Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15654/16.8T8SNT-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
CREDOR SUBORDINADO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não deve ser homologado o plano de recuperação (art. 216 do CIRE), se um credor hipotecário demonstrou em termos plausíveis que, com o produto da venda do imóvel hipotecado a seu favor, liquidaria, tendencialmente de imediato, a totalidade do seu crédito, sendo esta situação mais favorável do que aquela que resultaria da aprovação do plano, onde, entre o mais, se prevê o não pagamento do capital durante dois anos, o pagamento de 50% do capital durante os 9 anos subsequentes àqueles 2, e o pagamento dos outros 50% só no 12.º ano.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados.


Relatório:


C-Lda, veio, ao abrigo do disposto no art. 17-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, intentar o presente processo especial de revitalização.

Concluídas as negociações foi votado o plano apresentado pela devedora, tendo o Sr. AJP considerado que o plano tinha sido aprovado.

Votaram contra o plano, entre outros, os credores B-SA, e o B1-SA.

Publicada a aprovação do plano, vieram os credores B e B1, requerer a sua não homologação.

O tribunal considerou que assistia razão ao BCP no que concerne à verificação da previsão do art. 216/1-a do CIRE, e, em consequência, não homologou o plano.

A devedora interpôs recurso desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que homologue o plano -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A.-O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo tribunal a quo, que no seguimento do pedido do B, recusou a homologação do plano de recuperação aprovado, com base na alegada existência de uma situação menos favorável para o B com a homologação do plano da que existiria em cenário de liquidação ou de simples encerramento do processo.
B.-O tribunal recorrido entendeu que, sendo o activo da devedora claramente inferior ao seu passivo, esta se encontra, pelo menos, num estado de insolvência iminente, pelo que, prevendo o plano o pagamento dos créditos ao longo de 12 anos, com carência de capital nos dois primeiros anos, tal importará para o B um excessivo prolongamento no tempo do pagamento do seu crédito, o que não ocorreria em cenário de liquidação.
[…]
D.-Em primeiro lugar, foi o facto de a devedora se encontrar numa situação de insolvência iminente que determinou a sua submissão a PER, pelo que a circunstância de o activo da devedora ser inferior ao passivo não pode ser relevada para efeitos de homologação, na medida em que integra um dos pressupostos de acesso ao PER.
E.-Em segundo lugar, constam do plano aprovado o plano financeiro, balanço previsional, demonstrações financeiras provisionais e plano estratégico.
F.-Para demonstrar a capacidade da devedora de fazer face aos seus compromissos, esta esclarece ao longo do plano que, para além da melhoria substancial das condições de mercado, a devedora estabelece os seus objectivos e concretiza as estratégias que pretende implementar ao abrigo do plano de recuperação.
G.-As medidas elencadas no plano, combinadas com os mencionados plano financeiro, balanço previsional, demonstrações financeiras provisionais, plano estratégico, plano de pagamentos por credor e a simulação de PER versus liquidação, expõem a estratégia que a devedora pretende adoptar com vista a assegurar a sua capacidade para fazer frente aos compromissos estabelecidos ao abrigo do plano, pelo que não corresponde à verdade que não constem do plano elementos que permitam com segurança prever como mais provável que a devedora consiga fazer face aos compromissos assumidos, ou sequer que a homologação não servirá a recuperação da devedora.
H.-Em terceiro lugar, o plano prevê o pagamento ao longo de 12 anos, com carência de capital nos dois primeiros anos, a partir da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano, em prestações mensais, iguais e sucessivas, relativamente ao valor a pagar em cada ano, bem como o pagamento dos juros vincendos, a manutenção das garantias prestadas e não contempla qualquer perdão de capital ou juros.
I.-Não se compreende como podem o B e o tribunal a quo concluir que, com a homologação do plano de recuperação, o primeiro ficará numa situação menos favorável que a que adviria na ausência do referido plano, porquanto através do plano, os credores irão receber a totalidade dos créditos reclamados, acrescidos dos juros que se vençam.
J.-Através do mapa com a simulação do PER versus a liquidação percebe-se com facilidade que o B, beneficiando de garantias reais, logrará sempre receber a totalidade dos seus créditos. O mesmo não se passará com os credores comuns (fornecedores). Estes, num cenário de liquidação, apenas veriam os seus créditos satisfeitos numa pequena parte.
K.-78,3% dos credores da devedora votaram favoravelmente o plano de recuperação, mostrando dessa forma que acreditam genuinamente na possibilidade de recuperação da devedora contra 21,63% de votos desfavoráveis.
L.-Assim, foi a manifestação dos credores que foi sacrificada da vontade do B, o qual, aliás, face às garantias de que beneficia, prevalecerá sempre sobre os demais credores comuns, com grave prejuízo para estes.
M.-O B encontra-se já a executar as garantias prestadas ao abrigo dos créditos reclamados (proc. 9063/16.6T8SNT que corre termos no Juízo de Execução de Sintra).
N.-É manifesto que a recusa da homologação do plano deixa os credores da devedora, para além do B, numa situação muito desfavorável, esta sim, de flagrante prejuízo para os restantes credores, em confronto com a situação que lhes adviria da homologação do referido plano de recuperação.
O.-Em quarto lugar, a garantia dos bens de que dispõe o credor B sempre implicaria a venda forçada dos bens o que implicará uma desvalorização do seu valor.
P.-O cenário de pagamento ao credor B é mais vantajoso ao credor B porquanto pressupõe o pagamento àquele credor da totalidade do valor por si reclamado no PER, o qual dificilmente poderia [ser] alcançado num cenário de venda forçada dos bens, no qual se desconhece a existência de interessados na aquisição daqueles bens.
Q.-Em quinto lugar, em virtude das garantias reais de que goza o B é forçoso concluir que o B estará sempre numa situação mais favorável, quer em cenário de insolvência, quer no de simples encerramento do processo.
R.-Porém, tal ideia contraria toda a essência do PER o qual visa a recuperação dos devedores, relegando a satisfação dos direitos / protecção dos credores para segundo plano.
S.-Em sexto lugar, a não homologação do plano aprovado é especialmente gravosa para os envolvidos no processo negocial. Para além de as negociações já realizadas caírem por terra, a devedora não poderia levar a cabo a sua recuperação em tempo útil e os credores que já aprovaram o plano veriam as suas expectativas frustradas, não podendo obter a satisfação dos seus créditos, como seria expectável com a homologação do plano.

