Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
586/08.1TCFUN.L1-6
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
INSOLVÊNCIA
SOCIEDADE ESTRANGEIRA
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO
Sumário: I – O regulamento comunitário é uma das fontes internas do direito comunitário, conforme ressalta do artigo 249.º do Tratado da União Europeia, sendo ainda referenciado pela sua generalidade, obrigatoriedade em todos os seus elementos e aplicabilidade directa em todos os Estados-Membros, sendo definido como um acto típico do Direito Comunitário Derivado ou Secundário, que deve ser fundamentado (artigo 253.º do mesmo Tratado), formar-se de acordo com os procedimentos previstos em tal Tratado (artigo 251.º) e ser publicado no Jornal Oficial da União Europeia (artigo 254.º), dependendo a sua validade e vigência do cumprimento desses requisitos formais.
II – A estipulação da lei aplicável ao contrato é juridicamente admissível e válida, não só face ao disposto nos artigos 41.º do Código Civil e 4.º, ponto 1 do Código Comercial, em sede de direito interno, como ao abrigo dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 8.º, 9.º e 10.º da Convenção Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (conhecida como Convenção de Roma) e que entrou em vigor em 1/04/1991, tendo sido substituída, a partir de 24/07/2008, pelo Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), que só se aplica, contudo, aos contratos celebrados após 17/12/2009 (logo, o acordo escrito dos autos está fora do quadro de aplicação deste último acto comunitário).
Muito embora as questões ligadas à insolvência dos comerciantes ou não comerciantes não estejam expressamente excluídas do âmbito de aplicação da Convenção de Roma, também é certo que não se encontram abarcadas pelas diversas matérias que estão previstas nos artigos 5.º a 14.º, para efeitos da lei do contrato escolhida pelas partes ou supletivamente invocável (artigo 4.º).
O artigo 7.º, número 2 dessa mesma Convenção de Roma diz: “2. O disposto na presente convenção não pode prejudicar a aplicação das regras do país do foro que regulem imperativamente o caso concreto, independentemente da lei aplicável ao contrato.” (o Estado Português, ao abrigo do artigo 22.º da Convenção, reservou-se o direito de não aplicar o número 1 desse mesmo dispositivo convencional).
III – Atendendo meramente ao direito interno, não só em função das ressalvas constantes do número 1 dos artigos 65.º e 65.º-A do Código de Processo Civil e do disposto no artigo 6.º do Código Comercial, como do determinado pelo artigo 99.º do Código de Processo Civil, seria legal a escolha do tribunal competente feita pelas partes no dito negócio, ideia que sai reforçada pela aplicação do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em, matéria civil e comercial, publicado em 16/01/2001 e com entrada em vigor em 1/03/2002, com as subsequentes alterações introduzidas pelos Regulamentos (CE) n.º 1496/2002, da Comissão, de 21/8/2002, n.º 1937/2004, da Comissão, de 09/11/2004, n.º 2245/2004, da Comissão, de 27/12/2004 e n.º 1791/2006, do Conselho, de 20/11/2006 (cf. os artigos 1.º e 23.º, sendo que não estamos perante um caso de competência exclusiva – artigo 22.º - ou perante uma violação do disposto nos artigos 13.º, 17.º e 21.º).
Tal Regulamento não se aplica, entre outras matérias e de acordo com o número 2, alínea b) do seu artigo 1.º às falências, concordatas e processos análogos.
IV – Considerando os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 13.º, 15.º,16.º, 17.º, 25.º, 26.º, 27.º a 29.º, 32.º, 33.º, 34.º, 39.º a 41.º e 43.º da versão consolidada de 1/01/2008 do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, publicado em 30/06/2000 e com entrada em vigor em 31/05/2002, com as alterações introduzidas pelo Regulamento (CE) n.º 603/2005 do Conselho, de 12 de Abril de 2005, publicado em 20/04/2005 e com entrada em vigor em 21/04/2005 e atendendo a que a sede da Ré é em Espanha, a competência para a abertura e tramitação do processo de insolvência é dos tribunais espanhóis, sendo a lei espanhola a aplicável a tal processo, dado que o mesmo foi aberto num tribunal do país vizinho.
Finalmente, a abertura desse processo de insolvência, bem como todas as decisões nele tomadas, são imediata reconhecidas nos outros Estados-Membros da União Europeia, como é o caso de Portugal.
IV – A lei reguladora do negócio dos autos e escolhida pelas partes tem um âmbito de aplicação específico, que não abrange – não pode abranger – casos em que uma das partes contratantes e incumpridora do acordado é alvo de um processo de insolvência, por impossibilidade da satisfação das suas obrigações para com terceiros, entre os quais se inclui a Apelante.
A lei escolhida pelas partes para reger as suas relações contratuais refere-se a um quadro de normalidade comercial e jurídica, em que só os contraentes estão em causa assim como os seus objectivos próprios e egoístas (ainda que perfeitamente legítimos), já não podendo, em nossa opinião, ser invocada quando um deles está numa situação económica deficitária, incapacitado ou com sérias dificuldades em liquidar todos os seus compromissos e em risco de cessar a sua actividade e ver vendido todo o seu património com vista a pagar, até onde for possível, aos seus credores.
Existem aqui interesses de carácter económico e social, que, por serem de ordem pública, extravasam manifestamente o âmbito de cada relação particular do insolvente com cada um dos seus clientes, fornecedores ou trabalhadores, visando o processo de falência ou insolvência a recuperação da empresa em dificuldades ou, como acontece com o nosso Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a satisfação possível dos credores, em pé de igualdade, ainda que respeitando as garantias dos créditos existentes.
O Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, convirá dizê-lo, não se limita a reger as questões da competência e os aspectos adjectivos do processo de insolvência, mas também matérias de índole substantiva, como ressalta, nomeada e claramente, dos artigos 5.º (direitos reais de terceiros), 6.º (compensação), 7.º (reserva de propriedade), 8.º (contratos relativos a imóveis), 13.º (actos prejudiciais) e 14.º (protecção do terceiro adquirente), passando por todo esse regime um sopro de imperatividade, compaginável naturalmente com os referidos interesses de ordem pública que visa proteger e que não é compatível com a possibilidade da sua derrogação por uma convenção contratual como a dos.
A sujeição do contrato dos autos à lei do foro, enquanto durar a situação judicial de insolvência, não nos parece colocar a Autora numa intolerável ou acentuada posição prejudicial ou de desfavor (a sujeição do contrato à lei portuguesa, contra tudo e todos, é que poderia gerar uma discriminação em seu benefício), pois a mesma sempre tem de reclamar os seus créditos no âmbito do dito processo de insolvência, dado a resolução extrajudicial por ela promovida, ainda que válida e eficaz, não lhe permitir accionar ou executar, individualmente e à revelia dos autos de insolvência, a Ré (cf. artigo 15.º do Regulamento, “a contrario sensu”).
V – No que concerne ao foro competente, o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em, matéria civil e comercial exclui expressamente da sua aplicação, no número 2, alínea b) do seu artigo 1.º, as falências, as concordatas e processos análogos.
Tal não pode significar outra coisa que não seja a vontade do legislador comunitário em retirar às partes a possibilidade de escolherem, por cláusula negocial e particular, o foro da instauração do processo de insolvência e da resolução de todos os aspectos, vertentes e conflitos em que o mesmo se desdobra.
Não invalida o que se deixou dito a possibilidade de, ao abrigo dos artigos 27.º de seguintes do Regulamento (cf., também, quanto ao Direito Nacional, os artigos 271.º e seguintes do CIRE), os credores poderem instaurar processos de insolvência secundários noutros Estados-Membros, pois não só tal propositura está expressamente consentida por norma contida no dito instrumento comunitário (e não por cláusula contratual), como ainda porque tal só pode acontecer nas circunstâncias nele assinaladas, como, finalmente, é imposta uma relação estreita entre tais processos e o processo principal de insolvência, sendo certo que estes autos não configuram, nem de perto, nem de longe, uma acção dessa natureza.
VI – Definida a lei espanhola como aquela que rege, durante a pendência do processo de insolvência, os aspectos adjectivos e substantivos relativos a tal estado e processo, o juiz espanhol do tribunal de comércio tem competência para o julgamento de todas as acções e questões com reflexos no património do devedor, na liquidação dos seus débitos e na adequada e satisfatória conclusão do processo de insolvência.
Nessa medida, qualquer nova acção judicial instaurada após a abertura do processo de insolvência e à margem deste não poderá ser julgada pelo respectivo tribunal, que informará as partes de que deverão exercer os seus direitos perante o juiz daquele e deverá arquivar esses autos, sendo nulos quaisquer actos aí praticados.
VII – A abertura do processo traduz-se no referido Auto de Declaração do Concurso, que, no caso em análise, foi elaborado em 6/02/2006, tendo os autos respectivos acabado por se encaminhar para a concretização de um acordo de credores (Convénio), que nunca chegou ao seu termo, em termos do seu cumprimento, tendo então se iniciado a fase da liquidação.
Tal abertura do processo, embora não provoque a cessação das relações contratuais existentes, exige que a resolução de qualquer negócio jurídico celebrado com a devedora seja accionada judicialmente perante o juiz do processo de insolvência.
De acordo com a Ley Concursal n.º 22/2003, de 9/07 (nomeadamente, dos artigos 112.º e seguintes), só com o total cumprimento do acordo de credores é que a mencionada instância termina (o que só excepcionalmente acontecerá em simultâneo com a sua aprovação judicial), transitando para a fase subsequente da liquidação quando se verifica qualquer uma das hipóteses legalmente previstas, nomeadamente, o incumprimento daquele Convénio.
(JES)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

