Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
350/09.0PDALM.L1-9
Relator: FRANCISCO CARAMELO
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - qualquer decisão que diga respeito ao arguido deve ser precedida da sua audição prévia — inclusivamente a da conversão da multa não paga em prisão subsidiária — quando tal se mostre viável e possível

II - a não audição presencial do arguido, em violação do disposto no n° 2 do artigo 495.° do CPP, constitui a nulidade insanável cominada na alínea c) do artigo 119.° do mesmo diploma legal
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

I — RELATÓRIO

No processo comum singular 350/09.0PDALM, do 2° Juízo Criminal do Tribunal de Almada, foi proferido o despacho de fls. 233, que determinou que o arguido, LS..., cumprisse 100 dias de prisão subsidiária, correspondente à pena de multa — 150 dias à taxa diária de €5.00, no total de €750,00 — que lhe foi fixada por sentença proferida em 31/05/2013, e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art° 86 n° 1, al. c) da Lei n° 5/06 de 23/02.

Inconformado, recorreu o arguido, na forma constante de fls.237 a 240, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, pugnando pela declaração da nulidade daquele despacho, porquanto existiu omissão de audição do arguido, previamente à revogação da substituição da pena, de acordo com o disposto no art° 495 n° 2 do C.P.Penal.

                                           

Respondeu o Ministério Público, na forma que consta de fls. 249 a 252, concluindo pelo não provimento do recurso.

Neste Trib al, a Exma. Procuradora - Geral Adjunta, no douto parecer de fls. 260, que se dá por reproduzido, concluiu pela improcedência do recurso.

O arguido respondeu, na forma constante de fls.263, que aqui se dá por inteiramente reproduzida

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II— FUNDAMENTAÇÃO

1. Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, como vem sendo reafirmado, constante e pacificamente, pela doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores [cfr., por todos, Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", III, 2a Ed., Editorial Verbo, pág. 335; e Ac. do STJ de 24-03-99, in CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247], sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.

E, de acordo com as conclusões formuladas pelo recorrente, definindo o objecto da cognição deste Tribunal, a única questão que cumpre encarar e decidir é a de saber se, de acordo com o disposto no art° 495 n°2 do C.P.Penal, a não audição do arguido, em caso de conversão da multa não paga em prisão subsidiária, constitui nulidade insanável p. na alínea c) do art° 119 do C.P.Penal.

2. Com relevância para a decisão a proferir há que considerar os seguintes factos:

- O arguido LS... foi condenado por sentença proferida em 31/05/2013, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86°, n° 1, alínea c), da Lei n° 5/06 de 23/02, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).

- Decorrido o prazo legal para pagamento da multa em que foi condenado, o arguido não pagou.

- Através do requerimento junto a fls. 187, o arguido veio requerer a substituição da multa não paga, por dias de trabalho a favor da comunidade.
- Na sequência, foi proferido o despacho que consta de fls.206, ordenando solicitação de relatório à DGRS, nos termos e para os efeitos do art° 490 n° 2 do C.P.Penal.
- Como resulta de fls. 221, o arguido, não obstante notificado para comparecer à entrevista marcada para o dia 09/12/2013, com vista à elaboração do solicitado relatório, não compareceu.
- Na sequência, o Ex.mo M°. P°. promoveu que se designasse dia para a audição do arguido, nos termos do art° 495 n° 2 do C.P.Penal.
- Em despacho subsequente, que consta de fls. 224, o Ex.mo Juiz, pronunciando sobre aquela promoção, limitou-se a ordenar a notificação do arguido " para proceder ao pagamento da multa em que foi condenado, sob pena de não o fazendo, a mesma ser convertida em dias de prisão subsidiária, nos termos do art° 49 do C.Penal "

- o arguido, nada disse, apesar de notificado na morada constante do TIR. ( cfr. fls.247) - pelo que, em 24 de Fevereiro de 2014 foi proferido o despacho recorrido, que consta de fls. 233, determinado que o arguido cumprisse a prisão subsidiária correspondente à pena de multa que lhe foi fixada, concretamente, 100 (cem) dias de prisão subsidiária.

