Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5/04.2TOLSB-C.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: ESTADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
VALOR DO RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.–Se a parte não indica o valor do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º, do RCP, o valor do mesmo é o da ação.

2.–O Decreto-Lei n.º 31/85, 25/01, atualizado através do Decreto-Lei n.º 26/97, de 23/01, regula a responsabilidade civil do Estado no que concerne a veículos apreendidos em processo penal ou contraordenacional, bem como dos que vierem a ser declarados perdidos a favor do Estado.

3.–Estabelece nos artigos 11.º a 13.º regras sobre como se calcula o valor do dano ocasionado pelo uso por parte do Estado, quando seja ordenada a restituição do veículo apreendido, perdido ou abandonado em favor do Estado.

4.–Se a liquidação da obrigação de indemnizar correspondente à desvalorização ocasionada pelo uso do veículo por parte do Estado, apenas ocorrer na sentença, os juros de mora são devidos desde a data do trânsito em julgado da mesma, nos termos do artigo 805.º, n.ºs 3, 1.ª parte, do Código Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO:


AUTO..., melhor identificada nos autos, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25/01, alterado pelo Decreto-Lei n.º 26/97, de 23/01, deduziu por apenso ao respetivo processo-crime, ação especial de fixação judicial de indemnização, contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, pedindo que seja fixada e paga a indemnização no valor total de €617.223,24, correspondendo €362.406,67 a título de capital e €254.816,57 a título de juros legais, acrescidos de juros até integral e efetivo pagamento, devida pela utilização que o Estado fez dos seguintes veículos, que são sua propriedade:
- (i) Mercedes, modelo C270 CDI/M6 Elegance;
- (ii) Audi, modelo A6 Allroad 2.5 TDI.Tiptronic;
- (iii) BMW modelo 320D Pack Luxe;
- (iv) Audi, modelo A6 Allroad 2.5TDI Quadro Tiptronic;
- (v) Jeep, modelo Grand Cherokee 3.1 TD Limited;
- (vi) Jeep, modelo Grand Cherokee 3.1 TD Limited;
- (vii) Volkswagen, modelo Golf 75 CH 5 portas;
- (viii) Audi, modelo A4 1.9 TDI.

Para o efeito alegou, em suma, que, em 22/03/2001, foram apreendidas aos arguidos e à ordem do processo crime de que este é apenso, as oito viaturas supra identificadas. Posteriormente foram-lhe restituídas por ser a proprietária das mesmas e parte civil lesada naquele processo.
Entretanto, e durante cerca de 13 anos, as referidas viaturas foram usadas pelos organismos e serviços do Estado, tendo-as devolvido em estado degradado e totalmente desvalorizadas.
Não concordando com a indemnização administrativamente arbitrada e anteriormente liquidada, requereu a fixação da indemnização e a corresponde liquidação no valor supra referido.

O Ministério Público contestou por exceção e por impugnação, como consta de fls. 588 e seguintes.
Foi realizada prova pericial colegial, cujo relatório consta de fls. 1262 e seguintes e 1273 e seguintes.
Foi realizada audiência prévia com homologação de acordo; porém, o mesmo não veio a ser posteriormente autorizado pelo Ministério da Justiça.
Os autos prosseguiram a legal tramitação e foi proferido despacho-saneador como consta de fls. 1315 e seguintes.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento com produção de prova testemunhal.
Em 08/11/2018 foi proferida sentença (cfr. fls. 1383-1416) que condenou o ESTADO PORTUGUÊS a pagara à autora AUTO..., a quantia de €215.110.42, acrescida de juros à taxa legal desde 22/03/2001, data da apreensão dos referidos oito veículos, e até integral e efetivo pagamento, a título de indemnização pela utilização e desvalorização dos mesmos.
O Ministério Público interpôs recurso de apelação apresentando as alegações que constam de fls. 1418-1424, cujas conclusões infra se transcrevem.
A autora apresentou resposta ao recurso como consta de fls. 1437-1444.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, ao abrigo dos artigos 627.º, 629.º, n.º 1, 631.º, 638.º, 645.º, n.º 1, 647.º, n.º 1, do CPC, e artigo 13.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25/01 (cfr. despacho de fls. 1426).
Os autos foram remetidos a esta Relação de Lisboa, distribuídos à 9.ª Secção e autuados como Recurso Penal.
Foi aberta Vista ao Ministério Público que emitiu o Parecer que consta de fls. 1451.
A recorrida, notificada para, querendo, se pronunciar (artigo 417.º, n.º 2, do CPP), apresentou o requerimento que consta de fls. 1453-1457.
Em 26/03/2019 foi proferido despacho a julgar a secção criminal incompetente para efetuar o julgamento do recurso por serem competente as secções cíveis deste Tribunal da Relação de Lisboa.
Este despacho transitou em julgado.
Os autos foram, então, redistribuídos à 1.ª Secção Cível, onde correm termos.