CONSULTORES E SERVIÇOS, SA, com sede no Funchal veio instaurar, em 20/12/2008, os presentes autos de acção declarativa de simples apreciação, com processo ordinário, contra SM, SA, UNIPERSONAL, sociedade comercial Espanhola, com sede em Valência, Espanha, pedindo, em síntese, o seguinte
Termos em que, e nos melhores de direito, deve este Tribunal declarar que:
- O contrato celebrado entre a Autora e a Ré a 4 de Setembro de 2007, melhor identificado no artigo 1° desta PI e junto como Documento n.º 1, foi válida e legalmente resolvido no dia 12 de Novembro de 2008”.
(…)
Finda a fase dos articulados e juntas as traduções de diversos documentos redigidos em língua espanhola, veio o juiz do processo, a fls. 193 e seguintes e com data de 3/07/2009, proferir despacho, com o seguinte teor, na parte relevante: “ (…) Factos com interesse para a decisão deste incidente
1. A presente acção foi intentada neste tribunal no dia 20.12.2008, tendo a Ré sido citada para a mesma no dia 14.01.2009;
2. A Ré foi objecto de "procedimiento concursal ordinario n.º ...", que corre termos no Juzgado de Lo Mercantil n.º 2 de Valência, em Espanha (provado por acordo);
3. A Ré entrou nesse processo de insolvência em 2006, tendo sido declarada "em estado concursal" mediante "auto del Juzgado de Lo Mercantil n.º 2 de Valência, com data de 6 de Fevereiro de 2006 (provado por acordo);
4. Por sentença de 20 de Junho de 2007 proferida pelo citado julgado Valenciano foi aprovado "convenio de acreedores" (provado por acordo);
5. Por sentença de 15 de Outubro de 2008, proferida pelo mesmo tribunal Valenciano, no âmbito do supra citado processo concursal, decretou-se a abertura da "fase de liquidacion" (provado por acordo).
Cumpre decidir.
Ora, de acordo com o artigo 16.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do
Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência,
posteriormente alterado pelo Regulamento (CE) n.º 603/2005 do Conselho de 12 de Abril de 2005 e pelo Regulamento (CE) n.º 694/2006 do Conselho de 27 de Abril de 2006, "qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de uma Estado-Membro competente por força do art.º 3.º, é reconhecida em todos os outros Estados – Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo". Estabelecendo ainda o artigo 17.º, do mesmo diploma legal que “a decisão de abertura de um processo (..) produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados Membros, os efeito que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo". Assim, sendo imediatamente reconhecida no nosso território aquela decisão que declarou a insolvência da Ré, a mesma produz, no nosso ordenamento jurídico, os mesmos efeitos que tem em território do estado membro onde foi proferida.
Como se pode ler no considerando daquele Regulamento "o bom funcionamento do mercado interno exige que os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efectuem de forma eficiente e eficaz ". "Para assegurar o bom funcionamento do mercado interno, há que evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens ou acções judiciais de um Estado-Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável".
Com este objectivo, o Regulamento assenta nos seguintes princípios:
a) O principio de que o processo de insolvência seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro de interesses principais do devedor, visando abarcar todo o património do devedor – artigo 32 e considerando (12);
b) O princípio do reconhecimento imediato e automático por todos os Estados-Membros das decisões relativas a abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como de decisões proferidas em conexão directa com esses processos. Assim sendo, o reconhecimento automático deve conduzir a que os efeitos conferidos pela lei do processo pela lei do Estado de abertura se estendam a todos os outros Estados – Membros – (artigos 16.2 e 17.2 do Regulamento e considerando (22);
c) O princípio de que deve aplicar-se a lei do Estado – Membro de abertura do processo (lex concursus) que determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência"- artigo 42 e considerando (23).
Desta forma, tendo a presente acção sido proposta após a referida declaração de insolvência, será a lei espanhola a aplicável no que se refere aos efeitos da insolvência relativamente a presente acção.
Assim, será a denominada Ley Concursal n.º 22/2003, de 9 de Julho, que, à semelhança do nosso CIRE, prevê a obrigatoriedade de um concurso universal de credores para o exercício dos direitos de carácter patrimonial contra o insolvente, ou seja, impõe que os créditos anteriores à sentença que decreta a insolvência sejam reclamados naquele processo, devendo os juízes dessas acções abster-se de as conhecer, remetendo as partes para o processo de insolvência.
Quanto às acções instauradas após a declaração de insolvência, que é o caso dos presentes autos, rege o disposto no artigo 50.º da Ley Concursal 22/2003, segundo o qual o juiz se deverá abster de conhecer, remetendo as partes para o processo de insolvência. Importa ainda referir que, apesar da resolução do contrato se efectivar mediante simples declaração à parte contrária e de, no caso concreto, ter ocorrido antes da declaração da insolvência, a verdade é que o reconhecimento judicial de tal situação é pedido após esta declaração, o que nos leva à aplicação no caso concreto do disposto no artigo 62.º, n.º 2, da referida, Ley Concursal 22/2003, que estipula que a accion resolutoria se ejercitara ante el juez del concurso y se sustanciara por los tramites del incidente concursal ".
Resulta, pois, do exposto, que o prosseguimento da presente acção declarativa nos termos em que o foi constituiu uma violação das regras da competência internacional, como decorre do disposto nos artigos 39 do Regulamento, 271.º do CIRE e 659 n.º 1 do Cód. de Proc. Civil.
Assim, declaro a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para a presente acção, nos termos dos artigos 101.º, 105.º n.º1, 288.º n.º1, a), 493.º, n.º2, e 494.º, n.º 1, a), do Cód. de Proc. Civil, e, em consequência, absolvo a Ré da presente instancia.
Custas a cargo da Autora.
Registe e notifique.
*
Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso da mesma (fls. 200 e seguintes), que foi admitido, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
A recorrente apresentou as alegações que se encontram juntas a fls. 200 e seguintes, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A aferição da competência do Tribunal ao qual é apresentada a pretensão formulada, não pode ser desligada do pedido e da factualidade subjacente à causa de pedir, tal como conformada pela Autora, aqui Recorrente, resultante dos articulados por si apresentados.
2. Além dos enunciados na sentença recorrida (supra transcritos e para o que se toma a liberdade de remeter por economia e facilidade de exposição), devem também considerar-se de interesse para a decisão sobre o incidente de competência dos tribunais portugueses, os seguintes factos, que constam dos autos e que devem ser tido como assentes por provados por documento:
A Autora ora Recorrente celebrou com a Ré Recorrida, em 4 de Setembro de 2007, o contrato junto aos autos como documento n.º 1 (cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais);
Do respectivo teor consta, entre outras, a Cláusula 15.ª segundo a qual o identificado contrato encontra-se submetido à lei portuguesa e à jurisdição dos Tribunais portugueses (Funchal);
A causa de pedir da acção intentada consubstancia-se no direito de resolução do identificado contrato com fundamento no incumprimento pela Ré ora Recorrida das obrigações no mesmo assumidas (vide, entre outras, o alegado nos artigos 3.º a 8.º da petição inicial) e não na situação de liquidação em processo de insolvência;
O direito e condições de resolução do contrato identificado encontram-se previstos na cláusula 12.ª do mesmo.
3. Os factos apontados no ponto anterior das presentes conclusões, não foram em momento algum postos em causa e encontram-se provados por documento, sendo certo que não foram enunciados ou sequer tidos em consideração na decisão recorrida, devendo tê-lo sido, por importantes à decisão da causa, segundo as soluções plausíveis de Direito, pelo que, ao desconsidera-los, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 659.º, n.º 2 do C.P.C.
4. Pese embora a potencial aplicabilidade do Regulamento (CE) 1346/2000, de 29 de Maio, e respectiva remissão para a lei espanhola, o disposto no artigo 62.°, n.º 2 da denominada Ley Concursal n.º 22/2003, de 9 de Julho é afastado pelo artigo 11.° desta mesma Ley, pelo que os Tribunais espanhóis não são os competentes porquanto a acção ora em causa não encontra fundamento no Direito falimentar espanhol, mas antes num incumprimento contratual que deve ser resolvido e é regulado pela Lei portuguesa.
5. Pelo que, a decisão recorrida, que julgou procedente a invocada excepção de incompetência, violou as já supra enunciadas normas jurídicas, bem como o disposto nos artigos 65.°, 66.°, 99.° e 100.º do C.P.C.
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, com as demais consequências legais, com o que se fará JUSTIÇA!”.
*
A Ré apresentou nos autos as contra-alegações de fls. 243 e seguintes, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo considerou todos os factos relevantes - que foram os suficientes - para a decisão da causa, que foi de forma.
2. Face às normas espanholas da Ley 22/2003, conjugadas com o art.º 3.º e 15.º do Regulamento 1346/2000, não são os Tribunais Portugueses competentes para julgar do presente diferendo, por essa competência pertencer ao Juiz Espanhol do Procedimento Concursal.
3. Não obstante a designação da lei aplicável pelas partes, ao caso será de aplicar o Direito Espanhol, em virtude do disposto no art. 4.° do Regulamento 1346/2000 e do disposto no art. 10.°, n.º 1, c) da Convenção de Roma.
Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao presente recurso.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE SER NEGADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, MANTENDO-SE A DECISAO A QUO, COM 0 QUE V. EXAS. REALIZARAO A COSTUMEIRA JUSTIÇA E 0 SEMPRE ALMEJADO DESIDERATO DA CORRECTA APLICAÇÃO DO DIREITO!”.
(…)
III – MATÉRIA DE FACTO PROVADA

Resulta provado, com relevo para a decisão e com base nos documentos juntos as autos, a seguinte factualidade:

1. A presente acção foi intentada neste tribunal no dia 20.12.2008, tendo a Ré sido citada para a mesma no dia 14.01.2009;
2. A Ré foi objecto de "procedimiento concursal ordinario n.º ...", que corre termos no Juzgado de Lo Mercantil n.22 de Valência, em Espanha (provado por acordo);
3. A Ré entrou nesse processo de insolvência em 2006, tendo sido declarada "em estado concursal" mediante "auto del Juzgado de Lo Mercantil n.º 2 de Valência, com data de 6 de Fevereiro de 2006 (provado por acordo);
4. Por sentença de 20 de Junho de 2007 proferida pelo citado julgado Valenciano foi aprovado "convenio de acreedores" (provado por acordo);
5. Por sentença de 15 de Outubro de 2008, proferida pelo mesmo tribunal Valenciano, no âmbito do supra citado processo concursal, decretou-se a abertura da "fase de liquidacion" (provado por acordo).

IV – APRECIAÇÃO DO PEDIDO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 685.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).

A – REGIME LEGAL APLICÁVEL
(…)
B – IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
(…)
Logo, decidimos aditar os seguintes factos à Matéria de Facto dada como demonstrada pelo Tribunal Judicial do Funchal (e que não são somente os sugeridos pela Apelante, por entendermos que os mesmos também não esgotam a factualidade pertinente à apreciação das citadas questões):

6 - A Autora celebrou com a Ré, em 4 de Setembro de 2007, o contrato junto aos autos como Documento n.º 1 e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais, através do qual a primeira cede à segunda o direito exclusivo de exploração de diversas marcas, mediante o pagamento de um preço ou "royalty;
7 - Do teor desse contrato consta, entre outras, a Cláusula 15.ª, com a seguinte redacção:
Artigo 15.º
Contrato de referência – Foro – Direito Aplicável
Exclusivamente o presente contrato original na íntegra e assinado constituirá a lei entre as partes, com excepção de qualquer disposição publicada.
Toda a controvérsia surgida entre as partes por motivos da sua interpretação e/ou da sua execução será, na falta de solução amistosa, submetida pela parte mais diligente aos Tribunais competentes do Funchal.
O presente contrato está submetido às leis do Direito Português.

8) Do teor desse mesmo contrato consta, entre outras, a Cláusula 12.ª, com a seguinte redacção:
Artigo 12
Cláusula de resolução de pleno direito
O presente contrato resolver-se-á em pleno direito de forma imediata, sem intervenção judicial, se durante a sua execução qualquer uma das partes não cumpra, mesmo de boa fé, as suas obrigações contratuais e se não resolverem o seu incumprimento nos 30 dias subsequentes à recepção de uma carta certificada com aviso de recepção enviada pela outra parte, tudo isto sem necessidade de intervenção judicial alguma.
A resolução DO CONTRATO terá efeito no dia da recepção da segunda carta certificada.
Em todos os casos de resolução, quaisquer quantidades abonadas ou pendentes de pagamento pelo CONCESSIONÁRIO, bem como as prestações vencidas na data de efectividade da resolução, pertencerão em definitivo AO CONCEDENTE.
O contrato poderá resolver-se em particular com pleno direito obedecendo aos seguintes pressupostos:
- Dissolução e liquidação DO CONCESSIONÁRIO seja voluntária ou não,
- Início de um procedimento colectivo de liquidação do passivo, seja uma liquidação judicial, de concurso de credores ou qualquer procedimento análogo contra O CONCESSIONÁRIO ou de sua instância,
- Incorporação, fusão ou rescisão DO CONCESSIONÁRIO por uma sociedade que não faça parte do seu grupo,
- Transgressão do carácter pessoal de A LICENÇA, como assinalado no artigo 13,
- Transgressão por parte DO CONCESSIONÁRIO do Território cedido, pela venda dos produtos fora deste Território ou pela venda dos produtos a qualquer empresa que se presuma exportá-los para fora do Território, sem o consentimento, expresso do CONCEDENTE,
- Incumprimento durante um período continuado de dois semestres pelo CONCESSIONÁRIO dos valores mínimos de vendas previstas no artigo 8, ou incumprimento durante um só semestre no caso de não se alcançarem tal período os 70 % de estes valores mínimos,
- No caso de que O CONCESSIONÁRIO venda ou tente vender os artigos a preço de "dumping" ou a preços consideravelmente inferiores aos preços normalmente facturados aos seus clientes nos quatro meses anteriores, ou venda ou tente vender num segmento de mercado inferior àquele em que habitualmente distribui A MARCA.
Não obstante, não se encontram compreendidas nesta disposição as vendas em liquidação ou os saldos de artigos de temporadas anteriores ou de fim de temporada a preços consideravelmente inferiores aos preços normais da temporada em curso.

9 - A Ré não pagou à Autora as facturas 19/2007, 20/2007 e 8/2008, de 31 de Dezembro, sendo devedora dum total de € 1.373.131,22 – montante este a que se chega após a compensação de outros valores –, a título de "Royalties", nos termos da clausula 4.ª do referido contrato.
10 - A Ré também não cumpriu a sua obrigação de enviar a Autora, nos termos da mesma clausula 4.ª do contrato, uma relação dos produtos vendidos que permitissem a esta emitir a factura respeitante ao primeiro semestre de 2008, quando deveria tê-lo feito até o final do mês de Junho de 2008.
11 - A Autora disso deu conta a Ré através de Burofax (fax enviado através dos Correos Y Telégrafos, SA e por esta entidade certificado o seu envio e conteúdo) a 2 de Outubro de 2008.
12 - Já anteriormente, a 25 de Junho de 2008, a Autora tinha interpelado a Ré para proceder a esse pagamento no prazo de 60 dias.
13 - Apesar dessas diligências, a Ré não efectuou o pagamento da referida quantia ou sequer enviou a mencionada relação dos produtos vendidos no primeiro semestre de 2008.
14 - A Autora comunicou a Ré por Burofax, a 12 de Novembro de 2008 e por esta recebido na mesma data, que resolvia o aludido contrato.

B – OBJECTO DO RECURSO NA SUA VERTENTE JURÍDICA

B1 – O REGULAMENTO COMUNITÁRIO COMO FONTE DE DIREITO

O regulamento comunitário é uma das fontes internas do direito comunitário, conforme ressalta do artigo 249.º do Tratado da União Europeia, sendo ainda referenciado pela sua generalidade, obrigatoriedade em todos os seus elementos e aplicabilidade directa em todos os Estados-Membros.
Miguel Gorjão Henriques em “Direito Comunitário”, 5.ª Edição, Outubro de 2008, Almedina, páginas 274 e seguintes, define o regulamento como um acto típico do Direito Comunitário Derivado ou Secundário, que deve ser fundamentado (artigo 253.º do mesmo Tratado), formar-se de acordo com os procedimentos previstos em tal Tratado (artigo 251.º) e ser publicado no Jornal Oficial da União Europeia (artigo 254.º), dependendo a sua validade e vigência do cumprimento desses requisitos formais.
Para esse mesmo autor, citando Savary, constitui tal instrumento comunitário o verdadeiro poder europeu, dadas as suas três e fundamentais características (aliás, expressamente referidas no artigo 249.º), que explica da seguinte forma:
O regulamento é, em primeiro luar, um acto geral, no sentido estrito do termo. Tem uma generalidade de destinatários. Todas as pessoas (singulares ou colectivas, empresas, Estados, etc.) que se encontrem no seu âmbito de aplicação (objectivo, subjectivo, temporal, espacial) estão por ele vinculadas.
Em segundo lugar, o regulamento goza de aplicabilidade directa. Esta característica do regulamento exprime o facto de o regulamento, para poder vigorar internamente, não necessitar (dispensando mesmo) qualquer mecanismo de recepção no ordenamento jurídico dos Estados membros. Na verdade, incorpora-se automaticamente na ordem jurídica dos Estados membros, não podendo ser objecto, por qualquer modo, de qualquer operação nacional de recepção ou incorporação.
E de que depende a sua aplicabilidade directa? Apenas e exclusivamente do preenchimento das condições de validade e vigência resultantes directa, imediata e exclusivamente da norma comunitária e que são:
- A adopção pelo órgão comunitário competente (artigo 249.º, § 1);
- A fundamentação (artigo 253.º);
- A publicidade (artigo 254.º, §§ 1 e 2); e, eventualmente,
- A vacatio legis (artigo 254.º, §§ 1 e 2 in fine).
Finalmente, o regulamento é obrigatório em todos os seus elementos. Tal significa que os seus destinatários – nomeadamente, mas não só, os Estados membros - não podem adaptar o seu conteúdo e o sentido das suas prescrições ao ordenamento jurídico interno. Assim o declarou o Tribunal de Justiça, no conhecido acórdão Krohn:
“Os regulamentos comunitários, sendo directamente aplicáveis em todos os Estados membros, excluem, salvo disposição em contrário, que estes possam, em vista a assegurar a sua aplicação, adoptar medidas que tenham por objecto modificar o seu alcance ou de aditar algo às suas disposições».
Tudo o que é disposto no regulamento é obrigatório ne varietur, podendo mesmo falar-se de uma presunção de auto-suficiência normativa.
Claro que isso não implica que todo e cada regulamento seja em si mesmo preciso e suficiente, ao ponto de dispensar qualquer actuação normativa por paste da Comunidade ou dos Estados membros. É o que acontece, no primeiro caso, com os regulamentos de base. E, no segundo caso, com aqueles (muitos) regulamentos que habilitam os Estados membro – a adoptar medidas de aplicação legislativas, regulamentares, administrativas e financeiras necessárias à sua efectiva aplicação, reconhecendo as estes, inclusivamente, poderes discricionários. Nestas hipóteses, os Estados devem regular as violações do direito comunitário através de condições substantivas e processuais análogas às aplicáveis às violações similares do direito interno e que, de qualquer forma, confiram à sanção um carácter dissuasivo, efectivo e proporcionado.” (cf. Tratado de Lisboa acerca destas matérias bem como o autor em questão, obra e local citados).
No que toca à relação entre os Regulamentos de base (ou outros) e a legislação nacional, veja-se o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência e os artigos 271.º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

B2 – LEI APLICÁVEL – ACORDO DAS PARTES

A acima cláusula 15.ª do contrato celebrado entre Autora e Ré estabelece que as relações negociais derivadas do mesmo são exclusivamente reguladas pelas regras do mesmo constante, com excepção de qualquer disposição publicada (ao que julgamos, pretende-se referir aí uma eventual alteração contratual posterior), sendo aplicável, supletiva e imperativamente, o Direito Português.
Encontrando-nos nós perante uma empresa portuguesa e uma empresa espanhola que firmam um contrato de concessão exclusiva de exploração de um conjunto de marcas a serem utilizadas pela segunda, em termos comerciais, nos países ou espaços multinacionais discriminados no Anexo junto a fls. 25 (e que extravasam e em muito o território espanhol).
Tal estipulação da lei aplicável ao contrato é juridicamente admissível e válida, não só face ao disposto nos artigos 41.º do Código Civil e 4.º, ponto 1 do Código Comercial, em sede de direito interno, como ao abrigo dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 8.º, 9.º e 10.º da Convenção Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (conhecida como Convenção de Roma) e que entrou em vigor em 1/04/1991, tendo sido substituída, a partir de 24/07/2008, pelo Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), que só se aplica, contudo, aos contratos celebrados após 17/12/2009 (logo, o acordo escrito dos autos está fora do quadro de aplicação deste último acto comunitário).
Impõe-se, contudo, realçar o seguinte: muito embora as questões ligadas à insolvência dos comerciantes ou não comerciantes não estejam expressamente excluídas do âmbito de aplicação da Convenção de Roma, também é certo que não se encontram abarcadas pelas diversas matérias que estão previstas nos artigos 5.º a 14.º, para efeitos da lei do contrato escolhida pelas partes ou supletivamente invocável (artigo 4.º).
Importa também chamar a atenção para o estatuído no artigo 7.º, número 2 dessa mesma Convenção de Roma, quando diz: “2. O disposto na presente convenção não pode prejudicar a aplicação das regras do país do foro que regulem imperativamente o caso concreto, independentemente da lei aplicável ao contrato.” (o Estado Português, ao abrigo do artigo 22.º da Convenção, reservou-se o direito de não aplicar o número 1 desse mesmo dispositivo convencional).

B3 – TRIBUNAL COMPETENTE – ACORDO DAS PARTES

Também essa mesma cláusula 15.ª estabelece como foro exclusivo para a resolução de quaisquer conflitos entre as partes derivados das relações comerciais estabelecidas em função do contrato dos autos o Tribunal Judicial do Funchal.
Nesta matéria e atendendo meramente ao direito interno, não só em função das ressalvas constantes do número 1 dos artigos 65.º e 65.º-A do Código de Processo Civil e do disposto no artigo 6.º do Código Comercial, como do determinado pelo artigo 99.º do Código de Processo Civil, seria legal a escolha do tribunal competente feita pelas partes no dito negócio, ideia que sai reforçada pela aplicação do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em, matéria civil e comercial, publicado em 16/01/2001 e com entrada em vigor em 1/03/2002, com as subsequentes alterações introduzidas pelos Regulamentos (CE) n.º 1496/2002, da Comissão, de 21/8/2002, n.º 1937/2004, da Comissão, de 09/11/2004, n.º 2245/2004, da Comissão, de 27/12/2004 e n.º 1791/2006, do Conselho, de 20/11/2006 (cf. os artigos 1.º e 23.º, sendo que não estamos perante um caso de competência exclusiva – artigo 22.º - ou perante uma violação do disposto nos artigos 13.º, 17.º e 21.º).
Também aqui convirá frisar que tal Regulamento não se aplica, entre outras matérias e de acordo com o número 2, alínea b) do seu artigo 1.º às falências, concordatas e processos análogos.

B4 – PROCESSO DE INSOLVÊNCIA DA RÉ – REGIME LEGAL APLICÁVEL

Tendo em linha de conta que a Ré é objecto de um processo de insolvência num tribunal espanhol e que é com base em tal situação que a mesma sustenta a invalidade e ineficácia jurídicas da resolução operada pela Autora relativamente ao contrato dos autos, bem como a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para julgar esta acção, impõe-se olhar para o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, publicado em 30/06/2000 e com entrada em vigor em 31/05/2002, com as alterações introduzidas pelo Regulamento (CE) n.º 603/2005 do Conselho, de 12 de Abril de 2005, publicado em 20/04/2005 e com entrada em vigor em 21/04/2005.
Luís Lima Pinheiro, “Direito Internacional Privado, Volume I, Introdução e Direitos de Conflitos – Parte Geral”, Almedina, 3.ª Reimpressão da Edição de 2001, Novembro de 2006, páginas 166 e 167 (cf. também, páginas 269 a 274) refere o seguinte, acerca da génese deste Regulamento:
A unificação do Direito de Conflitos é, sem dúvida, desejável. Em princípio, esta unificação deveria ser ter âmbito universal. Com efeito os problemas e as finalidades de regulação das situações transnacionais são comuns tanto às situações intracomunitárias como às situações extra-comunitárias. Mas perante as dificuldades com que tem deparado a unificação do Direito Internacional Privado à escala mundial, seria de admitir em matéria de tráfico corrente de bens e serviços a elaboração de convenções internacionais de unificação à escala comunitária.
Compreendia-se, assim, que a Comunidade Europeia não tivesse uma competência legislativa genérica em matéria de Direito Internacional Privado. Só nas matérias em que a Comunidade tinha competência para a harmonização do Direito material podia o Direito de Conflitos ser também harmonizado.
No entanto, nos termos dos artigos 61.º/c) e 65.º do Tratado de Roma, com a redacção dada pelo Tratado de Amesterdão, o Conselho adoptará medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil, "na medida do necessário ao bom funcionamento do mercado interno". Estas medidas terão por objectivo, nomeadamente (art. 65.º):
"a) Melhorar e simplificar:
- O sistema de citação e de notificação transfronteiriça dos actos judiciais e extrajudiciais;
- A cooperação em matéria de obtenção de meios de prova;
- O reconhecimento e a execução das decisões em matéria civil e comercial, incluindo as decisões extrajudiciais;
"b) Promover a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados­-Membros em matéria de conflitos de leis e de jurisdição".
Com isto a Comunidade Europeia passa a ter competência legislativa genérica em matéria de Direito Internacional Privado, incluindo o "Direito processual Civil Internacional". Isto significa que o Conselho pode unificar ou harmonizar o Direito de Conflitos e os regimes da competência internacional e do reconhecimento de sentenças através de regulamentos ou directivas.
Por certo que esta competência legislativa só deve ser exercida "na medida do necessário ao bom funcionamento do mercado interno" (art.º 5.º). A meu ver a uniformização em matéria de Direito Internacional Privado não é, em princípio, necessária para o bom funcionamento do mercado interno. Mas subjacente à redacção dada aos artigos 61.º e 65.º do Tratado de Roma pelo Tratado de Amesterdão parece estar uma avaliação diferente que entende as "necessidades de bom funcionamento do mercado interno" em sentido demasiado amplo.
Com efeito, o Conselho já entendeu que o bom funcionamento do mercado interno exige a uniformização em matéria de insolvência internacional, competência internacional, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e de regulação do poder paternal em relação a fi­nos comuns do casal e citação e notificação noutros Estados-Membros de actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial.
Daí resultaram os seguintes regulamentos em matéria de Direito Internacional Privado:
- Reg. (CE) n.º 1346/2000, de 29/5, relativo aos processos de insol­vência e
- Reg. (CE) n.º 1347/2000, de 29/5, relativo à competência, ao reco­nhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de regu­lação do poder paternal em relação a filhos comuns do casal.”
Pensamos que entre as diversas disposições que relevam para a apreciação do objecto deste recurso (cf. artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 13.º, 15.º,16.º, 17.º, 25.º, 26.º, 27.º a 29.º, 32.º, 33.º, 34.º, 39.º a 41.º e 43.º), impõe-se transcrever os seguintes (da versão consolidada do Regulamento em questão de 1/01/2008):
(…)
Face ao texto do Regulamento em questão e atendendo a que a sede da Ré é em Espanha, não podem restar grandes dúvidas de que a competência para a abertura e tramitação do processo de insolvência é dos tribunais espanhóis, como veio a acontecer, nada havendo a censurar ou a questionar nessa matéria.
Em segundo lugar e de acordo com o mesmo instrumento comunitário, a lei aplicável ao processo de insolvência da Ré é a lei espanhola, dado que o mesmo foi aberto num tribunal do país vizinho.
Finalmente, a abertura desse processo de insolvência, bem como todas as decisões nele tomadas, são imediata reconhecidas nos outros Estados-Membros da União Europeia, como é o caso de Portugal.
Não será despiciendo, a este respeito, chamar a atenção para a circunstância do contrato dos autos ser o segundo celebrado entre as partes, lendo-se no preâmbulo do que aqui está em causa e junto a fls. 22 e seguintes o seguinte:
(…) 2. Que as partes subscreveram a 1 de Março de 2005 um CONTRATO de Licença Exclusiva de Marcas.
3. Que mediante auto do Tribunal Comercial n.º 2 de Valência com a data de 6 de Fevereiro de 2006, ditado no procedimento concursal ordinário n.º 60/2006, SM S.A. foi declarada em estado de concurso, para o que se ditou no dia 20 de Junho de 2007 sentença em que se aprovou o convénio de credores apresentado pela dita sociedade e decretou-se o fim dos efeitos do concurso.
4. Que, não obstante o previsto no artigo 12.º do Contrato de 1 de Março de 2005, o CONCEDENTE ratificou ao CONCESSIONÀRIO a vigência do tal Contrato.
5. Que, além disso, com vista às novas circunstâncias da empresa CONCESSIONÁRIA, o CONCEDENTE deseja rever as condições do CONTRATO de Licença exclusiva de Marcas até agora em vigor substituindo-o por um novo, as partes assim o convencionaram. (…)”.
É manifesto que, em 4/09/2007, a Autora estava perfeitamente consciente da situação difícil que era vivida pela Ré e que motivou a celebração desse novo negócio jurídico, sendo até curioso saber que diferenças ressaltam do seu teor, quando confrontado com o do contrato anterior e que veio substituir.

B5 – CONFLITO DE LEIS SUBSTANTIVAS APLICÁVEIS

Chegados aqui, começam as divergências entre as partes, pois a Autora, relativamente ao contrato dos autos e apesar da existência do processo de insolvência contra a Ré, entende que o mesmo só é regulado, em exclusivo, pela lei portuguesa, não podendo, nomeadamente no que concerne à validade e eficácia da resolução extrajudicial do mesmo, conforme foi oportunamente promovida por ela, ser chamada, de forma alguma à colação, a lei espanhola.
Pensamos que a questão suscitada, muito embora sem reflexos directos na problemática da competência absoluta que aqui nos ocupa (nada obsta que, de acordo com as normas do Direito de Conflitos aplicáveis, um tribunal de um Estado-Membro aplique o regime legal das obrigações de um outro Estado-Membro, sendo que não nos achamos perante a hipótese prevista no artigo 13.º do dito Regulamento), pois prende-se antes com o fundo da causa, conforme se mostram equacionados pela Autora nos autos a causa de pedir e o correspondente pedido, merece uma abordagem, ainda que sumária, o que mais não seja por ter sido suscitada nas alegações e conclusões do recurso em análise.
Ora, conforme já acima deixámos aflorado, a lei reguladora do negócio dos autos e escolhida pelas partes tem um âmbito de aplicação específico, que não abrange – não pode abranger, em nosso entender – casos como o que aqui está em discussão, em que uma das partes contratantes e incumpridora do acordado é alvo de um processo de insolvência, por impossibilidade da satisfação das suas obrigações para com terceiros, entre os quais se inclui a Apelante.
Num cenário como esse, em que é a própria sobrevivência da empresa Ré que está em causa assim como a satisfação de todos os seus débitos aos diversos credores que possui, não pode olhar-se apenas para o crédito da Autora ou, em termos singulares, para cada um dos demais créditos existentes mas impõe-se ter, como faz o legislador comunitário (e nacional, recorde-se!), uma perspectiva colectiva e integrada dos múltiplos aspectos e elementos que compõem o dito cenário, de maneira a dar-se uma resposta conjugada e global aos diversos pedidos e problemas aí suscitados.
A lei escolhida pelas partes para reger as suas relações contratuais refere-se a um quadro de normalidade comercial e jurídica, em que só os contraentes estão em causa assim como os seus objectivos próprios e egoístas (ainda que perfeitamente legítimos), já não podendo, em nossa opinião, ser invocada quando um deles está numa situação económica deficitária, incapacitado ou com sérias dificuldades em liquidar todos os seus compromissos e em risco de cessar a sua actividade e ver vendido todo o seu património com vista a pagar, até onde for possível, aos seus credores.
Existem aqui interesses de carácter económico e social, que, por serem de ordem pública, extravasam manifestamente o âmbito de cada relação particular do insolvente com cada um dos seus clientes, fornecedores ou trabalhadores, visando o processo de falência ou insolvência a recuperação da empresa em dificuldades ou, como acontece com o nosso Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a satisfação possível dos credores, em pé de igualdade, ainda que respeitando as garantias dos créditos existentes.
Num cenário de insolvência como o da Ré, que não é só processual, mas substantivo, não pode cada um dos credores, numa filosofia do “salve-se quem puder” ou “de cada um por si”, agir por sua conta e em seu benefício exclusivo, ignorando e prejudicando os demais credores, mesmo que estes tenham uma posição jurídica mais reforçada que a sua (designadamente, por serem titulares de garantias reais ou pessoais).
O Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, convirá dizê-lo, não se limita a reger as questões da competência e os aspectos adjectivos do processo de insolvência, mas também matérias de índole substantiva, como ressalta, nomeada e claramente, dos artigos 5.º (direitos reais de terceiros), 6.º (compensação), 7.º (reserva de propriedade), 8.º (contratos relativos a imóveis), 13.º (actos prejudiciais) e 14.º (protecção do terceiro adquirente).
Por todo o regime contido em tal Regulamento passa um sopro de imperatividade, compaginável naturalmente com os referidos interesses de ordem pública que visa proteger, que não é compatível com a possibilidade da sua derrogação por uma convenção contratual como a dos autos (cf. o já reproduzido artigo 7.º, número 2 da Convenção de Roma) – cf., quanto à natureza imperativa do nosso regime, o que dizem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, 2008, páginas 55, Nota 2 ao artigo 1.º e 633 a 636, Notas ao artigo 192.º).
A sujeição do contrato dos autos à lei do foro, enquanto durar a situação judicial de insolvência, não nos parece colocar a Autora numa intolerável ou acentuada posição prejudicial ou de desfavor (a sujeição do contrato à lei portuguesa, contra tudo e todos, é que poderia gerar uma discriminação em seu benefício), pois a mesma sempre tem de reclamar os seus créditos no âmbito do dito processo de insolvência, dado a resolução extrajudicial por ela promovida, ainda que válida e eficaz, não lhe permitir accionar ou executar, individualmente e à revelia dos autos de insolvência, a Ré (cf. artigo 15.º do Regulamento, “a contrario sensu”).

B6 – CONFLITO DE COMPETÊNCIAS

A Autora defende que a escolha por acordo feita no contrato dos autos relativamente ao foro competente derroga, necessariamente e no que toca às relações comerciais e conflitos dele emergentes, a competência atribuída pelo Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000 aos tribunais espanhóis.
Temos de dar aqui como reproduzido tudo o que já deixámos dito quanto à natureza imperativa do regime contido no dito Regulamento, atendendo aos interesses que defende e aos fins que persegue, bem como à sua sobreposição a convenções ou pactos particulares como os que aqui estão em análise.
Aliás, no que concerne ao foro competente, o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em, matéria civil e comercial exclui expressamente da sua aplicação, no número 2, alínea b) do seu artigo 1.º, as falências, as concordatas e processos análogos.
Tal não pode significar outra coisa que não seja a vontade do legislador comunitário em retirar às partes a possibilidade de escolherem, por cláusula negocial e particular, o foro da instauração do processo de insolvência e da resolução de todos os aspectos, vertentes e conflitos em que o mesmo se desdobra.
Como se diz no preâmbulo ou fundamentação do Regulamento, o principal objectivo do mesmo consiste em evitar que as partes (a empresa em falência, ou seja, o devedor, e os seus credores) sejam incitadas a transferir os seus bens ou acções judiciais de um Estado Membro para outro tendo em vista beneficiar de um tratamento mais favorável.
Não faria qualquer sentido que as partes contratantes, por mera cláusula contratual, pudessem definir tribunal diferente daquele que o Regulamento n.º 1346/2000 impõe, com a instauração de acção declarativa ou executiva em tribunal e/ou Estado-Membro distintos dos do processo de insolvência e à margem deste último, como é o caso dos autos (já assim não acontece se tal acção tiver sido proposta antes da abertura do processo de insolvência – artigo 15.º do Regulamento), quando se pretende, com este tipo de acção de natureza especialíssima, fazer confluir e aí concentrar todos as reclamações e questões existentes, em termos de passivo e de activo, e julgar em simultâneo, de forma lógica, uniforme e corrente a situação global dessa empresa insolvente em concreto.
Não invalida o que se deixou dito a possibilidade de, ao abrigo dos artigos 27.º de seguintes do Regulamento (cf., também, quanto ao Direito Nacional, os artigos 271.º e seguintes do CIRE), os credores poderem instaurar processos de insolvência secundários noutros Estados-Membros, pois não só tal propositura está expressamente consentida por norma contida no dito instrumento comunitário (e não por cláusula contratual), como ainda porque tal só pode acontecer nas circunstâncias nele assinaladas, como, finalmente, é imposta uma relação estreita entre tais processos e o processo principal de insolvência, sendo certo que estes autos não configuram, nem de perto, nem de longe, uma acção dessa natureza.
Logo, tem de ser o referido Regulamento a determinar o tribunal competente para tal processo e para a decisão de todas as questões que nele se colocarem e que com a situação de insolvência tiverem algum elemento de conexão relevante.

B7 – REGIME LEGAL ESPANHOL – ABERTURA DO PROCESSO FALIMENTAR ESPANHOL E SEUS EFEITOS JURÍDICOS

Definida a lei espanhola como aquela que rege, durante a pendência do processo de insolvência, os aspectos adjectivos e substantivos relativos a tal estado e processo, entremos então na análise da Ley n.º 22/2003, de 9/06, da qual destacamos as seguintes disposições legais:
- Os artigos 8.º a 10.º, relativamente à competência interna – em razão da matéria e territorial – e internacional do juiz do processo de insolvência;
- Os artigos 21.º e seguintes, sobre o Auto de Declaração do Concurso (Auto de Abertura), sua forma, publicidade e tramitação subsequente;
- Os artigos 49.º e 50.º. relativamente aos efeitos da abertura do processo sobre as acções judiciais pendentes e propostas posteriormente;
- Os artigos 61.º e 62.º., sobre os efeitos da abertura do processo sobre os contratos;
- Os artigos 112.º e seguintes, relativamente ao Convénio de Credores, sua forma, conteúdo e efeitos, quer materiais como substantivos.
Dir-se-á que o juiz espanhol do tribunal de comércio tem competência para o julgamento de todas as acções e questões com reflexos no património do devedor, na liquidação dos seus débitos e na adequada e satisfatória conclusão do processo de insolvência.
Nessa medida, qualquer nova acção judicial instaurada após a abertura do processo de insolvência e à margem deste não poderá ser julgada pelo respectivo tribunal, que informará as partes de que deverão exercer os seus direitos perante o juiz daquele e deverá arquivar esses autos, sendo nulos quaisquer actos aí praticados.
A abertura do processo traduz-se no referido Auto de Declaração do Concurso, que, no caso em análise, foi elaborado em 6/02/2006, tendo os autos respectivos acabado por se encaminhar para a concretização de um acordo de credores (Convénio), que nunca chegou ao seu termo, em termos do seu cumprimento, tendo então se iniciado a fase da liquidação.
Tal abertura do processo, embora não provoque a cessação das relações contratuais existentes, exige que a resolução de qualquer negócio jurídico celebrado com a devedora seja accionada judicialmente perante o juiz do processo de insolvência.
Esta síntese, algo simplista, do regime em causa aponta no sentido da presente acção dever ter sido instaurada no tribunal de comércio espanhol e não no Tribunal Judicial do Funchal, sendo certo que a resolução do contrato dos autos só poderá ser feita, nas circunstâncias específicas que já deixámos enunciadas, mediante acção judicial instaurada perante o juiz do processo de insolvência.

B8 – RESOLUÇÃO E PROCESSO DE INSOLVÊNCIA

A Autora argumenta com o facto da resolução extrajudicial do contrato dos autos ter ocorrido entre o termo da fase concursal e o início da fase da liquidação do património da Ré, ou seja, quando não existia pendente qualquer processo de insolvência, mas pensamos que a Apelante não tem razão no que defende, por duas ordens de razões: em primeiro lugar, duma leitura atenta da Ley Concursal n.º 22/2003, de 9/07 (nomeadamente, dos artigos 112.º e seguintes), parece-nos indefensável tal tese, pois só com o total cumprimento do acordo de credores é que a mencionada instância termina (o que só excepcionalmente acontecerá em simultâneo com a sua aprovação judicial), transitando para a fase subsequente da liquidação quando se verifica qualquer uma das hipóteses legalmente previstas, nomeadamente, o incumprimento daquele Convénio, sendo significativo fazer notar que, substituindo este a fase concursal, certo é que os credores e o devedor (sem prejuízo do disposto no artigo 44.º) se acham vinculados a respeitá-lo e a actuar em conformidade com o seu teor, sendo que administradores da insolvência podem nem sequer cessar as suas funções, (apesar de ser essa a regra), quando o aludido acordo reclame a sua intervenção.
Estes aspectos indiciam suficientemente (à imagem, aliás, do que acontece com o regime de insolvência português) que o referido Convénio não põe termo ao processo de insolvência, constituindo antes e em termos normais, uma outra fase do mesmo, o que implica que o procedimento resolutório desencadeado pela Autora e consistente no envio das aludidas duas cartas ocorreu ainda e sempre durante a pendência daquele.
Ainda que não se concorde com tal interpretação do regime legal espanhol, certo é que o mencionado procedimento declaratório só se completou em 12/11/2008, com o envio da comunicação resolutória propriamente dita, ou seja, já depois do início da fase de liquidação, que teve lugar em 15/10/2008 (logo, já durante a pendência dos autos de insolvência nessa sua nova fase).

B9 – RELAÇÃO ENTRE A PRESENTE ACÇÃO E OS AUTOS DE INSOLVÊNCIA

Procura igualmente a Autora, com base nos artigos 9.º a 11.º da Ley 22/2003, postergar a competência do tribunal mercantil espanhol para apreciar e julgar os presentes autos, mas julgamos já ter demonstrado à saciedade, nos pontos anteriores, que a relação entre o processo de insolvência e a presente acção, atendendo à sua causa de pedir e pedido, é necessária e manifesta, pois afecta inevitavelmente, quer o património da Ré devedora, quer o passivo que sobre ela impende, quer a posição relativa dos demais credores entre si e com referência aos activos que poderão satisfazer os seus créditos.

B10 – COMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL ESPANHOL

Chegados aqui, resta-nos declarar a competência absoluta do tribunal de comércio espanhol para conhecer e julgar esta acção, bem como as questões que lhe estão subjacentes e que a Autora pretende discutir no seu âmbito.
Em reforço e confirmação desta nossa posição, invocamos os seguintes Arestos dos nossos tribunais de segunda instância:

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/04/2008, processo n.º 0820286, relator: Guerra Banha

I – O Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29.05.2000, aplicável a processos de insolvência, assenta em três princípios nucleares:
- O princípio de que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro de interesses principais do devedor;
- O princípio do reconhecimento imediato e automático por todos os Estados-Membros das decisões relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência;
- O princípio de que deve aplicar-se a lei do Estado-Membro da abertura do processo.
II – Prevê o Regulamento um regime de excepção para as acções pendentes à data da abertura do processo de insolvência, que se regem exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que as referidas acções se encontram pendentes.
III – Sendo esta acção proposta em Portugal, em data posterior ao "momento da abertura do processo" de insolvência, o caso não será de inutilidade superveniente, nem de impossibilidade (como seria mais próprio), mas de incompetência absoluta dos tribunais portugueses.

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/05/2008, processo n.º 1351/2007-6, relatora: Fernanda Isabel

I – No domínio dos processos de insolvência foi adoptado o Regulamento (CE) nº 1346/2000, de 29 de Maio de 2000, com o objectivo de “melhorar a eficácia e a eficiência dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços”, vinculativo e directamente aplicável nos Estados-Membros.
II – De acordo com o regulamento em questão, salvo disposição em contrário do próprio regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, designado por «Estado de abertura do processo (art. 4º).
III – Nos seus artigos 16º e 17º consagrou-se o falado reconhecimento automático ao estatuir que qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente, é reconhecida em todos os Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo, produzindo a decisão de abertura do processo, sem mais formalidades, em qualquer dos Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo.
IV – O direito interno não pode servir de obstáculo à vigência e aplicação do direito da União Europeia na ordem interna face ao reconhecimento da primazia deste sobre o direito interno. É o que resulta do estabelecido no artigo 8º nº 4 da Constituição. A primazia do direito da EU traduz-se na sua imunidade face ao sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade e da «legalidade reforçada».
V – A recusa por um Estado-Membro do reconhecimento de um processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro só pode ter lugar, à luz do disposto no artigo 26º do referido Regulamento, se o mesmo produzir efeitos “manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição”.

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/05/2009, processo n.º 3175/06.1TBPRD.P1, relatora: Maria de Deus Correia

A abertura de um processo de falência em Estado Membro impõe-se de modo mediático e automático em todos os outros Estados Membros, aí devendo ser reclamados todos os créditos e segundo a legislação aplicável do país do Tribunal, não podendo prosseguir os processos contra a insolvente em qualquer dos outros estados, mesmo que nestes tenha entretanto corrido providência cautelar de arresto.

Logo, pelos motivos expostos, tem este recurso de Apelação de ser julgado, na sua vertente jurídica, improcedente.
V – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 712.º e 713.º do Código de Processo Civil, acorda este Tribunal da Relação de Lisboa no seguinte:
a) Em julgar procedente o recurso de Apelação na sua vertente de impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto e, nessa medida, alterar a factualidade dada como provada nos moldes acima constantes;
b) Apesar dessa modificação da Matéria de Facto Assente, em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto por CONSULTORES E SERVIÇOS, SA, na sua vertente jurídica, confirmando nessa medida e integralmente a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Registe e Notifique.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2010
(José Eduardo Sapateiro)
(Teresa Soares)
(Rosa Barroso)