Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8939/2006-1
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: RESPOSTAS AOS QUESITOS
ASSOCIAÇÃO EM PARTICIPAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1. Os poderes do julgador no domínio da qualificação jurídica não são arbitrários nem ilimitados: eles estão balizados pelo respeito que deve, simultaneamente, aos factos demonstrados e à causa de pedir invocada, que é inalterável por sua iniciativa - art.ºs 264º e 664º in fine, do CPC. Devendo, assim, existir identidade entre a causa de pedir e a causa de julgar.
2.As respostas aos quesitos apenas podem, por princípio, corresponder a um “provado” ou “não provado”. E, quando muito, podem ser restritivas, ou, mesmo explicativas, mas apenas em aspectos circunstanciais, adjacentes ou adjuvantes relativamente ao facto nuclear perguntado e nunca - extravazando este - podendo acarretar a superveniência de matéria nova, essencial para a decisão da causa, que não tenha sido alegada e quesitada.
3. Verifica-se este extravazamento e fere-se aquela identidade – com relevantes e diferentes consequências na posterior subsunção jurídica - quando a autora alega que acordou com a ré entregar-lhe certo montante para que esta, com o mesmo, adquirisse ouro e lho entregasse - o que foi plasmado na BI - e o Sr. Juiz responde que as partes anuíram que a entrega da verba pela autora à ré, tinha como contrapartida, não a posterior entrega de artigos de ouro, mas a comparticipação nos lucros decorrentes de uma actividade comercial de compra e venda destes artigos por parte da ré.
Devendo, a factualidade extravazante ser dada como não escrita.
4. Estipulando o artº 23º nº1 do DL231/81 que: «O contrato de associação em participação não está sujeito a forma especial, à excepção da que for exigida pela natureza dos bens com que o associado contribuir» e tendo a autora/putativa associada contribuído com o valor de 12.469,94 euros, deveria o contrato, por aplicação, mutatis mutandis, do artº 1143º do CC, ser reduzido a escrito e assinado pelas partes, sob pena de nulidade, por preterição de formalidade ad substantiam, com as legais consequências: artº 289º do CC.
(C.M.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
1.
Ana, instaurou contra Maria acção declarativa de condenação com processo ordinário.
Alegou, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de mútuo relativamente à quantia de 3.990,38 euros e um contrato de compra e venda de bens futuros, no atinente ao montante de 12.479,58 euros.
Sendo que aquele valor foi emprestado para a ré solver uma dívida por ela contraída e que este lhe foi entregue para que ela comprasse ouro a preços vantajosos, devendo-lho entregar de seguida.
Que o ouro nunca lhe foi entregue pela ré, nem, outrossim, as quantias supra aludidas.
Peticiona a sua condenação ao pagamento da quantia global de 16.469,96 acrescida de juros à taxa legal.

Contestou a ré negando nunca ter recebido dinheiro da autora, quer a título de empréstimo, quer para qualquer negócio, pugnando pela improcedência da acção e requerendo ainda q condenação da autora como litigante de má fé.

Respondeu a autora reiterando a sua posição e impetrando a condenação da ré como litigante de má fé.

2.
Prosseguiu o processo os seus legais termos, tendo, a final, sido proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré na restituição à autora da quantia de 3.990,38 euros acrescida dos juros de mora, à taxa legal, condenou a ré como litigante de má fé na multa de 04 Ucs, absolvendo-a do mais peticionado.

3.
Inconformada apelou a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

Não se verificam os pressupostos de que a lei faz depender a existência do contrato de associação em participação, pois que a recorrida não exerce a actividade económica de comércio de compra e venda de ouro.

Assim, tal instituto não pode ser entendido como justificativo da quantia de 12.469,94 euros que lhe foi entregue pela recorrente.

Pelo que, à luz do que foi alegado em sede de petição inicial, deve considerar-se ter sido celebrado um contrato de compra e venda de bens futuros e aquela quantia ser-lhe restituída por virtude do incumprimento deste contrato pela ré, já que ela não lhe entregou o ouro ou o produto da sua venda.

Ou, caso assim não se entenda, ser o referido montante restituído com base na existência de enriquecimento sem causa.

Não foram produzidas contra-alegações.

4.
Sendo que, por via de regra – de que o presente caso não constitui excepção – o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:


Deve, ou não, a quantia de 12.469,94 euros, ser entendida como negociada entre as partes no âmbito de um contrato de associação em participação.

Está, ou não, a ré obrigada a restituir á autora, tal montante.

5.
Na sentença deram-se como provados os seguintes factos:
No dia 4.08.2004, a autora enviou à ré e esta recebeu, o escrito…onde refere, nomeadamente, que: Na nossa conversa telefónica, tida nos primeiros dias de Janeiro do corrente ano, sobre os 16.460,33 euros que me deves desde o início de 2003 (correspondentes à minha parte para a compra de ouro neste momento em tua posse – 12.469,94 euros e ainda 3.990,38 euros para pagar a tua dívida ao L) combinaste comigo que me pagarias a partir do mês de Março.
Até agora não tive mais notícias tuas, nem recebi qualquer dinheiro.
Peço que me pagues uma vez que me faz muita falta- al.A).
No período compreendido entre final de 2002 e o inicio do ano de 2003, A. E R. mantiveram entre si laços de amizade - artº1º.
Nesse contexto e na sequência de insistentes solicitações da ré nesse sentido, a A. disponibilizou-lhe a título de empréstimo, a quantia de 3.990,38 euros – 2º.
Para que aquela pudesse fazer face a uma divida por si contraída – 3º
Em simultâneo, A. E R. acordaram que cada uma delas contribuiria com o montante de 12.469,94, para que a ré adquirisse ouro, para revenda e, posteriormente, distribuísse os lucros em partes iguais por ambas, bem como que a autora entregou à ré o referido montante de 12.469,94, para esse fim – 4º a 7º.
Para os fins acima descritos a autora emitiu e entregou à ré os cheques nºs… -8º
A ré nunca entregou à autora ouro adquirido com a quantia referida nas respostas aos artºs 4º a 7º - 9º.
Nem foi restituído à autora qualquer dos montantes por si entregues à ré – 10º
Perante esta situação a autora interpelou por diversas vezes a ré, verbalmente, para que esta lhe devolvesse os montantes que lhe haviam sido entregues – 11º

6.
Apreciando.

6.1.
Primeira questão.
A autora pugna pela não consideração do contrato de associação em participação, pois que não se encontram presentes todos os seus requisitos, mais concretamente, por a recorrida e associante não exercer actividade económica no momento em que o dinheiro lhe foi entregue por si.
Invocando, neste sentido, que a própria ré alega na contestação que já não exerce a actividade de negociante em artigos de ouro desde 1997.
O que efectivamente se constata do teor dos artºs 12º e segs. da oposição de fls.32.
É certamente no mínimo duvidoso que a previsão do artº 21º do DL231/81 de 28 de Julho, ao literalizar a expressão «actividade económica» abarque o conceito de mero acto isolado, antes parecendo reportar-se unicamente a uma actuação do associante prolongada no tempo e até inserida no âmbito de uma estrutura organizacional de tipo empresarial, lato sensu, o que, outrossim, se indicia suficientemente do disposto no artº 26º, ao empregar os termos «gestor criterioso» e «funcionamento da empresa».
Todavia e se bem se atentar no teor das respostas dadas aos quesitos, tal noção de «actividade» foi apurada. Senão com a perfeição e definição que não deixariam margem para quaisquer dúvidas quanto à subsunção nos normativos referidos, pelo menos com o grau de suficiência para tal efeito.
Pois que o que decorre do teor da respectiva resposta é que as partes negociaram a entrega da autora à ré da quantia em causa, no âmbito de uma actuação por parte desta no sentido de prosseguir e consecutir o fito acordado da compra de artigos de ouro a preços abaixo do mercado, a sua revenda, com lucro e a ulterior entrega de metade deste à autora.
Actuação esta que, obviamente, ultrapassa a noção de mero acto isolado, implicando, ao invés, a pratica de vários actos negociais que, naturalmente, se prolongam durante um lapso de tempo mais ou menos dilatado.
O que se depreende é que esta actuação, consubstanciadora de uma actividade, é desenvolvida de um modo informal, ou, economicamente falando, de um modo paralelo, pois que a ré já não estava devidamente credenciada pela Contrastaria de Lisboa como vendedora ambulante de ourivesaria.
Mas tal é questão irrelevante para o efeito que nos ocupa, podendo, quando muito, sê-lo para efeitos administrativos e fiscais.
Decorrendo, do exposto, que, por este fundamento, a pretensão da recorrente deveria soçobrar.

Todavia e levantando ela a questão fulcral e essencial da não consideração do negócio celebrado entre as partes como de contrato de associação em participação e sendo certo que de jure novit cúria, não estando o tribunal sujeito ás alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artº 664º, 1ª parte, do CPC – tal questão coloca-se a montante, ou seja, desde logo em sede de decisão sobre a matéria de facto.

Como é consabido os poderes do julgador no domínio da qualificação jurídica não são arbitrários nem ilimitados: eles estão balizados pelo respeito que deve, simultaneamente, aos factos demonstrados e à causa de pedir invocada, que é inalterável por sua iniciativa - art.ºs 264º e 664º in fine, do CPC.
E, assim, é imprescindível, conforme tem sido posto em relevo desde há muito tempo por toda a doutrina e jurisprudência que exista identidade entre a causa de pedir e a causa de julgarcfr. Ac. do STJ de 20.06.2006 in dgsi.pt, p.0A1023.
Por outro lado, as respostas aos quesitos apenas podem, por princípio, corresponder a “provado” ou “não provado”.
E, quando muito, podem ser restritivas, ou, mesmo explicativas, mas apenas em aspectos circunstanciais, adjacentes ou adjuvantes relativamente ao facto nuclear perguntado e nunca podendo acarretar a superveniência de matéria nova, essencial para a decisão da causa, que não tenha sido alegada e/ou quesitada.
Mas não podem extravazar o perguntado indo além do alegado pelas partes.

No caso vertente a autora invocou como causa petendi, no que aos 12.469,94 euros concerne, factos que ela qualifica como integradores de um contrato de compra e venda de bens futuros.
Disse, em síntese, que acordou com a ré entregar-lhe tal montante para que esta, com o mesmo, adquirisse ouro e lho entregasse.
E foram estes factos que foram plasmados na BI nos artºs 4º a 7º.
Porém a resposta global que lhes foi dada não respeita o seu conteúdo, na parte em que se deu como assente que as partes anuíram que a entrega da verba pela autora à ré, tinha como contrapartida, não a posterior entrega de artigos de ouro, mas a comparticipação nos lucros decorrentes de uma actividade comercial de compra e venda destes artigos – mesmo que irregular ou paralela - por parte da ré.
São factos essencialmente diversos e com consequências jurídicas distintas.
Os invocados pela autora, se provados, poderiam não ter força ou virtualidade bastantes para se subsumir na previsão do citado artº21º
Os dados como provados seguramente que têm.
Ora estes factos, não se contêm nos quesitados, decorrendo de uma resposta que extravasa o que foi perguntado na BI, constituindo, assim, factualismo novo.
O qual, consequentemente, não poderia ser respondido e considerado, porque, como se disse, não se inseriria no seu âmbito.
Aliás, neste particular esta resposta conjunta aos artºs 4º a 7º mostra-se contraditória com a resposta dada ao artº9º pois que se naquela se dá como provado que as partes anuíram na entrega da ré á autora dos proventos da actividade de venda de ouro, nesta dá-se como apurado que ela nunca chegou a entregar-lhe os artigos de ouro, ao que subjaz a ideia que elas tinham acordado nesse sentido – em consonância, aliás, com o alegado pela autora – mas se revela incongruente com a resposta aos artºs 4º a 7º, ora posta em crise, na qual se contrariou esta versão, para se adiantar uma outra – distribuição de lucros de vendas - por ninguém invocada.
Nesta conformidade tal resposta, na parte em que se refere que as partes acordaram que a autora entregou á ré a quantia de 12.469,94 para esta adquirir ouro, o revender e partilhar com ela os respectivos lucros deve ser dada como não escrita, ao abrigo do arº 646º nº4 do CPC, aplicável por analogia – cfr. quanto a esta possibilidade, o Ac. do STJ de 08.04.1997, dgsi.pt, p.96A815.
Consequentemente os factos a considerar decorrentes do quesitado em 4º a 7º da BI e expurgados do referido e legalmente inadmissível excesso, são os seguintes: Em simultâneo a autora e a ré acordaram em que aquela entregasse a esta o referido montante de 12.469,94 euros para que a ré adquirisse ouro e lho entregasse.

E perante estes factos que legalmente podem ser considerados não é possível concluir que entre as partes tenha sido firmado contrato de associação em participação, pois que, agora sim, não se encontram presentes os seus elementos essenciais exigidos pelos normativos supra citados – artº 21º e segs. do DL 231/81 DE 28/07.
Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, certo é que sempre tal contrato seria nulo, por vicio de forma.
Na verdade estatui o artº 23º nº1 do referido DL231/81 que: «O contrato de associação em participação não está sujeito a forma especial, à excepção da que for exigida pela natureza dos bens com que o associado contribuir».
A recorrente teria contribuído com o mencionado valor de 12.469,94 euros.
Logo e por aplicação, mutatis mutandis, do artº 1143º do CC, o contrato de associação em participação teria de ser reduzido a escrito e assinado pelas partes
Preterida esta formalidade e revestindo ela natureza ad substantiam, o contrato é nulo.
Não resultando dos autos elementos bastantes que porventura permitissem operar a sua conversão, nos termos permitidos pelo nº3 do citado artº 23º, pois que não se vislumbra qual o negócio de tipo ou conteúdo diferente, relativamente ao qual estejam verificados os requisitos essenciais de substancia e de forma (o negócio em causa foi verbal), nem, outrossim, se alcança que as partes teriam querido tal negócio se tivessem previsto a invalidade do contrato de associação em participação.

6.2.
Segunda questão.
Constatada a impossibilidade de ser chamado à colação o contrato de associação em participação importa apurar se a recorrente tem, ou não, jus à restituição da quantia entregue à recorrida.
E a resposta não pode deixar de ser no sentido afirmativo.
Em primeiro lugar porque, mesmo que o contrato a considerar fosse o atendido na sentença, sendo o mesmo nulo como se demonstrou, tal restituição era exigível, por aplicação do regime geral da nulidade – artº 289º do CC.
Mas não é tal contrato, perante os factos provados com a correcção ora efectivada, que se desenha.
Antes se pode perspectivar um contrato atípico e inominado de prestação de serviços – artº 1154º do CC – na medida em que a ré se obrigou perante a autora a proporcionar-lhe um certo resultado - aquisição e entrega de objectos em ouro - do seu trabalho. Sendo irrelevante, perante tal normativo, que para a sua actuação tenha, ou não, sido acordada retribuição.
Tendo-se apurado que a ré nunca entregou à autora ouro adquirido com a quantia referida, ela incumpriu tal contrato.
Perante tal incumprimento a autora, em 04.08.2004 exigiu-lhe a restituição da quantia entregue. E não obstante não ter fixado prazo para o efeito, tem de entender-se que o período de tempo que medeou entre aquela data e a data da instauração da presente acção – 19.04.2005 – foi mais do que suficiente para a ré ter cumprido.
Não o tendo feito tem de concluir-se que a prestação da ré não foi realizada dentro de prazo razoável e que, assim, a autora perdeu o interesse na mesma.
O que, nos termos dos artºs 801º e 808º nº1 do CC atribui à autora o direito de resolver o contrato.
Resolução esta que acarreta a consequência estatuída nos artºs 433º e 434º do CC, equivalentes à da declaração de nulidade, com a obrigação de restituição, com efeitos retroactivos, do que foi prestado.
E mesmo que assim não fosse ou não se entenda, situar-nos-íamos numa situação em que faleceria à recorrente qualquer meio de ser restituída na quantia entregue á ré, pelo que a questão sempre se subsumiria na figura do enriquecimento sem causa, como defendido por aquela, ficando assim esta constituída na obrigação de efectivar tal restituição, nos termos dos artºs 473º e segs. do CC.
Ou, em todo o caso e no limite, perante uma situação de abuso de direito – artº 334º do CC - por parte da ré, a qual, perante o acervo factico apurado e o seu circunstancialismo envolvente, não poderia manter-se na posse da quantia entregue pela autora, sob pena de exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé e/ou pelo fim económico dos seu direito, perspectivado em função do anuído pelas outorgantes no negócio jurídico configurado nos autos.

7.
Decisão.
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença, condenando-se agora a ré a restituir à autora a quantia de 12.469,94 euros acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral cumprimento.
Custas pela ré.
Lisboa, 2007.04.24.
Carlos Moreira
Isoleta Almeida e Costa
Rosário Gonçalves