Foram colhidos os vistos legais.
 
CONCLUSÕES DO RECURSO:

1.– Na presente Acção Especial para apuramento e fixação Judicial do montante indemnizatório, nos termos dos artigos 11.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 26/97, de 23 de Janeiro, julgada parcialmente procedente, a douta sentença recorrida condenou o Apelante Estado Português a pagar à Apelada Requerente a quantia de €215.110,42, acrescida de juros à taxa legal, desde 22 de Março de 2001 (data da apreensão dos veículos) até integral e efectivo pagamento, a título de indemnização pelo uso e desvalorização de oito viaturas restituídas após prolongada apreensão.
2.– Todavia, a mencionada condenação do Estado no pagamento de juros vencidos desde a apreensão dos veículos é injustificada e assenta em erro de julgamento cometido pela douta sentença recorrida.
3.– Com efeito, estando em causa a responsabilidade objectiva do Estado por facto lícito – nos termos do regime especial do DL n.º 31/85 – e não havendo, nem tendo sido doutro modo considerado na sentença qualquer «ilícito» ou facto susceptível de constituir o devedor em mora antes da instauração do processo, nada há que permitisse retroagir o vencimento de juros sobre o capital indemnizatório ao momento da apreensão dos veículos.
4.– Bem pelo contrário, o quadro factual apurado e a devida aplicação do regime especial do DL n.º 31/85 ao caso importam a necessária falência da argumentação sobre a pretensa «ilicitude» dos veículos por parte do Estado em que a Apelada alicerçava o pedido de juros vencidos desde a apreensão, que assim deveria ter sido julgado improcedente.
5.– Por outro lado, sendo a obrigação ilíquida, em resultado da propositura da acção assente na discordância da Apelada sobre o valor da indemnização anteriormente apurada e paga por via administrativa, e assim tendo permanecido até final fixação na douta sentença recorrida, os juros moratórios sobre o capital indemnizatório revisto só passarão a vencer-se e a poder ser contabilizados a partir da data do seu trânsito em julgado, conforme o disposto no art.º 805.º n.º 3, primeira parte, do Cód. Civil, dado estar em causa a responsabilidade indemnizatória por facto lícito, e não ilícito ou pelo risco, ou seja sem que assim opere a excepção à regra in illiquidis non fit mora prevista na segunda parte daquela mesma norma.
6.– O erro de julgamento cometido pelo douto Tribunal «a quo», atinente ao segmento decisório em a douta sentença recorrida condena o Estado ao pagamento de juros vencidos desde 22 de Março de 2001 (data da apreensão dos veículos) e vincendos até integral e efectivo pagamento, comporta assim a violação do disposto nos artigos 805.º, n.º 1 e n.º 3, e 806.º n.º 1 do Código  Civil,
7.– Sendo certo que a aplicação dessas normas ao caso ditaria, tão só, a condenação do Estado no pagamento de juros de mora a contabilizar desde o trânsito em julgado da sentença.

Termos em que, na procedência do recurso, deverá o segmento decisório impugnado ser revogado e substituído por outra e melhor decisão que atenda à improcedência do pedido de juros vencidos desde a apreensão, tal como formulado pela Autora, e mais determine devidos juros moratórios a contabilizar desde o trânsito da sentença, sem prejuízo da devida e necessária alteração da repartição das custas do processo em função do maior decaimento da Autora.

II–FUNDAMENTAÇÃO

A–Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), as questões a decidir no recurso são as seguintes:
- Questões prévias: (i) Valor do recurso; (II) Da admissibilidade do processado de fls. 1450-1457 (Parecer do Ministério Publico e pronúncia da apelada)
- Da obrigação de juros e momento do vencimento

B–De Facto

A 1.ª instância deu como provada e não provada a matéria de facto constante da sentença (cfr. fls.1384-1407, correspondendo 98 itens a factos provados e 5 itens a factos não provados).
Não se encontrando a decisão de facto impugnada, nem havendo lugar a qualquer alteração da factualidade nela inserida, dá-se por reproduzida decisão sobre a matéria de facto saída do julgamento em 1.ª instância (artigo 663.º, n.º 6, do CPC).


C–De Direito

1.– Questões prévias:
1.1.- Valor do recurso: 
    
A apelada vem invocar que o Ministério Público não indicou o valor do recurso e que sendo determinável o valor da sucumbência (que calcula em €166.071,14, correspondente a juros legais desde 22/03/2001 a 07/12/2018), deve ser esse o valor do recurso por aplicação do artigo 11.º, n.º 2, do RCP.
Vejamos.
Estipula o artigo 12.º, n.º 2, do RCP que «Nos recursos, o valor é o da sucumbência quando esta for determinável, devendo o recorrente indicar o respetivo valor no requerimento de interposição do recurso; nos restantes casos, prevalece o valor da ação.»
É patente que o preceito não estipula qualquer regra para as situações como a dos autos em que o recorrente, independentemente de ser ou não determinável o valor da sucumbência, não indica o valor do recurso.
Nesse caso, a situação apenas pode ser subsumível à situação residual prevista na parte final do n.º 2 do preceito, ou seja, o valor do recurso é o valor da ação.[1]
De qualquer modo, tal como decidido por esta Relação de Lisboa[2], «Não relevam para a determinação do valor da sucumbência os juros moratórios vencidos na pendência da acção», pelo que as contas apresentadas pela apelada que têm como limite a data da interposição do recurso, nunca relevariam para a determinação da sucumbência.
Por conseguinte, fixa-se ao recurso o valor da ação.

1.2.- Da admissibilidade do processado de fls. 1450-1457 (Parecer do Ministério Publico e pronúncia da apelada):            
Defende a apelada a rejeição liminar do Parecer junto pelo Ministério Público por ser inadmissível juridicamente.
Como decorre dos autos, após a distribuição do recurso à 9.ª secção criminal desta Relação de Lisboa, foi aberta vista ao Ministério Público para os efeitos do artigo 416.º do CPP e, na sequência da pronúncia do Ministério Público, a recorrida foi notificada para, querendo, se pronunciar, o que fez, como conta do requerimento de fls. 1453-1457, onde suscita, para além do mais, a questão da inadmissibilidade legal do referido Parecer.
Posteriormente, como prescreve o artigo 416.º, n.º 1, do CPP, foram os autos conclusos ao Relator que decretou a incompetência material daquela secção criminal para tramitar o recurso.
Prescrevendo o n.º 5 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 31/85, de 23/01, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 26/97, de 23/01, que «No restante agora não previsto aplicar-se-ão as regras do processo civil para o processo sumário» e nada prescrevendo o diploma sobre o regime de recurso, as normas referentes à respetiva tramitação são as que constam do CPC, mormente, dos artigos 627.º e seguintes, sendo que o recurso foi admitido precisamente ao abrigo do regime processual civil e não penal. Não contemplando os normativos processuais civis regra semelhante à do artigo 416.º do CPP, impõe-se a não admissão do referido Parecer, bem como da pronúncia da apelada subsequente ao mesmo, o que ora se decide e decreta.

Não se tributando o respetivo incidente dada a sua simplicidade (cfr. artigo 7.º, n.º 8,do RCP).

2.–Do conhecimento do recurso
2.1.-Da obrigação de juros e momento do vencimento

Alega o Ministério Público que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento no que concerne à condenação em juros de mora desde a data da apreensão dos veículos, porquanto nos termos dos artigos 805.º, n.º 1 e 3, e 806.º do Código Civil, os juros moratórios vencem-se apenas a partir do trânsito em julgado da sentença, data em que se tornou líquido o crédito da ora apelada.
Mais alega que está em causa a responsabilidade civil extracontratual do Estado pela prática de um ato lícito, que gerou prejuízo (desvalorização dos veículos apreendidos) carecido de reparação no âmbito do regime indemnizatório especial previsto no Decreto-Lei n.º 31/85.

Contrapõe a apelante na resposta ao recurso que não existe qualquer erro de julgamento, porquanto estão em causa juros compensatórios, os quais visam compensar a recorrida pela privação, durante quase 18 anos, do capital referente à desvalorização dos veículos.
Mais acrescentando que na petição inicial não qualificou os juros como «juros moratórios» e que o artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 31/85, permite esta interpretação ao fazer referência, em sentido amplo, à «compensação» a que houver lugar, não se restringindo, por conseguinte, a indemnização nele prevista à desvalorização em sentido restrito.

Vejamos.
A sentença recorrida enquadrou a situação descrita nos autos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado por ato lícito e, a nosso ver, de forma correta, atentos os factos provados e o regime legal que os mesmos convocam.
Assim, e no que concerne à factualidade essencial para dirimir a questão em apreciação, há que atentar o seguinte:
- Em 15/03/2001, no âmbito do processo crime (autos principais deste Apenso) foram apreendidos os oito veículos supra identificados, tendo-se vindo a apurar que são pertença da ora apelada Auto Leader, S.R.L;
- O Estado Português utilizou os veículos desde a data da apreensão;
- Por despacho de 10/02/2011 foi ordenada a entrega dos veículos à Auto...;
- A Auto... procedeu ao levantamento dos mesmos em 14/03/2014, 27/10/2014 e 29/10/2014;
- O Estado procedeu ao apuramento do valor indemnizatório devido à ora apelada pela desvalorização dos veículos e pagou-lhe os montantes apurados;
- A apelada discordou dos valores e intentou a presente ação;
- Foi realizada peritagem a fim de fixar o valor da desvalorização de cada um dos veículos;
- Na sentença recorrida o valor final da desvalorização dos referidos veículos foi fixado em €215.110,42, obtido do seguinte modo:
- ao valor global de €232.132,99 (valor da desvalorização dos veículos) foi subtraído o valor das viaturas aquando da sua entrega e pago à ora apelada, no valor de €5.415,39, e o valor de €19.673,27 correspondente ao valor dos danos causadas nas viaturas, também recebido pela apelada, e adicionados os valores das benfeitoras realizadas nas viaturas, no montante de €8.066,09.

