Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28048/15.3T8LSB.L1-4
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: NÃO JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I–Para que ocorra a inversão do ónus da prova de harmonia com o n.º 2 do artigo 344.º do CPC, é necessário que, cumulativamente: a não junção da documentação determinada tenha tornado impossível a prova ao onerado (não sendo suficiente para o efeito uma eventual maior dificuldade dessa prova); essa impossibilidade decorra de um comportamento culposo da parte.

II–A eventual revogação da decisão intercalar que contende com o resultado da lide provoca efeitos anulatórios da tramitação processual que se lhe segue e afecta a própria decisão final, tornando prejudicado o recurso interposto desta.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


1.Relatório:


1.1. AAA, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum contra BBB, S.A., peticionando a condenação da R. a pagar ao A. a quantia de € 22.502,76, acrescida de juros à taxa legal de 4 % ao ano desde a citação da Ré e até integral pagamento.

Em fundamento da sua pretensão, alegou, em síntese: que trabalhou para a R. desde 22 de Abril de 2003 até 31 de Outubro de 2014, exercendo as funções de vigilante; que ao longo desse tempo prestou trabalho suplementar diurno, nocturno e em dias feriados que não lhe foi totalmente pago, bem como não lhe foram concedidos descansos compensatórios correspondentes a trabalho suplementar realizado, sendo-lhe devido o valor que peticiona no que respeita ao período compreendido entre 1 de Janeiro de 2010 e 31 de Outubro de 2014. Pediu, a final, nos termos e para os efeitos do art. 528º do Código de Processo Civil e para prova dos arts. 11º, 12º, 14º, 15º e 17º da petição inicial, que a Ré seja notificada para juntar aos autos o registo do nº de horas de trabalho praticado pelo A., bem como os relatórios de ocorrências elaborados pelo A. de Janeiro de 2010 a Outubro de 2014.

Na contestação apresentada a R. veio defender a improcedência da acção e a sua absolvição dos pedidos e alegou, em suma: que os documentos que o A. junta não podem considerar-se idóneos e, como tal, provam o trabalho suplementar que o A. alega ter realizado há mais de cinco anos a contar da data em que a R. foi citada para a acção (16 de Novembro de 2015); que os documentos referentes ao trabalho suplementar prestado a partir de 16 de Novembro de 2010 não o demonstram; que pagou naquele período ao A. € 10.795,43 a título de trabalho suplementar, feriados e descansos compensatórios; que a partir de Agosto de 2012 os valores devidos foram alterados por foça da Lei n.º 23/2012 de 25/06 e da suspensão dos IRC, não tendo ainda em conta o regime de adaptabilidade nestes consagrado e que a actividade de segurança privada funciona em regime de turnos, o que deve ser atendido.

O A. respondeu a fls. 158 e ss., invocando que não se verifica a prescrição de créditos e que a circunstância da empresa estar isenta de encerrar nos dias feriados não interfere com o direito de os assalariados ao seu serviço não trabalhar nesse dias, porquanto tal faculdade deriva de um interesse, de ordem pública, que é exterior à própria empresa, ou seja, o direito à não exigibilidade da prestação normal de trabalho nesses dias é uma garantia que surge directamente na esfera jurídica dos trabalhadores enquanto meros cidadãos, não podendo, por isso, o respectivo exercício ficar dependente do facto de as empresas estarem ou não obrigadas a encerrar durante esses mesmos períodos e o gozo dos feriados não constitui uma garantia reflexa, mas um autêntico direito subjectivo.

Foi proferido despacho saneador, aí se fixando o valor da acção em € 22.502,76 e foi dispensada a fixação dos temas da prova (fls. 165.166). Foi ainda determinada a notificação da R. para juntar os documentos solicitados pelo A. na sua petição inicial.

Na sequência dessa notificação, a R. veio a fls. 179-180 dizer o seguinte:
«1–Os relatórios de ocorrência, cuja junção aos autos o A. vem requerer, não se encontram em poder da R. A R. esclarece que no período a considerar tinha ao seu serviço cerca de 2.500 vigilantes colocados centenas de postos disseminados por todo o território nacional e que, em cada dia, é efectuado por cada turno de cada vigilante, um relatório de ocorrência. Assim é manifestamente impossível à R. guardar esse tipo de documentação, por mais de escassos meses.
2–Relativamente aos restantes documentos, a R., tem desenvolvido esforços e intensas e aturadas buscas aos seus arquivos documentais, tendentes a localizar os referidos documentos.
3–Importa referir que nos últimos anos a R. tem sofrido inúmeras reestruturações internas, sobretudo ao nível do seu departamento administrativo, sobretudo motivadas pela aquisição de duas empresas de segurança a (…),  SA e a (…), SA.
4–Consequência directa da referida aquisição, as referidas 3 empresas passaram a ter Administração e serviços administrativos comuns e sofreram complexas e sucessivas reestruturações, designadamente ao nível dos respectivos serviços administrativos, das quais resultou, ao que nesta sede importa referir, a concentração no escritório da (…)  de todos os serviços administrativos principais das 3 empresas, entre os quais, o Departamento de Recursos Humanos.
5–Actualmente todo o Departamento de Recursos Humanos da R. e das referidas duas empresas, apesar de concentrado na (…), por questões imperiosas de gestão de espaço, viu-se forçado a transferir maior parte do suporte documental mais antigo, designadamente os registos de presenças dos seus cerca de 2500 vigilantes para outras instalações.
6–Certamente atendendo ao enorme volume de documentação (apenas em suporte de papel, como a que foi requerida) e inerente deslocação e arrumação noutros espaços, nos últimos anos, facto é que, apesar de todos os esforços desenvolvidos nesse sentido, procedendo a intensas e aturadas buscas aos seus arquivos documentais, tendentes a localizar todos os documentos solicitados, os mesmos não foram localizados.
7–Colocando-se a hipótese dos mesmos se terem extraviado ou até de nem sequer terem chegado aos seus serviços.
8–Por todo o exposto a R. tendo esgotado todas as possibilidades de procura de todos os documento solicitados, colocando a hipótese de alguns dos mesmos se terem extraviado ou até de nem sequer terem chegado aos seus serviços, não pode dar cumprimento à requerida junção de documentos em virtude de não ter tais documentos em seu poder.»

O A. não se pronunciou sobre esta justificação da R.

No início da audiência de discussão e julgamento, em 8 de Junho de 2016,  o Mmo. Juiz a quo proferiu despacho com o seguinte teor:
«Notificada para juntar os relatórios de ocorrência e os registos das horas de trabalho prestadas pelo Autor, a Ré não juntou, apresentando a justificação constante do requerimento de fls. 179.
Quanto aos relatórios de ocorrência, a Lei não exige sequer que os mesmos tenham existência, acatando-se como boa a explicação adiantada pela Ré para os não apresentar. Quanto aos registos do trabalho suplementar, exige a Lei que os mesmos sejam mantidos pelo empregador durante pelo menos 5 anos (artigo 202º, n.º 4 do Código do Trabalho). Ao não cumprir com esta exigência, a Ré tornou difícil, se não impossível, a prova do trabalho efectivamente prestado pelo seu trabalhador aqui Autor.

Assim sendo, ao abrigo do disposto no artigo 344º, n.º 2 do Código Civil, determinamos a inversão do ónus da prova relativamente aos horários de trabalho praticados e horas de trabalho prestadas pelo Autor, no período compreendido entre 19-10-2010 e 31-10-2014 (o período anterior encontra-se prejudicado face à inexistência de documento idóneo, como previsto no artigo 377º, n.º 2 do Código do Trabalho.»

1.2. A Ré, inconformada interpôs em 2016.06.20 recurso deste despacho, tendo arguido a nulidade do despacho no requerimento de interposição de recurso e formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“A) Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 8 de Junho de 2016 que determinou a inversão do ónus de prova relativamente aos horários de trabalho praticados e horas de trabalho prestadas pelo A. compreendendo o período de 19/10/2010 e 31/10/2014”.
B) Atendendo a que a aplicação do Instituto de inversão do ónus da prova pressupõe a verificação prévia de que a prova de determinada factualidade, por acção comissiva ou omissiva da parte contrária se tenha tornado impossível de fazer, o despacho ora recorrido ao decidir pela inversão do ónus da prova, logo no início da Audiência de  Discussão e julgamento, sem esperar pela produção de prova, fê-lo prematuramente.
C) No momento não era, evidentemente, patente, nem a impossibilidade, nem sequer a grave dificuldade da prova dos factos controvertidos.
D) Ainda que assim não se entenda, à cautela se dirá que não se compreende e não se aceita a data a partir da qual foi considerada a inversão do ónus da prova, nos termos do artº 337º, nº 2 do Código do Trabalho – 19/10/2010 -, menção de data que não se encontra, aliás, fundamentada.
E) Considerando que a R. foi notificada para proceder à junção dos documentos em 09/05/2016, (cfr. data certificada no CITIUS e o disposto no artº 248º do C.P.C. aplicável ex vi artº 1º, nº 2, alínea a) do C.P.T. aplicável ex vi artº 1º, nº 2, alínea a) do C.P.T.,), isto é, aquando da notificação do Despacho Saneador, a data a considerar seria entre 08/05/2011 e 31/10/2014.
F) Assim, o despacho recorrido é Nulo, ao prematuramente apreciar e conhecer de questão de que ainda não podia tomar conhecimento, ao não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a data de 19/10/2010, como inicio de produção de efeitos da inversão do ónus da prova, estando tal data em oposição com a data em que o Despacho Saneador foi notificado à R.
G) Violando, deste modo o disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 1 do artº 615º do C.P.C., aplicável ex vi do nº 1 e alínea a) do nº 2 do C.P.T.,
H) O A. veio reclamar o pagamento de valores relativos a trabalho suplementar, trabalho prestado em dias feriados e correlativo descanso compensatório.
I) Na p.i., o A. arrolou 2 testemunhas, juntou 102 documentos e requereu a notificação da R. para juntar aos autos o registo do nº de horas de trabalho praticado perlo A., bem como os relatórios de ocorrência elaborados pelo A. de Janeiro de 2010 a Outubro de 2014.”
J) No Despacho Saneador determinou-se a notificação da R. “para em 15 dias, juntar os documentos solicitados pelo A. na sua petição inicial”
K) A R., através de Requerimento junto aos autos referiu em síntese que, tendo esgotado todas as possibilidades de procura dos documentos solicitados, colocando a hipótese de se terem extraviado ou até de nem sequer terem chegado aos seus serviços, não pode dar cumprimento à requerida junção de documentos em virtude de não ter tais documentos em seu poder.
L) O referido Requerimento foi notificado ao A. que, no prazo legal, nada disse, com o mesmo se conformando o que, naturalmente, outro sentido não terá, que não seja: aceitou as justificações como válidas.
M) Não se verificam os requisitos necessários, nem existiu fundamento legal para aplicação das regras da inversão do ónus da prova.
N) Das disposições legais que o regulam e do que tem sido entendido pela Jurisprudência dos Tribunais Superiores, decorre que o Instituto da inversão do ónus da prova não opera automaticamente, exigindo a verificação de dois pressupostos: Que a prova de determinada factualidade, por acção comissiva ou omissiva da parte contrária se tenha tornado impossível de fazer e que tal comportamento lhe seja imputável a título culposo.
O) Resulta dos autos que o A. não esteve impossibilitado de fazer a prova da prestação do trabalho suplementar, com recurso a outros meios de prova, o que, de resto, nunca sequer alegou, tendo juntado os documentos e arrolado as testemunhas que entendeu.
P) Não indica o despacho recorrido nem resulta minimamente dos autos, qualquer acto culposo do qual se possa inferir atitude culposa ou dolosa em não apresentar tais documentos,
Q) Quando notificada para proceder à sua junção, a R. não se recusou a entregar os documentos, nem sequer se remeteu ao silêncio, não existindo nos autos qualquer indício que permita concluir que a R. se recusou a colaborar com o tribunal, bem pelo contrário,
R) Tão pouco foi a R. advertida que a não junção dos referidos documentos teria como consequência a inversão do ónus da prova, o que tem sido entendido pela Jurisprudência como requisito prévio necessário à inversão do ónus da prova.
S) Não existindo qualquer nexo de causalidade entre a actuação processual da R. e a impossibilidade de o A. fazer a mesma prova através de outro meio de prova, não se verificam os requisitos que norteiam o regime legal da inversão do ónus da prova, não existindo qualquer fundamento legal para a sua aplicação.
T) O despacho recorrido, ao decidir pela inversão do ónus de prova, com fundamento no facto de a Recorrente não ter efectuado a junção aos autos dos registos das horas de trabalho violou e efectuou incorrecta aplicação do disposto no artº 202, nº 4 do Código do Trabalho, nº 2 do artº 344º do Código Civil e artºs 429º, 430º e nº 2 do artº 417º do C.P.C.

Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, anulando-se o Despacho recorrido, proferido na Audiência de Julgamento de 8 de Junho de 2016, na parte em que determinou a inversão do ónus de prova relativamente aos horários de trabalho praticados e horas de trabalho prestadas pelo A. compreendendo o período de 19/10/2010 e 31/10/2014”.

Não consta que o A. tenha apresentado contra-alegações.

1.3. Prosseguindo os autos e decidida a matéria de facto em litígio sem reclamação (fls. 207 e ss.), foi proferida sentença em 1 de Agosto de 2016 que terminou com o seguinte dispositivo:

«Face ao exposto, julgamos a presente acção parcialmente procedente, por provada em parte, e em consequência condenamos a R a pagar ao A o trabalho suplementar prestado, bem como em dia de descanso semanal e em dia feriado, entre 19 de Outubro de 2010 e 31 de Outubro de 2014, de acordo com os acréscimos que ficaram determinados, deduzindo-se aquilo já pago, tudo a apurar em liquidação de sentença.
Sobre a quantia que se mostre estar em dívida acrescem juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data da citação (16/11/2015) e até efectivo e integral pagamento.
Custas por A e R, na proporção do respectivo decaimento – artigo 527.º do Código de Processo Civil.
[…]»

1.4. A Ré, inconformada interpôs em 2016.09.16 recurso da sentença, tendo igualmente arguido a sua nulidade, no requerimento de interposição de recurso.

Formulou, a terminar as suas alegações, as seguintes conclusões:

“A) Antecedendo a produção de prova, no inicio da Audiência de Discussão e Julgamento, foi proferido despacho que determinou a inversão do ónus de prova relativamente aos horários de trabalho praticados e horas de trabalho prestadas pelo A. compreendendo o período de 19/10/2010 e 31/10/2014”.
B) O despacho foi proferido em momento que não era, evidentemente patente, nem a impossibilidade, nem sequer a grave dificuldade da prova dos factos controvertidos, o que é pressuposto da aplicação de tal regime.
C) Acresce que o referido despacho não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a data de 19/10/2010, como inicio de produção de efeitos da inversão do ónus da prova, estando tal data em oposição com a data em que a R. foi notificada para proceder à junção de Documentos (09/05/2016)
D) Assim, o despacho recorrido é Nulo, ao prematuramente apreciar e conhecer de questão de que ainda não podia tomar conhecimento e por falta de fundamentação, nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do nº 1 do artº 615º do C.P.C, aplicáveis por força do disposto no nº 1 e alínea a) do nº 2 do artº1º do C.P.T.
E) Tendo a R. interposto Recurso do referido despacho em que invoca a Nulidade do mesmo, o Tribunal não se pronunciou, não proferindo qualquer despacho de admissão ou de rejeição e, de seguida, proferiu a Sentença recorrida.
F) Assim, o Tribunal, em violação ao disposto na alínea d) do nº 1 do artº 615º do C.P.C., aplicável ex vi do nº 1 e alínea a) do nº 2 do artº 1º C.P.T., não decidiu questões que deveria ter decidido, o que gera a Nulidade da Sentença.

II

G) Vem o presente recurso da douta sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. a pagar ao A. o trabalho suplementar prestado, bem como em dia de descanso semanal e em dia feriado, entre 19 de Outubro de 2010 e 31 de Outubro de 2014, de acordo com os acréscimos que ficaram determinados, deduzindo-se aquilo que já foi pago, tudo a apurar em liquidação de sentença.
H) A sentença recorrida fez incorrecta apreciação da matéria de facto, considerou indevidamente invertido o ónus da prova, efectuando errada interpretação e aplicação do Direito.
I) A Recorrente pretende seja alterada a decisão sobre a matéria de facto relativo aos pontos 6 e 7, os quais considera incorrectamente julgados, por os meios probatórios constantes dos autos, uma vez reapreciados, imporem decisão diversa.

III

J) No ponto 6 e 7 dos factos assentes, assentes por via de inversão do ónus da prova, consta:
“6–O A. cumpriu os seguintes horários de trabalho…..
7–O A. prestou trabalho em dia de descanso semanal nos anos e meses a seguir descritos:...”
K) Competia ao A. alegar e provar os horários de trabalho e as horas de início e termo da prestação de trabalho em cada dia, o que não logrou fazer.
L) Do depoimento da única testemunha ouvida (...), nada se apurou, constando em sede de fundamentação da sentença que a testemunha nada acrescentou à descoberta da verdade.
M) Da prova documental junta pelo Autor, que foi devidamente impugnada, nada se pode concluir, quer quanto a horários praticados, quer quanto a às horas de início e termo da prestação de trabalho em cada dia.
N) Assim, a resposta correcta acerca do que consta nos pontos 6 e 7 deveria ser NÃO PROVADO.
O) A sentença recorrida ao decidir diferentemente violou o disposto no nº 4 do artº 607º do C.P.C., impondo-se a revisão da decisão tomada, nos termos do artº 662º do C.P.C., respondendo-se quanto aos factos não provados contra o A. conforme preceitua o artº 414º do C.P.C.
P)–Igual efeito decorrerá pela circunstância de não se verificarem os requisitos, nem haver fundamento legal para aplicação das regras da inversão do ónus da prova.
Q) Ainda assim, sem conceder, se dirá que a R. apenas foi notificada para proceder à sua junção dos documentos cuja junção lhe foi determinada em 09/05/2016, isto é, aquando da notificação do Despacho Saneador pelo que o período a considerar seria entre 08/05/2011 e 31/10/2014, e não a partir de 19/10/2010.
R) A inversão do ónus de prova sobre um período temporal em que a R. não tinha qualquer dever legal de conservação de tais documentos (superior a 5 anos) é inteiramente contrário ao requisito exigido pelo regime da inversão de ónus de prova, já que nem sequer a título de negligência a atitude omissiva (não conservação dos documentos) lhe pode ser imputada.

III

S)Também sob o ponto de vista jurídico a sentença recorrida merece censura, por aplicação incorrecta, designadamente, do disposto no nº 1 do artº 342º, nº 2 do do artº 344º do C.C., nº 414º, nº 2 do artº 417º, artº 429º e artº 430º do C.P.C
T) A sentença recorrida, sem qualquer fundamento e sem observar os requisitos que devem nortear o Instituto da inversão do ónus da prova, comummente aceites pela Jurisprudência, entendeu como provados factos que o Autor não logrou provar.
U) Nos termos do disposto no nº 2 do artº 344º do Código Civil, há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.
V) Nos termos do disposto no nº 2 do artº 417º do C.P.C. aqueles que recusem a colaboração devida para a descoberta da verdade serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercivos se forem possíveis e se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do artº 344º do Código Civil.
W) Das citadas disposições legais decorre que o Instituto da inversão do ónus da prova não opera automaticamente, exigindo a verificação cumulativa de dois pressupostos: que a prova de determinada factualidade se tenha tornado impossível de fazer e que o comportamento seja imputável a título doloso.
X) O despacho no qual se decidiu a inversão do ónus de prova não indica qualquer acto da R. do qual se possa inferir qualquer atitude culposa ou dolosa em não apresentar os documentos.
Y) O facto de a R., não deter em seu poder os documentos cuja junção lhe foi determinada não implica automaticamente a aplicação do regime de inversão do ónus de prova.
Z) A R. não foi sequer advertida que a não junção dos referidos documentos teria como consequência a inversão do ónus da prova
AA) A R. não se recusou a entregar os documentos.
BB) Por não ter tais documentos em seu poder, a R. justificou a sua não entrega, o que não mereceu qualquer reparo ou oposição, nem por parte do Tribunal, nem por parte do A., que se manteve em silêncio aceitando e conformando-se com as justificações apresentadas,
CC) A declaração da R. afasta a possibilidade da valoração probatória do seu comportamento; nem a livre apreciação (negativa) do comportamento omissivo, nos termos do artº 430º do C.P.C., nem a inversão do ónus da prova, poderão ocorrer se o notificado declarar que não possui o documento.
DD) O Autor juntou prova documental, arrolou 2 testemunhas e prescindiu do depoimento de 1 testemunha.
EE) Revelou ainda o A. em depoimento de parte possuir outros elementos de prova, precisamente os documentos cuja junção foi determinada à R., como resultou do seu depoimento de parte, para além de outros meios de prova de que poderia ter requerido, designadamente prova testemunhal que poderia ter arrolado.
FF) Pelo que a falta de junção de documentos por parte da R. não obstou a que o R. se socorresse ou se pudesse socorrer de outros meios de prova que estavam à sua disposição e que inclusive revelou ter em seu poder.
Termos em que Deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por douto Acórdão que considerando a acção totalmente improcedente, absolva a Recorrente.”
Respondeu o A. pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida.

Concluiu do seguinte modo:

“1.
O A. intentou acção contra a R. pedindo que a R. seja condenada a pagar ao A. a quantia de € 26.481,65, acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano desde a citação da R. e até integral pagamento.

2.
Alegou em suma, que trabalhou para a R. por contrato de trabalho e que prestou, a mando e prévia determinação da R., trabalho suplementar diurno e noturno, trabalho em dia feriado e de descanso semanal ( folga ) conforme as escalas que a R. lhe fixava, que não lhe foi pago, bem como a R., não lhe concedeu ou pagou o descanso compensatório a que tinha direito. Reconhece que a R. já lhe pagou parcialmente € 3.978,89, pelo que ainda lhe deve € 22.502,76

3.
O A. prestou trabalho suplementar para além das 8 horas diárias.
Entre os meses de Outubro de 2010 a Outubro de 2014 inclusive, o A. cumpriu os horários de trabalho e as escalas referidas no art. 7º da p.i. – ponto 6 da matéria de facto provada

4.
Conforme provado, o A. prestou trabalho para a R., entre Janeiro de 2010 e Outubro de 2014. Parte dele foi executado para além do período normal de trabalho de 40 horas, outro em dias descanso semanal ou feriado, outro ainda em horário nocturno.

5.
Em conformidade com a cláusula 23ª do CCT, o trabalho suplementar prestado dá direito a um acréscimo de 50% na 1ª hora e de 75% nas horas subsequentes, se forem diurnas e de 100% se for noturno.

6.
Considera – se período de trabalho noturno o que medeia entre as 21 horas de um dia e as 6 horas do dia seguinte – clãs. 24ª nº1 do CCT

7.
Concluindo, tem a R. de ser condenada a pagar, a titulo de trabalho suplementar 1ª hora, trabalho suplementar restantes horas, trabalho suplementar nocturno, trabalho em dia feriado e trabalho prestado em dia de descanso semanal, de acordo com o que foi decidido na sentença.

8.
Provou – se que entre os anos de Outubro de 2010 e Outubro de 2014 inclusive, o A. cumpriu os horários de trabalho e as escalas referidas no artigo 7º da p.i., onde são trabalhados vários dias feriados.

9.
Também provou – se que entre Outubro de 2010 a Outubro de 2014 inclusive, o A. trabalhou cumprindo as escalas de serviço determinadas pela R. que eventualmente abrangiam vários feriados obrigatórios .

10.
Conclui – se que o A. trabalhou em dias feriados, os quais serão pagos com o acréscimo previsto no CCT aplicável.

11.
Nos dias feriados em que o A. trabalhou para além do período correspondente a um dia completo de trabalho, 8 horas, aplicar – se – á, além do estabelecido nos números anteriores, a remuneração por trabalho suplementar, nos termos da cláusula 25ª, nº 3 do CCT

12.
Ficou provado que o A. trabalhou em dias de folga, dias esses que têm que ser pagos de acordo com a cláusula 25ª do CCT aplicável, tal como consta da sentença recorrida.

13.
A douta decisão recorrida que condenou a Ré é pois de manter na sua totalidade porque a única conforme com o Direito aplicável.»

1.5. O recurso foi admitido por despacho de fls. 298, vindo a ser-lhe fixado efeito suspensivo por força da caução prestada a fls. 310.

1.6.Recebidos os autos nesta Relação e devolvidos à 1.ª instância a fim de ali ser proferido despacho sobre a admissão do primeiro recurso interposto, veio este a ser admitido pelo despacho de fls. 323, no qual o Mmo. Juiz a quo igualmente sustentou não se verificar a nulidade arguida naquele recurso.

1.7. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que conclui pela confirmação da decisão recorrida.

1.8. Notificadas as partes, veio a recorrente responder, mantendo a sua pretensão no sentido da procedência do recurso.

1.9. Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.                                                                                                  *

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal prendem-se com a análise:
1.ª - da admissibilidade do recurso intercalar interposto em 2016.06.20 do despacho proferido no início da audiência;
2.ª - da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
3.ª - da verificação dos pressupostos para a inversão do ónus da prova;
4.ª – da impugnação da matéria de facto quanto aos factos 6. e 7. elencados na sentença;
5.ª - de saber se o A. tem direito a retribuição pelo trabalho suplementar prestado além da retribuição que lhe foi paga pela R. no decurso do contrato.
*

3. Da admissibilidade do recurso intercalar autónomo interposto em 2016.06.20 do despacho proferido no início da audiência

A R. interpôs recurso intercalar do despacho proferido pela Mma. Juiz a quo no início da audiência de discussão e julgamento de 8 de Junho de 2016 antes da produção de prova, despacho que determinou a “inversão do ónus de prova relativamente aos horários de trabalho praticados e horas de trabalho prestadas pelo A. compreendendo o período de 19/10/2010 e 31/10/2014” (despacho de fls. 182-183), arguindo também a nulidade do mesmo.

O tribunal a quo admitiu este recurso (despacho de fls. 182-183), não especificando a hipótese legal o incluía [qual dos números e alíneas (sendo o n.º 2) do artigo 79.º-A do Código de Processo do Trabalho].

Contudo, uma vez que, nos termos do n.º 5 do art.º 641.º do Código de Processo Civil, o despacho que admite o recurso não vincula este tribunal, cabe apreciar a questão prévia que se nos suscita a este propósito.

Ao caso é aplicável o Código de Processo do Trabalho com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 295/2009, de 13 de Outubro.

O artigo 79.º-A, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, dispõe que “[d]a decisão do tribunal de 1.ª instância que ponha termo ao processo cabe recurso de apelação”.

De acordo o n.º 2 do mesmo preceito, cabe ainda recurso de apelação das decisões do tribunal da 1.ª instância contempladas as nas suas várias alíneas que não põem termo ao processo, sendo que uma das hipóteses de recorribilidade imediata é a dos casos previstos na alínea d), do n.º 2 do artigo 644.º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, por remissão da alínea i) do artigo 79.º-A, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho [remissão que se entende dinâmica face à publicação de um novo Código de Processo Civil sem a concomitante alteração do articulado do Código de Processo do Trabalho que remetia para o artigo 691.º da lei processual civil ora revogada].

É justamente este preceito que é invocado pela recorrente para justificar a interposição imediata de recurso de apelação (fls. 187), dispondo o mesmo que cabe recurso de apelação do “despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova”.

Ora, ao analisar no despacho de fls. 182-183 a resposta da R. à notificação para junção de documentos e ao determinar, segundo a avaliação que fez da conduta processual da R., a inversão do ónus da prova, o Mmo. Juiz a quo manifestamente não admitiu, nem rejeitou um meio de prova, muito menos o fazendo quanto a qualquer articulado.

Não se enquadra pois o despacho interlocutório que é objecto do primeiro recurso na hipótese legal invocada pela recorrente.

O artigo 79.º-A, n.º 2, do CPT, prevê nas suas diversas alíneas, outras situações em que cabe recurso de apelação relativamente a decisões judiciais que não põem termo ao processo, mas a decisão agora em causa não se enquadra igualmente em qualquer delas, pois que manifestamente não é: uma decisão que aprecie o impedimento do juiz (alínea a); uma decisão que aprecie a competência do tribunal (alínea b); uma decisão que ordene a suspensão da instância (alínea c); um despacho que exclua uma parte do processo ou que constitua, quanto a ela decisão final, nem uma decisão final proferida em sede de incidente de intervenção de terceiro ou de habilitação (alínea d); uma decisão prevista no artigo 98.º-J, n.º 3, alínea a) do CPT (alínea e); um despacho que recuse a homologação de acordo (alínea f); um despacho proferido depois da decisão final (alínea g); uma decisão cuja impugnação com a decisão final seria absolutamente inútil (alínea h); um despacho saneador que, sem por termo ao processo, decida do mérito da causa, uma decisão que aplique uma multa ou comine outra sanção processual, que ordene o cancelamento de qualquer registo, que não admita um incidente ou que lhe ponha termo ou um despacho que respeite a providência cautelar (os demais casos previstos no artigo 644.º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, por remissão dinâmica da alínea i) do artigo 79.º-A, n.º 2 do CPT).

O primeiro recurso interposto não encontra, assim, acolhimento nos n.ºs 1 e 2 do artigo 79º-A do Código de Processo do Trabalho, mas no seu n.º 3, nos termos do qual “[a]s restantes decisões proferidas pelo tribunal de instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final”.

A sua interposição foi, pois, extemporânea em 2016.06.20, por ser o respectivo despacho insusceptível de apelação autónoma e imediata, pelo que não se admite o tal recurso.

Deve contudo dizer-se que esta não admissão não terá qualquer relevo em termos materiais no processo na medida em que no recurso que a R. depois veio a interpor da decisão final, que se apreciará subsequentemente, não deixou de impugnar também o despacho interlocutório que determinou a inversão do ónus da prova (proferido a fls. 182-183) e que constituiu seu antecedente lógico. Aliás, é essencialmente no desacerto deste despacho que a recorrente funda a censura que dirige à sentença, o que será
objecto de oportuna apreciação.
*

4. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

A recorrente invoca já na apelação interposta da sentença em 2016.09.16 a nulidade consistente em ter o tribunal proferido a decisão final sem se ter pronunciado sobre o recurso que antes a R. interpusera do despacho de 8 de Junho de 2016 em que se determinou a inversão do ónus da prova, não proferindo qualquer despacho de admissão ou de rejeição deste.

Segundo alega, o tribunal, em violação ao disposto na alínea d) do nº 1 do artº 615º do C.P.C., aplicável ex vi do nº 1 e alínea a) do nº 2 do artº 1º C.P.T., não decidiu questões que deveria ter decidido, o que gera a nulidade da sentença.

É indiscutível que o tribunal a quo não havia proferido despacho de admissão ou rejeição do recurso interlocutório interposto quanto proferiu a sentença.

Tal foi aliás notado logo no despacho liminar proferido nesta Relação quando recebidos os autos (fls. 318), mostrando-se colmatada tal falta com a prolação ulterior na 1.ª instância do despacho que se pronunciou quanto à nulidade arguida na apelação interlocutória – no sentido de nada haver a suprir – e admitiu esta (fls. 323).

Mas alegando deste modo, apenas mostra o seu inconformismo com o facto de não se ter apreciado o seu requerimento de interposição de recurso interlocutório – como se imporia nos termos prescritos no art, 641.º do Código de Processo Civil – o que, manifestamente, não pode considerar-se causa de nulidade da sentença, por não constituir um qualquer vício intrínseco desta, nem constar do elenco do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Trata-se, sim, da imputação de um desvio ao formalismo processual seguido na tramitação que antecedeu a sentença, que só poderia ser encarado na perspectiva de nulidade de processo e não do ponto de vista de nulidade da sentença ou nulidade da decisão, cujas causas se encontram taxativamente enunciadas na lei.

As nulidades processuais devem ser suscitadas perante o tribunal em que as mesmas foram cometidas e, caso o requerente se não conforme com a decisão proferida sobre o requerimento de arguição de nulidade, desta caberá recurso, nos termos gerais, pelo que a apreciação, em recurso, de uma alegada nulidade processual prescrita no artigo 195.º do Código de Processo Civil pressupõe que a mesma foi previamente arguida perante o tribunal a quo, e por este decidida, o que não ocorreu.

No caso vertente, consubstanciando a alegação da recorrente a arguição de uma nulidade da tramitação do processo – que aliás se mostra já sanada – e não padecendo a decisão final de que recorre de qualquer um dos vícios previstos no artigo 615.º do CPC, não procede a invocada nulidade da sentença.
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5. Da verificação dos pressupostos para a inversão do ónus da prova

5.1. Analisadas as conclusões da apelação da sentença, verifica-se que uma grande parte das mesmas se reporta ao erro de direito consistente em, na perspectiva da recorrente, ter o Mmo. Juiz a quo procedido a uma aplicação incorrecta do instituto da inversão do ónus da prova, erro que tem a sua raíz na decisão de 8 de Junho de 2016, sendo certo que esta é expressamente questionada na apelação interposta em 2016.09.16 que ora apreciamos.

Nos termos do preceituado no artigo 79.º-A, n.º 4 do Código de Processo do Trabalho, no caso de impugnação de decisões interlocutórias no recurso da decisão final, “[o] tribunal só dá provimento à impugnação conjuntamente com a decisão final, quando a infracção cometida possa modificar essa decisão ou quando, independentemente desta, o provimento tenha interesse para o recorrente”.

Idêntico regime estabelece o artigo 660.º do Código de Processo Civil, o que bem se compreende na medida em que apenas faz sentido conceder provimento à impugnação de qualquer decisão interlocutória se tal interferir na decisão final ou se, em alternativa, for visível um interesse processual autónomo no provimento[1].

No caso em análise, verifica-se uma evidente relação de prejudicialidade entre a apreciação recursória de ambas as decisões – o despacho de 8 de Junho de 2016 e a sentença de 1 de Agosto seguinte – na medida em que a primeira determinou em grande medida a decisão de facto nos termos em que a mesma foi proferida (pois os pontos 6. e 7. da decisão de facto ficaram assentes por via da inversão do ónus da prova, como expressamente é dito na motivação da decisão de facto) e, naturalmente, determinou também a decisão de direito que naqueles factos apurados se fundou.

Pelo que, a ter havido uma decisão incorrecta quanto à determinação da inversão do ónus da prova, tal inquina necessariamente o resultado da lide.

Impõe-se por isso, logicamente, a apreciação da impugnação da decisão interlocutória previamente à apreciação da impugnação da decisão final (de facto e de direito), que se mostra estreitamente dependente daquela e pode mesmo vir a considerar-se por ela prejudicada, caso a impugnação da decisão interlocutória mereça provimento.

Vejamos pois.

5.2. O despacho proferido no início da audiência de discussão e julgamento, em 8 de Junho de 2016, proferido após ser a R. notificada para juntar os relatórios de ocorrência e os registos das horas de trabalho prestadas pelo A. e ter a mesma apresentando a justificação constante do requerimento de fls. 179, decidiu, em suma:

- quanto aos relatórios de ocorrência, cuja existência a lei não exige, aceitar como boa a explicação adiantada pela Ré para os não apresentar;
- quanto aos horários de trabalho praticados e horas de trabalho prestadas pelo A. no período anterior a 19 de Outubro de 2010, encontrar-se o mesmo “prejudicado face à inexistência de documento idóneo como  previsto no artigo 377º, n.º 2 do Código do Trabalho”;
- quanto aos horários de trabalho praticados e horas de trabalho prestadas pelo A. no período compreendido entre 19 de Outubro de 2010 e 31 de Outubro de 2014, determinar a inversão do ónus da prova ao abrigo do disposto no artigo 344º, n.º 2 do Código Civil, fundando a sua decisão nas circunstâncias de o artigo 202º, n.º 4 do Código do Trabalho exigir que os registos do trabalho suplementar sejam mantidos pelo empregador durante pelo menos 5 anos e de, ao não cumprir com esta exigência, a Ré ter tornado “difícil, se não impossível, a prova do trabalho efectivamente prestado pelo seu trabalhador aqui Autor.”

É este terceiro segmento do despacho proferido que está em causa no presente recurso.

5.3. Em relação ao registo dos tempos de trabalho e do trabalho suplementar e ao direito ao pagamento deste, relevam os artigos 202.º, 226.º, 231.º e 268.º do Código do Trabalho de 2009.

De acordo com os citados preceitos, o empregador deve manter, durante cinco anos, um registo de onde conste os tempos de trabalho (com indicação das horas de início e termo do tempo de trabalho, incluindo as interrupções ou intervalos), bem como deve manter, também durante cinco anos, um registo do trabalho suplementar que seja prestado pelo trabalhador.

Porque constitutivo do direito ao pagamento de que se arroga titular, é ao trabalhador que compete o ónus da prova dos factos integradores da alegada prestação de trabalho suplementar e de que esse trabalho suplementar prestado foi prévia e expressamente determinado pela R., ou realizado de modo a não ser previsível a oposição desta (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
 Apenas por via de uma (eventual) inversão do ónus da prova pode caber ao empregador o ónus de provar que o trabalhador não prestou o trabalho suplementar que alega, inversão que apenas pode ter lugar no quadro do disposto no artigo 344.º, n.º 1, do Código Civil ou do nº 2 do citado preceito, conjugado com o 417.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, este por remissão do artigo 430.º do mesmo código.

De acordo com o citado artigo 430.º, que se segue ao artigo 429.º do Código de Processo Civil – que rege sobre a notificação de uma parte para apresentar determinado documento a requerimento fundamentado da parte contrária – “[s]e o notificado não apresentar o documento, é-lhe aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 417.º”.

O n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, por seu turno, estabelece que “[a]queles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do artigo 344º do Código Civil”.

Estas disposições não permitem que o tribunal sancione drasticamente com a inversão do ónus da prova a recusa ou falta de justificação de apresentação de documentos, apenas lhe permitindo que o faça se se verificarem os pressupostos da inversão do ónus da prova estabelecidos na lei civil.

Nos termos do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil “[h]á também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (…)”.

Para que ocorra a inversão do ónus da prova de harmonia com o nº 2 do citado artigo 344.º, é assim necessário que, cumulativamente: em primeiro lugar, a não junção da documentação determinada tenha tornado impossível a prova ao onerado (não sendo suficiente para o efeito uma eventual maior dificuldade dessa prova[2]); e, em segundo lugar, que essa impossibilidade decorra de um comportamento culposo da parte.

5.4. Compulsados os autos, verifica-se que, na sequência da notificação que lhe foi feita no final do despacho saneador (com data de elaboração de 6 de Maio de 2016) para juntar os documentos solicitados pelo A na sua petição inicial (“registo do nº de horas de trabalho praticado pelo A., bem como os relatórios de ocorrências elaborados pelo A. de Janeiro de 2010 a Outubro de 2014”), a R. não juntou tais documentos e apresentou a justificação de fls. 179-180 que acima se transcreveu na qual informa, quanto aos registos de trabalho suplementar – os únicos documentos ainda em causa – que não pode dar cumprimento à requerida junção de documentos em virtude de não ter tais documentos em seu poder por ter “esgotado as possibilidades de procura de todos os documento solicitados, colocando a hipótese de alguns dos mesmos se terem extraviado ou até de nem sequer terem chegado aos seus serviços”, pelas razões ali invocadas

O A. não se pronunciou sobre esta explicação.

Ora, independentemente da bondade da justificação adiantada, entendemos ser manifesto que não dispunha o Mmo. Julgador a quo, no momento da prolação do despacho em causa, de elementos seguros e consistentes que lhe permitissem afirmar a verificação do primeiro requisito que a lei enuncia para que se proceda à inversão do ónus da prova, ou seja, que lhe permitissem afirmar que a não apresentação dos registos do trabalho suplementar por parte da R. impossibilitou ao A. a prova dos factos que alegou com vista ao seu reclamado pagamento.

Deve aliás dizer-se que a prestação de trabalho suplementar consubstancia matéria que não está sujeita a meio de prova vinculado, podendo antes fazer-se por qualquer outro meio de prova, pelo que a não junção dos registos em causa, só por si, não determina necessariamente a impossibilidade de prova da prestação de trabalho suplementar. Apenas quanto ao crédito por trabalho suplementar vencido há mais de cinco anos a lei exige a prova por documento idóneo (cfr. os artigos 38.º, n.º 2 da LCT, 381.º, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003 e 337.º, n.º 2 do Código do Trabalho de 2009).

Como tem constituído jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações, o mero incumprimento da obrigação de registo do trabalho suplementar não acarreta a inversão do ónus da prova a que se reporta o artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil[3], o mesmo devendo dizer-se relativamente à simples falta de apresentação pelo empregador do registo de trabalho suplementar efectuado[4].

Segundo tal jurisprudência, a obrigação de registo do trabalho suplementar que impende sobre o empregador visa permitir às autoridades competentes a fiscalização da sua prestação e da admissibilidade ao seu recurso pelo empregador, e não permitir ao trabalhador a prova do número de horas de trabalho suplementar prestado, prova esta que pode ser feita por qualquer outro meio de prova que legalmente seja admissível, razão por que a falta de registo do trabalho suplementar prestado pelo trabalhador, bem como a mera não apresentação dos registos efectuados, não determina, por si só, a inversão do ónus da prova quanto ao número de horas prestado, cumprindo ao trabalhador a prova deste facto nos termos gerais previstos no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.

No caso sub judice, o A. havia juntado à petição inicial prova documental e arrolado prova testemunhal, pelo que de forma alguma podia o tribunal assumir, maxime antes de se produzir esta prova pessoal, que a não junção dos registos do trabalho suplementar no período em causa impossibilitava ao A. a prova da prestação de trabalho suplementar.

Aliás, em boa verdade, o despacho agora em apreciação não assumiu expressamente que uma tal impossibilidade se verificava. Ao exarar que “a Ré tornou difícil, se não impossível, a prova”, o Mmo. Juiz da 1.ª instância assume a verificação de uma dificuldade na prova e alude apenas em termos hipotéticos à sua impossibilidade, quando esta constitui requisito expresso da aplicação do instituto previsto no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil. Perante os termos deste preceito, a maior dificuldade da prova não determina a inversão do ónus da prova.

Deve dizer-se que, como a recorrente, não descortinamos qual a razão por que o despacho sob censura fixou em 19 de Outubro de 2010 o termo inicial do período em que determina a inversão do ónus da prova[5].

Se o despacho faz depender a conclusão pela inversão do ónus da prova da obrigatoriedade da manutenção dos registos do trabalho suplementar (artigo 202.º, n.º 4 do CT), deveria efectivamente contar-se o período temporal dessa obrigatoriedade, e consequente injustificação da não junção, a partir da data da efectivação da notificação do empregador para os juntar e até ao termo dos 5 anos que a antecederam (no caso, atendendo à data da elaboração da notificação de 2016.05.06, e visto o preceituado no artigo 248.º do CPC, tem-se aquela notificação por efectuada em 2016.05.09, pelo que o período de tal obrigatoriedade iniciava-se, à data, em 2011.05.09).

Distinta é a questão de saber quando é que ao A., alegado titular do direito à retribuição por trabalho suplementar, passa a ser exigível o documento idóneo para a prova da sua prestação nos termos do preceituado no artigo 337.º, n.º 2 do Código do Trabalho. E aqui cremos que terá de ter-se como marco temporal a data em que o A. formula o pedido do seu pagamento, ou seja, a data da propositura da acção, passando a ser necessário aquele especial meio de prova no período que antecede os 5 anos contados até à data da formulação do pedido de pagamento de trabalho suplementar. In casu, sendo a petição inicial de 14 de Outubro de 2015, o documento idóneo passou a ser necessário para a prova do trabalho suplementar prestado anteriormente a 14 de Outubro de 2010.    

O que, significando que no período assinalado no despacho – entre 19 de Outubro de 2010 e 31 de Outubro de 2014, todo ele posterior à data a partir da qual a prova deixou de estar vinculada – o A. não se mostra adstrito à necessidade de lançar mão de documento idóneo para cumprir o ónus que sobre si impende de provar a prestação do alegado trabalho suplementar, implica, do mesmo passo, que nunca poderia ser determinada a inversão do ónus da prova.

Assim, ao ser proferido antes de se iniciar a produção de prova, na abertura da audiência de discussão e julgamento, o despacho sob censura que determinou a inversão do ónus de prova relativamente aos horários de trabalho praticados e horas de trabalho prestadas pelo A. no período compreendido entre 19 de Outubro de 2010 e 31 de Outubro de 2014 foi efectivamente proferido em momento em que não era evidentemente patente a impossibilidade (ou mesmo a grave dificuldade) da prova dos factos controvertidos, como é pressuposto da aplicação de tal regime.

Deve pois ser revogada a decisão intercalar de 8 de Junho de 2016.

5.5. O desenvolvimento da audiência de julgamento no errado pressuposto de que se verificava no caso a inversão do ónus da prova é, naturalmente, susceptível de influenciar o modo como se processou a produção da prova testemunhal e por depoimento de parte, bem como de afectar os termos e sentido da decisão final da acção que, expressamente, se alicerçou naquela inversão no que à decisão de facto diz respeito, com os inerentes reflexos na decisão de direito[6].

Assim, em consequência da procedência da apelação interposta quanto ao despacho interlocutório, a reapreciação da sentença final queda prejudicada na medida em que o erro decisório que afecta um dos passos que a antecedeu (o despacho de 8 de Junho de 2017) exerceu efectiva influência no resultado da lide – cfr. o artigo 660.º do Código de Processo Civil – inutilizando o processado ulterior.

 Nesta situação em que o recurso interposto da decisão interlocutória é decidido a favor do recorrente, como diz o Professor Miguel Teixeira de Sousa num post intitulado “Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado”, publicado em 21 de Janeiro de 2016 no blogue do IPPC[7], há que aplicar, por analogia, o disposto no artigo 195.º, n.º 2, Código de Processo Civil: “a procedência do recurso implica a inutilização e a repetição de todos os actos que sejam afectados por aquela procedência; entre esses actos inclui-se a sentença final”.

Mostra-se pois prejudicada a impugnação deduzida da sentença, quer quanto à impugnação da decisão de facto relativamente à matéria que ficou a constar dos factos 6. e 7. nela elencados, quer quanto à questão de saber se o A. tem direito a retribuição pelo trabalho suplementar prestado além da retribuição que lhe foi paga pela R. no decurso do contrato, impondo-se a anulação do processado que se desenvolveu após a prolação do despacho proferido nos autos a 8 de junho de 2016.
*

6. Tendo em consideração que, por um lado, se procedeu à apreciação efectiva da matéria do acerto da decisão interlocutória apesar de não admitido o recurso autónomo da mesma interposto, que, por outro, a impugnação desta decisão inserida no recurso da decisão final carece de autonomia adjectiva e que, ainda por outro, não se mostra por ora definido o decaimento das partes, determina-se que as custas sejam suportadas conforme vencimento final (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).                                                                                                     *

7. Decisão

Em face do exposto:

7.1. não se admite o recurso interposto em 2016.06.20 da decisão proferida no início da audiência de julgamento e documentada a fls. 182-183;

7.2. concede-se provimento à apelação deduzida da sentença no que concerne à impugnação nela dirigida àquela decisão intercalar que, por isso, se revoga e, consequentemente, anula-se todo o processado subsequente a fls. 182 (incluindo a sentença sob recurso), devendo no tribunal “a quo” proceder-se a nova audiência de discussão e julgamento, seguindo-se os ulteriores termos.

Custas conforme vencimento final.

Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, anexa-se o sumário do presente acórdão.


Lisboa, 17 de Maio de 2017


(Maria José Costa Pinto)
(Manuela Bento Fialho)
(Sérgio Almeida)


[1]Vide Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, Coimbra, 2016, pp. 238-239
[2]Ensina Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979,  p. 203), que a dificuldade da prova de um facto não altera a repartição do ónus da prova.
[3]Vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2008.11.19 (Processo n.º 08S1871), de 2008.04.17 (Processo n.º 08S149), de 2009.05.20 (Processo n.º 08S3536), de 2012.07.11 (Processo n.º 1861/09.3TTLSB.L1.S1), e o Acórdão da Relação de Lisboa de 2011.12.15 (Processo n.º  1861/09.3TTLSB.L1), todos publicados in www.dgsi.pt.
[4]Vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2016.04.21 (Processo n.º 564/10.0TTLSB.L1.S1) e de 2017.02.22 (Processo n.º 988/08.3TTVNG.P4.S1) e o Acórdão da Relação do Porto de 2016.06.20 (Processo n.º 335/15.8T8AVR.P1) e de 2016.03.14, Processo:574/13.6TTMAI.P1, publicados no mesmo sítio.
[5]Já o termo final, 31 de Outubro de 2014, coincide com o limite do pedido deduzido.
[6]Vide a este propósito Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, Coimbra, 2016, pp. 180-181 e 238-239.
[7]In https://blogippc.blogspot.pt. O escrito reporta-se à interposição autónoma de dois recursos (um recurso de decisão imediatamente recorrível e um ulterior recurso de decisão final), mas cremos que a sua doutrina é inteiramente aplicável nesta hipótese de recurso da decisão intercalar apenas impugnada juntamente com a decisão final, no caso de procedência do recurso da decisão intercalar (no caso de o recurso interposto da decisão intercalar ser decidido contra o recorrente, por improcedência da tese deste, não se coloca a questão da suspensão do caso julgado da sentença na medida em que ambos os recursos são decididos num só acórdão e este tem necessária e logicamente em consideração na decisão da impugnação da decisão final a decisão que no mesmo texto conferiu à impugnação da decisão interlocutória). Também à luz do Código de Processo Civil de 1961, na redacção que antecedeu a reforma dos recursos de 2007 (introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24-8), se acolhia a perspectiva da anulação do processado em situações similares à presente. Segundo Fernando Amâncio Ferreira, “[s]ubindo com a apelação os agravos que se encontravam retidos aguardando essa subida, devem todos eles, em princípio, ser julgados e pela ordem da sua interposição” (a lei era então clara quanto a este aspecto – artigo 710.º do CPC) e, no caso do agravo merecer provimento e a infracção cometida tiver influência no exame ou decisão da causa, “dá-se provimento ao agravo, anula-se tudo o que se processou após a decisão de que foi interposto o recurso e considera-se prejudicado o conhecimento do objecto da Apelação”. O autor invocava o artigo 201.º do Código de Processo Civil então vigente (in Manual de Recursos em Processo Civil, 5.ª edição, 2004, p. 204).