Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
99/13.0GTCSC.L1-9
Relator: GUILHERMINA FREITAS
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
INJUNÇÃO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - A alteração introduzida no n.º 3, do art. 281.º, do CPP, pela Lei n.º 20/2013, de 21/2, não veio modificar a voluntariedade na aceitação dos deveres impostos, pressuposto sempre necessário para que haja lugar à suspensão provisória do processo.
II - No actual quadro legislativo, não é possível proceder ao desconto, do período de inibição de conduzir imposto no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena acessória fixada por força do disposto no art. 69.º do CP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório

1. No âmbito do Proc. n.º 99/13.0GTCSC, a correr termos pelo 1.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, foi submetida a julgamento, em processo abreviado, a arguida FB..., (…), acusada da prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1, do CP, com referência ao art. 69.º, n.º 1, alínea a), do mesmo código, no que à sanção acessória diz respeito.
2. Realizado o julgamento, veio a arguida a ser condenada pela prática do referenciado crime na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de € 10,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses.
3. Inconformada com a decisão, dela recorreu a arguida extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“i) O Tribunal recorrido julgou procedente, por provada, a acusação deduzida pelo Ministério Público, tendo em consequência condenado a Arguida pela prática de um crime de “condução em estado de embriaguez” e condenando-a, em especial, na pena acessória de proibição de conduzir por um período de três meses;

ii)      Dos factos considerados por provados, têm relevância no presente recurso os seguintes:
“4. Por despacho a fls.24 foi homologada a suspensão provisória do processo;
5. No âmbito de tal suspensão, foram impostas à arguida as seguintes injunções:

a. Prestação de 30 horas de trabalho a favor da comunidade;

b. 3 Meses de inibição de conduzir;
6. A arguida, dessas 30 horas cumpriu 10;
7. Cumpriu os 3 meses de inibição de conduzir…”
iii) Tal como foi igualmente concluído na sentença, “compulsados os autos, verifica-se que a arguida nem sequer foi notificada do presumível incumprimento, uma vez que recebido o ofício da DGRS no processo, foi-lhe imediatamente revogada a suspensão provisória do processo”.

iv) Salvo o devido respeito, “A revogação da suspensão não decorre automaticamente do incumprimento, muito menos quando ele é parcial, envolvendo antes um juízo sobre a culpa ou a vontade de não cumprir parte do Arguido, podendo haver lugar, nomeadamente, à revisão das injunções, regras de conduta decretadas ou prorrogação do prazo até ao limite legalmente

admissível.” - vide Ac. do TRL datado de 18/05/2010, disponível em www.dgsi.pt.
v) Tal facto não sucedeu, nem mesmo após a contestação da Arguida, nos termos da qual esta veio alegar que, no seu entendimento havia cumprido a totalidade das medidas injuntivas e que nunca havia sido notificada do alegado incumprimento parcial.

vi) Tal irregularidade foi ignorada pelo Tribunal “a quo” em sede de sentença.
vii) Acresce que, a Arguida, em sede de suspensão provisória do processo, cumpriu integralmente a medida injuntiva de três meses de inibição de condução;
viii) “ A injunção de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, aplicada em sentença proferida na sequência da revogação daquela suspensão.” – vide Ac. TRE de 11/07/2013, disponível em www.dgsi.pt.
ix) Face ao exposto, impõe-se que seja entendido que a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de três meses a que a Arguida foi condenada pelo Tribunal “a quo” se considere integralmente cumprida, face ao cumprimento da medida injuntiva de inibição de condução pelo mesmo período cumprida pela Arguida, não havendo assim lugar à entrega da sua carta de condução nos presentes autos.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, só assim se fazendo JUSTIÇA.”

4. O recurso foi admitido por despacho de fls. 162 dos autos.

5. A Ilustre Magistrada do Ministério Público, junto da 1.ª instância, apresentou resposta, concluindo que deve o recurso ser julgado procedente, determinando-se o desconto do período de proibição de conduzir já cumprido pela arguida na pena acessória que lhe foi aplicada.

6. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto sufragou a posição do MP em 1.ª instância, emitindo parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

7. Cumprido o disposto no art. 417.º do CPP, a arguida nada disse.
8. Procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art. 410.º n.ºs 2 e 3 do CPP).
Assim sendo, as questões a apreciar por este tribunal ad quem prendem-se com:
- a irregularidade relacionada com a falta de notificação da arguida/recorrente para se pronunciar sobre o eventual incumprimento parcial de uma das injunções que lhe foram impostas no âmbito da suspensão provisória do processo;
- saber se tendo a arguida/recorrente cumprido a obrigação de entregar a sua carta de condução e de se abster de conduzir veículos motorizados por três meses, no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ou não ser considerada cumprida a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por  idêntico período, em que veio a ser condenada pelo Tribunal “a quo”, na sequência da revogação da suspensão provisória do processo.

2. Factos a considerar para a decisão a proferir

Resulta dos elementos constantes dos autos que:

- No dia 25 de Abril de 2013, cerca das 4h16m, a arguida conduzia o veículo, ligeiro de passageiros, matrícula xx-xx-xx, pela autoestrada A-5, ao Km 10, no sentido Lisboa-Cascais.

- Ao ser submetida a exame de pesquisa de álcool no sangue a arguida acusou uma taxa de alcoolemia de 1,31 g/l.

- Com a concordância da arguida, foi determinada a suspensão provisória do processo pelo período de 4 meses, ao abrigo do disposto nos arts. 281.º, n .º 1, e 384.º, ambos do CPP, mediante o cumprimento por parte da arguida das injunções seguintes:

a) Prestação de serviço de interesse público, no total de 30 horas, em entidade e em horário a acordar com a EBT e a DGRS.

b) Inibição de conduzir, pelo período de 3 meses, devendo para tanto, proceder à entrega da sua carta de condução nos serviços do Ministério Público do tribunal, no prazo de 10 dias após a notificação do despacho que determinou a suspensão provisória do processo.

- A suspensão provisória do processo foi homologada por despacho de fls. 24 dos autos.

- A arguida procedeu à entrega da carta de condução cumprindo a injunção supra referida em b), mas cumpriu apenas 10 das 30 horas de trabalho socialmente útil que haviam sido fixadas, conforme supra referido em a).

- Por despacho de fls. 43 dos autos foi, então, determinada a prossecução do processo sob a forma de processo abreviado, tendo sido deduzida acusação e realizada audiência de julgamento, que culminou com a sentença de fls. 134 a 139, que condenou a arguida nos termos supra referidos em I.2.

3. Analisando

Alega a arguida/recorrente que não foi notificada do incumprimento de uma das injunções que lhe haviam sido impostas, tendo o Ministério Público procedido de imediato à revogação da suspensão provisória do processo, uma vez recebido o ofício da DGRS a dar conhecimento de que só tinha cumprido 10 das 30 horas de trabalho socialmente útil.
Mais alega, que tal irregularidade foi ignorada pelo Tribunal a quo em sede de sentença, mesmo após a contestação que apresentou, nos termos da qual veio alegar que, “no seu entendimento havia cumprido a totalidade das medidas injuntivas e que nunca havia sido notificada do alegado incumprimento parcial.”

Vejamos.

É certo que a revogação da suspensão provisória do processo não decorre automaticamente do incumprimento de alguma injunção, envolvendo antes um juízo sobre a culpa ou a vontade de não cumprir por parte do arguido, podendo haver lugar, nomeadamente, à revisão das injunções ou à prorrogação do prazo estabelecido, conforme se refere no Acórdão desta Relação de 18/5/2010, proferido no âmbito do Proc. n.º 107/08.6GACCH.L1-5, disponível in www.dgsi.pt.

E também é certo que no caso dos autos o Ministério Público não procedeu à notificação da arguida/recorrente para se pronunciar acerca do eventual incumprimento parcial de uma das injunções que lhe haviam sido impostas no âmbito da suspensão provisória do processo, conforme decorria do teor do ofício remetido pela DGRS.

Mas também não é menos certo que a arguida/recorrente foi notificada do despacho do Ministério Público, proferido em 11/11/2013, que lhe revogou a aplicação do mecanismo da suspensão provisória do processo e ordenou o prosseguimento dos autos, bem como da acusação contra si deduzida (cfr. fls. 47), assim como o seu defensor (cfr. fls. 48) e não suscitou tal irregularidade.

Mais, foi a arguida/recorrente notificada do despacho que recebeu a acusação e designou data para julgamento e, contrariamente ao que alega na motivação do seu recurso, não suscitou qualquer irregularidade na contestação que apresentou (cfr. fls. 77 a 89) e que tenha deixado de ser apreciada na decisão recorrida.

Assim sendo, a existir qualquer irregularidade relacionada com a sua falta de notificação para se pronunciar sobre o eventual incumprimento parcial de uma das injunções, sempre a mesma estaria sanada por não ter sido arguida dentro do prazo legal – arts. 118.º, n.ºs 1 e 2 e 123.º, n.º 1, ambos do CPP.

Apreciemos, agora, a questão de saber se é ou não de proceder ao desconto do período de inibição de conduzir que a arguida/recorrente cumpriu no âmbito da suspensão provisória do processo – 3 meses – na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados a que a mesma foi condenada na decisão recorrida, na sequência da revogação daquela suspensão.

Diga-se, desde já, que a questão está a suscitar divergência nas decisões proferidas pelos tribunais da Relação.

Para uns, nos quais nos incluímos, esse desconto não é possível ser feito.
Vejam-se, nesse sentido, os Acórdãos desta Relação de 6/3/2012 e de 6/6/2013, proferidos, respectivamente, no âmbito dos Proc. 282/09.2SILSB.L1-5 e 105/10.0SCLSB.L1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt, este último igualmente relatado pela ora relatora.
Em sentido contrário, isto é, que deve ser feito o desconto, se pronunciaram os Acórdãos da RE de 11/7/2013, da RG de 6/1/2014 e de 22/9/2014 e da RP de 19/11/2014, proferidos, respectivamente, no âmbito dos Proc. 108/11.7PTSTB.E1, 99/12.7GAVNC.G1, 7/13.8PTBRG.G1 e 24/13.8GTBGC.P1, todos eles disponíveis in www.dgsi.pt.

Ora, conforme tivemos oportunidade de referir no nosso Acórdão proferido em 6/6/2013, no âmbito do Proc. 105/10.0SCLSB.L1, supra indicado, a injunção que foi fixada, aquando da suspensão provisória do processo, tem uma natureza completamente diferente da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a que alude o art. 69.º do CP.

A injunção a que a arguida/recorrente se obrigou não lhe foi imposta, nem assumiu o carácter de pena ou sequer de sanção acessória.

A este propósito diz-se no “Código de Processo Penal Comentado” pelos Senhores Juízes Conselheiros António Henriques Gaspar, José António Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires da Graça, Almedina, 2014, “A suspensão provisória constitui uma forma alternativa de processamento do inquérito, na sua fase final, sendo, por isso, um caso de “diversão”. Constatada a existência de indícios suficientes do crime e da identidade do seu autor, o inquérito não desemboca numa acusação com vista ao julgamento do arguido, antes fica suspenso, pelo prazo previsto no art. 282.º, ficando o arguido sujeito a “injunções e regras de conduta” decretadas pelo Ministério Público.

Estas medidas não constituem obviamente sanções penais, caso contrário seria absolutamente inconstitucional a sua imposição pelo Ministério Público (art. 202.º, n.º 1, da Constituição). Trata-se antes de medidas que impõem deveres (positivos ou negativos) ao arguido, como condição da suspensão, sendo a sua aceitação por parte deste necessária para a suspensão.”

Quando a arguida/recorrente fez a entrega da carta fê-lo de forma voluntária, no âmbito do cumprimento de uma injunção com que concordou, tendo como finalidade a suspensão provisória do processo, nos termos do disposto no art. 281.º do CPP.

E, de acordo com o preceituado no n.º 4 do art. 282.º do CPP, em caso de incumprimento das injunções e regras de conduta as prestações feitas não podem ser repetidas, como acontece nos termos do art. 56.º, n.º 2, do CP.
Neste sentido veja-se, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição actualizada, 2008, em anotação ao art. 282.º.
Por outro lado, não procede, com todo o devido respeito, o argumento utilizado pelos defensores de que se deve proceder ao desconto, do período de inibição de conduzir imposto no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena acessória fixada por força do disposto no art. 69.º do CP, por se mostrar obrigatória a imposição, como injunção, da proibição de condução de veículos automóveis, sempre que o procedimento se refira a crimes para os quais se encontra legalmente prevista essa medida como pena acessória, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 281.º do CPP.
A alteração introduzida no n.º 3, do art. 281.º, do CPP, pela Lei n.º 20/2013, de 21/2, não veio modificar a voluntariedade na aceitação dos deveres impostos, pressuposto sempre necessário para que haja lugar à suspensão provisória do processo.
Ou seja, pese embora o legislador tenha imposto a aplicação da injunção de proibição de conduzir veículos com motor, quando está em causa crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, tal não significa que não seja necessária a aceitação, de forma voluntária, de uma tal injunção, sob pena de não ser viável a suspensão provisória do processo.
Também não procede, sempre com o devido respeito, o argumento de que o período da inibição fixado na injunção deve ser descontado na pena acessória porque no caso da prisão preventiva também esta é sempre descontada na pena de prisão em que vier a ser condenado o arguido.
O desconto da prisão preventiva é efectuado porque está expressamente previsto na lei penal – art. 80.º do CP.
Se fosse intenção do legislador que se procedesse, no caso de prosseguimento do processo para julgamento, ao desconto, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, do período de inibição de conduzir fixado na injunção, bastar-lhe-ia ter dito isso mesmo. O que não fez.
Finalmente o caso chamado à colação pelo Digno Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer – o da execução de uma sentença que impusesse ao arguido reparar os danos patrimoniais sofridos pelo lesado quando estes mesmos danos já haviam sido reparados por aquele por força do cumprimento da injunção prevista na al. a), do n.º 2, do art. 281.º – não pode, salvo o devido respeito, que é muito, ser equiparado ao caso sub judice.
Numa tal situação, em que os danos do lesado já tivessem sido reparados por força do cumprimento de uma injunção, nunca poderia haver lugar a uma condenação em indemnização pelos mesmos danos, na medida em que sempre se teria de dar como provada a reparação já efectuada, sob pena de se verificar uma situação de enriquecimento ilícito. 
Pelo exposto, somos de entendimento que, no actual quadro legislativo, não é possível proceder ao desconto, do período de inibição de conduzir imposto no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena acessória fixada por força do disposto no art. 69.º do CP.
Não pode, pois, ser considerada cumprida a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, em que a arguida/recorrente foi condenada pelo Tribunal “a quo”, na sequência da revogação da suspensão provisória do processo.

III. Decisão

Termos em que, acordam os Juízes na 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida FB....

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2014
Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).

Guilhermina Freitas

José Sérgio Calheiros da Gama