O B contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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Questões a decidir: se o plano devia ter sido homologado, por não se verificar a situação prevista no art. 216/1-a do CIRE.
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Factos provados:
Para além das vicissitudes processuais de que se deu conta no relatório que antecede, está ainda provado o plano de recuperação votado, que se dá por reproduzido e de que a decisão recorrida fez a seguinte síntese:
O plano prevê: o pagamento dos créditos comuns, garantidos e subordinados, ao longo de 12 anos, com carência de capital nos dois primeiros anos, sendo 1% no terceiro ano, 2,5% no quarto ano, 3% no quinto ano, 5% no sexto ano, 6% no sétimo e no oitavo ano, 6,5% no nono ano, 7%, no décimo ano, 13% no décimo primeiro ano e 50% pagos no último ano; os juros serão pagos sem carência e no final de cada trimestre.

Acrescente-se o seguinte, tendo em conta o teor das alegações da devedora:
1.-Estão pendentes – suspensos destes – uns autos de insolvência requerida por A-Lda (proc. 15654/16.8T8SNT do juízo de comércio de Sintra) [entretanto foi dado seguimento a esses autos de insolvência a que estes passaram a estar apensos, tendo vindo desacompanhados – o processo em papel – das alegações e das contra-alegações de recurso].
2.-A devedora tinha um activo – em 2016 - de 7.518.596,74€ [incluindo activos fixos tangíveis de 2.137.990,14€; na simulação feita no plano, reportado a 2017, os activos fixos tangíveis têm o valor de balanço de 2.103.725,70€ e prevê-se o valor de realização de 70% ou seja, 1.472.607,99€] – fls. 388v e 396v.
4.-O passivo da devedora era no montante de 9.543.743,04€ [este valor foi dado pela decisão recorrida com base na demonstração financeira histórica, sendo o valor de 2016, mas o passivo relacionado – que serviu de base à decisão recorrida – é de 11.790.666,91€.
5.-O crédito do B é de 941.141,89€ (na lista de créditos o AJP não diz qual é o prédio que serve de hipoteca).
6.-A devedora deu-se como proprietária de três prédios: um terreno com o nº. de registo predial 526/19871117, com o custo de aquisição de 25.172,29€, um outro com o n.º de registo predial 1693/19960228, com o custo de aquisição de 30.082,80€, e um terceiro, um edifício, com o n.º de registo predial 2092/19980721-C, com o custo de aquisição de 886.805,07€, e o valor estimado, actual, para os três, de 2.000.000€.
7.-Existem 55 credores. Votaram a favor do plano 19 credores.

8.-Os credores que votaram a favor são os seguintes:
(i)- B2 – credor garantido – 9,849% dos créditos totais (que a devedora, numa simulação constante do plano, prevê que seria pago apenas em cerca de 73% do seu crédito no caso de liquidação [universal, ou seja, no caso de insolvência]).
(ii a vi)- AMF, BSL, RJR, SJE, PML – arrolados como credores sob condição, por créditos laborais estimados no caso de cessação do contrato de trabalho, por indemnização e proporcionais – 0,405%.
(vii)- JAA e MMBA – credores subordinados – são o irmão e a cunhada do sócio-gerente da devedora (art. 48/1 do CIRE) com 10,15% dos créditos totais [a relação de parentesco foi confessada].
(viii)- CA-Lda – credor subordinado com 7,429% – o voto foi expresso pela sócio-gerente da devedora; foi o sócio-gerente da devedora que veio responder pessoalmente à impugnação deste crédito.
(ix)- DC-Lda, credor subordinado com 8,06% dos créditos – o voto foi expresso pelo sócio gerente da devedora; o crédito foi reclamado pelo sócio-gerente da devedora; na reclamação diz-se que a devedora tinha uma quota de 74,29% do capital social da credora e que os restantes sócios e gerentes de ambas as empresas eram CLA e mulher MOCA e que a devedora tinha uma relação especial, de domínio, sobre a reclamante.
(x)- S-Lda, credor subordinado com 7,061% – o voto foi expresso pela mulher do sócio-gerente da devedora; na reclamação diz-se que a devedora tinha uma quota de 66,94% do capital social da credora e que os restantes sócios e gerentes de ambas as empresas eram CLA e mulher MOCA e que a devedora tinha uma relação especial, de domínio, sobre a reclamante; o crédito foi reclamado pelos sócios-gerentes da devedora.
(xi)- SA, credor subordinado com 0,32% – o voto foi expresso pela mulher do sócio-gerente da devedora; na reclamação diz-se que a devedora tinha uma quota de 77,31% do capital social da credora e que os restantes sócios e gerentes de ambas as empresas eram CLA e mulher MOCA e que a devedora tinha uma relação especial, de domínio, sobre a reclamante; o crédito foi reclamado pela sócia-gerente da devedora.
(xii)- R-SA com 31,606% (crédito dito comum, em 86,62% e sob condição, em 13,38%); os membros do conselho de administração são o irmão e a cunhada do gerente da devedora, ou seja, JAA e mulher, MMSBA; em 2006 foi inscrita a alteração do contrato com aumento de capital: de 4.900.000€, realizado em dinheiro e subscrito pelos accionistas JAA e MMSBA com a quantia de 2.465.000€ para o primeiro e 2.435.000€ para a segunda [a parte final destes dados constam de http://publicacoes.mj.pt/Pesquisa.aspx].
(xiii)- Ad-Lda, com um crédito dito comum de 0,08% do total de créditos – tem como sócios a R-SGPS, SA, com uma quota de 5000€, JAA, com uma quota de 40.000€ e mulher MMSBA, com uma quota de 5000€, que foram designados gerentes. A 06/08/2014 foi nomeado gerente BMBA [a partir do ‘-‘ estes dados constam de http://publicacoes.mj.pt/Pesquisa.aspx].
(xiv a xix)- 6 credores comuns que representam 0,538% do total dos créditos.

9.-Um outro credor, dado como comum, a N-Lda – que não votou - também tem como seu sócio-gerente o sócio-gerente da devedora. São sócias daquele: SI e CA. Foi o sócio gerente da devedora que veio responder pessoalmente à impugnação deste crédito.
10.-A CA-Lda reclamou o seu crédito dizendo que tinha prestado uma garantia hipotecária a favor da devedora e que a CGD, credora hipotecária, se encontrava a exigir o pagamento. A CGD veio dizer que o crédito não existia, porque a CA não efectuou qualquer pagamento da dívida da devedora à CGD. Foi decidido que a impugnação improcedia.
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Decidindo:

O art. 216/1-a do CIRE, aplicável ao PER por força do art. 17-F/7 do CIRE, dispõe que “O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado […] por algum credor […] cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos [ou seja, anteriormente à aprovação do plano de insolvência], contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que: a) a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano […].

Ora, se não houvesse plano de recuperação e fosse declarada a insolvência da devedora, o que aliás já foi pedido, o B, com um crédito de cerca de 1.000.000€, garantido por hipoteca sobre um prédio de valor muito superior, veria, quase de certeza, o seu crédito todo coberto com a venda do imóvel (aliás, a própria devedora, ao fazer a “simulação de PER versus liquidação” considerou que o B, havendo liquidação na sequência da insolvência, seria integralmente pago), tanto mais que não existem sequer credores privilegiados.

Diz-se “um prédio”, “valor muito superior” e “quase de certeza” devido à forma como está elaborado o plano e como era feito o requerimento de PER, com uma surpreendente indefinição destes elementos. Mas, tendo em conta os pontos 2, 5 e 6 dos factos provados, não há dúvida de que o prédio hipotecado é o edifício, com um valor de aquisição muito superior ao dos dois terrenos, pelo que o valor de 2.100.000€ (em 2016) pelos três cabe, na quase totalidade, a esse prédio; para além disso, o valor realizável com a venda dos imóveis seria de 70%, ou seja, cerca de 1.500.000€, de novo imputável na sua maior parte ao edifício, e por isso muito acima do valor da dívida que é de cerca de 1.000.000€. De resto, a devedora/AJP reconhece que, na insolvência, este credor receberia todo o valor do seu crédito.

Tudo isto é perfeitamente suficiente para o efeito, visto que, como diz Santos Júnior, O plano de insolvência. Algumas notas, pág. 585, citado por Alexandre Soveral Martins, Um curso de direito da insolvência, Almedina, 2015, pág. 446, nota 133: “não se trata de prova stricto sensu, mas de uma mera justificação, por isso que o que se exige ao juiz não será a convicção séria e isenta de dúvida da verificação do alegado pelo requerente, mas a conclusão sobre uma plausibilidade ou verosimilhança, ainda que séria.”

A devedora considera, no entanto, que não se verifica a previsão do art. 216/1-a do CIRE, porque esta é também a situação do B com o PER, mas esquece que, segundo o PER, o B não receberá nenhum valor a título de capital durante os dois primeiros anos e depois só virá a ser pago de 50% do seu crédito nos outros 10 anos e receberá os outros 50% no 12.º ano, quando, havendo liquidação, o pagamento será, tendencialmente, imediato.

Por isso, não há dúvidas de que a situação dos autos preenche a previsão normativa do art. 216/1-a do CIRE e, em consequência, o tribunal devia recusar – como recusou – a homologação do plano.

Neste sentido, a decisão recorrida cita o ac. do STJ de 22/11/2016, proferida no proc. 785/15.0T8FND-B.C1.S1, para um caso idêntico ao dos autos, que disse, na parte que importa: “[] III - Não deve ser homologado o plano de recuperação referido em I, se o credor alegou e provou que, com o produto da venda do imóvel hipotecado a seu favor, sobre a casa de habitação dos devedores, liquidaria, de imediato, os encargos do processo e a totalidade do seu crédito, sendo esta situação mais favorável do que aquela que resultaria da aprovação do plano, onde se previa o pagamento da totalidade do capital em dívida em 504 prestações mensais, iguais e sucessivas, devendo a primeira ocorrer no último dia útil do 30.º mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano.” Acórdão este que, por outro lado, esclarece que: “I - O pedido de não homologação do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, por parte de qualquer credor, só tem que ser apresentado após a publicação da deliberação e antes da sentença de homologação.”

No mesmo sentido, Luís Menezes Leitão, CIRE anotado, 2017, 9.ª edição, Almedina, pág. 258, invoca o ac. do TRG de 22/11/2007, onde se considerou, na síntese feita pelo autor, como menos favorável para o credor um plano de insolvência que, embora lhe atribuísse um pagamento de valor superior ao que resultava da imediata execução de duas hipotecas, só lhe permitiria receber ao fim de 15 anos, quando a liquidação do património do insolvente lhe permitia receber imediatamente [o acórdão está publicado na base de dados do TRG no IGFEJ sob o n.º 1953/07-1].

E não estava na dependência da vontade do juiz recusar ou não a homologação. Verificados os pressupostos da recusa, o juiz só pode recusar a homologação. Como diz Pedro Pidwell, O processo de insolvência e a recuperação da SCRL, Coimbra Editora, 2011, pág. 279: “a forma peremptória como [a norma] está redigida conduz, de modo inexorável, à conclusão que uma vez preenchidos os requisitos legais, o juiz está vinculado a proferir decisão de não homologação.”

É certo que tudo isto “confirma a soberania dos interesses dos credores, que prevalecem, em última análise, sobre os interesses na conservação da empresa: todo o plano de insolvência – de recuperação da empresa – pode sucumbir por causa de um credor; basta que alegue e prove o seu prejuízo nos termos referidos.” (Catarina Serra, O regime português da insolvência, pág. 152, nota 252, citada através de Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE anotado, Almedina, 2013, pág. 213, pág. 601, que acrescentam: “infelizmente, parece-nos certo este entendimento.”)

Mas, independentemente desta crítica ao regime ser ou não de aceitar em abstracto, a verdade é que, por um lado, confirma que o regime é este e, por outro, considera-se que ela não se aplica no caso dos autos, face ao que se dirá a seguir.
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Do resultado da votação
A devedora diz que “78,3% dos seus credores votaram favoravelmente o plano, mostrando dessa forma que acreditam genuinamente na possibilidade da recuperação da devedora contra 21,63% de votos desfavoráveis.”

Antes de mais há que fazer uma ressalva: um dos créditos relacionados está, obviamente, relacionado em duplicado. E é um crédito de 7,429% do total dos créditos, o que logo inquina todas as contas quanto à votação (mas no sentido de que, o que se diz a seguir, seria ainda mais desfavorável à devedora).

Trata-se do crédito da CA (referido nos pontos 8/viii e 10 dos factos provados). Como a CA não dizia ter pago a dívida exequenda, e enquanto não a pagar, não é titular de qualquer crédito sobre a devedora, pois que só se sub-roga no crédito depois do pagamento (arts. 589 a 594 do Código Civil). Mas, a entender-se o contrário (como nos autos se entendeu e tal não é objecto do recurso), então não podia subsistir o mesmo crédito a favor da CGD, o que representa uma evidente duplicação. E como o crédito é da CGD e não foi pago, vê-se que aquele que não devia constar da lista era o da CA.

Seja como for, isto é, independentemente disto, a verdade é que, face ao descrito acima quanto à votação, a leitura a fazer do resultado dela é completamente diferente daquela que a devedora faz.

Votaram a favor do plano, no essencial, apenas a “família” da devedora, pois que dos credores sem ligações especiais à devedora apenas votaram a favor do plano seis que representam apenas 0,538% do total dos créditos, um credor garantido (que com o plano esperava ser totalmente pago o que previsivelmente não aconteceria com a insolvência em que apenas é previsível que receba 73%) e cinco credores “condicionais” por créditos laborais que só nascerão com a eventual cessação do contrato de trabalho.
Para além, pois, de se estar, no caso, perante uma “família” que decidiu, contra a massa substancial dos seus credores, suspender os pagamentos das suas dívidas durante 2 anos e impedir a declaração de insolvência, e não, como diz a devedora, perante uma convicção da maioria dos credores de que será possível a revitalização da devedora, a verdade é que, materialmente, a situação é a de um conjunto de credores subordinados ter imposto a aprovação do plano.

É que se se considerasse o crédito da R-SA como crédito subordinado, já não seria possível obter os quóruns deliberativos exigidos pelos art.17-F/3 do CIRE.

E o crédito da R-SA é, materialmente, um crédito subordinado, embora assim não esteja decidido no processo. Já que é uma sociedade em que os detentores do capital social e administradores da sociedade são irmão e cunhada do sócio-gerente da devedora e cunhado da sócio-gerente da devedora. Isto por força, ao menos, da interpretação extensiva do art. 49/2-d do CIRE.

Com efeito, a interpretação das normas que falam da relação especial (art. 49 do CIRE), que leva à subordinação do crédito (art. 48 do CIRE), não pode ser feita com a simplicidade sugerida pela devedora, ou seja, de que as sociedades não são parentes umas das outras, nem vivem em união de facto entre elas.

A propósito do acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ de 13/11/2014, proc. 1936/10.6TBVCT-N.G1.S1, que no ponto 59 dizia: “Assim, a referida presunção [do art. 120/4 do CIRE] tanto se verifica quanto à resolução dos actos prejudiciais em que o terceiro (a) é ele próprio pessoa especialmente relacionada com o insolvente como em relação aos actos em que o terceiro (b) não é pessoa especialmente relacionada com o insolvente mas neles participou ou se aproveitou pessoa especialmente relacionada com o insolvente. Acolhe-se, pois, a segunda interpretação anteriormente enunciada deste preceito.”, Miguel Teixeira de Sousa (em comentário publicado nos CDP 50 Abril/Junho 2015, especialmente págs. 61 e segs) refere que nada impede a interpretação extensiva de uma enumeração taxativa; bem como a possibilidade de tornar uma enumeração taxativa numa enumeração enunciativa, com recurso à consideração da fraude à lei; e ainda, que a doutrina e a jurisprudência alemã não vêem qualquer obstáculo à aplicação analógica do disposto na norma alemã equivalente ao art. 49/2 do CIRE, de molde a abranger os casos em que se verifica uma relação familiar próxima entre os sócios ou os gerentes da sociedade insolvente e da sociedade adquirente; e, por fim, que o que o STJ fez foi desconsiderar a personalidade jurídica das duas sociedades envolvidas.

Neste mesmo sentido, para situações paralelas, veja-se o ac. do TRG de 17/09/2013, proc. 1936/10.6TBVCT-S.G1, o ac. do STJ de 25/03/2014, 1936/10.6TBVCT-N.G1.S1, o ac. do TRP de 05/12/2013, proc. 2041/10.0TJPRT-C.P1, o comentário de Maria de Fátima Ribeiro nos Cadernos de Direito Privado nº. 35, Julho/Setembro 2011, nota 44 e texto conexo das págs. 39/40 (que fala também do carácter não taxativo do art. 49 do CIRE e na abrangência do art. 120/4 do CIRE funcionando mesmo para relações especiais que se tenham constituído após a prática do acto em causa, em alternativa à desconsideração da personalidade jurídica de sociedades defendida por um acórdão do TRP para uma situação diferente) e Ana Mafalda Miranda Barbosa, Direito Civil e sistema financeiro, Principia, 2016, págs. 60-61, que concorda com Luís Menezes Leitão (já referido nos acórdãos invocados, Direito da Insolvência, 107) quando diz que a enumeração do art. 49 é meramente exemplificativa. E diz: “não faria sentido, de facto, que alguém que materialmente tivesse uma relação de proximidade análoga a qualquer uma das mencionadas na lei não fosse qualificado, para estes efeitos [qualificação do crédito como subordinado], como especialmente próximo do devedor. Referindo várias outros acórdãos e posições a favor do entendimento da norma como enumeração meramente exemplificativa ou a favor da interpretação extensiva do preceito no caso de se considerar taxativo, veja-se também Marisa Vaz Cunha, Garantia Patrimonial e prejudicialidade, Almedina, 2017, págs. 224/225.

Ou seja, em relação ao crédito da R-SA, sociedade com um crédito com o valor de 31,606% do total dos créditos, o mesmo não pode ser invocado como se fosse materialmente um outro credor qualquer, sendo, antes, mais uma empresa da “família” da devedora.

Parafraseando o B, conclui-se por isso que a “aprovação” do plano resultou da acção concertada de sociedades entre si ligadas, de forma a evitar a insolvência da devedora, com isso prejudicando os “reais” credores.

Aliás, o reconhecimento de que não tem sentido que um grupo de pessoas especialmente relacionadas possa pôr e dispor dos interesses dos credores, resulta agora da alteração do CIRE pelo DL 79/2017, de 30/06, passando a dispor que a manifestação de vontade de iniciar o PER tem de vir, para além da empresa, de credor ou credores que, não estando especialmente relacionados com a empresa, sejam titulares, pelo menos, de 10% de créditos não subordinados (art. 17-C/1 do CIRE nessa nova redacção).
Ou seja, hoje, considerando a R-SA uma sociedade especialmente relacionada com a devedora, nem sequer teria sido possível o início do PER.

Isto tudo serve, assim, para afastar o argumento da devedora de que “78,3% dos seus credores votaram favoravelmente o plano, mostrando dessa forma que acreditam genuinamente na possibilidade da recuperação da devedora […]” e a inaplicabilidade ao caso da crítica abstracta ao regime legal referida acima, pois que não se demonstra que o interesse na conservação das empresas esteja a ser posto em causa devido ao interesse de um credor.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pela devedora.



Lisboa, 28/09/2017



Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira