Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1130/22.3YRLSB-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
ACÇÃO ESPECIAL DE ANULAÇÃO
FUNDAMENTOS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXCEPÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.–A acção especial de anulação de decisão arbitral visa identificar vícios graves de natureza processual, susceptíveis de revestir influência determinante na resolução do litígio, como seja a nulidade por violação do princípio da exaustão na fundamentação da decisão.

2.–Na verificação da omissão de pronúncia não importa aferir da bondade jurídica do juízo emitido pelo tribunal arbitral acerca da sua incompetência para conhecer da excepção, posto que tal não se equivale à pronúncia sobre a inconstitucionalidade material das disposições legais que constituem a ratio decidendi do acórdão arbitral.

3.–Não se descortina, aliás, razão legal que exclua os tribunais arbitrais da aplicação do princípio do direito constitucional português do acesso directo dos tribunais à Constituição, no sentido de que todos os tribunais devem verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis, e, recusar a aplicação das normas que considerem inconstitucionais, sendo que os tribunais arbitrais exercem funções jurisdicionais, dentro dos limites e pressupostos definidos na lei ordinária.

4.–De harmonia com as regras de direito ordinário, a competência da Comissão Arbitral para dirimir o litígio que divide as partes, relativo ao pagamento das compensações pela formação de jogador de futebol, estende-se por inerência à apreciação da desconformidade entre as normas de direito que o caso convoca e a Constituição da República Portuguesa.

5.–A excepção da inconstitucionalidade material submetida à apreciação do tribunal arbitral comportará, na eventual procedência, reflexos jurídicos sobre o desfecho do litígio; o tribunal arbitral ao não ter apreciado a excepção violou os deveres de pronúncia, constituindo razão da anulação integral do acórdão arbitral - artigo 46º, n.º 3, subalínea v) da alínea a) e nº7 da LAV.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 7ªSecção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.–RELATÓRIO


1.–Da Acção


“ … Sociedade Desportiva de Futebol, SAD demandou Clube de Futebol …, pedindo a anulação do acórdão arbitral proferido em 28 de dezembro de 2021 pela Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol.  [1] 

Em fundamento síntese, alegou que o ora Réu promoveu a constituição da Comissão de Arbitragem e reclamou a condenação da ora Autora no pagamento de compensação, devida por direitos de formação referentes ao jogador profissional de futebol …., que o tribunal atendeu parcialmente, condenando a Autora a  pagar ao Réu a quantia de € 2.668,66, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal contabilizados desde o dia 11/10/2020, sendo € 2.615,19 deste  2% (€ 53,57) destinado ao fundo de promoção do futebol juvenil.

No processo arbitral a Autora apresentou oposição, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade material do art. 34.º da Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, quanto à figura da compensação por direitos de formação, e subsidiariamente, assim não se entendendo, invocou a inconstitucionalidade material dos arts. 39.º, 40.º e 50.º do Regulamento do Estatuto, da Categoria, Inscrição e Transferência de Jogadores.

Sucede que, o tribunal arbitral não se pronunciou sobre as excepções, e caso as tivesse conhecido, o desfecho do processo poderia ter sido diferente; pelo que, verificando-se omissão de pronúncia, pede a anulação integral do acórdão arbitral.
*

Citado o Réu, sob as formalidades legais, não contestou.

Estão   juntas as necessárias peças do processo arbitral.                                                                                                                     
Terminados o articulados, não havendo lugar à produção de outra prova, os autos prosseguem a tramitação do recurso de apelação com a necessárias adaptações- al. d),do n.º 2 do art. 46º da LAV.[2]

O tribunal da Relação de Lisboa é o competente e, a acção é tempestiva – artigo 46º, nº1, e al) g) e nº6 da LA .[3]  
* 
                                                     
Corridos os Vistos, cumpre decidir.

2.–Tema decisório  
Apreciar e decidir se, o acórdão proferido pela Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol enferma do vício de omissão de pronúncia sobre as excepções da inconstitucionalidade suscitadas, que determine a anulação por este tribunal.

II.–FUNDAMENTAÇÃO

A.–Os Factos
A matéria factual a atender consta do relatório, sem embargo da conjugação e transcrição do conteúdo das peças que se revele útil.
    