3. Como decorre da factualidade referida, no despacho que consta de fls. 224, o Ex.mo Juiz, pronunciando sobre o requerido pelo M°.P° para que se designasse dia para a audição do arguido, nos termos do art° 495 n° 2 do C.P.Penal., limitou-se a ordenar a notificação do arguido " para proceder ao pagamento da multa em que foi condenado, sob pena de não o fazendo, a mesma ser convertida em dias de prisão subsidiária, nos termos do art° 49 do C.Penal "

Qual a consequência, in casu, da omissão de audição do arguido?

Como é sabido, um dos direitos de defesa, decorrente do próprio Estado de direito democrático, traduz-se na observância do princípio ou direito de audiência, «que implica que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do juiz ou do tribunal (concepção "carismática" do processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção democrática do processo) e se encontrem em situação de influir naquela declaração de direito, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assuma». (Ac. da Relação de Coimbra de 30-04-03, CJ, Ano XXVIII, Tomo II, pág. 50).

Outro dos direitos de defesa traduz-se na observância do princípio do contraditório, estabelecido no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República, que, nos termos do citado Acórdão, se consubstancia «no direito/dever do juiz de ouvir as razões do arguido e demais sujeitos processuais, em relação a questões e assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, bem como no direito do arguido a intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, direito que abrange todos os actos susceptíveis de afectarem a sua posição ou de atingirem a sua esfera jurídica».

O Tribunal Constitucional, a propósito do princípio do contraditório, teceu as seguintes considerações no seu Acórdão n° 499/97, de 10-07-1997, acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc e publicado no DR, 2.ª série, n° 244, de 21-10-1997: «Deste modo, o contraditório surge como regra orientadora da produção pelo tribunal de um juízo que interfira com o arguido, para além de se justificar pela defesa de direitos. Em processo penal, o contraditório visa, antes de mais, assegurar decisões fundamentadas na discussão de argumentos, subordinando todas as decisões (ainda que recorríveis) em que os arguidos sejam pessoalmente afectados (...) como emanação de uma racionalidade dialéctica, comunicacional e democrática. É. assim, o princípio do contraditório expressão do Estado de direito democrático e, nessa medida, igualmente das garantias de defesa.»

É hoje entendimento unânime que a não audição presencial do arguido. em violação do disposto no n° 2 do artigo 495.° do CPP, constitui a nulidade insanável cominada na alínea c) do artigo 119.° do mesmo diploma legal.

Deste modo, verifica-se que é, de facto, indiscutível a aplicação do disposto no artigo 495 n° 2 do C.P.Penal, porquanto se entende que qualquer decisão que diga respeito

ao arguido deve ser precedida da sua audição prévia — inclusivamente a da conversão da multa não paga em prisão subsidiária — quando tal se mostre, como no casu se mostrava, viável e possível, tanto mais que o arguido já havia invocado anteriormente as razões da impossibilidade económica para efectuar o pagamento da multa, tendo através do requerimento junto a fls. 187, requerido a sua substituição, por dias de trabalho a favor da comunidade..
Impunha-se, para se aferir da culpa do arguido quanto às razões da impossibilidade de elaboração do relatório social solicitado para aquele efeito, por falta da sua comparência, que estas fossem esclarecidas e apreciadas pelo Tribunal, com a prévia audição do mesmo.
A jurisprudência dos nossos tribunais superiores, nomeadamente desta Relação de Lisboa, é maioritária no sentido de que a não audição do arguido em caso de

revogação da pena de multa, constitui a nulidade insanável prevista na alínea c) do art 119.°, do CPP, independentemente do motivo da revogação — a título exemplificativo, veja-se a jurisprudência citada por Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código de Processo Penal", pág. 1250, em anotação ao art. 495.°.

Afigura-se-nos que, in casu, se impunha, por forma a averiguar-se da sua culpabilidade, ou não, quanto àquele incumprimento, relativamente à elaboração do
relatório social, com vista à apreciação do requerido pelo arguido, que este, fosse previamente ouvido para se pronunciar, nos termos do art° 495 n° 2 do C.P.Penal - , como aliás foi requerido pelo M°.P°. a fls. 223, situação que constitui a nulidade insanável cominada no art° 119°, al. c), do CPP.

III — DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da 9.ª Secção deste Tribunal da Relação em:

Na procedência do recurso, declarar nulo o despacho recorrido e determinar que, ouvido o arguido, se decida em conformidade.          Sem tributacão.

Lisboa, 09 de Julho de 2014

Francisco Caramelo

Fernando Estrela