Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
106/15.1PFLRS.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: EXAME CRÍTICO DA PROVA
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECLARADA NULA A SENTENÇA
Sumário: – O exame crítico da provas exige a indicação dos meios de prova utilizados, mas não se basta com estes, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.

– A fundamentação, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas inquiridas, ainda que de forma sintética. O exame crítico deve ser aferido com critérios de razoabilidade, não indo ao ponto de exigir uma explanação fastidiosa, com escalpelização descritiva de todas as provas produzidas, o que transformaria o processo oral em escrito, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo.

– É sabido que o tribunal pode prevalecer-se da prova indirecta ou indiciária – aquela que se reporta a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência (sendo estas “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentemente do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum para chegar à sua convicção - pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admissível pelo nosso ordenamento jurídico.

– Porém, se não é possível retirar da sentença qual o processo de raciocínio do tribunal na formação da sua convicção quanto aos factos, o que impede a Relação de sindicar se aquela efectuou (ou não) uma apreciação objectiva da prova produzida, em conformidade com as regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos, não permitindo ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal da racionalidade e coerência do juízo ou do processo lógico que conduziu à formação da convicção, é nula a sentença por falta de fundamentação, nos termos do art.çº 379º,n.º1 al.a) e 374º,n.º2 ambos do CPP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I–Relatório:

1.– No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º106/15.1PFLRS, procedeu-se ao julgamento dos arguidos E. e J. , ambos melhor identificados nos autos, acusados pelo Ministério Público:

- a arguida E. da autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de quebra de marcas e de selos, p. e p. pelo artigo 356.º do Código Penal, e dois crimes de dano, p. e p. pelo disposto no artigo 212.º, n.º 1, do mesmo;

- o arguido J.  da autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de quebra de marcas e de selos, p. e p. pelo artigo 356° do Código Penal, e dois crimes de dano, p. e p. pelo disposto nos artigos 212° do Código Penal.

O demandante JL.  deduziu pedido de indemnização civil com vista a obter a condenação dos arguidos no pagamento de indemnização por danos patrimoniais no valor de € 1950 e de €3050 por danos não patrimoniais, este acrescido de juros de mora, desde a notificação até integral pagamento.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a acusação, e parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, decido:

a)- Condenar a arguida E. como autora material de um crime de quebra de selos, p. e p. pelo art.° 356°do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária €5 (cinco), ou seja, a multa de € 600 (seiscentos).

b)- Condenar a arguida a pagar ao demandante a JL. a indemnização a título de danos patrimoniais no valor de € 1950, acrescida de juros de mora desde a notificação até integral pagamento, absolvendo-a do restante pedido.

(…)

d)- Absolver a arguida da prática de dois crimes de dano.

e)- Absolver o arguido J.  dos crimes imputados e do pedido de indemnização civil.

(…)»

2.– A arguida recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1.- O crime de dano (Art.º 212º do CP) é um crime doloso, ou seja, que exige, quanto ao elemento subjectivo do tipo de crime, uma necessária verificação, do elemento volitivo.

2.- Nos termos do Art.º 14º do CP, o Dolo, existe assente em dois elementos: elemento cognitivo e elemento volitivo, sendo necessário, para que, se verifique o crime de dano, não apenas o “querer actuar” por parte do agente, como, o ter noção e consciência de que, a sua conduta é ilícita e que, comportará consequências lesivas, e assim, para que haja uma condenação pelo crime descrito, é necessário que, o agente da prática do crime, vislumbre uma consequência como necessária da sua acção, queira praticá-la, e, e se conforme com tal conduta, porquanto o seu objectivo é precisamente o dano.

3.- Ora, a arguida foi e bem absolvida desde crime e deveria ter sido do de quebra de selos.

4.- No que respeita ao crime de quebra de selos p.e.p pelo Art.º 356º do CP, cremos, em juízo não se ter provado a sua verificação já que, a Arguida vinha acusada da prática deste crime assim como um outro arguido, que fora, absolvido.

5.- Ambos se remeteram ao silêncio em Julgamento, havendo apenas nos autos as primeiras declarações da arguida, que, em sede de inquérito afirmou que, o outro arguido o Sr. J. , se ofereceu para resolver o seu problema de não ter água em casa, e que, foi ele quem tratou de tudo, desconhecendo a arguida, o que haveria sido feito por este.

6.- Por sua vez este arguido, em Julgamento, não confirmou os factos, mas também não os negou, pelo que, terá de ser valorada a informação já prestada pela arguida, e que, reitere-se havia indicado que, o Sr. J. , como seu amigo, se ofereceu para lhe resolver o problema, não mencionado o que ia fazer, desconhecendo em absoluto a arguida, o que afinal o arguido J. havia feito, pelo que, parece-nos, necessariamente se deveria ter dado como provado que, em momento algum, a arguida MANDOU/ORDENOU que o arguido actuasse de modo ilícito, antes pelo contrário foi o próprio que, se ofereceu para tal, pelo que, em momento algum, a arguida, tivesse noção ou consciência de que, algo ilegal iria ser feito.

7.- Tal consideração leva-nos à seguinte questão: Se se dá como provado que a arguida praticou um crime, por que motivo não se dá como provado que o arguido também o praticou? É que, o silêncio do arguido, e que, fundamentou a sua absolvição por falta de provas, foi o mesmo da arguida, não existindo nos autos, mais provas contra a arguida, que, contra o arguido, e isto porque, contra o arguido há as declarações da arguida, e contra a arguida, há apenas o facto de viver no imóvel.

8.- Assim, a culpa da arguida, aferiu-se por subsunção, ou “presunção” na medida em que, se era ela que habitava o imóvel, pois que, era ela a responsável pela prática ilícita, porém, a arguida (i) não vivia sozinha na casa e (ii) nem se quer era a proprietária da casa, e assim se questiona, porque motivo não foi, o proprietário chamado a juízo para esclarecer se, eventualmente teve alguma responsabilidade nos actos?

9.- Não nos parece, com todo o respeito, se tenha produzido em julgamento, prova bastante, sólida, e livre de dúvida, de que, a arguida, ordenou ao Sr. J.  que violasse o selo. De facto, não foi a arguida que violou o selo, e isso é ponto certo, mas, ficou o Tribunal com dúvidas de que, tenha sido o Sr. J. .

10.- Mas a verdade é que, ninguém viu a arguida a (i) violar o selo, (ii) ordenar a violação do mesmo, pelo que, a arguida, teria de ser necessariamente absolvida, “lançando-se mão” ao Principio In dubio pro reu (Art.º 32º n.º 2 CRP).

11.- Por outro lado, tal como descrito em “Código Penal – comentário Conimbricense Tomo III – Jorge de Figueiredo Dias” página 429 também este crime é um crime doloso, ou seja, que, exige que haja reunido o elemento cognitivo, i.e. o saber o que se faz e volitivo, ou seja, querer fazê-lo.

12.- Se a arguida, confrontada com a ajuda de um amigo, a aceita, sem saber porém, o que este irá fazer, não tem, nem consciência, nem vontade, porque simplesmente não figura como possível uma prática ilícita, e portanto, não se pede conformar com aquilo que não realiza como possível.

13.- Assim, não se pode, e pese embora, haja o Principio da Livre apreciação da prova, não pode este princípio assentar em provas inexistentes, já que, este princípio da livre apreciação da prova, oferece ao julgador um espaço de valoração das provas existentes, não sendo justificação quando simplesmente não há provas. Logo, não se pode, nem deve valorar o que não existe.

14.- Nestes termos, entendemos, não se provou em Juízo, que (i) a arguida tenha ordenado ao Arguido a violação do selo, bem pelo contrário, parece-nos, provou- se sim, que, fora o arguido a oferecer a sua ajuda à arguida, sem porém lhe indicar o que ia fazer, (ii) não se tendo provado também que, não tenha existido outra pessoa, que eventualmente teve contactos com o arguido, já que a arguida não vive sozinha no imóvel, nem tão pouco é proprietária do mesmo (iii) parece- nos provou-se que a arguida, NUNCA teve noção do que o arguido ia fazer, nunca tendo a arguida intenção, ou se quer realizado como possível que o arguido fosse assumir uma conduta ilícita, e (iv) o arguido não pôs em causa em juízo a versão dos factos narrada pela arguida, pelo que, não se compreende como pode este ser absolvido e a arguida não.

15.- Mais não se provou que o olho-de-boi estava selado, com que selo, de que forma, quando e como foi selado?

16.- Ora sem este elemento, ou seja a selagem, não há crime.

17.- Por fim, em qualquer dos crimes mencionados, e quanto ao elemento subjectivo do tipo, o mesmo não se verifica, na medida, em que, são crimes dolosos, cujos elementos volitivos e cognitivos, têm de se demonstrar preenchidos, pela vontade e conhecimento do agente, o que, não se logrou provar em Tribunal.

18.- Por outro lado, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, conforme vem determinado no Art.º 71º do Código Penal.

19.- Nos termos do Art.º 40º do mesmo diploma a pena não pode ultrapassar a medida da culpa. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a propósito do modelo de determinação da pena, compete “à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção” cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente (in. DIAS, Figueiredo – Revista Portuguesa de ciência criminal Ano 3, Abril – Dezembro de 1993, pág. 186 e 187)

20.- Acresce que

21.- Em consonância, segundo o Art.º 71º do Código Penal a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e tendendo ainda às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, revelem a favor ou contra o arguido, nomeadamente as aludidas no nº 2 desse preceito legal.

22.- A pena concreta há-de, pois, fixar-se entre um limite mínimo e um limite máximo adequados à culpa, tendo como referencial os mencionados fins de prevenção geral e especial, e a aplicação de qualquer pena tem desde logo em vista a protecção de bens jurídicos e a Reintegração social do agente.

23.- Com efeito, as finalidades de aplicação da residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e tanto quanto possível na reinserção do agente na comunidade, surgindo a defesa da ordem jurídico-penal como finalidade primeira a prosseguir.

24.- No que concerne à prevenção especial de socialização é de considerar e em sentido favorável a circunstância de se encontrar socialmente bem inserida, ter uma favorável integração familiar, tendo uma filha que vive consigo.

25.- Por conseguinte e com vista a garantir a satisfação das finalidades preventivas a pena deverá situar-se no mínimo da moldura.

26.- Ponderando todas as circunstâncias, entende-se adequada, proporcionada, e bastante, a condenação do Recorrente, no mínimo.

27.- A presente condenação torna-se “absurda” na medida em que, absolve a arguida do crime, cujas exigências probatórias são menores, condenado-a por um crime cujas exigências de prova são maiores.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser recebido e

Ser a sentença recorrida revogada, absolvendo-se a arguida do crime a que foi condenada

Consequentemente ser absolvida do pedido cível.

Caso assim não se entenda, ser a pena parcialmente revogada situando-se no mínimo.

3.– O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, no sentido de que a sentença recorrida não merece censura.             

4.– A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), apôs o seu visto.

5.– Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II–Fundamentação.

1.– Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

- Erro de julgamento /violação do princípio in dubio;

- Medida da pena.

2.– Da sentença recorrida

2.1.- O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1.– Em data não concretamente apurada mas certamente antes do dia 22 de Janeiro de 2015, e como a arguida E.  não pagava a água que consumia, técnicos da SMAR de Loures deslocaram-se à Praceta LF, Arroja, em Odivelas e procederam ao corte de água para a fracção onde a arguida E.  reside - ou seja, para o r/c direito.

2.– Após o corte do fornecimento de água para aquela fracção, os técnicos da SMAR de Loures procederam à selagem do denominado "olho-de-boi", de modo a que ninguém conseguisse aceder àquele local, assegurando, deste modo, a inviolabilidade daquela zona.

3.– Porém, no dia 22 de Janeiro de 2015, pelas 22h15m, a arguida E.  ou terceiro a seu mando rebentou com a selagem do dito "olho-de-boi" com vista a ligar o fornecimento de água para a sua habitação.

4.– Em consequência desta acção violadora do olho-de-boi, ocorreu uma situação de rotura de água, que causou uma inundação no prédio que atingiu as fracções inferiores, a cave esquerda e cave direita.

5.– A fracção referente à cave esquerda é da propriedade de VF. .

6.– A fracção referente à cave direita é da propriedade de JL. .

7.– Como consequência da inundação verificada na cave esquerda, de VF. , a água entrou pela porta principal, atingindo as zonas do hall de entrada, cozinha e sala.

8.– O pavimento do hall de entrada e sala é em madeira, tendo a madeira do chão saltado e apodrecido.

9.– A parede da sala, que confina com as escadas do prédio, ficou com a tinta solta, a cair, em virtude de infiltração que ocorreu.

10.– O tecto do hall de entrada também, ficou com a tinta a saltar, em virtude de infiltração proveniente pela inundação que também ocorria no r/c esquerdo (andar superior).

11.– A reparação dos estragos provados pela inundação na residência de VF.  está orçamentada em Euros 2.097,16 [dois mil e noventa e sete euros e dezasseis cêntimos].

12.– Como consequência da inundação verificada na cave direita, de JL. , a água entrou pela porta principal, atingindo as zonas do hall de entrada, sala e quarto.

13.– O pavimento da sala e quarto é em madeira, tendo aquela madeira saltado e apodrecido.

14.– O tecto e paredes da sala, do hall de entrada, quarto e casa de banho, em virtude de infiltração proveniente pela inundação que também ocorrida no r/c direito (andar superior), ficaram com a tinta solta, a cair.

15.– A reparação dos estragos provados pela inundação na residência de JL. está orçamentada em Euros 1.950,00 [mil novecentos e cinquenta euros].

16.– A arguida E.  agiu nos moldes descritos bem sabendo que o selo colocado no "olho-de-boi" havia sido colocado por técnicos credenciados para o efeito e que o mesmo se destinava a garantir a inviolabilidade daquela zona.

17.– Sabia que não podia rebentar com aquele selo e aceder àquela zona, conforme fez (por si ou por terceiro a seu mando).

18.– A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

19.– A arguida, divorciada, é empregada fabril.

20.– A arguida não tem antecedentes criminais.         

2.2.Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):

Não logrou provar-se qualquer participação do arguido J. nos factos supra relatados.

Nem que a arguida E. agiu nos moldes descritos prevendo que ao rebentar com aquele selo, poderia provocar uma inundação no prédio e nas casas dos demais moradores, estragando chão, paredes e tectos, e conformou-se com tal resultado.

2.3.– O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

O tribunal assentou a sua convicção na apreciação global e crítica da prova produzida em audiência de julgamento, segundo juízos de normalidade - uma vez que os arguidos usaram o direito ao silêncio-, consubstanciada nas declarações de JL. , e nos depoimentos das testemunhas CS (bombeiro), JS e LF, ambos agentes da PSP, VF. , a par dos orçamentos de fls. 20, 43 quanto aos danos provocados.

Quanto à ocorrência da violação do olho-de-boi correspondente à fracção da arguida, seguida de rotura de água, valoramos os depoimentos das testemunhas CS e do agente policial LF que tal factualidade confirmam. Resulta das regras da normalidade que o olho-de-boi estaria selado pelos serviços respetivos o que obstaria ao abastecimento de água à fracção da arguida. Donde, só a arguida teria interesse na reposição de água. Consequentemente, só a arguida poderia ter violado o olho-de-boi, por si ou por interposta pessoa.

Igualmente resulta do depoimento da testemunha LF e declarações do demandante JL. , que água acabou por entrar nas caves direita e esquerda, confirmando o morador da cave direita os danos verificados no chão, paredes e tecto, cujo prejuízo está espelhado no orçamento de fls. 20.

Por sua vez, a testemunha VF.  proprietário da cave esquerda veio também dar nota dos prejuízos sofridos em resultado da entrada de água, conforme orçamento de fls. 43.

Estas testemunhas apresentaram-se depoimentos consistentes e objectivos, merecendo inteira credibilidade do tribunal.

Quanto aos factos não provados, resultou da não sustentação em prova positiva. No que toca ao segmento relativo ao arguido J. , nenhuma testemunha percepcionou a presença do arguido no local e nenhuma prova objectiva foi trazida que fundamenta a imputação acusatória, não sendo legalmente admissível a valoração das declarações da co-arguida prestadas logo após os factos ao agente policial.

Quanto ao segmento relativo ao crime de dano, afigura-se-nos que não podemos extrair dos factos provados qualquer acção dolosa autonomizada por parte da arguida, sequer a título de dolo eventual, juízo subjectivo que também não decorre de regras de normalidade, razão pela qual os danos decorrentes da violação do olho-de- boi, esta sim uma acção dolosa, serão atendidos em sede de medida da pena e não enquanto integradores do crime de dano autónomo, como configura a acusação.

***

3.– Apreciando

Dispõe o artigo 205.º, n.º1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

O artigo 97.º, n.º5, do C.P.P., prescreve, em relação aos actos decisórios em geral, que «são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».

O acto da sentença, nos termos do disposto no artigo 374.º, do C.P.P., exige uma fundamentação especial.

A exigência de fundamentação das sentenças constitui um elemento essencial do Estado de Direito Democrático. Como refere Germano Marques da Silva, a fundamentação é imposta pelos sistemas democráticos tendo em vista diversas finalidades. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina (Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, Verbo, p. 294).

A fundamentação constitui, por conseguinte, um factor de transparência da justiça, explicitando, de forma que se pretende clara, os processos intelectuais que conduziram à decisão e permitindo, consequentemente, uma maior fiscalização das decisões judiciais por parte da colectividade, constituindo entendimento dominante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que o direito a um processo equitativo pressupõe a exigência de motivação das decisões judiciais (cfr. Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direito do Homem, 3.ª edição, Coimbra Editora, p. 137).

De harmonia com o disposto no artigo 374.º, n.º2, do C.P.P., ao relatório da sentença segue-se a fundamentação que consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

Por sua vez, estabelece o artigo 379.º, n.º1, alínea a), do C.P.P., que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º2 e na alínea b) do n.º3 do referido artigo 374.º.

Entre as exigências de fundamentação conta-se a de que seja efectuada uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto (que, naturalmente, hão-se ser seleccionados de entre os factos provados e não provados) e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

O exame crítico da provas situa-se nos limites propostos, entre outros, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, D.R., 2ª Série, de 5 de Março de 1999, que julgou inconstitucional a norma do n.º2 do artigo 374.º do C.P.P. de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º1 do artigo 205.º da Constituição, bem como, quando conjugado com a norma das alíneas b) e c) do n.º2 do artigo 410.º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º1 do artigo 32.º, também da Constituição.

Não basta, por conseguinte, indicar os meios de prova utilizados, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.

A fundamentação, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas inquiridas, ainda que de forma sintética. O exame crítico deve ser aferido com critérios de razoabilidade, não indo ao ponto de exigir uma explanação fastidiosa, com escalpelização descritiva de todas as provas produzidas, o que transformaria o processo oral em escrito, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo (cfr., sobre esta matéria, o Acórdão do STJ, de 26 de Março de 2008, Processo: 07P4833, www.dsgi.pt; também com interesse, Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º3, p. 21 e segs.).

Não devemos confundir ausência ou deficiência de fundamentação com uma fundamentação que não convença o arguido quanto às razões de convicção apresentadas pelo tribunal.

Perante as provas cada pessoa formará a sua convicção. O que importa é que o julgador dê a conhecer, de forma clara e no quadro do que é razoável exigir, as razões da sua convicção, de forma que possam ser compreendidas, e não que logre convencer todos da sua razão, pois à convicção do tribunal sempre se contrapõem as convicções divergentes de outros sujeitos processuais.

É por isso que a nulidade, resultante da falta ou insuficiência da fundamentação, só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o tribunal a quo chegou, posto que, percebidas as razões do julgador, podem os sujeitos processuais, com recurso, quando tal for necessário, ao registo da prova, argumentar para que o tribunal de recurso altere a matéria de facto fixada.

Analisada a sentença recorrida, verificamos que a motivação da decisão de facto é manifestamente deficiente.

Assim, dá-se como provado que, em data não concretamente apurada, mas certamente antes do dia 22 de Janeiro de 2015, e como a arguida E.  não pagava a água que consumia, técnicos da SMAR de Loures deslocaram-se à Praceta LF…, em Odivelas e procederam ao corte de água para a fracção onde a arguida E. reside - ou seja, para o r/c direito.

Também está provado que, após o corte do fornecimento de água para aquela fracção, os técnicos da SMAR de Loures procederam à selagem do denominado "olho-de-boi", de modo a que ninguém conseguisse aceder àquele local, assegurando, deste modo, a inviolabilidade daquela zona.

Porém, não logramos perceber em que provas se sustentou o tribunal recorrido para dar como provados estes factos.

Colheu-se alguma informação junto dos serviços competentes? Quem é que depôs sobre essa matéria, tendo em vista o silêncio da arguida/ora recorrente? A sentença recorrida nada esclarece.

Quanto à selagem do denominado “olho-de-boi” e posterior quebra, diz-se na motivação da decisão de facto que “resulta das regras da normalidade que o olho-de-boi estaria selado pelos serviços respetivos o que obstaria ao abastecimento de água à fracção da arguida. Donde, só a arguida teria interesse na reposição de água. Consequentemente, só a arguida poderia ter violado o olho-de-boi, por si ou por interposta pessoa”.

É sabido que o tribunal pode prevalecer-se da prova indirecta ou indiciária para chegar à sua convicção, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admissível pelo nosso ordenamento jurídico (cfr. nesse sentido, Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. n.º 03P3375; 07/01/2004, Proc. n.º 03P3213; 09/02/2005, Proc. n.º 04P4721; 04/12/2008, Proc. n.º 08P3456; 12/03/2009, Proc. n.º 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. n.º 81/04PBBGC.S1, todos em www.dgsi.pt.).

A prova indirecta ou indiciária reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência (sendo estas “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentemente do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade - Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, reimpressão da Universidade Católica, Lisboa, 1981, pag. 300), uma ilação quanto ao tema da prova.

Ora, qual é a regra de experiência que permite concluir “que o olho-de-boi estaria selado pelos serviços respetivos”? Esse é o facto que, uma vez estabelecido, poderá basear, com o auxílio de regras de experiência, a convicção relativa a quem (ou a mando de quem) procedeu à quebra da selagem. 

Porém, quais são as presunções naturais, fundadas nas regras da experiência comum, que permitiram ao tribunal firmar a sua convicção sobre essa matéria: a de que o olho-de-boi estaria selado pelos serviços respectivos?

Não se sabe.

Acresce que a utilização do condicional (ou futuro do pretérito, como alguns o denominam, por influência dos gramáticos brasileiros) - “estaria” selado – introduz um elemento de dúvida no discurso, sabido que o verbo no condicional serve, além do mais, para exprimir a incerteza, dúvida ou suposição sobre factos passados, o que não é curial acontecer quando estão em causa factos indispensáveis para a integração do tipo de crime.

Quer isto dizer que não se retira da sentença qual o processo de raciocínio do tribunal na formação da sua convicção quanto aos factos, o que impede esta Relação de sindicar se efectuou (ou não) uma apreciação objectiva da prova produzida, em conformidade com as regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.

Como se disse no acórdão desta Relação proferido no RECURSO N.º 4/08.5GBALQ.L1 (Relator: Artur Vargues, que subscrevemos como adjunto, não publicado), a motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida «revela insuficiências que tornam opaco o processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal a quo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, tem de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal da racionalidade e coerência do juízo ou do processo lógico que conduziu à formação da convicção no tocante aos aludidos factos, passando o exame crítico da prova nos presentes autos, necessariamente, por uma explicação quanto a esse processo.»

Considerando o estabelecido nos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) e 374.º, n.º 2, ambos do C.P.P., a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação, nos termos mencionados.

Considerada esta nulidade, que é de conhecimento oficioso, fica prejudicado o conhecimento das questões colocadas no recurso.

***

III–Dispositivo.

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:

A)–Declarar nula a sentença recorrida, por inobservância do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do C.P.P., a qual deve ser reformulada pelo mesmo tribunal, proferindo nova decisão onde se supra o apontado vício de falta de fundamentação, com exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção;

B)–Não conhecer das questões suscitadas pela arguida/recorrente, por se mostrarem prejudicadas.
Sem tributação.
Notifique, conjuntamente com o despacho que deu sem efeito a audiência designada.


Lisboa, 10 de Julho de 2918

(Jorge Gonçalves) – (o presente acórdão, integrado por catorze páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


(Maria José Machado)