B.–Do Direito
 
1.–Os tribunais arbitrais; considerações gerais
Começamos por recordar que a ordem jurídica constitucional portuguesa contempla a existência de tribunais arbitrais -  artigo 209.º, nº2, da Constituição da República Portuguesa- e, a arbitragem voluntária tem o seu quadro legal previsto na Lei 63/2011, de 14 de Dezembro (LAV). [4]

Na situação em juízo as partes submeteram o litígio que as opõe à apreciação da Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, que proferiu acórdão em 28.12.2021, no qual acolheu parcialmente a pretensão apresentada pelo Futebol Clube (…), condenando o  (…) SAD a pagar àquele  quantia pecuniária , a título de compensação pela formação do jogador de futebol profissional (…). 
    
A Autora (… SAD) argumenta que o tribunal arbitral não se pronunciou acerca das excepções da inconstitucionalidade, constituindo fundamento da anulação do acórdão, conforme se estatuiu na parte final da subalínea v) da alínea a) do n.º 3 do art.º 46.º da LAV. 

Apreciando.

A propósito da concepção e tramitação do processo de arbitragem voluntária, Manuel Pereira Barrocas refere- “O processo arbitral assenta em princípios fundamentais próprios contidos, no caso da lei portuguesa, no artº 30 nº 1 da PAV, que não se confundem, embora possam parcialmente coincidir, com os que são próprios do processo civil. A sua aplicação prática, porém, obedece às características da arbitragem, designadamente ao seu menor formalismo e à desejada eficácia em vista do seu desígnio final que é a resolução do litígio.” (…) “ Apenas a analogia com o regime legal do processo civil pode, eventual e muito parcimoniosamente, ser útil ao processo arbitral como repositório de conceitos técnico-científicos e, eventualmente, como exercício analógico, não obrigatório parar o árbitro do preenchimento de uma lacuna legal verificada num processo arbitral. Não é, assim, admissível a invocação de uma norma legal do processo civil para fundamentar uma invalidade do processo ou do próprio laudo arbitral. E o mesmo é relevante para a exclusão do seio da arbitragem de princípios processuais que não sejam os que são próprios do processo arbitral (sobre os princípios fundamentais do processo arbitral, ver o artº 30º nº 1 da LAV).  (…..) Qualquer interferência de outros valores e formas processuais estranhas à arbitragem, seguramente que desequilibram a estrutura e os alicerces do edifício arbitral e, seguramente, a sua eficiência. (..)convém ainda salientar que o carácter profundamente restritivo dos fundamentos legais que habilitam a pedir ao tribunal estadual que anule a decisão proferida pelo tribunal arbitral constitui precisamente a afirmação da própria independência e autonomia da jurisdição arbitral. ”[5]

Especifica ainda o mesmo autor que” (…) é muito importante observar, face aos fundamentos tipificados da acção de anulação e ao facto de não existir recurso da sentença arbitral para os tribunais estaduais, salvo quando as partes nisso tenham acordado expressamente (artigo 39º nº 4), que a interpretação ou aplicação erradas ou a não observância de uma norma legal, imperativa ou supletiva, não constitui, só por si, fundamento de anulação de uma sentença arbitral. Este efeito anulatório só pode ser obtido desde que seja pertinente e provado qualquer dos fundamentos previstos no artigo 46º número 3, e apenas este.”[6]

Elucida neste domínio Mariana França Gouveia “Na arbitragem, o Estado de Direito demonstra-se precisamente através de imposições processuais que estabelece. São princípios básicos que têm de ser cumpridos para que uma decisão possa ser reconhecida judicialmente (no nosso ordenamento jurídico, para que possa não ser anulada).” [7]

Retira-se, pois, que a acção especial de anulação visa identificar vícios graves de natureza processual susceptíveis de revestir influência decisiva na resolução do litígio submetido ao tribunal arbitral. [8]

2.–A omissão de pronúncia
    
Dispõe a parte final da subalínea v) da alínea a) do n.º 3 do art.º 46.º da LAV: 3 - A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se: a) A parte que faz o pedido demonstrar que: (…) v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.”

O legislador elegeu entre os fundamentos anulatórios da decisão arbitral, a violação do princípio da exaustão, i.e, o dever de o juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, exceptuadas as questões, quanto ao pedido, à causa de pedir ou às excepções, cuja apreciação se mostre prejudicada pela solução dada às outras, conforme dispõe o  artigo 608º, nº 2, do CPC,   e a qual é indutora da nulidade da decisão prevista no artigo 615º, al) d) do mesmo diploma legal.

Acresce que, como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo ‘’questões’’ não diz respeito aos argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às  concretas controvérsias centrais a dirimir.[9]

Revertendo ao processo arbitral objecto da acção anulatória.  

Na sua oposição o ora Autor alegou, que a legislação respeitante ao regime das compensações pecuniárias pela formação de jogador -   artigo 34.º da Lei 54/2017, de 14 de julho e artigos 39.º, 40.º e 50.º do R.E.C.I.T.J. da FPF- está ferida de inconstitucionalidade material, determinando a absolvição do pedido formulado pelo Futebol Clube ….
    
Em síntese, afirmou que “(…) O art. 34º da Lei n.º 54/2017 não restringe o direito ao trabalho com vista à salvaguarda de qualquer direito ou interesse constitucionalmente protegido, violando assim o art.18º, n.º 2 CRP, figurando-se assim como uma restrição inconstitucional a um direito fundamental. (….) O fundamento que habitualmente se apresenta para sustentar este sistema de compensação por formação é que o mesmo serve para encorajar e melhorar a formação dada aos jovens atletas. este propósito, o próprio A. recebe valores dos jogadores dos seus escalões de formação, ou pelo menos em alguns desses escalões. Para além das “inscrições e mensalidades”, os pais dos jovens atletas são frequentemente chamados a comparticiparem em diversas outras despesas, incluindo contribuir financeiramente para despesas como o equipamento e o transporte dos atletas, assim se exonerando o clube formador de tais encargos com a formação. Em segundo lugar, é notório que diversas entidades, como as autarquias locais, os governos regionais e a própria FPF atribuem subsídios aos clubes formadores, comparticipando na formação dos atletas e, consequentemente, reduzindo os encargos suportados pelo clube formador. Por outro lado, a formação ministrada por um clube formador a jogadores não se esgota em si mesma, isto é, os clubes formadores perseguem objetivos de êxito desportivo e de notoriedade, beneficiando, por essa via, da atividade do atleta em formação, que contribui para esse êxito e notoriedade. O art. 34º da Lei n.º 54/2017 acaba por proteger, portanto, no todo ou em parte, a realização de vantagens para os clubes formadores que não se justificam, ou não se justificam apenas, a título de contrapartida pela formação de atletas. (…) é manifesto que os direitos de formação não protegem nenhum bem constitucionalmente protegido, tanto assim que não se exige ao clube formador a comprovação do valor dos encargos que terá suportado com a formação do jogador. A norma contida no art.34º da Lei n.º 54/2017 é, portanto, inconstitucional, por impor um regime de compensação por direitos de formação que constitui uma restrição inadmissível ao direito constitucional ao trabalho, não podendo assim ser imposto ao jogador, nem à O. Está cumprido o primeiro e principal critério para a fiscalização da constitucionalidade: critério principal da normatividade, referente aos atos do poder público como atos de criação normativa em sentido amplo. Argui-se, nos termos anteriormente expostos, a inconstitucionalidade do disposto no art. 34º da Lei n.º 54/2017, e consequentemente a inexistência de uma fonte constitucionalmente válida para o direito a que o A. se arroga. (…). Subsidiariamente, na eventualidade de se entender que a referida norma não é inconstitucional, o que se prevê sem conceder e por mera cautela de patrocínio, mais escandalosa é ainda a inconstitucionalidade que fere o Regulamento do Estatuto, da Categoria da Inscrição e Transferência dos Jogadores da FPF para a época 2020/2021 (doravante, “RECITJ”), invocado pelo A. Num primeiro momento, há que referir desde já que a FPF tem o direito e dever de regulamentar os quadros competitivos da modalidade e ao exercício da ação disciplinar sobre todos os agentes desportivos sob a sua jurisdição, nos termos do art.13º/n. º1/g) e i) do DL n. º248-B/2008. No entanto, sendo os artigos 39.º, 40.º e 50.º do RECITJ de 2020/2021 normas secundárias face à do art. 34º da Lei n.º 54/2017, a inconstitucionalidade desta última norma importará a inconstitucionalidade das normas do Regulamento. Relativamente a este mesmo diploma, alude-se assim, especialmente, aos artigos 39.º, 40.º e 50.º, onde se regula o regime imperativo das compensações por direitos de formação, que violam gravemente o Direito ao Trabalho, nos termos do art. 58º CRP. Por serem normas que pressupõem uma imposição legal do regime de compensação em análise, desde já se aproveita toda a exposição que elaborámos supra, sendo essa mais que bastante para concluirmos também pela inconstitucionalidade das referidas normas deste Regulamento. Contudo, aqui o caso é mais grave, e vai para além da inconstitucionalidade tal como a retratámos relativamente ao art. 34º da Lei n.º 54/2017, como passaremos prontamente a demonstrar. Tal como se explicou, o fundamento que serve de base à teoria da compensação por direitos de formação é a de que esta tem o propósito de encorajar e melhorar a formação dada aos jovens atletas. (…) acresce que, segundo o art. 40º, n.º 2, do RECITJ, o valor da compensação a pagar pelo clube que profissionalize o jogador aos clubes formadores não pode exceder os valores estabelecidos na tabela publicada no Comunicado Oficial N.º 1 (…) ora, estes valores são patentemente inconstitucionais. (…) compare-se esta importância com o salário desse mesmo jogador. (…) assim esse jogador poderá auferir um salário anual inferior a € 9.310,00, ou em qualquer caso inferior a € 27.930,00. O clube que poderá pagar esses valores ao jogador pelo seu trabalho está sujeito a pagar até € 90.000,00 aos clubes formadores – os quais, como se viu, nem sequer têm de provar terem efetivamente despendido as quantias de direitos de formação que reclamam. Ao fixar valores elevadíssimos como aqueles que se encontram enumerados nos artigos 39.º, 40.º e 50.º do RECITJ, e na tabela que faz parte do Comunicado n.º 01 da época de 2020/21, extravasa-se qualquer parâmetro de proporcionalidade que devesse ser observado, atendendo às situações de legítima restrição de um direito fundamental, o que, de qualquer modo, não representa o caso sub judice. Como se sabe, um direito fundamental, p.e. o direito ao trabalho (art.58º CRP), apenas poderia ser restringido por uma lei ou disposição regulamentar que visasse acautelar um direito ou interesse constitucionalmente protegido, nos termos do art.18º CRP.( À ponderação relativa a este regime de compensação nem se aplicam os princípios da adequação ou da exigibilidade, já que este regime não visa acautelar qualquer direito ou interesse constitucionalmente protegido, o que por si só traduz a inconstitucionalidade deste regime quando restringe o Direito ao Trabalho (art.58º CRP). No entanto, se dúvidas houvesse, constata-se um evidente extravasar do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, sendo esta uma medida absurdamente excessiva, conforme se demonstrou supra (…) é, pois, de extrema importância a fiscalização constitucional do regime em causa, a qual cumpre todos os requisitos impostos para o processo de controlo constitucional. Em resumo: são inconstitucionais, por violação do direito constitucional ao trabalho, os arts. 39º, 40º e 50º do RECITJ da FPF, bem como a Tabela 9 que fixa o valor dos direitos de formação constante do Comunicado Oficial N.º 1 da FPF da época de 2020/2021.”

Acerca da matéria, o tribunal arbitral consignou  o seguinte : «  (…) Verifica-se, assim, a total insubsistência da tese de que o citado regulamento federativo, na redacção em causa e na parte em questão, está ferido de inconstitucionalidade orgânica, não podendo defender-se a reserva da competência da Assembleia da República para a fixação de regulamentação de natureza exclusivamente desportiva, em qualquer incidência noutras esferas jurídicas, nomeadamente na esfera laboral; A prolação do Regulamento desportivo aqui em causa emergiu de um poder regulador diverso daquele que o requerente invoca; Tal poder regulamentar fora claramente delineado pela Portaria de 12 de junho de 1986 do Ministro da Educação e Cultura, publicada no Diário da República, 2ª Série, n.º 140, de 12.06.1986, a qual dispunha que “ é da competência das federações desportivas nacionais regular as transferências dos praticantes amadores das respetivas modalidades” (…)”. O actual RCITJ, evidencia de forma, nessa parte ressalve, cristalina a norma habilitante, para a sua aprovação. Sem prejuízo, e, não obstante a pertinente alegação e formulação expendida pela Requerida, pelo que, a Comissão de Arbitragem da FPF não dispõe de competência material para se pronunciar sobre as invocadas exceções de inconstitucionalidade, o que se declara, sem prejuízo da Requerida, poder, querendo, lançar mão dos meios impugnatórios previstos em particular no CPTA.»  [10]

3.–A inconstitucionalidade material e o dever de pronúncia do tribunal arbitral 
  
Daqui decorre, melhor suportado na leitura integral das peças processuais, que a Comissão Arbitral não se pronunciou especificamente quanto às excepções da inconstitucionalidade material, em primeira linha, do artigo 34º da Lei n.º 54/2017, e subsidiariamente, dos artigos 39.º, 40.º e 50.º do RECITJ de 2020/2021, cuja inaplicabilidade fora suscitada pelo requerido.

Assim, após comentar uma questão de inconstitucionalidade orgânica do RECITJ da FPF, que afasta, vem a concluir e declarar a sua incompetência material para conhecer das questões de inconstitucionalidade.

Certo é que, para a verificação da omissão de pronúncia do tribunal arbitral que se cuida, não importa deslindar da bondade jurídica do juízo de incompetência afirmado, mas tão só a constatação de que a mesma não corresponde ou equivale à pronúncia sobre a inconstitucionalidade material concreta das disposições legais que constituem a ratio decidendi do acórdão arbitral. [11]  

Em respaldo, veja-se o propugnado no recente Acórdão do Tribunal Constitucional   n.º 159/2022, de 17 de fevereiro de 2022[12], tirado em caso análogo ao dos autos -  «  Independentemente, uma vez mais, de a análise que conduziu a comissão de arbitragem a essa conclusão dever ou não ser entendida como uma pronúncia para efeitos das normas relativas à sua impugnabilidade perante tribunais estaduais (e independentemente, bem assim, de essa análise exprimir ou não a leitura mais adequada dos preceitos de direito ordinário que delimitam aquela competência), o facto é que ela nunca equivalerá a uma pronúncia sobre as próprias questões de constitucionalidade. Tratadas na decisão recorrida foram apenas as questões relativas à existência de obrigação de pagamento de direitos de formação por parte de uma sociedade desportiva ao seu clube fundador (fls. 81-83) e ao cálculo do valor dos direitos de formação (fls. 83-83v.), as quais vinham indicadas nos pontos 76-93 e 94-105 da sua contestação (fls. 29v.-32). Já em relação às questões que integram o recurso de constitucionalidade (pontos 1-75 da contestação), a decisão recorrida, pesem embora alguns obiter dicta, limitou-se a afastar a sua competência material para conhecê-las, não tendo sido impugnada perante um tribunal estadual a questão da competência, por um lado, nem contendo também o recurso de constitucionalidade qualquer questão relativa à competência da comissão de arbitragem  cujo conhecimento por parte deste Tribunal pudesse sequer ser ponderado. Somente depois de determinada a questão da competência e de emitida a pronúncia sobre as questões de constitucionalidade pela instância devida poderia o Tribunal Constitucional, fiscalizando as normas aplicadas em conhecimento dessas mesmas questões, proferir um juízo passível de repercutir-se sobre a decisão então proferida em termos de impor a sua reforma.»

Ao que se sabe, as disposições legais em apreço não foram objecto de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Neste conspecto, o tribunal arbitral ao não ter apreciado a excepção invocada pelo requerido, violou os deveres de pronúncia a que se aludiu, e, por conseguinte, mostra-se preenchido o fundamento legal de anulação do acórdão arbitral. 

4.–A tutela jurisdicional estabelecida no artigo 20º da CRP
Sob outra perspectiva, a admitir que a conclusão extraída pela comissão de arbitragem no acórdão proferido , no sentido da sua incompetência material para conhecer da inconstitucionalidade, excluirá o dever de pronúncia concreta sobre a matéria, também se nos afigura que deverá prevalecer a omissão de pronúncia como fundamento de anulação. 
           
Na verdade, s.d.r, a comissão de arbitragem ao formular semelhante conclusão de incompetência, deixou por dizer, o essencial, qual é afinal a entidade jurisdicional competente para apreciar a matéria, segundo o seu entendimento.

Não se descortina, aliás, razão legal que exclua os tribunais arbitrais da aplicação do princípio do direito constitucional português do acesso directo dos tribunais à Constituição, no sentido de que todos os tribunais devem verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis, e, recusar a aplicação das normas que considerem inconstitucionais, e, os tribunais arbitrais exercem funções jurisdicionais, dentro dos limites e pressupostos definidos na lei ordinária.

Note-se, que constitui jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional, segundo a qual, a compatibilização entre o direito de acesso à Justiça (artigo 20º, da CRP) e a legitimação constitucional dos tribunais arbitrais (artigo 209º, n.º 2, da CRP) impõe uma garantia de não privação do direito de acesso aos tribunais comuns, com vista a um controlo das decisões arbitrais, de acordo com os limites que o legislador ordinário consagra. [13]

Ex abundati, os considerandos tecidos no acórdão arbitral, em ordem a afastar a inconstitucionalidade orgânica do referido Regulamento, não encerram fundamento bastante para excluir à sua jurisdição na apreciação da inconstitucionalidade das normas questionadas. De resto,  de harmonia com as regras de direito ordinário, a competência da Comissão Arbitral para dirimir o litígio que divide as partes, relativo ao pagamento das  compensações por formação de jogador de futebol, estende-se por inerência à apreciação da desconformidade entre as normas de direito que o caso convoca e a Constituição da República Portuguesa.[14]

A não se entender por essa forma, e no limite, impossibilitaria o Autor de suscitar a questão em sua defesa, comportando violação da tutela jurisdicional efectiva prevista no artigo 20º da CRP.   
Por último, no litígio análogo entre as partes e relativo à formação de outro jogador de futebol, o Tribunal da Relação de Lisboa concluiu, de igual modo, pela omissão de pronúncia daquela comissão arbitral .[15] 
*

Concluindo.
A excepção da inconstitucionalidade material submetida à apreciação do tribunal arbitral comportará, na sua eventual procedência, reflexos jurídicos sobre o desfecho do litígio; a omissão de pronúncia sobre a matéria constituiu razão da anulação integral do acórdão arbitral - artigo 46º, n.º 3, subalínea v) da alínea a) e nº7 da LAV.


III.–DECISÃO
 
Pelo exposto, acordam os Juízes em julgar a acção procedente e, em consequência, anula-se o acórdão arbitral.
As custas são a cargo do Réu.
Valor da ação: € 2 688,56.



Lisboa, 27.09.2022



ISABEL SALGADO
CONCEIÇÃO SAAVEDRA
CRISTINA COELHO



[1]No processo n.º 54/CA-2020/2021.
[2]Cfr., inter alia. Mário Esteves de Oliveira e outros in Lei da Arbitragem Voluntária, Comentada, Almedina, 2014, pág. 553/4.
[3]Lei da Arbitragem Voluntária- Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro.
[4]E entrou em vigor no dia 14 de março de 2012 (cf. respectivo art.º 6º); O seu artigo 1º, nº1 estabelece que “desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros”.
[5]In A RAZÃO POR QUE NÃO SÃO APLICÁVEIS À ARBITRAGEM NEM OS PRINCÍPIOS NEM O REGIME LEGAL DO PROCESSO CIVIL”, in ROA, Ano 75, Lisboa, Jul/Dez 2015, pág 625/30 e  Manual de Arbitragem, pág. 521.
[6]In Lei da Arbitragem Comentada, Almedina, 2013, pág. 171.
[7]In Curso de Resolução Alternativa de Litígios, pág. 259.
[8]Ressalvado o fundamento de anulação da sentença arbitral previsto na subalínea ii) da alínea a) do n.º 3 do art.º 46.º (o conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português).
[9]Cfr. José Lebre de Freitas in A Acção Declarativa Comum, 2000, pág 299; e, A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa in CPC anotado I, pág.753; na jurisprudência, inter alia, o Acórdão do STJ de 03-10-2017 no proc n.º 2200/10.6TVLSB.P1. S1 e o Acórdão do STJ de12-10-2017, proc n.º 235/07.5TBRSD.C1. S1, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça-Secções Cíveis, disponível open space.
[10]Pág 7e 8.
[11]Relacionado com o pressuposto amplamente reconhecido pela jurisprudência constitucional, segundo o qual, a fiscalização concreta da constitucionalidade só pode acontecer, desde logo, quando a norma cuja fiscalização é solicitada tiver efetivamente sido aplicada como ratio decidendi da decisão impugnada.
[12]Indicado pelo Autor; no Processo n.º 912/21 in TC Jurisprudência.
[13]Cfr., entre outros os Acórdãos do TC nº256/2012, de 23.05.2012 in TC Jurisprudência. 
[14]Correspondendo à eficácia do princípio da constitucionalidade em geral expresso no artigo 3º, nº3 do CRP.   
[15]Datado de  23-06-2022   No proc nº1128/22.1YRLSB-2, disponível in www.dgsi.pt.