Em face desta factualidade e no que concerne ao regime jurídico, importa referir, ainda que sumariamente (porque afinal essa questão nem sequer se encontra controvertida e apenas foi chamada à colação pelo recorrente para justificar que os juros de mora só são devidos após o trânsito em julgado da decisão recorrida), que o Estado, no exercício das suas funções soberanas (legislativa, administrativa e jurisdicional), pode, por atos lícitos, causar prejuízos a terceiros que são merecedores de tutela jurídica, consagrando o artigo 22.º da CRP o princípio da responsabilidade patrimonial direta das entidades públicas por danos causados aos cidadãos.
Como se afigura consensual, o referido preceito constitucional (aplicável diretamente por via do artigo 18.º da CRP) abrange a responsabilidade civil por atos ilícitos, lícitos ou pelo risco, ainda que a densificação dos respetivos regimes seja relegada para a legislação ordinária, concretizadora dos respetivos pressupostos legais da responsabilidade patrimonial da administração.
É sabido que o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado regeu-se pelo Decreto-Lei n.º 48.051, de 21/11/1967 até à sua revogação pela Lei n.º 67/2007, de 31/12 (em vigor desde 31/01/2008, e alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17/07), diploma que veio recentrar a questão da responsabilidade civil extracontratual do Estado em face das diversas funções estatais, criando um regime plural e misto de responsabilidade objetiva e subjetiva, abrangendo, agora e de forma inequívoca, a função jurisdicional,[3] prevendo no seu artigo 16.º a indemnização pelo sacrifício, a que anteriormente correspondia a responsabilidade civil por ato lícito que se encontrava prevista no artigo 9.º do revogado Decreto-Lei n.º 48.051.
Tudo isto sem prejuízo de também serem aplicáveis as regras da responsabilidade civil extracontratual  previstas no Código Civil não derrogadas pelas normas especiais da referida Lei n.º 67/2007.  Veja-se assim, a remissão do artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 67/2007 para «os termos gerais de direito» no que concerne à quantificação dos danos indemnizáveis, remetendo, assim, para as regras gerais dos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.[4]
O Decreto-Lei n.º 31/85, 25/01, atualizado através do Decreto-Lei n.º 26/97, de 23/01, regula a responsabilidade civil do Estado no que concerne a veículos apreendidos em processo penal ou contraordenacional, bem como dos que vierem a ser declarados perdidos a favor do Estado.
Estabelece nos artigos 11.º a 13.º regras sobre como se calcula o valor do dano ocasionado pelo uso por parte do Estado, quando seja ordenada a restituição do veículo apreendido, perdido ou abandonado em favor do Estado, relevando para o caso dos autos, a situação da restituição.
Regula, ainda, a fixação judicial de indemnização pelo uso, a determinar quando o particular não concorda com o apuramento indemnizatório alcançado por via administrativa, como, aliás, ocorreu no caso dos autos.
Nestes, está em causa a responsabilidade civil extracontratual do Estado por ato lícito, uma vez que os veículos foram aprendidos no âmbito de um processo crime onde foram investigados e julgados, para além do mais, atos relacionados com a importação/comercialização desses veículos, tendo-se vindo a apurar que as viaturas eram propriedade da ora apelada, parte cível lesada naquele processo, pelo que foi ordenada a restituição dos referidos veículos à sua proprietária.
O que não exclui a responsabilidade civil do Estado pelo prejuízo decorrente da utilização das viaturas ao alongo de vários anos, de tal modo que, quando foi ordenada a restituição, as oito viaturas em referência nestes autos encontravam-se com uma «total desvalorização», impossibilitando a sua comercialização (cfr. facto provado 70.º).
O valor da indemnização devida pelo Estado, nos termos acima sobreditos e no que concerne ao modo como a sentença alcançou o respetivo montante, não se encontra impugnado no recurso e mesmo a apelada não questiona esse valor.
A questão prende-se, como se disse, apenas e só com a questão dos juros e data do seu vencimento.
Em nosso entender, é claro que o Decreto-Lei n.º 31/85, nos seus artigos 11.º a 13.º, regula os termos como se determina o valor do dano/prejuízo causado pelo uso dos veículos por parte do Estado e não regula qualquer questão relativas a juros, sejam eles de que natureza forem.
Ou seja, o que os preceitos estabelecem são regras específicas para cálculo da obrigação de indemnização, tendo como pano de fundo o regime civilista previsto nos artigos 562.º a 566.º do Código Civil, o qual também se vislumbra na previsão do artigo 3.º da Lei n.º 67/2007, como já dito.
Assim, partindo da regra de que não há responsabilidade civil (e consequente obrigação de indemnização) sem haver dano (artigo 562.º do Código Civil) e que, não sendo possível a restituição in natura, como obviamente sucede no caso presente, a indemnização é fixada em dinheiro tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil), estabelece o artigo 11.º do citado Decreto-Lei n.º 31/85, uma regra específica para se alcançar essa diferença ao mandar, por um lado, atender à desvalorização provocada pelo uso, e, por outro lado, às benfeitorias que o Estado efetuou durante a utilização.
Operada a compensação entre esses dois valores, encontra-se o valor da indemnização devida ao titular do crédito pelo excedente apurado.
Portanto, o que se visa é a quantificação pecuniária do dano e é essa a correspondente obrigação de indeminização a favor do credor do Estado.
A ideia defendida pela apelante que o valor (capital) assim alcançado corresponde a juros compensatórios que visam compensar o titular do crédito pela privação temporária do capital referente à desvalorização, olvida que na quantificação do valor da desvalorização das viaturas apreendidas, não está em causa a remuneração pela privação temporária de qualquer capital e/ou a compensação por essa privação, mas antes, o apuramento de um dano/prejuízo de cariz patrimonial que decorre do uso das viaturas e da consequente desvalorização das mesmas.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, os juros são frutos civis (artigo 212.º, n.º 2, do Código Civil) «constituídos por coisas fungíveis, que o credor aufere como rendimento de uma obrigação de capital e (que) variam em função do valor desse capital, do tempo durante o qual se mantém a privação deste e da taxa de remuneração.»[5]
A obrigação de uros, quanto à sua fonte, pode resultar da lei 
(juros legais) ou de negócio jurídico (juros voluntários ou convencionais). Se atendermos à sua função, surgem outras classificações, podendo distinguir-se entre juros remuneratórios (exprimem o rendimento do capital); juros compensatórios (visam corresponder à simples privação do capital); juros moratórios (devidos a título de reparação pelo incumprimento tempestivo de uma obrigação pecuniária); e os juros indemnizatórios (que se relacionam sobretudo com o não cumprimento definitivo de uma obrigação).[6]
Os juros compensatórios como referia Vaz Serra têm a função de completar a indemnização devida, compensando o prejudicado do ganho perdido até que tenha conseguido a reintegração do seu direito; sendo assim, na realidade, um capital suplementar justificado pelo dano (BMJ, 84.º, p. 244). Ou seja, dito de outro modo, como refere Menezes Leitão (também citado pela apelada), os juros remuneratórios/compensatórios «destinam-se a proporcionar ao credor um pagamento que compense uma temporária privação de capital, que ele deveria ter suportado.» [7]
Sucede que na situação em apreço, apelada não sofreu nenhuma privação temporária de capital que não deveria ter sofrido, o que se verifica é que o património da apelada constituído pelos veículos apreendidos sofreu uma desvalorização por terem sido usados pelo Estado que os tinha à sua ordem por via da apreensão judicial de que foram alvo. É essa lesão patrimonial decorrente da atividade jurisdicional do Estado que aqui está em causa e que é fonte geradora da obrigação da indemnização devida ao particular.
Acresce que quando o artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 31/85 se refere a «compensação»  não tem o sentido propugnado pela apelada na sua motivação de recurso, ou seja, não se reporta a qualquer compensação/remuneração pela privação do rendimento/capital, mas apenas à necessidade ao abatimento do valor das benfeitorias ao valor da desvalorização que seja apurado em relação ao uso por parte do Estado. No fundo, o que se prevê é uma consequência da teoria da diferença acima referida, a chamada «compensatio lucri cum dano» de que resulta a necessidade de deduzir no valor dos danos causados pelo facto lesivo as vantagens que ele também tenha produzido na esfera jurídica do lesado.
A interpretação que a apelada defende não tem, pois, qualquer respaldo, nem na letra, nem na ratio da lei,  pelo que não deve ser acolhida (artigos 236.º  e 238.º do Código Civil).
Chegados a este ponto da análise, importa, então, determinar qual a natureza dos juros objeto da condenação e desde quando são devidos.
A ora apelante, na petição inicial pede uma determinada quantia a «título de juros legais» (artigo 112.º) e na formulação final do pedido alude novamente a «juros».
Agora, no recurso, alega que nunca se referiu a «juros moratórios».
Pena é que na petição inicial não tivesse melhor concretizado a que juros se reportava.
Porém, também a sentença recorrida não concretizou os juros que menciona na parte dispositiva da sentença, embora a menção a «juros à taxa legal» indicie que estando reportando-se a condenação a um valor pecuniário no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado por ato lícito, o que está em causa são juros moratórios (civis), cuja taxa está fixada legalmente, como decorre do artigo 559.º, n.º 1, do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 08/04/2003, que fixou os juros moratórios em 4% ao ano, mantendo-se tal taxa até à presente data.
Nessa situação, como estipula o artigo 804.º, n.º 1, do Código Civil, os juros legais moratórios exercem uma função de indemnização pelo retardamento do cumprimento da obrigação e são devidos desde a constituição em mora (artigo 806.º, n.º 1, do Código Civil), estipulando o artigo 805.º do mesmo diploma legal sobre o momento da constituição em mora, relevando para a situação em apreço o n.º 3, 1.ª parte, do preceito, ao  prescrever «se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor…».
Em termos gerais, poderemos definir a obrigação ilíquida como sendo aquela cuja existência é certa, mas cujo montante ainda não está fixado ou apurado,[8]  relevando o princípio «in illiquidis non fit mora» subjacente à previsão da 1.ª parte do n.º 3 do artigo 805.º no que concerne à iliquidez objetiva, ou seja, a que se verifica quando o devedor não estiver em condições de saber quanto deve.
No caso sub judice, a apelada não  se conformou com o valor da indemnização apurada e paga por via administrativa, requerendo a sua fixação judicial como prescreve o artigo 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 31/85. Assim, a liquidação da obrigação do Estado apenas ocorreu com a prolação da sentença recorrida. Só nesta foi alcançado o valor da desvalorização ocasionada pelo uso dos veículos, aí tendo sido decidido que o valor em referência para essa fixação eram os valores de compra dos veículos pela apelada ao fornecedor (e não outros), aos quais deviam ser subtraídos os valores das viaturas à data da restituição, os valores dos danos causados nas viaturas e já pagos à apelada e adicionados os valores das benfeitorias.
Por conseguinte, e como bem defende o Ministério Público no recurso em apreciação, os juros de mora objeto da condenação do Estado são os vencidos após o trânsito em julgado da sentença recorrida, por aplicação dos artigos 805.º, n.º 3, 1.ª parte, e 806.º, do Código Civil, não sendo, consequentemente devidos juros de mora desde a data da apreensão dos veículos, contrariamente ao decidido na sentença recorrida.
Nestes termos, procede a apelação, impondo a revogação da sentença na parte impugnada, ou seja, em relação à condenação em juros de mora vencidos e vincendos nos termos ali referidos, sendo devidos, nos termos das disposições supra referidas, juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde o trânsito em julgado da sentença recorrida até efetivo e integral pagamento da quantia objeto da condenação.

Em face do recíproco decaimento, as custas da ação ficam a cargo das partes, na proporção do vencimento, e as do recurso a cargo da recorrida que ficou vencida (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III–DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença na parte referente à condenação em juros e, em sua substituição, condenam o ESTADO PORTUGUÊS  a pagar à autora AUTO..., juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data do trânsito em julgado da sentença recorrida e até efetivo e integral pagamento da quantia objeto da condenação.
Custas nos termos sobreditos.


Lisboa, 01 de outubro de 2019


(Maria Adelaide Domingos - Relatora)
(Ana Isabel Mascarenhas Pessoa – 1.ª Adjunta)
(Eurico José Marques dos Reis - 2.º Adjunto)


[1]Neste sentido, veja-se SALVADOR DA COSTA, Regulamento das Custas Processuais, Almedina, 2012, p. 304.
[2]Ac. RL, de 14/12/2017, proc. 78383-15.3YIPRT-A.L1-6 (Maria de Deus Correia), disponível em www.dgsi.pt   
[3]Cfr. CABRAL DE MONCADA, Responsabilidade Civil Extra-Contratual do Estado, Ed. Abreu & Marques, Vinhas e Associados, 2008, p. 18-23.
[4]Cfr. FERNNADES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Anotado, Coimbra Editora, 2008, p. 300 (1).
[5]ANTUNES VARELA/PIRES DE LIMA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2011, p. 567-568 (1).
[6]ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Almedina, p. 663-664.
[7]MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I, 7.ª ed., Almedina, p. 164-165.
[8]ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 3ª ed., Almedina, p. 111 e nota 1.