo recebido os sócios, uma ação intentada ao abrigo do art. 163º, nº2, do CSC estaria, essa sim, liminarmente condenada ao insucesso, por faltar um dos seus pressupostos: a atribuição de determinados bens aos sócios em partilha prévia à extinção.
- Quanto à ação prevista no art. 164º, também não se vislumbra como a mesma seria, com o mínimo de probabilidade, admissível, uma vez que, não só este artigo pressupõe no seu nº1 a existência de uma liquidação prévia, como a legitimidade ativa para interpor e intervir nessa ação destinada a realizar a partilha adicional de bens está expressamente circunscrita aos liquidatários da sociedade extinta, os quais, no caso concreto, não existem, pois a sociedade em apreço não chegou sequer a entrar em fase de liquidação.
- Atento o teor do nº2 do art. 2º do CPC, ao legítimo direito de crédito do ora recorrente tem de corresponder uma ação judicial adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, ainda que por aplicação analógica, um meio processual previsto para diversa situação.
- O entendimento sintetizado é acompanhado por doutrina e jurisprudência relevantes.
- Ora, o art. 165º do CSC é, precisamente, um normativo que tal doutrina admite poder ser analogicamente aplicado para integração de lacunas suscitadas pelo RJPADLEC, pois os objetivos que visa são amplos e genericamente aplicáveis a inúmeras hipotéticas situações societárias, ou seja: i) assegurar a satisfação dos interesses dos credores antes do ativo social ser partilhado e ii) redução do ativo a bens partilháveis em condições de igualdade entre os sócios.
In casu, em que também a sociedade deixou de existir, sem que o seu património tenha sido liquidado, impõe-se prosseguir os mesmos objetivos que são visados com o art. 165º do CSC.
- Com efeito, o art. 165º do CSC determina que os sócios procedam à liquidação na sequência da declaração de nulidade ou de anulação do contrato de sociedade, ou seja, nos casos em que a sociedade ou nunca existiu ou deixou de existir, como aconteceu neste caso.
- E, no seu nº2, o art. 165º do CSC confere legitimidade aos credores da sociedade inexistente para requerer a liquidação judicial nos casos em que os sócios ou não a iniciaram - como acontece no caso dos autos - ou não a concluíram no prazo legal.
- Por conseguinte, verificam-se, no presente caso omisso, todos os pressupostos de que depende a aplicação analógica do art. 165° do CSC, e não há quaisquer obstáculos práticos ou jurídicos à sua aplicação, devendo, portanto, ser este o regime a seguir para que o recorrente possa lograr obter o reconhecimento judicial do seu legítimo direito de crédito.
- Na sentença, o Tribunal a quo entende ainda que o pedido de liquidação seria sempre improcedente em qualquer dos casos dos arts. 163º, 164º ou 165º do CSC, pois a liquidação deixou de poder ser realizada judicialmente com a entrada em vigor do RJPADLEC, não prevendo o novo CPC uma ação especial destinada a esse fim, nem sendo a ação de processo comum adequada ao mesmo.
- O recorrente também não se conforma com este entendimento, que é, aliás, infirmado perentoriamente pela citada doutrina, porquanto existem diversas hipóteses de liquidações que só podem ser realizadas judicialmente.
- Deve, nesses casos, e não obstante a revogação do processo especial do anterior CPC, o juiz adequar formalmente o processo comum às vicissitudes de tal desiderato, tendo também em conta o princípio da adequação formal previsto no art. 547º do CPC.
- Podendo, inclusivamente, admitir-se a repristinação, ad hoc, do regime de liquidação de sociedades previsto no anterior CPC para esse efeito.
- Acresce que a Lei 62/2013, de 26/8 - Lei da Organização do Sistema Judiciário - no art. 121°, nº1 e), em qualquer das suas redações (bem como a anterior LOFTJ, no seu art. 121º, nº1 e), prevê expressamente as ações de liquidação judicial de sociedades, inserindo-as na competência dos Juízos do Comércio.
- Por último, cumpre referir que, parecendo pacífico que a liquidação de sociedades é legalmente admissível, ainda que fosse validado o entendimento do Tribunal a quo, quanto à inaplicabilidade, por analogia, do art. 165° CSC, enquadrando-se a pretensão do recorrente nos arts. 163.° e 164º do CSC, não haveria razão alguma para desaproveitar a presente instância absolvendo o recorrente da mesma.
- De facto, não estando o Tribunal a quo sujeito às alegações das partes, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras (no3 do art. 5º  do CPC), não faria sentido remeter o recorrente para uma outra instância tendo nesta chamado todas as partes interessadas, alegado todos os factos essenciais e formulado um pedido, de facto e de direito, possível, ainda que, nesta última vertente, o Tribunal pudesse entender que aos factos alegados e ao pedido formulado se devem aplicar os arts. 163° e 164°, em vez do art. 165° do CSC.
- A sentença recorrida viola, pois, entre outras, as normas constantes dos arts. 163°, 164° e 165° do CSC; 2º, nº2, 5°, nº3, e 547° do CPC; 121º, nº1 e) da LOSJ;  8° do CC - norma com valor reforçado, nos termos do art. 112º, nº3, da CRP - e 202º, nº2, in fine, da CRP.
- Termos em que deverá ser julgada procedente a presente apelação e, consequentemente, revogada a sentença recorrida, prosseguindo a presente ação de acordo com a tramitação formulada pelo recorrente na petição inicial ou outra que seja adequada a tutelar os legítimos direitos do recorrente.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
1.-Sociedade ... Lda, era uma sociedade comercial por quotas, pessoa colectiva nº 500415978, com sede ...
2.-O objecto social da Sociedade ... Lda, era a administração e exploração de imóveis próprios, rústicos e urbanos.
3.-A Sociedade ... Lda, tinha o capital social de 1.700.000$00.

4.-Eram sócios da Sociedade ... Lda :
a)-V... S.A., titular de uma quota no valor nominal de 950.000$00;
b)-T..., titular de uma quota no valor nominal de 250.000$00;
c)-M..., titular de uma quota no valor nominal de 250.000$00;
d)-M..., titular de uma quota no valor nominal de  250.000$00.

5.-Por decisão de 15/10/2010, proferida no procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais que correu termos sob o nº 15595/2009 na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa foi declarada a dissolução e o encerramento da liquidação da Sociedade ... Lda.
6.-Na decisão referida em 5) consignou-se que "do procedimento resulta a inexistência de activo e passivo a liquidar conforme dispõe o nº4 do artigo 11º do RJPADLEC”.
7.-Pela ap. 82, de 15/10/2010, foi registada a dissolução e encerramento da liquidação da Sociedade... Lda, e o cancelamento da matrícula.
8.-Pela ap. 4, de 17/10/1990, foi registada a favor da Sociedade... Lda, a aquisição do direito de propriedade sobre as fracções autónomas designadas pelas letras "AJ" e "AL" do prédio, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Brancamp, nº ..., e Rua Castilho, nº ..., ...-A e ...-B, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº ... da freguesia de São Mamede e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ... da freguesia de Santo António.
9.-A assembleia de condóminos do A. aprovou o valor das quotizações devidas pelos condóminos para os anos de 2010 a 2013.
10.-Nas assembleias de condóminos do A. realizadas em 29/6/2000 e em 23/3/2001 foi aprovada a comparticipação dos condóminos no pagamento de obra extraordinária realizada nos elevadores.
11.-A Sociedade ... Lda, não procedeu ao pagamento das quotizações no período entre Fevereiro de 2010 e Dezembro de 2013 e da sua comparticipação na obra dos elevadores.

3.Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente. 
A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação do pedido de liquidação da sociedade em causa.
Sustenta o A., ora apelante que, não se achando a situação daquela prevista no regime do procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais, se efective a liquidação da sociedade, em conformidade com o dispositivo do art. 165º do C.S.Com.
Conforme do mesmo expressamente decorre, reporta-se, todavia, o invocado dispositivo legal tão somente à declaração de nulidade ou anulação do contrato de sociedade - sendo, como tal, inaplicável à situação em que, por força do aludido procedimento administrativo, a sociedade se mostra já extinta.
Devendo, neste caso, quando subsista passivo social não satisfeito, ser demandados os primitivos sócios - na medida em que, nos termos do art. 163º daquele diploma, os mesmos respondem até ao montante que receberam, ou lhes viesse a caber, na partilha do património respectivo.
Como decidido, se haverá, assim, de concluir pela impossibilidade legal do pedido formulado na acção - improcedendo as alegações do apelante.

4.Pelo acima exposto, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.


Lisboa,04.05.2017


Ferreira de Almeida - relator
Catarina Manso - 1ª adjunta
Alexandrina Branquinho - 2ª adjunta
Decisão Texto Integral: