Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4331/16.0T8LSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: TESTAMENTO
INCAPACIDADE ACIDENTAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O regime do art. 2199.° do C.C. apresenta diferenças significativas quando confrontado com o contido no seu art. 257.°, n.ºs 1 e 2, a saber:
- o art. 257.º exige que a incapacidade seja notória ou conhecida do declaratário, exigência que não se encontra no art. 2199.º, dado o caráter não recetício do negócio testamentário;
- o instituto da incapacidade acidental previsto no art. 2199.º tem uma importância maior que a incapacidade acidental prevista no art, 257.º, uma vez que as incapacidades de testar são menos rigorosas, mais restritas, que as incapacidades gerais;
2. O art. 2199º estabelece a anulabilidade do testamento celebrado com incapacidade acidental, por quem não estava incapacitado de entender e querer o sentido da declaração efetuada ou que, por qualquer causa, ainda que transitória, não tinha o livre exercício da sua vontade para poder dispor dos seus bens para depois da morte, no momento em que a declaração negocial é prestada.
3. Estão em causa episódios que afetam a compreensão e a vontade do testador, como situações de embriaguez, situações de consumo de estupefacientes, surtos psicóticos provocados por anomalias psíquicas, estados de delírio, ou demência permanentes que não tenham gerado ainda uma decisão de interdição do testador. Assim sendo, esta norma pode abranger situações acidentais, esporádicas e transitórias, como surtos psicóticos momentâneos, que diminuam momentaneamente o discernimento e o livre exercício da vontade de dispor.
4. Pode abarcar ainda situações permanentes, como por exemplo, uma "doença que, no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente, podendo justificar uma ação de interdição que não existe.
5. Ainda assim, é necessário que a incapacidade se verifique no momento da outorga do testamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
A. intentou a presente ação declarativa contra B. e C., alegando, em suma, que no dia 9 de outubro de 2015, no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, D. outorgou, perante o 1.º réu, notário, outorgou testamento público pelo qual instituiu sua única e universal herdeira, a aqui 2.ª ré.
A testadora, falecida 22 de outubro de 2015, não teve filhos e a autora era a sua única irmã.
Na data da outorga do testamento, D. padecia de um tumor cerebral que lhe retirava a capacidade de entender e querer o sentido da declaração expressa no testamento, apresentando, então, sinais de demência que eram percetíveis para qualquer pessoa que com ela privasse.
Não tinha a perceção do espaço ou do tempo, nem reconhecia as pessoas que a rodeavam.
A autora concluiu assim a petição inicial com que introduziu em juízo a presente ação:
«Nestes termos, e face ao exposto, deve a presente ação ser julgada procedente e, em consequência, ser considerado nulo e de nenhum efeito o testamento outorgado em 9 de outubro de 2015, devolvendo-se à herança todos os bens deixados pela testadora, devendo ser decretado o cancelamento de todos os registos que tenham sido feitos em momento posterior ao óbito.
Subsidiariamente, o valor correspondente à herança se tal restituição não for possível.»
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Ambos os réus contestaram, fazendo-o separadamente.
O 1º réu começou por arguir a exceção dilatória consistente na sua ilegitimidade para os termos da presente causa, impugnando, no mais, a factualidade alegada pela autora na petição inicial.
Concluiu assim a sua contestação:
«Termos em que:
i) Deverá ser julgada procedente a exceção de ilegitimidade do Réu, ordenando-se a absolvição da instância do mesmo nos termos do art. 278º, n.º 1, alínea d), do  Código de Processo Civil ou, caso assim se não entenda,
ii) Deverá ser julgada a ação totalmente improcedente por não provada com as legais consequências.»
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A 2.ª ré impugnou a factualidade alegada pela autora e concluiu no sentido da improcedência da ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
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A autora respondeu à exceção arguida pelo 1.º réu, pugnando para que o mesmo seja considerado parte legítima para os termos da causa.
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Realizou-se a audiência prévia, na qual:
- o 1.º réu foi julgado parte ilegítima para os termos da causa e, em consequência, absolvido da instância;
- foi fixado o objeto do litígio;
- foram enunciados os temas da prova.
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Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Pelo que exposto fica, decide-se declarar anulado o testamento de D., outorgado em 9 de Outubro de 2015, com as legais consequências, determinando-se que a ré devolva à herança todos os bens deixados pela testadora.»
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A ré não se conformou com essa decisão e dela interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
1. Existe uma notória contradição entre os depoimentos das testemunhas da Apelada em especial no caso da médica, e os depoimentos das testemunhas da Apelante, nomeadamente as que estiveram presentes no momento da outorga do testamento.
2. O tribunal não fundamentou, como era seu dever, porque que é que desvaloriza o conjunto dos depoimentos das testemunhas da Apelante, nomeadamente o do Notário.
3. Apesar de a própria médica afirmar no seu depoimento que a situação de incapacidade em que alegadamente a testadora se encontraria poder sofrer flutuações, é dado como provado que o estado da mesma se manteve inalterado desde Julho de 2015 até ao momento do seu falecimento.
4. Para ser possível a anulação do testamento com base na incapacidade acidental, prevista no artigo 2199º do C.C, é necessário provar a incapacidade do testador no preciso momento em que se lavrou o testamento.
5. O estado de incapacidade acidental do testador deve existir no momento da feitura do testamento, incumbindo ao interessado na invalidade o ónus da prova dos factos reveladores de incapacidade acidental – art. 342º, nº1, do Código Civil.
6. O documento de fls.. chamado «relatório» elaborado pela testemunha JM deve ser desentranhado dos autos, por extemporâneo, por não corresponder ao que foi requerido e por, quanto ele, a Ordem dos Médicos não ter levantado o sigilo médico.
7. A douta decisão não teve em consideração na formação da vontade da testadora a longa e constante amizade que esta tinha pela Apelante, largamente testemunhada durante o julgamento.
8. Nem valorizou essa vontade indiciada através da outorga da procuração de 15 de Julho de 2015, para justificar a deixa testamentária para a Apelante.
9. A douta decisão não teve em consideração que a testadora e a A. não mantinham relações e muito menos relações de amizade.
10. O testamento é um documento autêntico, que só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto.
11.  Mesmo que assim não se entendesse, a douta sentença violou, ao não fundamentar e/ou fazer errada interpretação das normas, e aplicando mal o direito, além do mais, dos artigos 154º, e 607, nº 4 do CPC, artigos 369, 371, 371º, 374º, 342°, 2188º, 2191° e 2199° todos do Código Civil.
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A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do C.P.C. de 2013) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3, do C.P.C. de 2013), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do C.P.C. de 2013) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, do C.P.C. de 2013, ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pela recorrente ora apelante que o objeto da presente apelação está circunscrito às seguintes questões:
a)    saber se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b)    se há lugar à anulação do testamento outorgado por D., no dia 9 de outubro de 2015, no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, por incapacidade da testadora.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentos de factos:
A sentença recorrida enunciou assim a matéria de facto considerada provada:
1. D. outorgou testamento, no dia 9 de Outubro de 2015, perante GC, na qualidade de notário, e LS e MR, na qualidade de testemunhas.
2. Neste testamento a testadora instituiu herdeira universal dos seus bens C.
3. O testamento foi outorgado no Instituto Português de Oncologia de Lisboa onde a testadora estava internada.
4. A testadora assinou o testamento apondo neste a impressão digital do seu indicador direito, por não se encontrar em condições de assinar.
5. A testadora faleceu no dia 22 de Outubro de 2015, no estado de viúva.
6. A testadora não teve filhos.
7. D. era filha de AG e de MG, já falecidos.
8. A., ora autora, é a única irmã da falecida testadora.
9. A falecida D., havia em 15 de Julho de 2015, outorgado procuração constituindo sua procuradora a ora ré, a quem conferiu os poderes enunciados e descriminados no doc. junto a fls. 81 a 83 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
10. Dá-se por reproduzido o teor dos documentos juntos a fls. 18 a 29 dos autos.
11. A falecida D. desde pelo menos Junho de 2015 que não tinha percepção do espaço e do tempo.
12. E, sobretudo após o seu internamento no IPO, apenas ocasionalmente reconhecia alguns familiares.
13. E não sabia por onde andava, do local onde se encontrava.
14. E tinha necessidade de ajuda para realizar todas as tarefas mesmo as mais simples como comer e lavar-se.
15. E apresentava dificuldade em expressar-se através da linguagem e de compreender o que lhe era dito.
16. A situação descrita nas alíneas anteriores manteve-se até à sua morte.
17. E verificava-se na data em que foi outorgado o testamento sendo que se encontrava incapacitada nessa data de compreender a declaração testamentária.
18. O estado de saúde da testadora era conhecido de todos os que com ela se cruzaram durante os últimos meses de vida.
19. A ré C. conhecia o estado de saúde da testadora.
20. A ré visitou a testadora ao longo da sua doença várias vezes.
21. Nas visitas ao Instituto Português de Oncologia as pessoas constataram que às vezes a testadora as conhecia, falava com elas e mostrava-se contente por as ver.
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3.2 – Do mérito do recurso:
3.2.1 – Da impugnação da matéria de facto:
Dispõe o art. 640º do CPC:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º.
Sempre que o recurso de apelação envolva também a impugnação sobre a matéria de facto, o recorrente deve, além do mais:
- em quaisquer circunstâncias, indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação, no corpo da alegação, e síntese nas conclusões, pois são estas, como se viu, que delimitam o objeto do recurso, pelo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não pode deixar de ser enunciada nas conclusões;
- especificar, no corpo da alegação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- deixar expressa no corpo da alegação, a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à impugnação de recursos de pender genérico e inconsequente[1].
No Ac. do STJ de 03.03.2016, Proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S1 (Ana Luísa geraldes), in www.dgsi.pt, decidiu-se: «Servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso»;
No Ac. do STJ de 01.10.2015, Proc. nº 824/11.3TTLRS.L1.S1 (Ana Luísa geraldes), in www.dgsi.pt, decidiu-se: «Servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo Recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação. Com efeito, o ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640.º do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1 constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação.»
No Ac. do STJ de 14.01.2016, Proc. nº 326/14.6 TTCBR.C1.S1 (Mário Belo Morgado), in www.dgsi.pt, decidiu-se: «Tendo a Recorrente identificado no corpo alegatório os depoimentos das testemunhas que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna. A falta de uma redação alternativa dos factos por parte do Recorrente não constitui por si só fundamento para rejeição do recurso por parte da Relação, desde que aquele identifique nas conclusões de forma inequívoca o sentido que em seu entender deve extrair-se das provas que invoca e analisa, em termos que permitam apreender as questões por si suscitadas, bem como as respostas que devam ser dadas às mesmas.»[2].
No que à rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, Abrantes Geraldes, formula a seguinte síntese conclusiva: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.):
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.»
No caso concreto, a recorrente, nas conclusões da sua alegação de recurso:
- não afirma sequer que pretende impugnar a matéria de facto;
- não especifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
Por isso, rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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3.2.2 – Do enquadramento jurídico:
Na petição inicial com que introduziu em juízo a presente ação, alega a autora que «o testamento feito por pessoa incapaz de entender o sentido da sua declaração, é anulável, nos termos do artigo 2199.° do Código Civil.
A incapacidade de que fala o citado artigo 2199° refere-se à falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.
O vício contemplado na norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a declaração é lavrada.
Ora, na data em que foi outorgado o testamento, a testadora já se encontrava impossibilitada de se expressar e de entender o sentido e alcance que se encontra exposto no referido documento.
Mais, no momento da celebração do testamento, e já antes mesmo desse ato, estava incapacitada de entender e atingir o sentido e a vontade da sua declaração e de compreender o que a rodeava.
Pois, a testadora já não tinha capacidade de conhecimento, de decisão, de vontade, não entendia o que lhe era dito nem se expressava de forma coerente.
E, não tinha consciência do que declarou, nem do significado do seu acto.
Consequentemente, torna-se manifesto e evidente que a situação é subsumível à previsão do aludido preceito, face à incapacidade da testadora para entender o sentido da declaração ínsita naquele, no momento em que foi proferida.»
O art. 2199.º do C.C., que tem como epígrafe “Incapacidade acidental”, dispõe que «é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.»
Por sua vez, na parte geral do C.C., dispõe o art. 257.º:
«1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.
2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.»
A incapacidade acidental do testador no momento da outorga do testamento, é fator determinante da sua anulação e não da sua nulidade.
Por isso, corretamente, deveria a autora ter pedido que o testamento fosse declarado anulado e não nulo.
Isto, obviamente, sem prejuízo de, no caso de prova de factos integradores da previsão daquela norma, o tribunal poder declarar anulado o testamento, em vez de o declarar nulo.
Conforme refere Cristina Pimenta Coelho, «encontramos nos arts. 2199.° e ss. um regime específico da falta e vícios de vontade no testamento. A questão que se coloca é a de saber se podemos recorrer, subsidiariamente, às normas da parte geral, parecendo-nos que a resposta deve ser afirmativa, embora devamos adaptá-las às características e às especificidades do negócio testamentário. Com efeito, as normas que encontramos na parte geral e que se referem à matéria da falta e vícios da vontade têm em consideração a posição do declaratário, a ideia da tutela da confiança, logo, temos de adaptar essas regras tendo em conta que o negócio testamentário tem natureza não recetícia.
O regime do art. 2199.° apresenta diferenças significativas quando confrontado com o contido no art. 257.°, n.ºs 1 e 2. Em primeiro lugar, o art. 257.º vem exigir que a incapacidade seja notória ou conhecida do declaratário, exigência que não se encontra no art. 2199.º, dado o caráter não recetício do negócio testamentário. Em segundo lugar, deve ter-se em conta que o instituto da incapacidade acidental previsto neste artigo vai ter uma importância maior que a incapacidade acidental prevista na parte geral do CC, uma vez que as incapacidades de testar são menos rigorosas, mais restritas, que as incapacidades gerais. Recorde-se que os inabilitados por anomalia psíquica podem testar mas também podem facilmente não ter consciência do ato que praticam e logo ser-lhes aplicado o regime da incapacidade acidental. Por outro lado, tenha-se em vista que as situações de interdição são excecionais e que, muitas vezes, existe uma situação de demência não reconhecida pelo direito, mas uma demência permanente e também nestes casos se vai aplicar este regime.»[3].
A propósito da incapacidade acidental enquanto causa de anulação de um testamento, escreve Anabela Gonçalves, em comentário ao art. 2199.º, in Código Civil Anotado, Livro V (Direito das Sucessões), sob coordenação de Cristina Araújo Dias, Almedina, 2018, pp. 298-229:
«O art. 2199º estabelece a anulabilidade do testamento celebrado com incapacidade acidental, por quem não estava incapacitado de entender e querer o sentido da declaração efetuada ou que, por qualquer causa, ainda que transitória, não tinha o livre exercício da sua vontade para poder dispor dos seus bens para depois da morte, no momento em que a declaração negocial é prestada. Tal como para efeitos do art. 257º, estarão em causa episódios que afetam a compreensão e a vontade do testador, como situações de embriaguez, situações de consumo de estupefacientes, surtos psicóticos provocados por anomalias psíquicas, estados de delírio, ou demência permanentes que não tenham gerado ainda uma decisão de interdição do testador. Assim sendo, esta norma pode abranger situações acidentais, esporádicas e transitórias, como surtos psicóticos momentâneos, que diminuam momentaneamente o discernimento e o livre exercício da vontade de dispor. Pode abarcar ainda situações permanentes, como por exemplo, uma "doença que, no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente" (Ac. de 11/4/2013 (1565/10.4TJVNF.Pl.S1), www.dgsi.pt [consultado em 16-12-2016], podendo justificar uma ação de interdição que não existe. Ainda assim, é necessário que essa incapacidade se verifique no momento da feitura do testamento. Nestes casos, considera-se que a pessoa não está em condições mentais de entender e querer o conteúdo da sua declaração no momento em que lavrou o seu testamento. Assim, a incapacidade acidental deve ser aferida no momento da outorga do testamento. Esta é a noção adotada pela jurisprudência nacional: v., entre outros, Ac. STJ 03/05/1974, BMJ n.º 237, 1974, p.176; STJ 13/01/2009 (08A3809), www.dgsi.pt [consultado em 15-12-2016].
Note-se, porém, que a pessoa pode ter alguma lesão cerebral ou doença mental, e esta não afetar o discernimento da pessoa para querer e entender o alcance do ato que está a praticar (assim decidido pelo Ac. STJ 26/05/1964 (SJ196405260593071 www.dgsi.pt [consultado em 16-12-2016]), ou seja, a incapacidade acidental não será um efeito automático de qualquer doença mental, sendo necessário ter em conta as circunstâncias do caso concreto e que a doença em causa tenha toldado a capacidade do testador de compreender o alcance da disposição testamentária que fez (…). Até porque a mesma pessoa pode fazer o testamento num intervalo lúcido, sendo este testamento válido. Da mesma forma, o facto de o testador ter um vício, como o abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, que lhe cause uma situação de dependência, não é prova suficiente para demonstrar que, no momento da outorga do testamento, o autor do mesmo se encontrava numa situação de discernimento reduzido que não lhe permitia compreender e querer o alcance das disposições testamentárias feitas (assim decidido pelo Ac. STJ 02-05-2012 (2712/05.3TBPVZ.Pl.S1), www.dgsi.pt [consultado em 16-12-2016]), sendo necessário demonstrar a existência desse discernimento reduzido aquando da elaboração do testamento.
No art. 257º estabelece-se a anulabilidade dos negócios celebrados, desde que estejam reunidos dois requisitos: do lado do declarante é necessário que este se encontre acidentalmente incapacitado de compreender o sentido da declaração ou que não tenha o livre exercício da sua vontade; do lado do declaratário exige-se que o facto seja notório ou conhecido. Ou seja, há dois requisitos a preencher: a incapacidade acidentaI por parte do declarante; e a cognoscibilidade ou conhecimento dessa incapacidade do lado do declaratário. Por um lado, o regime do art. 257º pretende proteger o declarante que não compreende o sentido da sua declaração e os efeitos da mesma. Mas, por outro lado, ao exigir que o facto seja notório ou conhecido do declaratário, o regime do art. 257º procura salvaguardar os interesses do declaratário que negoceia com quem tem capacidade de exercício e, assim, tutelar a segurança do tráfego jurídico geral. (…).
Por contraposição, o art. 2199º, tendo em conta que estamos perante um negócio unilateral de natureza pessoal (art. 2182º), que produzirá efeitos após a morte do testador, em que é necessário garantir que a pessoa tem discernimento para a prática daquele ato e que compreende os efeitos que dele resultam, estabelece apenas requisitos do lado do declarante: ou seja, este está incapacitado de entender a sua declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade e isso coloca-o numa situação de inferioridade que necessita de proteção do legislador. Há, pois, uma proteção unilateral da vontade real e livre do testador, até porque não existem interesses do tráfico jurídico geral a proteger. Por esta razão, Pereira Coelho apelida o testamento como um negócio estranho ao comércio jurídico, pois "(…) não surge aquela oposição entre os interesses do declarante, por um lado, e, por outro lado, os interesses do declaratário e os interesses gerais da contratação" (COELHO, Pereira, ob. cit., p. 334).»[4].
Tal como se decidiu no Ac. do STJ de 19.01.2016, Proc. n.º 893/05.5TBPCV.C1.L1 (Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt, «a incapacidade acidental, a que se refere o art. 2199º do Código Civil, afetando ou obnubilando a vontade do testador, constitui vício volitivo que determina a anulabilidade do ato; o normativo quer proteger o testador, o seu ato de vontade unilateral, ao passo que o art. 257º do Código Civil, que também versa sobre a incapacidade acidental, mas em atos contratuais e tem o seu campo de aplicação nos negócios jurídicos bilaterais visa proteger, sobretudo, o declaratário desde logo exigindo como requisito de anulabilidade da declaração que o facto determinante da incapacitação acidental de entender o sentido da declaração de vontade seja notório, ou conhecido do declaratário.
No citado normativo prescinde-se dos requisitos notoriedade ou cognoscibilidade do vício que afeta a vontade do declarante, desde logo, por se tratar de um ato unilateral, um negócio jurídico não recipiendo, que não carece de aceitação para produzir os seus efeitos.
Em comentário ao art. 2199.º do Código Civil, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. VI, pág. 323, ensinam:
“A primeira destas regras específicas, constante do artigo 2199.°, refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.
A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiências psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.
E por conseguinte o mesmo tipo de deficiência psicológica que o artigo 257º considera em relação aos actos entre vivos em geral.
Na área das disposições testamentárias, trata-se de uma situação de crise essencialmente distinta da abrangida na alínea b) do artigo 2189º (incapacidade de testar baseada na interdição por anomalia psíquica).
A nulidade do testamento feito pelo interdito baseia-se na presunção do estado ou situação de incapacidade, juris et de jure, criada pela sentença, desde que é proferida até ao momento em que a interdição é levantada.
A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199º, assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.”
O estado de incapacidade acidental do testador deve existir no momento da feitura do testamento, incumbindo ao interessado na invalidade o ónus da prova dos factos reveladores de incapacidade acidental – art. 342º, nº1, do Código Civil.
Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11.4.2013, Proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1, in www.dgsi.pt, de que foi Relator o Conselheiro Gabriel Catarino, (itens X a XII do Sumário):
“Ao invés do que acontece nas situações de anulação da declaração negocial conformadora de um ato ou negócio jurídico, em geral, por incapacidade acidental, em que a lei exige que “o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário” (art. 257.º, n.º 1, do Código Civil), no caso previsto no art. 2199.º do Código Civil, a anulação do testamento por idêntica razão – incapacidade acidental – não é exigida essa notoriedade, bastando-se com a prova da existência de um estado de incapacidade natural que seja coeva ou contemporânea do momento em que o declarante emite a declaração relativa à disposição dos seus bens post mortis.
Compete ao peticionante da anulabilidade do ato jurídico de disposição post mortem, a prova dos factos conducentes à verificação do estado de incapacidade que obnubilaria a sã capacidade de dispor dos seus bens e o discernimento quanto às consequências decorrentes do ato ditado.
Ao peticionante da anulabilidade do ato jurídico testamentário, por incapacidade acidental, compete provar que o testador sofria de doença que, no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente”.
A incapacidade para entender e querer, no momento da feitura do testamento, não tem necessariamente de estar afirmada por uma sentença que declare a interdição do testador, o que pressupõe um estado continuado, permanente, de incapacidade volitiva, essa incapacidade pode ser meramente ocasional, transitória, desde que seja contemporânea da declaração volitiva plasmada no testamento.»
No Ac. do STJ de 24.05.2011, Proc. n.º 4936/04.1TCLRS.L1.S1 (Manuel Pereira), in www.dgsi.pt, decidiu-se que «saber se o testador se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade é uma conclusão jurídica a extrair dos factos apurados. O ónus da prova dos factos demonstrativos da incapacidade acidental do testador, no momento da feitura do testamento, recai sobre o interessado na anulação do testamento, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil. Para efeitos do disposto no artigo 2199.º do Código Civil, o essencial é determinar se, no momento da feitura do testamento, o testador se encontrava ou não privado de uma vontade sã
No caso concreto, a sentença recorrida considerou provado que:
- O testamento foi outorgado no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, onde a testadora estava internada;
- A testadora, D., assinou o testamento apondo neste a impressão digital do seu indicador direito, por não se encontrar em condições de assinar;
- A falecida D., desde pelo menos Junho de 2015 que não tinha percepção do espaço e do tempo;
- (...) e, sobretudo após o seu internamento no IPO, apenas ocasionalmente reconhecia alguns familiares;
- (...) e não sabia por onde andava, do local onde se encontrava;
- (...) e tinha necessidade de ajuda para realizar todas as tarefas mesmo as mais simples como comer e lavar-se.
- (...) e apresentava dificuldade em expressar-se através da linguagem e de compreender o que lhe era dito.
- A situação descrita nas alíneas anteriores manteve-se até à sua morte.
- (...) e verificava-se na data em que foi outorgado o testamento[5];
- O estado de saúde da testadora era conhecido de todos os que com ela se cruzaram durante os últimos meses de vida.
- A ré Cândida Batista conhecia o estado de saúde da testadora.
- A ré visitou a testadora ao longo da sua doença várias vezes.
Perante isto, e tendo presentes os considerandos anteriormente tecidos, não se nos afigura subsistirem dúvidas de que a autora alegou, e logrou provar, factos integradores da previsão do art. 2199.º do C.C., razão pela qual a sentença recorrida não é merecedora de censura, devendo, por isso, ser mantida.
*
III – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes da 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelada – art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.
Registe e notifique.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2018
(Acórdão assinado digitalmente)

Relator
José Capacete
Adjuntos
Carlos Oliveira
Digo Ravara

[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, Almedina, 2017, pp. 155-156.
[2] Acórdãos citados no mencionado Ac. do STJ de 03.03.2016.
[3] Código Civil Anotado, Volume II (Coordenação de Ana Prata), Almedina, 2017, p. 1090, em anotação ao art. 2199.º do C.C.
[4] O destacado a negrito é da nossa autoria.
[5] Expurga-se da factualidade provada o enunciado («(...) sendo que se encontrava incapacitada nessa data de compreender a declaração testamentária»), uma vez que, tal como referido  Ac. do STJ de 24.05.2011, Proc. n.º 4936/04.1TCLRS.L1.S1 (Manuel Pereira), in www.dgsi.pt, «saber se o testador se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade é uma conclusão jurídica a extrair dos factos apurados».