Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
463/07.3TAALM-A.L2-9
Relator: MARIA DA LUZ BATISTA
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Não obstante o procedimento cautelar tenha a sua tramitação processual regulada no CPC, a especificidade do arresto prevista no art.º 10.º da Lei 5/2002 tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado.

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a surpresa no decretamento do arresto é fundamental, como garantia de sua eficácia. As razões de eficácia subjacentes ao decretamento da providência impõem que o visado, ainda que tenha no processo penal a posição de arguido, só deva ser notificado após a decisão do arresto

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aplicando-se ao arresto as regras do processo civil, o direito de o arguido ser ouvido, ou de estar presente, art.º 61.º n.º1 al. a), tem de ceder perante os interesses patrimoniais que se visam proteger com a providência

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A  apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9.ª Secção Criminal de Lisboa:

                   I.

                  No processo de inquérito nuipc.º 463/07.3TAALM do Tribunal de Instrução Criminal de Almada, os arguidos A...                                e S..., inconformados com a decisão proferida no âmbito do procedimento Cautelar Especificado de Arresto e da decisão proferida pelo Mmo JIC deste Tribunal, que ordenou o arresto dos saldos bancários de que os arguidos são titulares, nos termos dos artº. 10 da Lei 5/2002 de 11.01, na redacção que lhe foi dada pelo DL 317/2009 de 30.10, vieram da mesma recorrer, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida, concluindo, em síntese, que:

                    - A decisão recorrida padece de vício de nulidade, uma vez que a mesma é omissa na respectiva fundamentação, uma vez que “ a decisão não especifica, concreta, objectiva e devidamente, quesito a quesito, quais os fundamentos de facto que foram decisivos para a convicção do julgador”.

                - Uma  vez que a fundamentação da matéria de facto considerou a acusação pública e o requerimento de fls. 3929, não foi estabelecido um único facto concreto para sustentar o decretamento do arresto.

                        - Os recorrentes não têm ainda conhecimento do teor da acusação.

                        - Mais consideram os recorrentes que foram violados as suas garantias do direito de defesa na medida em que, desconhecendo o teor da acusação encontram-se impossibilitados de exercer o seu direito de defesa, nos termos do art.º 388.º, n.º 1 do CPC.

                        - Concluem referindo que tal impossibilidade é violadora do previsto no art.º 32, nº 1 da Constituição da República;

                        - De igual forma foi violado o princípio do contraditório e violado o disposto no artº 32, 2 e 5 da Constituição da República pois desconhecendo  os factos que lhes são imputados não podem deles defender-se.

                    - Não podem, assim, contraditar os indiciados crimes e dos proveitos de origem ilícita que com eles terão obtido;

              - Por fim, consideram que a imputação efectuada pelo Ministério Público de que os rendimentos dos arguidos foram obtidos de forma ilícita, “sempre implica de forma nítida e manifesta directa e necessariamente, a Inversão do Ónus da Prova, quanto à prova da ilicitude dos respectivos rendimentos.”

                       - Pelo que, nessa medida, foi violado o princípio da presunção da inocência do arguido e o princípio dele decorrente da proibição de inversão do ónus da prova, consagrado na Constituição Portuguesa, art.º 32, nº 2 da CRP.

                      - Tal violação verifica-se no facto do Ministério Público, de acordo com o prescrito na Lei 5/2002 de 11.1, art.ºs 7,8 e 9, ter presumido que os rendimentos dos arguidos têm proveniência ilícita, considerando como tais, todos os que não foram declarados à Administração Fiscal, sem que aos recorrentes fosse permitido fazer prova do inverso.

                       - Concluem, requerendo a inconstitucionalidade de tais preceitos legais, acima enunciados.

 

                  O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso e manutenção da decisão que ordenou o arresto, até à prolação da decisão final, na sequência da audiência de julgamento.

                  Neste Tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer.

                   Foi dado cumprimento ao artigo 417.º do C.P.Penal.

                   II.

                   Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

                   Questão Prévia

                  Não obstante o procedimento cautelar tenha a sua tramitação processual regulada no CPC, a especificidade do arresto prevista no art.º 10.º da Lei 5/2002 tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado.

                   O despacho recorrido foi decretado nos termos do artº 10.º da Lei 5/2002 de 11.01 e art.º 228.º do CPP, no âmbito do processo penal, pelo que ser-lhe-ão aplicadas as regras e disposições previstas no Código de Processo Penal referentes à interposição de recursos.

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         Em primeiro lugar, invocam os arguidos a falta de fundamentação do despacho que decretou o arresto.

                   Porém , o despacho recorrido remete a sua fundamentação para os factos constantes na acusação pública e no requerimento efectuado para que fosse decretado o arresto - " ...O Tribunal tomou em consideração o teor dos factos suficientemente indiciados que vêm descritos na acusação pública de fls. 3546 e segs. e no requerimento de fls. 3919 e segs., os quais têm por suporte a prova indiciária também aí referida...".

                   Pelo que a convicção extraída pelo julgador de 1ª instância, está cristalinamente vertida na motivação da mesma, e não se vê que tenha atentado contra as regras da lógica e do normal acontecer, enfim, da experiência comum.

             E a falta de notificação da acusação (que entretanto já ocorreu), apenas se deveu ao facto de evitar que os arguidos/requerentes tomassem conhecimento da providência requerida e impedir que a efectiva apreensão dos saldos das contas bancárias ficasse prejudicada – art.º 408.º do CPC - em que a surpresa no decretamento do arresto é fundamental, como garantia de sua eficácia.

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      Em segundo lugar, defendem os recorrentes que foi violado o princípio do contraditório, já que o arresto foi decretado sem que tivessem sido ouvidos os arguidos, art.º 61.º al. b) e 194.º n.º3, e, em consequência, cometida a nulidade insanável a que se reporta o artº 119.º n.º1 al. c), ou se assim se não entender a nulidade relativa do art.º 120.º n.º2 al. d).

                  Sendo o arresto preventivo decretado nos termos da lei civil, não se vê por que razão há-de, neste particular, divergir do art.º 408.º n.º1 do CPC. Aliás, o arresto não é uma medida de coacção mas de garantia patrimonial, como atrás se disse, e como tal não envolve ou contende directamente com a liberdade pessoal e com direitos fundamentais pessoais, mas tão só direitos patrimoniais ou económicos, não se descortinando razões para afastar o regime da lei processual civil que a própria lei processual penal manda observar.

                   Citando Paulo Pinto Albuquerque, (CPP Anotado) “(…) só o sigilo da providência protege os interesses do requerente do arresto preventivo. É esse o sentido tradicional e histórico do arresto preventivo no direito Português. É, por isso, que o art.º 228.º, in fine, distingue como uma das hipóteses do arresto preventivo o caso em que a caução foi previamente fixada e não prestada. A especificação da lei (“se tiver sido”) não faria sentido se esse fosse o único caso admissível. É ainda por isso, que o artigo 228.º, n.º3, guarda o contraditório para a dedução da oposição ao despacho que tiver decretado o arresto”.

                   Ou seja, aplicando-se ao arresto as regras do processo civil, o direito de o arguido ser ouvido, ou de estar presente, art.º 61.º n.º1 al. a), tem de ceder perante os interesses patrimoniais que se visam proteger com a providência.

               Se assim não fosse, os direitos de crédito decorrentes de actos tipificados como crimes, ficavam desprotegidos face aos direitos decorrentes de outras fontes das obrigações meramente civis.

          As razões de eficácia subjacentes ao decretamento da providência impõem que o visado, ainda que tenha no processo penal a posição de arguido, só deva ser notificado após a decisão do arresto (Conf. neste sentido Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal, vol II, pag. 223 e 224, conf. ainda, Ac. Rel. Porto de 23 de Junho de 2004, Ac. Rel. Coimbra de 25-09-2013, disponíveis em www.dgsi.pt)

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                   Em terceiro lugar, entendem os ora Recorrentes que pelo facto de os mesmos, em virtude da imputação realizada pelo Ministério Público relativamente à ilicitude dos respectivos rendimentos, sempre implica de forma nítida e manifesta, direta e necessariamente, a Inversão do Ónus da Prova quanto à prova da licitude dos respectivos rendimentos, o que viola o princípio constitucional da presunção de inocência.

                   Não pomos em causa o invocado princípio constitucional da presunção de inocência do arguido.

   Não nos encontramos, porém, em presença de uma presunção judicial, dado que a presunção de inocência, enquanto regra a considerar em sede de processo, se encontra estabelecida pelo legislador constitucional.

“ … Quanto à inocência dos acusados em processo penal, parece-nos que temos de concordar com autores como Bettiol, Manzíni, Vázquez Sotelo, José Souto de Moura, Castanheiro Neves, e de uma forma geral com a doutrina portuguesa, espanhola e italiana, quando referem que a presunção de inocência não é uma verdadeira presunção em sentido técnico. Na realidade, a experiência evidencia-nos que a grande maioria dos acusados, normalmente, provavelmente, em sede de julgamento, será condenada. O que é normal é que o grau de probabilidade de absolvição, em virtude da prova da inocência, seja bem menor do que o grau de probabilidade de ser proferida sentença de condenação. Não conseguimos, enfim, chegar à inocência do cidadão - já acusado -, em virtude de uma regra de experiência, isto é, partindo da regra geral da inocência do cidadão em geral não acusado. Não nos encontramos, pois, em presença de uma presunção legal, uma vez que se encontra ausente o mecanismo de relação causa/efeito que caracteriza as presunções, ou, por outras palavras, a relação (causal) entre facto real e facto presumido falece aqui, não podendo, em consequência, concluir-se acerca da inocência do cidadão acusado com base na análise dos cidadãos submetidos a julgamento.” – “Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal” – Alexandra Vilela, pág. 83.

              Até porque, “… entender a presunção de inocência de modo absoluto, conduzir-nos-ia à inconstitucionalização da instrução em si mesma, pois esta encerra já, ainda que por vezes de forma mitigada um choque com a liberdade individual do acusado” – “Constituição da República Portuguesa” anotada – Gomes Canotilho e Vital Moreira, I volume, pág. 215.

                 E ainda "... não existindo dúvidas, no âmbito do processo, quanto ao alcance do primeiro dos princípios enunciados, e aceitando que este possa representar, no ponto em que mais releva para o caso, a proibição de antecipação de uma pena, haverá de convir-se que a manutenção da apreensão de valores, destinando-se a funcionar como  elemento de prova a ser considerado nas fases ulteriores do processo e como garantia patrimonial de uma eventual medida de perda de bens a favor do Estado, não põe em causa esse parâmetro constitucional. Desde logo, porque não fica de nenhum modo excluído que, nos precisos termos do artigo 186.º, se venha a determinar a restituição dos bens apreendidos ao seu titular, quer porque se reconheça, no decurso do processo, a desnecessidade da apreensão para efeitos probatórios, quer porque, na  decisão final, se considere não verificada a prática dos factos ilícitos que eram imputados aos arguidos." –  Acórdão do Tribunal Constitucional – Proc.º n.º 11/08 – 3ª Secção

          São, porém, os indícios dos autos fortes e sustentados e densificados por uma acusação já deduzida que, nesta parte também não merece censura o despacho recorrido - "...dos mesmos factos resulta que os requeridos obtiveram uma vantagem patrimonial ilícita decorrente da sua actividade criminosa, cujo produto ascende a 2.333.656,20 Euros, resultante da diferença entre o valor que o requerido J... declarou como sendo o correspondente a rendimentos de trabalho dependente apurados nos anos de 2008 a 2010 (24.260,00 Euros) e aquele valor que se presume que ainda se encontre no património dos requeridos (2.333.680,40 Euros), tendo-se aqui em consideração, por outro lado, que no período temporal acima referido a arguida S... não declarou quaisquer rendimentos. Entende-se que o já aludido requerimento tem também implícito, para além do pedido de decretamento da já referida providência cautelar, um pedido de que os saldos das aplicações financeiras aí referidas sejam, oportunamente, declarados perdidos a favor do Estado, uma vez que dele consta já a liquidação do valor correspondente à vantagem patrimonial ilícita produto da actividade criminosa levada a cabo pelos arguidos...".

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    Em quarto lugar, e no que se refere aos princípios constitucionais que os arguidos recorrentes pretendem ver violados , o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre os mesmos e não concluíram existir no decretamento do arresto preventivo previsto na Lei 5/2002 de 11.01 qualquer inconstitucionalidade.

                   “Vimos que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado (cfr. DAMIÃO DA CUNHA, Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26), e, nesse sentido, tem pleno cabimento que enquanto providência processual instrutória ela possa manter-se até à fase de julgamento e venha apenas a ser declarada extinta com a sentença final (absolutória ou condenatória), quando nela tenha sido entretanto fixado o destino a dar aos bens apreendidos.

         A  apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal.

            E neste plano de compreensão tem relevo chamar a atenção para o facto de estarmos perante formas de criminalidade económica-financeira organizada que é de muito difícil prova e relativamente à qual o legislador sentiu necessidade, através da mencionada Lei n.º 5/2002, de adoptar  medidas especiais de controlo e repressão, mediante a derrogação do segredo fiscal e bancário, para facilitar a investigação criminal (artigos 2º a 5º), a permissão do registo de voz e de imagem, como específico meio de produção de prova (artigo 6º), e a previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa (artigo 7º) – sobre estes aspectos, DAMIÃO DA CUNHA, ob. cit., págs. 7-10)." –  Acórdão do Tribunal Constitucional acima citado – Proc.º n.º 11/08 – 3ª Secção.

     Pelo que não ocorreu a aplicação de qualquer norma inconstitucional ou qualquer violação dos preceitos constitucionais, invocados.

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         Tudo o mais que se pretendesse fazer investigado ou vertido no presente acórdão, seria acessório ao themma.

                   III.

               Face do exposto decide-se negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.

                   Custas a cargo dos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s com 1/3 de procuradoria e legal acréscimo.                         

                   Lisboa, 27.03.2014

                   Maria da Luz Batista

                   Almeida Cabral

                   (Elaborado em computador e revisto pela 1ª signatária)