Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
66/16.1T8VLS.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: RECONVENÇÃO
SERVIDÃO
PREJUÍZO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.– Os recorrentes têm de dar, nas próprias conclusões do recurso, pelo menos, cumprimento ao ónus da alínea a do n.º 1 do art. 640, por força do disposto nos arts. 639/1 e 635/4, do CPC. Isto é, têm, pelo menos, de, nas conclusões, identificar com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação.

II.– Os réus não podem deduzir, em reconvenção, um pedido de que seja constituída, a favor de um prédio dos autores, uma servidão de passagem sobre um prédio de terceiro.

III.– A conclusão de que o prédio dos réus é aquele que sofre o menor prejuízo com a passagem (art. 1553 do Código Civil), é um pressuposto do direito dos autores a pedir a constituição, por sentença judicial, de uma servidão de passagem, a favor do seu prédio encravado, pelo prédio dos réus (arts. 1547 e 1550 do CC) e, por isso, o ónus de alegar e provar os factos de que ela resulta é dos autores.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados.


Relatório:


A e marido B intentaram a presente acção comum contra C e D, pedindo que fosse declarada a constituição do direito de servidão de passagem com reses, tractor e carrinha a favor do prédio da autora, sobre o prédio dos réus, numa extensão de cerca de 440 metros de cumprimento por 3 metros de largura e se arbitrasse uma indemnização devida aos réus proprietários do prédio serviente pelos prejuízos sofridos.

Para tanto alegam, em síntese, que: são donos de um prédio encravado; entendiam ter uma servidão de passagem sobre um prédio dos réus para comunicação com a via pública, constituída por usucapião, mas no processo 256/12.6TBVLS foi decidido que não tinha havido usucapião dessa servidão, pelo que agora vêm pedir que ela seja constituída por sentença judicial; a passagem pelo prédio dos réus constitui a forma de estabelecer este acesso com menos incómodo ou dispêndio em virtude de o caminho alternativo não ser viável, atendendo à sua inclinação e à circunstância de ter uma entrada com apenas 1,50 metros de largura.

Os réus contestaram, impugnando motivadamente: o caminho alternativo, sobre um prédio vizinho, causa muito menor prejuízo do que a passagem que os autores querem constituir pelo prédio dos réus; entendem, por isso, que o proprietário do prédio vizinho deve ser chamado a intervir nos autos, sendo citado para contestar o pedido e, por isso, defendem que “a acção deve ser julgada improcedente, constituindo-se em alternativa ao pedido dos autores uma servidão de passagem a favor do seu prédio sobre o prédio do vizinho, sendo este chamado à demanda para querendo contestar este pedido formulado pelos réus” na reconvenção; caso assim não se entenda, então os autores devem ser condenados a pagar uma indemnização aos réus pela constituição de uma servidão de passagem sobre o prédio dos réus a favor do prédio dos autores no valor de 6250€, mais 1200€ de indemnização pelos danos provenientes do exercício da servidão e a servidão deverá ser sujeita a regras estritas de utilização por forma a minorar os estragos.

Os autores vieram responder ao articulado dos réus, reafirmando que era pelo prédio destes que a concessão da passagem causava menor prejuízo; dizem pensar ser de todo o interesse a intervenção do vizinho e impugnam o valor avançado pelos réus para a indemnização pela constituição da servidão pelo prédio dos réus (contrapõem o valor de 2250€) e pelos danos derivados do exercício desta (contrapõem o valor de 600€) e as regras propostas para a extensão e exercício da servidão; terminam defendendo a improcedência da reconvenção.

Foi deferido o pedido de intervenção do vizinho - E – referenciando-se tal admissão ao art. 316/3-a do CPC. Considerou-se que a pretensão dos réus (que a servidão fosse constituída pelo prédio do vizinho e não pelo dos réus) constituía uma situação de litisconsórcio voluntário (arts. 30, 32 e 39 do CPC) e que a intervenção sanaria a excepção de caso julgado (entre a anterior acção e esta), em virtude de [deixar de…] existir identidade de partes e de pedido, sendo que não existiria inconveniente no chamamento de terceiro em sede de reconvenção (art. 266/4 do CPC), pelo que se ordenou a citação do mesmo (art. 319 do CPC).

O chamado foi citado, dizendo-se-lhe que tinha sido requerida e admitida a sua intervenção como parte principal, podendo, querendo, oferecer o seu articulado ou fazer a declaração de que faz seus os articulados da parte a que se associa; não apresentou contestação nem interveio de outra forma no processo.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença absolvendo os réus dos pedidos contra si deduzidos e os autores dos pedidos reconvencionais contra si deduzidos.

Os autores recorrem desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta [sic]terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (transcritas na íntegra):
A.– Deverá ser constituída servidão legal de passagem, com reses, tractor e carrinha a favor do prédio dos autores sobre o prédio dos réus, numa extensão de cerca de 440 metros de comprimento por aproximadamente 3 metros de largura.
B.– Nenhum prédio pode permanecer absolutamente encravado, como acontece com o prédio dos autores, que não tem qualquer comunicação com a via pública nem condições que permitam estabelecê-la, estando por esse facto absolutamente encravado, tendo assim de exigir a sua constituição sobre prédios rústicos vizinhos, nos termos do art. 1550 do CC.
C.– Os autores deixaram de aproveitar as utilidades do seu prédio, que é essencial para a sua actividade agro-pecuária, estando nomeadamente, impossibilitando-os de recolherem erva e de colocar os animais nele a pastar.
D.– Pelo que a constituição de servidão de passagem pelo prédio dos réus é a única forma de estabelecer com menor incómodo, ou dispêndio, o acesso por tractor ou outro veículo motorizado.
E.– Além disso, não resta aos autores qualquer outra opção de utilizar outro caminho/servidão, uma vez que além do prédio dos réus o outro prédio confinante onde se poderia tentar constituir servidão de passagem demonstra-se inviável devido à sua inclinação, que não permite a utilização de tractor ou outro veículo motorizado, e por ter uma entrada/portal de apenas cerca de 1 metro de largura. Porquanto,
F.– Em observância da regra do art. 1553 do CC, segundo todos os critérios estipulados legalmente, o prédio dos réus será o único em condições de suportar a servidão.  
G.– O tribunal a quo não decidiu sobre a matéria, sob o falso pretexto que «o tribunal se encontra vinculado ao objecto do pedido, não podendo condenar em objecto diverso do peticionado», no entanto admite que os réus peticionaram a constituição de uma servidão de passagem pelo prédio do chamado E.
H.– E depois de admitir o pedido reconvencional dos réus em que peticionavam em alternativa ao pedido dos autores que se constituísse «servidão de passagem sobre o prédio pertencente a E» e que para esse efeito se chamasse o referido à demanda, vem decidir que os réus «por não serem titulares da propriedade de um prédio encravado não podem exigir a constituição de uma servidão legal de passagem».
I.– O tribunal a quo ao aceitar o chamamento à demanda de E, abriu portas a que posteriormente todos os meios de prova, se desenvolvessem “tendo em conta o pedido implícito dos réus”.
J.– O tribunal a quo na sua sentença ao decidir que o «pedido tem que improceder por falta de pressupostos objectivos para a constituição de uma servidão legal», tornou todo este processo inútil.
K.– Se o tribunal a quo tivesse analisado o pedido principal, que os réus apresentaram na sua petição inicial, teria toda a prova se restringido à possível constituição de servidão de passagem pelo prédio dos réus, de acordo com um dos princípios primordiais do nosso direito civil, o princípio do dispositivo.
L.– Analisado no caso sub judice parte da matéria factual prestada, impugna-se parte da mesma, sendo certo que dos autos não resulta prova suficiente para a improcedência do pedido dos autores.
M.– Pelo que jamais a sentença seria no sentido de improceder o pedido dos autores.

Os réus não contra-alegaram, tal como não o fez o chamado.
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Questões que importa decidir: se a sentença devia ter constituído uma servidão sobre o prédio dos réus a favor do prédio dos autores, com a contrapartida de uma indemnização àqueles.
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Estão dados como provados os seguintes factos:
1.– Os autores são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico constituído por pasto, com 6776m2, no lugar de T, freguesia de S, concelho de U, a confrontar a Norte e Sul com F, a nascente com G e a Poente com H, descrito na Conservatória do Registo Predial sob número 000/00000000 da freguesia de Velas e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 000.
2.– Os réus são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico constituído por pasto com 10.648m2, sito no C, lugar de T, freguesia de S, concelho de U, a confinar a Norte com I, a sul com J, a nascente com Herdeiros de L e a Poente com O, sito junto à Estrada Regional, inscrito na matriz sob o artigo 000.
3.– O prédio referido em 1 foi adquirido por sucessão hereditária da autora, pertencendo aos pais da autora.
4.– O prédio dos autores não tem qualquer comunicação com a via pública nem condições que permitam estabelecê-la, estando por esse motivo absolutamente encravado.
5.– Até data concretamente indeterminada, mas situada há mais de seis meses, os autores acediam ao seu prédio através do prédio dos réus, a partir da via pública, desde a Estrada Regional, atravessando este no sentido Norte/Sul, ao longo de uma distância concretamente indeterminada mas de, pelo menos, 600 passos, por uma faixa com largura concretamente indeterminada.
6.– Na [sentença da] acção com o n.º 256/12.6TBVLS, instaurada pelos réus, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, foi decidido que o prédio dos réus não se encontra sujeito a uma servidão de passagem pelos trilhos identificados nos pontos K e N dos factos provados [prédio dos autores nessa acção, que aqui são os réus] e condenou-se os agora autores, a não passar por esse trilho.
7.– Nessa acção 256/12 os ora autores invocaram, sem sucesso, a constituição de uma servidão legal de passagem por usucapião.
8.– A partir dessa altura os autores deixaram de aproveitar as utilidades do mencionado prédio, essencial para a sua actividade agro-pecuária, nomeadamente, impossibilitando-os de recolherem erva e de colocarem os animais nele a pastar.
9.– O terreno de E fica mais perto da estrada e, para aceder ao terreno dos autores, estes terão que percorrer um percurso inferior.
10.– Para aceder ao seu pasto através do terreno dos réus, os autores têm que percorrer uma distância de 600 passos; para aceder ao seu pasto através do terreno de E, os autores têm que percorrer uma distância de 430 passos.
11.– O percurso pelo pasto de E, apesar da sua inclinação, permite o acesso a um tractor e a um veículo de todo o terreno.
12.– O terreno dos réus tem uma área de 28 alqueires/ /10.648m2 e um valor de mercado de cerca de 25.000€.
13.– Com a constituição da servidão, o terreno sofrerá um prejuízo de montante concretamente indeterminado mas sito entre 10% e 20% do seu valor.
14.– A passagem regular dos autores para acederem ao seu pasto irá provocar: a. Constituição de rilheiras (marcas profundas no terreno causadas por veículos) que irão impedir o crescimento da erva para o gado; b. Estragos causados pelo decurso da água nestes sulcos, espalhando terra e lama pelo terreno.
15.– Cada sulco ocasionado pela roda de um tractor, dependendo do tipo de pneu, rondará pelo menos 50cm.
16.– O que irá causar um sulco de tamanho concretamente indeterminado mas equivalente a 600 passos por cada pneu.
17.– O terreno tem possibilidade de armazenamento de água com a existência de duas grotas onde poderá ser armazenada água.
18.– Para mudar os fios eléctricos que condicionam o movimento do gado no pasto, os autores podem deslocar-se a pé.
Para além destes, o tribunal recorrido deu como não provadas afirmações de facto feitas por as duas partes, que condensou em 9 pontos.
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Da não impugnação da matéria de facto.
Nas conclusões do recurso dos autores destaca-se a (L) onde estes dizem que “analisado no caso sub judice parte da matéria factual prestada, impugna-se parte da mesma […]”.

O regime da impugnação da decisão da matéria de facto é o seguinte, já desde a reforma de 1995/1996 do CPC, isto é, há mais de 22 anos:
O art. 639/1 do CPC dispõe, sob a epígrafe de ‘ónus de alegar e formular conclusões’, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.                       
Por sua vez, o art. 640/1 do CPC, sob a epígrafe ‘ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto’ dispõe que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O art. 635/4 do CPC diz que “nas conclusões do recurso, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.”
Ora, segundo jurisprudência actualmente estabilizada do STJ, os recorrentes têm de dar, nas próprias conclusões do recurso, pelo menos, cumprimento ao ónus da alínea a do n.º 1 do art. 640, por força do disposto nos arts. 639/1 e 635/4, do CPC. Isto é, têm, pelo menos, de identificar com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação (é este, o denominador comum, por exemplo, dos acs. do STJ de 27/10/2016, proc. 110/08.6TTGDM.P2.S1, de 03/11/2016, proc. 342/14.8TTLSB.L1.S1, e de 31/05/2016, proc. 1184/10.5TTMTS.P1.S1, mas os dois primeiros exigem, ainda, que as conclusões também contenham a enunciação da decisão alternativa que se propõe).
Ora, basta a leitura das conclusões do recurso dos autores (que se transcreveram na íntegra para o efeito) para se ver que eles não deram cumprimento àquele ónus, não identificando/concretizando, pelo menos, os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados.
Assim, porque os autores não deram cumprimento ao ónus básico de identificar, nas conclusões do recurso, os pontos de facto que impugnam, não se pode ter por impugnada qualquer parte que seja da decisão da matéria de facto.
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Do recurso sobre matéria de direito
A decisão recorrida tem a seguinte fundamentação, em síntese feita por este acórdão:
Não estando reunidos os pressupostos para a constituição de uma servidão legal de passagem, por causa do preenchimento da excepção peremptória da existência de uma alternativa de acesso por outro prédio que causa menor prejuízo (art. 1553 do CC), o pedido dos autores tem improceder.
E o pedido reconvencional não pode proceder porque os réus não podem pedir a constituição de uma servidão a favor do prédio dos autores sobre o prédio de um terceiro. Só os autores (que são os proprietários do prédio encravado) é que o poderiam pedir (arts. 1550 e 1543 do CC) e não o fizeram, pelo que o tribunal não pode constituir a servidão pelo prédio do vizinho (art. 609/1 do CPC).
Os autores criticam a sentença, por um lado, porque os factos, com a alteração pretendida, deviam levar à procedência do pedido que eles formularam.
Mas, como decorre do que antecede, os factos não podem ser alterados e perante os factos provados é impossível defender a procedência dos pedidos, já que os sob 9 a 11 apontam para que o acesso pelo prédio do vizinho seja menos prejudicial que pelo prédio dos réus, por ser muito menor a distância a percorrer pelo prédio do vizinho do que pelo prédio dos réus e não há factos que apontem noutro sentido.
Ou seja, no caso dos autos foi-se mais longe, na prova, do que aquilo que era exigível para a improcedência da acção.
É que – aqui entendendo-se o contrário do que se diz na sentença recorrida - o menor prejuízo do acesso pelo prédio dos réus é uma conclusão que é um pressuposto do direito dos autores a pedir a constituição da servidão legal de passagem e por isso tem de resultar de factos que têm de ser alegados e provados por estes (arts. 1550 e 342/1 do CC). Esse menor prejuízo não é a base de uma excepção peremptória a ser provada pelos réus (art. 342/2 do CC).
Ora, os factos provados não permitem de modo algum dar como provado que a passagem pelo prédio dos réus causa menor prejuízo do que pelo prédio vizinho (o que é suficiente para impedir a procedência da acção), pois que vão mais longe, apontando para a conclusão de que a passagem pelo prédio do vizinho causa menor prejuízo do que pelo prédio dos réus (o que levou a sentença a considerar que se podia dar como provada a excepção peremptória que diz ter sido invocada).
[no sentido de que os factos que permitem a conclusão do menor prejuízo são factos constitutivos do direito do autor e não factos base de uma excepção, veja-se, especialmente, para além de toda a doutrina e jurisprudência nele referida, o ac. do TRC de 10/05/2011, proc. 3871/05.0TBLRA.C1: 3 - O titular do prédio encravado tem direito, nos termos do art. 1550 do CC, a constituir uma servidão de passagem sobre os prédios limítrofes. Mas havendo mais que um prédio em condições de suportar a servidão, o titular do direito a constituir a servidão não pode escolher um prédio sem critério: deve observar a regra do art. 1553 do CC e pedir a constituição sobre o prédio onde a servidão causa “menor prejuízo”. 4 – A […] matéria que preenche o critério do “menor prejuízo” é constitutiva do direito de estabelecer a servidão sobre certo e determinado prédio, cujo ónus da alegação e prova compete ao autor (art. 342/1 CC).
No mesmo sentido, veja-se também o ac. do TRL de 22/11/2011, proc. 91/10.6TBVLS.L1-7: “IV - Para a constituição de uma servidão legal de passagem é necessária a demonstração de que o prédio do beneficiário respectivo está encravado, que do conjunto dos prédios rústicos vizinhos é o onerado aquele que sofre menor prejuízo com a constituição da servidão, que a passagem reclamada é aquela que, pelo modo e lugar, menos inconvenientes apresenta para o prédio onerado, apurando-se, ainda, se a constituição de uma tal servidão causa prejuízo ao dono desse prédio serviente e, sendo o caso, quantificar a indemnização correspondente. Não sendo feita esta prova, não podem considerar-se verificados os pressupostos para a constituição de uma servidão legal de passagem.
Ainda no mesmo sentido, veja-se o ac. do STJ de 10/12/2013, proc. 719/07.5TBBCL.G1.S1: I - O proprietário de prédio encravado não pode limitar-se a alegar factos demonstrativos do encrave e da confinância do prédio, por onde pode alcançar a via pública, devendo ainda alegar factos que permitam concluir que é, através do mesmo, e pelo modo e local escolhidos, que a passagem causa menor prejuízo e se torna menos gravosa, tomando-se em consideração o uso, efectivamente, dado ao prédio encravado. II - Não definindo a lei o conceito de «menor prejuízo», o mesmo deverá ser obtido de acordo com uma visão global do instituto, formado por diversos elementos que permitam concluir que o prédio serviente sofre menos diferença, em relação ao estado em que estaria se não fosse constituída a servidão, e como o seu proprietário tem do mesmo uma utilização mais aproximada à natural.
É certo que, a seguir, este acórdão acrescenta: “V - O proprietário por cujo prédio o trânsito deva ser feito pode opor-se ao traçado em projecto, alegando como factos impeditivos do direito do autor que o caminho, se passar por um prédio vizinho, será menos prejudicial do que pelo seu, posto que menos cómodo e um pouco mais dispendioso para o dono do traçado, [….].” Mas trata-se de um evidente lapso, já que o acórdão tinha acabado de considerar que os factos eram constitutivos, lapso natural visto que a questão já não tinha relevo, pois que, com a consideração deles como constitutivos, o acórdão já tinha podido considerar a acção procedente, e daí que não se tenha tido que preocupar com os factos alegados pela ré que, aliás, não tinham sido dados como provados.
E ainda o ac. do TRG de 25/02/2016, proc. 260/13.7TBPTB.G1: I – O proprietário de prédio encravado que pretende a constituição de uma servidão legal de passagem, para além de factos demonstrativos do encrave e da confinância do prédio, deve ainda, porque também constitutivos do seu direito potestativo, alegar factos que justifiquem concluir que o prédio vizinho através do qual pretende que seja efectuada a comunicação com a via pública, é aquele que menor prejuízo sofre com a constituição da servidão. II – Em sede do preenchimento em concreto do conceito de «menor prejuízo», e para além do factor óbvio do trajecto mais curto, deve ainda e concomitantemente atender-se a diversos outros elementos/factores, maxime aqueles que permitam concluir que o prédio serviente, com a comunicação através dele, acaba por ser aquele que menos diferença sofre em relação ao estado em que estaria se não fosse constituída a servidão, e aquele a cujo proprietário é também possibilitada/permitida uma utilização do prédio mais aproximada à que vinha fazendo até à constituição do ónus a favor do prédio dominante.
Contra, sem razão, existe apenas o ac. do TRE de 18/04/2013, proc. 1139/09.2TBLGS.E1, que diz que: O pedido de reconhecimento da constituição duma servidão legal de passagem traduz o exercício dum direito potestativo, pelo que, em termos processuais, ao autor basta o ónus de alegação e prova - por em tanto se traduzir a previsão legal para o reconhecimento do direito potestativo de constituição de servidão de passagem -, de ser dono de prédio encravado e de ser o réu proprietário dum prédio confinante pelo qual se podia efectuar o acesso à via pública: arts. 1550 e 342/1 CC. Atenta a natureza potestativa desse direito, a possível existência de outros prédios, com igual ou melhor potencialidade para proporcionar o acesso do prédio do autor à via pública, ou que sofram menos prejuízos/inconvenientes, constitui uma excepção peremptória, na medida em que consubstancia um facto impeditivo da eficácia do direito potestativo do autor. Enquanto excepção peremptória, incumbe ao réu o ónus da respectiva alegação e prova: art. 342/2 CC.]
E, assim sendo, acrescenta-se agora, mesmo que o recurso dos autores pudesse ser aproveitado para a impugnação da decisão da matéria de facto, e o pudesse ser para o único facto relevante, qual seja, o de o acesso se poder fazer pelo prédio do vizinho (facto 11), e, por isso, se pudesse excluir este facto da matéria provada, tal não conduziria à procedência da acção. É que, mesmo que tal facto não ficasse provado, tal não poderia conduzir à procedência da acção, pois que dos outros factos provados não se poderia concluir que o acesso pelo prédio dos réus era o menos prejudicial.
Mas, acrescente-se quanto a esta impugnação que, relativamente ao ponto 11 dos factos provados, os autores se limitarem a pôr em causa uma contradição na fundamentação da convicção do tribunal, sem sequer referirem, quanto mais tentarem afastar, o resto da fundamentação, que era o depoimento de uma testemunha que disse o suficiente para o tribunal recorrido se ter convencido do que consta do ponto 11.
Isto por um lado, como se dizia.

Por outro lado, os autores criticam a sentença porque, sendo assim, então, ao menos, devia ter constituído a servidão pelo prédio do vizinho.

Ora, como isto se traduziria na procedência do pedido reconvencional, a crítica dos autores é inconsequente ao menos por três ordens de razões:
Porque os autores defenderam a improcedência da reconvenção.
Porque na lógica da argumentação dos autores, estes continuam a defender a improcedência da reconvenção.
Porque é um contra-senso os autores pretenderem que a sentença está errada por não ter dado procedência ao pedido reconvencional deduzido pelos réus.
Independentemente destas inconsequências da posição dos autores, a verdade é que é como a sentença diz: como o pedido de constituição da servidão pelo prédio do vizinho não foi feito por quem tinha legitimidade para o fazer, ele não pode proceder.
Só as circunstâncias muito especiais do caso é que justificam que isto não seja de imediato claro para os autores, já que em circunstâncias normais estes não podiam deixar de achar estranho que um proprietário de um prédio (C) viesse a ser onerado com uma servidão a favor de um prédio dos autores (A) por força de um pedido feito pelos réus (B). E, para mais, um pedido que os autores defendiam que devia improceder.                     
Postas as coisas de outro modo: é inconcebível juridicamente que um réu faça um pedido reconvencional a favor dos autores contra um terceiro. Não só porque, substancialmente, não tem legitimidade para o fazer (art. 1550/1 do CC), como porque, processualmente, também não o podia fazer: a reconvenção é um pedido de um réu deduzido contra um autor (art. 266/1 do CPC). É certo que o n.º 4 do art. 266 do CPC estende esta possibilidade a outros sujeitos, mas isso com o fim de o réu vir pedir algo para si contra outro sujeito (a situação típica é a do réu que pede a indemnização de uma seguradora do autor). Não para que o réu peça algo de um terceiro para o autor.
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Os autores criticam ao tribunal recorrido toda a actividade processual desperdiçada, depois de o tribunal ter admitido o chamamento do vizinho para o processo e o pedido reconvencional.
Aceita-se que alguma confusão existiu da parte do tribunal recorrido, quer ao considerar existir, antes do chamamento e do pedido reconvencional, caso julgado sobre a questão dos autos - pois que ele não existia: na anterior acção discutiu-se a pré-existência de uma servidão predial adquirida por usucapião, enquanto nesta acção se discute um pedido de constituição de uma servidão por sentença judicial -, quer ao considerar possível um pedido reconvencional formulado por um réu contra um terceiro a favor do autor.

Mas tudo isto resultou de uma actuação processual surpreendente: os réus a deduzirem pedidos de constituição de servidão a favor dos autores sobre prédio de terceiro e a requererem a intervenção deste nos autos; e os autores a aceitarem como pertinente o chamamento desse terceiro, para vir discutir a alternativa de acesso, embora defendendo a improcedência do pedido reconvencional dirigido contra terceiro.
E tudo isto sendo certo que, como de algum modo se sugere na decisão judicial que admitiu a intervenção de terceiro e o pedido reconvencional, os autores podiam ter intentado a acção contra os réus e o terceiro (embora em coligação passiva, art. 36/2 do CPC, não em litisconsórcio – embora este tipo de acções não costumem ser intentadas contra vários réus, é admissível que o sejam: assim, também, o referido ac. do TRC de 10/052011), para acautelar a hipótese de a passagem que causava menor prejuízo ser a passagem pelo prédio do terceiro.

Perante tudo isto, não se vê nada de especial no facto de o tribunal recorrido, ter, numa fase anterior do processo, pensado que o pedido reconvencional poderia ajudar a resolver a questão colocada nos autos.

Tanto mais que talvez não fosse impossível que, se os autores tivessem aproveitado o chamamento de terceiro e o pedido reconvencional deduzido contra este pelos réus, se pudesse, com alguma adaptação processual, que incluísse a apropriação de tal pedido pelos autores, como pedido alternativo ou subsidiário, contra o terceiro, e a correcta posterior citação do terceiro (em que fosse advertido da posição processual que ocupava e que havia um pedido contra si deduzido), se pudesse, dizia-se, no fim, ter alcançado a constituição de uma servidão pelo prédio que sofresse menor prejuízo (não se afastando sequer a hipótese de o terceiro poder colaborar nisso….).

Seja como for, o tribunal não podia ficar vinculado pela apreciação que anteriormente fez da situação e não podia decidir contra o direito, condenando um vizinho a permitir que os autores passassem pelo seu prédio, quando os autores não só não pediram isso (art. 609/1 do CPC), como disseram mesmo que este pedido devia improceder (e continuam, neste recurso, a entender que não se verificam os pressupostos da condenação do vizinho).
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Os autores também não têm razão ao criticarem o trabalho desenvolvido pelo tribunal com a comparação da passagem que causaria menor prejuízo (toda a prova deveria, segundo eles, ter-se restringido à possível constituição de servidão de passagem pelo prédio dos réus).

Pois que, como resulta do que se disse acima, sobre a natureza deste pressuposto, como facto constitutivo do direito dos autores, essa comparação é sempre algo que tem de ser feito.

Como dizem Rui Pinto e Cláudia Trindade, “existindo dois ou mais prédios alternativamente em condições de ser objecto de uma servidão legal de passagem, há que proceder à comparação entre a vantagem da constituição da servidão para o prédio encravado e o sacrifício imposto a cada um dos prédios que possam ser afectados pela servidão. A servidão constituir-se-á sobre o prédio para cujo titular importar um sacrifício menor […]” (CC anotado, vol. II, 2017, Almedina, pág. 424).
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Sem custas (já que seriam responsáveis por elas os autores e eles beneficiam de apoio judiciário).


Lisboa, 11/01/2018


Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira