Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3988/2004-5
Relator: MARQUES LEITÃO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: O âmbito de punição do crime de maus tratos a cônjuge implica que se verifiquem, de forma reiterada, comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge ou da pessoa a este equiparada, comportamentos esses que podem ser de várias espécies desde maus tratos físicos a maus tratos psíquicos tais como humilhações, provocações e ameaças mesmo que não configuradoras do crime de ameaças.
Protege-se o bem jurídico saúde como bem complexo que abrange a saúde física e psíquica.
Agressão físicas, ameaça de morte e proibição de acesso à garagem, à caixa de correio e de utilização do veículo automóvel são comportamento que, actuando o agente com dolo, preenchem o tipo de crime de maus tratos a cônjuge.
Decisão Texto Integral: Extracto do acordão com a parte decisória

(...)

Na sentença recorrida consignou-se, como matéria de facto provada, o seguinte (transcrição, exceptuando as alíneas, estas por nossa iniciativa para, adiante, melhor se referenciar, face à motivação, aquela matéria):
«A) O arguido é casado com (A), id. a fls. 3, há mais de 11 anos, tendo ambos em comum uma filha de 5 anos de idade.
B) A data dos factos, o arguido e a (A) faziam vida em comum, residindo ambos na Rua... Lisboa.
C) Ambos são casados em segundas núpcias, sendo que ambos têm filhos do anterior casamento. As filhas de (A) foram criadas pelo arguido, vivendo com a mãe e padrasto até se casarem.
D) No dia 25/2/2001, cerca das 18 horas, na sequência de discussão por motivos financeiros, no interior da residência comum do casal, o (R) desferiu um soco no estômago da (A), provocando-lhe dores.
E) A (A) não necessitou de receber tratamento hospitalar, tendo recorrido ao seu médico de família.
F) A (A) chamou a polícia ao local.
G) Em Agosto de 2000, na sequência de discussão por motivos financeiros, no interior da residência comum do arguido e ofendida, o (R) desferiu vários socos e pontapés, em várias partes do corpo da (A), causando-lhe dores.
H) A (A) não necessitou de receber tratamento hospitalar.
I) No dia 4/7/2001, cerca das 20,30 horas, na sequência de discussão por motivos financeiros, no interior da residência comum do arguido e ofendida, o (R) disse para a arguida que a matava, causando-lhe receio e mágoa.
J) A partir de finais de 2000, o arguido passou a implicar com a (A), proibindo-a de ter acesso a uma arrecadação na garagem, retirando-lhe a chave da caixa do correio impedindo-a de ter acesso à mesma.
K) O (R) e a (A) apesar de estarem casados e viverem na mesma casa, não partilham o leito conjugal, dormindo em quartos diferentes.
L) O (R) não quer continuar a fazer vida conjugal com a (A).
M) A (A) é proprietária de um andar, mas que entende que é demasiado pequeno para si e para a filha de ambos.
N) A (A) é reformada auferindo uma pensão de 130.000$00.
O) O (R) entrega à ofendida, mensalmente, uma quantia que não foi possível apurar em audiência, mas não inferior em € 600,00, para despesas da casa, colégio da filha comum e despesas com esta.
P) O (R) não deixa a (A) usar o carro dele, sendo que a ofendida utiliza o carro que lhe foi oferecido pelos pais.
Q) O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo serem proibidas tais condutas.
R) O arguido é bancário, auferindo € 2.500,00 por mês. Como habilitações literárias possui a licenciatura em Gestão de Empresas.
S) O arguido não tem antecedentes criminais.».

Seguidamente aditou-se na sentença (transcrição):

«Não se Provou

Que em consequência da agressão sofrida no dia 25/2/2001 tenham resultado para a (A) as lesões descritas no auto de exame de fls. 21, aqui dado por reproduzido.
Que no dia 5/7/2001, cerca das 08,00 horas, no interior da residência comum, o arguido se tenha dirigido ao quarto da ofendida e a tenha forçado a levantar-se, batendo com as portas e janelas, acordando também a filha de ambos.
Que em 11/8/2001, cerca das 22,00 horas no interior da residência do arguido e ofendida, o (R) tenha dito à (A) que lhe bateria e que não queria em sua casa ninguém da família dela, nomeadamente a filha, já casada, e o neto.
Após, sob a epígrafe "Fundamentação da Prova", consignou-se na sentença (ainda transcrição):
«A convicção do tribunal resulta da descrição dos factos feita pela ofendida (A), o que veio a ser corroborado pelas testemunhas (PA) e (RS), que revelaram conhecer os factos, designadamente presenciaram a ofendida com hematomas ( " marcas de agressão", "nódoas negras"), bem como do exame dos documentos de fls. 3, 32, 205/213. Considerou ainda, o tribunal os depoimentos das testemunhas (V), (V) e (IF), que reiteraram a agressividade constante no arguido e a sua repercussão na queixosa.
Relativamente às condições pessoais do arguido, teve-se em conta as suas próprias declarações, bem como o teor do documento de fls. 205/213.
Por último, teve-se em conta o teor do C.R.0 junto a fls. 128, demonstrativo da inexistência de antecedentes criminais por parte do arguido.
Os factos não provados resultam de não se ter feito prova sobre os mesmos.».
Isto posto prossigamos:
Como flui das conclusões da motivação do recurso -- que balizam o objecto do mesmo (artigos 403.° e 412.0, n.° 1, ambos do Código de Processo Penal) — as questões nele postas prendem-se, fundamentalmente, com:
a) Saber se foi, como alega o recorrente, violado o n.° 2 do artigo 374.° do
Código de Processo Penal, sendo, por consequência, a sentença nula;
b) Saber se devia ter sido considerada não provada, como também alega o
recorrente, a matéria de facto considerada provada constante das supra referidas alíneas D), G), 1), J) e Q);
c) O enquadramento jurídico-penal dos factos.

Vejamos então.
Antes, porém, e visto que o recorrente na motivação do recurso escreveu, sob ponto III, os seguintes dizeres "Dos vícios do artigo 410. ° do Código de Processo Penal", - vícios esses que não levou às conclusões da motivação do recurso e, por conseguinte, deles não haveria que conhecer, mas há, por serem de conhecimento oficioso -, atentemos se a sentença recorrida sofre de algum dos vícios a que se reportam as três alíneas do n. ° 2 do aludido artigo 410. °.
Como resulta expressis verbis do art.° 410. ° do Código de Processo Penal, os vícios referidos nas aludidas alíneas têm de resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento.
E que alega o recorrente sob aquele ponto III?
Apenas o seguinte: «É contraditório que se tenha provado que, em 25/2/01, o arguido "desferiu um soco no estômago da (A), provocando-lhe dores" e se não tenha provado que na sequência dessa agressão tenham resultado para aquela "as lesões descritas no auto de exame de fls. 21", como consta da matéria de facto que se não deu por provada.
Além do mais, é a própria testemunha (V) (Cassete 1, lado A) que refere no seu depoimento que a queixosa "dava sinais de ter sido agredida no braço",
O que só pode revelar que nunca poderia o arguido ter agredido a queixosa no estômago, como deu por provado o Tribunal recorrido.
De referir ainda que, sendo tal exame supostamente consequência directa da agressão daquela data por parte do arguido, como se poderá provar a agressão se não se provam os exames a ela subjacentes?
Padece, pois, a sentença de contradição entre a prova existente nos autos e a matéria de facto que ficou provada.
Com tal falta de prova do exame de fls. 21, não poderia o tribunal recorrido ter dado como provada a factualidade a que se reporta o dia 25/02/2001»

Ora, o acabado de transcrever ipsis verbis daquele ponto III, mais não é do que a manifestação, por parte do recorrente, da sua discordância sobre a forma como foi apreciada a prova atinente à factualidade considerada provada constante da supra aludida alínea D). Aliás,
O arguido/recorrente nem sequer dá nome ao vício do artigo 410. ° do Cód. Proc. Penal de que, na sua opinião, a sentença recorrida sofre.
E, compulsada essa mesma sentença, não se nos depara a existência de qualquer um desses vícios, ou sejam, ut as alíneas do n.° 2 do predito artigo 410. °: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e erro notório na apreciação da prova.
Voltando às questões acima enunciadas sob alíneas a) a c):
Quanto à enunciada em a):
A sentença deve conter, na sua fundamentação, a "enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal."(1), sendo nula se não respeitar essa indicação(2).
A exigência da referida menção radica no dever de fundamentação, consig­nado nos artigos 205. °, n.° 1, da Constituição da República e 97.°, n.° 4, do Código de Processo Penal e, consequentemente, nas garantias de defesa do arguido, incluindo o recurso, consagradas no artigo 32.°, n.° 1, do primeiro dos referidos diplomas.
Em consonância com o disposto no artigo 205.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, que impõe a fundamentação, na forma prevista na lei, das decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente, o artigo 97.°, n.° 4, do Código de Processo Penal estabelece que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito.
A fundamentação "permite o controlo da legalidade do acto (...) e serve para convencer os interessados e os concidadãos em geral acerca da sua bondade, correcção e justiça (...) mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso, como meio de autocontrolo(3).

O recorrente aponta à sentença impugnada incompleta e insuficiente exame crítico da prova que, segundo ele foi produzida em julgamento, ao não ter sido tecida nenhuma consideração quanto aos depoimentos das testemunhas (PC),(PS),(CM) e (FS). Mas,

Já atrás se viu que a sentença enumerou os factos provados e não provados essenciais para a decisão da causa, resultando do respectivo texto que foram consideradas as versões apresentadas pela defesa e pela acusação, o que, aliás, o recorrente não põe em questão.

Quanto ao exame crítico das provas importa notar que ele consiste tão-so­mente na indicação das razões que levaram a que determinadas provas tenham convencido o tribunal, não podendo ser um substituto do princípio da oralidade e da imediação no que toca à actividade de produção da prova, transformando-a em - documentação da oralidade da audiência, nem se propõe reflectir nela exaustivamente todos os factores probatórios, argumentos e intuições, que fundamentam a convicção, bastando que se indiquem os meios de prova de que o tribunal se socorreu para formar a sua convicção e a razão de ciência de cada uma das pessoas, cujos depoimentos tomou em consideração(4).

A sentença impugnada contém, de forma sucinta, como a lei exige e se verifica pelos dizeres que da mesma constam sob a epígrafe "Fundamentação da Prova" e que acima dela transcrevemos, a menção das provas em que o tribunal alicerçou a sua convicção para proferir o veredicto de facto e a análise crítica das mesmas.
Perante esta exposição de motivos, e visto que os depoimentos das testemunhas de defesa não serviram para formar a convicção do tribunal no que tange à factualidade considerada provada e não provada, nem, aliás, podiam contrariar tal factualidade como se verifica por esses depoimentos – que se encontram nos autos e foram transcritos das "cassetes" afigura-se dispensável a referência a tais depoimentos.


Conclui-se, assim, que, no que diz respeito ao exame crítico explicitado na sentença, a fundamentação se apresenta com as virtualidades para atingir as finalidades exigidas por lei, acima referidas, sendo, portanto, insubsistente a afirmação do recorrente de que a sentença é, nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 379.° do Código de Processo Penal, nula.

Quanto à questão enunciada em b):
Afirma o recorrente que a matéria de facto considerada provada constante das supra mencionada alíneas D), G), I), J) e Q) devia ter sido considerada não provada, alegando, em síntese, para alicerçar tal afirmação, que:
- Referiu, ele próprio, que nem em 25/02/001 nem em Agosto de 2000 agrediu fisicamente a queixosa, nem tão-pouco no dia 04/07/001 lhe disse que a matava;
- "Tanto" (transcrição entre aspas) "a queixosa como as testemunhas de acusação demonstraram possuir depoimentos de pouca ou nenhuma credibilidade, podendo verificar-se terem respondido de forma globalmente idêntica ao que lhes foi directamente perguntado, o que de facto atesta a atitude persecutória que tais pessoas possuem para com o arguido, inventando inúmeros factos e distorcendo outros.";
- «E contraditório», voltamos a transcrever, «que se tenha provado que, em 25/02/01, o arguido "desferiu um soco no estômago da (A), provocando-lhe dores" e se não tenha provado que na sequência dessa agressão tenham resultado para aquela "as lesões descritas no auto de exame de fls. 21", como consta da matéria que se não deu por provada, sendo que a testemunha (V) (Cassete 1, lado A) refere no seu depoimento que a queixosa "dava sinais de ter sido agredida no braço", o que só pode revelar que nunca poderia o arguido ter agredido a queixosa...no estômago.».

Em matéria de apreciação da prova, rege o artigo 127.° do Código de Processo Penal: "a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
Observa o Conselheiro Maia Gonçalves (5):
(...) como uniformemente expendem os autores, livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova;
a prova livre tem como pressuposto valorativo a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova.
(...)
Já o Prof. Manuel Cavaleiro Ferreira assim ensinava(6):
(,..)
O resultado da prova é fixado pelo julgador, segundo a sua "livre convicção" (Cód. de Proc. Civ. art.° 655.°), a qual naturalmente se baseia na livre apreciação das provas.
O princípio assim formulado é indispensável, mas é também perigoso. Tem origem antiga no direito romano, embora a sua proclamação moderna em processo penal se reconduza directamente a uma consciente reacção contra o sistema das provas legais. A predeterminação legal do valor das provas, prendendo a decisão judicial em matéria de facto a regras fixas, tinha de conduzir algumas vezes a resultados contraditórios com a consciência individual e a convicção do julgador.
O desaparecimento destas restrições à livre convicção não acarreta, porém, uma faculdade arbitrária de decidir. A convicção, por livre, não deixa de ser fundamentada; somente a supressão das provas legais tornou praticamente mudas a jurisprudência e a doutrina a este respeito, e criou por isso o grave perigo dum puro subjectivismo na apreciação das provas.
Ora a livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. E uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores. A apreciação livre das provas é um conceito de direito.
Se assim não fora, não haveria que falar de um direito probatório, nem em regras de prova.
Simplesmente o julgador em vez de se encontrar ligado por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação da prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia e às máximas da experiência.

O grande problema, do ponto de vista legislativo, que então surge no processo penal é o da conciliação dum direito probatório realmente existente, com a livre convicção do juiz.

(...)

A lei não está ausente da "livre convicção" do juiz. O sistema processual moderno atribui ao julgador uma maior liberdade, mas não um arbítrio a que a lei seja indiferente. Se o julgador interpreta a liberdade de apreciação como um domínio arbitrário da sua vontade sobre a matéria de facto, e oferece às partes, como conteúdo de jurisdição, a sua fé ou convicção sem provas e sem base objectiva, ultrapassa os limites da liberdade de apreciação, que não pode confundir-se com a supressão da prova, ou com a faculdade, por exemplo, de inverter por seu alvedrio o ónus da prova.

Adoptando opinião diferente, ter-se-ia substituído ao sistema de provas legais uma completa ausência de sistema, caracterizado pelo impreciso e perigoso subjectivismo ou impressionismo do julgador.

A violação das regras legais sobre a prova como, por exemplo, a necessidade da sua produção em audiência, ou a aplicação do princípio "in dubio pro reo", são violações do direito.

E violação do direito é ainda, pelo menos, em certa medida, a violação de máximas da experiência que integram as normas jurídicas.

As normas de experiência não são matéria de facto: são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genéricos, independentes do caso concreto "sub judice", assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.

Estas máximas de experiência têm interesse na apreciação da prova, na aplicação de conceitos de direito e no uso do arbítrio judicial.

Enquanto as leis da experiência integram conceitos de direito, comparticipam da mesma natureza, e a sua violação é revisível como matéria de direito. É esta, de resto, a opinião comum, embora a jurisprudência portuguesa pareça dificilmente aceitar as lógicas consequências da doutrina. É, ao que parece, e por exemplo, sempre susceptível de apreciação em última instância, a questão da idoneidade causal dos actos de execução na tentativa ou delito frustrado, não obstante as decisões que abonam orientação oposta.

Quanto às máximas da experiência cuja oportunidade de aplicação se circunscreve ao campo legítimo do arbítrio judicial, não parece que sejam susceptíveis de revisão.
Mais duvidosa se afigura finalmente a questão quando o campo da sua aplicação respeita precisamente à apreciação da prova. Além das regras legais, também as máximas da experiência, as oriundas da lógica, da psicologia, das leis do pensamento, são princípios integrados na ordem jurídica, e consequentemente a sua violação, violação do direito?
A doutrina jurídica inclina-se mais recentemente para a solução afirmativa, dentro de certos limites, quando a violação de máximas de experiência se reconduz à violação de regras de direito, cuja aplicação é incompreensível sem aquelas, não há que distinguir entre a violação de direito e violação de normas de experiência. São então uma e a mesma coisa.
(...)

Na mesma linha de orientação, o Prof. Germano Marques da Silva escreveu:(7)
(...)
O actual sistema da livre convicção não deve definir-se negativamente, isto é, corno desaparecimento das regras legais de apreciação das provas, pois não consiste na afirmação do arbítrio, sendo, antes a apreciação da prova também vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório(8).
Estes princípios do direito probatório comportam regras jurídicas extraordinariamente importantes (...), de que a liberdade de valoração da prova é apenas um aspecto, ainda que relevante e ainda dos mais confusos da ciência do direito.
Também a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, urna verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros(9). «Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva.».(10)
A livre valoração da prova não deve, pois, ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.
(...)
Com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim. A convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre «uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros»."(11)
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova)(12). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão
regras da experiências (13)
(...) Importa ainda anotar que a objectividade que aqui importa «não é a objectividade científica (sistemático-conceitual e abstracto-generalizante), é antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, o que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção (integrada sem dúvida por um momento pessoal»(14) É, na expressão de Figueiredo Dias, a convicção da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (15).
(...)
Sobre a questão, o Supremo Tribunal de Justiça considerou:(16)
(...)
II - O princípio contido no art. 127.°, do CPP, estabelece três tipos de critérios para a apreciação da prova com características e natureza completamente diferentes: haverá uma apreciação da prova inteiramente objectiva quando a Lei assim o determinar; outra, também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, já de carácter eminentemente subjectiva e que resulta da livre convicção do julgador.
III- É certo que tudo isto se poderá conjugar, e também é certo que a prova assente ou resultante da livre convicção poderá ser motivada e fundamentada, mas neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão.
IV - Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente.
(...)
Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir, - tal como no Ac. desta Relação, de 17-02-2004, proferido no Proc. 3515/03- 5.a Secção, de que foi relator o Sr. Juiz Desembargador Dr. Vasques Dinis, e em que o ora relator foi um dos adjuntos, Acórdão esse que na questão em apreciação estamos seguindo também de muito perto - que aquela valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos, que é eminentemente subjectiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal e apresenta duas vertentes: o dever de apreciar ou obter os meios de prova mais próximos ou mais directos; a recepção da prova pelo órgão competente (17).
Com efeito, tal como se salienta no predito Ac., só a imediação permite, num quadro de emissão e recepção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de acção/reacção, como o próprio silêncio -, que só ela potencia, a adequada apreciação das declarações ou depoimentos, que não pode deixar de implicar uma atenta observação do acto de depoimento, enquanto acto moral de manifestação da personalidade do declarante(18).
Tal não significa que a livre convicção assente naquela observação, eminentemente subjectiva., conducente a conferir maior ou menor credibilidade de um depoimento, se tome insindicável, pois ao julgador é, ainda assim, imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, no cumprimento do que dispõe o n.° 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal.
E se os critérios subjectivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há-de sempre, como se refere no mesmo Ac., sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.
O recurso em matéria de facto não tem por finalidade a realização de um segundo julgamento, mas tão só a apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame ( controlo) dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitem atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos ( em suporte magnético e as respectivas transcrições).

Por isso se pode afirmar que ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes.


Assim, e como se refere também em tal Acórdão, só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação de normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.° do Código de Processo Penal.

No caso dos autos, examinada toda a transcrição das provas produzidas em audiência bem como a prova documental que também serviu para fundamentar a decisão sobre a matéria de facto, e tendo em conta a motivação dessa decisão - esta, sem o mínimo atropelo às regras da lógica cremos não haver fundamento para modificar o decidido pelo Mm° juiz do tribunal "a quo", que não teve dúvidas em declara provados os factos impugnados pelo recorrente.
Aliás, acentua-se, as preditas afirmações do recorrente não foram corroboradas por qualquer outra prova e o facto de se ter dado por provado que em 25/02/2001 o arguido/recorrente "desferiu um soco no estômago da (A), provocando-lhe dores" não é, ao contrário do que alega o recorrente, contraditório com o facto de se não ter dado por provado que em consequência dessa agressão tenham resultado para a agredida as lesões descritas no acto de exame de fls. 21, até porque, estas lesões, são localizadas, nesse exame, na anca esquerda e no cotovelo direito e a região atingida com o soco que, conforme considerado provado, foi desferido pelo arguido, foi o estômago e não tais anca e cotovelo.

De tudo o exposto, resulta intocável a decisão relativa à matéria de facto, matéria essa que, por consequência, damos por assente, sendo assim, portanto, insubsistente a pretensão desses arguidos em ver alterada tal matéria.

Quanto à em c):
Alegou o recorrente que mesmo a entender-se que deve considerar-se assente a matéria de facto dada por provada pela 1ª instância e que essa matéria preenche a estatuição do artigo 152.° do Código Penal, tal preenchimento só o pode ser quanto ao n.° 2 desse artigo e não, como se entendeu na sentença recorrida, também quanto à al. a) do seu n.° 1, pois que é casado com a ofendida e estão em causa ofensas à integridade física, maus tratos e ameaças.
Tem razão o recorrente. Pois que:
Preceitua-se no artigo 152.° do Código Penal, sob o seu n.° 1 al. a), que :"I. Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda , sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa , em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e:

a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente,"
E, sob o seu n.° 2, que: "A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos.".
Ora,
Sendo o sujeito passivo dos actos ilícitos, como sucede no caso dos autos, cônjuge do arguido, e não se encontrando esse sujeito, como igualmente sucede no caso dos autos, em situação prevenida no n.° 1 daquele artigo 152º, óbvio é que a factualidade dada por provada jamais integraria a previsão da alínea a) do n° 1 daquele artigo 152.°.


Alegou também o recorrente que tendo em conta a matéria de facto considerada provada pela 1ª instância, e caso se entenda que ela deve ter-se assente, a mesma integra, tão-só, a prática de crimes de ofensas à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143.°, n.° 1, do Código Penal. E isto porque, e em síntese,
Apenas podem ser consideradas, para efeitos penais, as condutas a que se reportam as agressões a soco e a pontapé em Agosto de 2000 e a agressão com um soco no estômago em 25 de Fevereiro de 2001, em virtude das demais condutas dadas por provadas não terem relevância penal e aquelas agressões se encontrarem distanciadas no tempo.

Não o entendemos assim nós. Veja-se porquê:
Antes, porém, uma breve introdução sobre o historial do tipo de crime do artigo 152.° do Código Penal:
A criminalização autónoma dos maus tratos a crianças e de sobrecarga de menores e de subordinados foi enunciada pela 1ª vez, embora, como se refere no Ac. da Rel. do Porto, de 2003-11-05, in Col. Jur. Ano XXVIII, T5, pp 219/222, (Ac. esse que vamos, em parte, seguir de perto), de forma tímida, no Anteprojecto do Código Penal de 1996 (arts. 166.° e 167.°), considerando o Autor que tais artigos "correspondem à necessidade de punir com dignidade penal os casos mais chocantes de maus tratos a crianças e de sobrecarga de menores e subordinados"(19)
Na redacção definitiva do Código Penal — de 1982 -, o art. 153º, correspondendo, no essencial, àqueles arts. 166.° e 167.°, estendeu a protecção ao cônjuge (n.° 3).
A neocriminalização dos maus tratos de menores, de incapazes, de subordinados e do cônjuge "foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família e a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados, onde o direito penal se tinha de abster de intervir"(20)
A reforma penal de 1995 operada pelo Dec. Lei n.° 48/95, de 15 de Março, introduziu algumas importantes alterações. Foi eliminada a referência à malvadez e egoísmo, como motivos de conduta, foi estendida a protecção a pessoas idosas ou doentes, foram previstos, ao lado de maus tratos físicos os maus tratos psíquicos e as penas foram substancialmente agravadas.
No que tange ao cônjuge, depois de se ter discutido se a manutenção da protecção ao cônjuge ainda corresponderia ao nosso quadro sociológico (21), foi decidida a manutenção da protecção ao cônjuge e à pessoa que conviva com o agente em condições análogas à do cônjuge.

Adiante:
Para que se preencha o tipo de crime p. pelo artigo 152.° do Cód. Penal, não basta, como sustentam Leal Henriques e Simas santos na sua obra "Código Penal, 2.°Volume, 3ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 301, uma acção isolada do agente , mas também não se exige habitualidade de conduta mas sim uma reiteração de comportamento, em determinado período de tempo.
A protecção conferida pelo supra referido n.° 2 ao cônjuge ou à pessoa que conviva com o agente em condições análogas à do cônjuge, radica na dignidade humana da pessoa individual.
O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada como se disse, afectem a dignidade pessoal do cônjuge ou da pessoa a este equiparada.
As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais voluntárias simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaças.
Pode, pois, dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental que ode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado.(22)
Assim sendo, e tendo em conta que a factualidade considerada assente, designadamente:
A agressão física ocorrida em Agosto de 2000;
- A agressão física ocorrida em 25 de Fevereiro de 2001;
- A ameaça de morte que teve lugar em 4 de Julho de 2001;
- O ter o arguido, a partir dos finais de 2000, proibido a ofendida de ter acesso a uma arrecadação na garagem e retirado à mesma a chave do correio, impedindo-a de ter acesso a essa caixa;
- O não deixar usar o carro dele,
Traduz, sem qualquer margem para dúvidas, uma conduta, reiterada, de maus tratos (físicos e psíquicos), alguns deles (os psíquicos) de forma continuada e que á data da audiência ainda perduravam, e
Tendo em conta a restante matéria de facto dada por assente, há que concluir que o arguido recorrente cometeu o crime p. e p. pelo artigo 152.° n.° 2, do Código Penal. Sendo, por conseguinte,
Insubistente a afirmação do arguido/recorrente de que a factualidade considerada provada integra não o predito crime mas os crimes de ofensas à integridade física simples p. e pelo art.° 143.°, n.° 1, do Código Penal.

DECISÃO:
Por todo o exposto, e sem necessidade de maiores considerações, acorda-se em:
- Concedendo parcial provimento ao recurso, alterar o acórdão recorrido quanto à disposição do Código Penal aí indicada como sendo a que a conduta do arguido integra, para "artigo 152º, n.° 2 do Código Penal";
- Quanto ao mais, negando provimento ao recurso, até porque a pena aplicável em abstracto é a mesma sem a predita alteração, confirmar tal acórdão.

Mais se acorda em condenar, pelo decaimento parcial, o arguido/recorrente em quatro U.C. de taxa de justiça, fixando-se a procuradoria em um terço.

Lisboa, 26 de Outubro de 2004

Armindo Leitão
Santos Rita
Filomena Clemente Lima

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1 Art.° 374.°, n.° 2, do Cód. Proc. Penal.
2 Art.° 379.0, n.° 1, al. a), do Cód Proc. Penal.
3 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1993, pp. 16 e 17
4 Acds. Do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Fevereiro de 1998, B.M.J. 474, 321q; de 24 de Junho de 1999 e de 30 de Junho de 1999, este sumariados in WWW.cidadevirtual.pt/stj.trisec, Boletim nº 32
5 Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 12.a edição, Almedina, Coimbra, 2001, pg. 339.m n.° 32
6 Curso de Processo Penal -1I, Edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1970, pp. 316/320
7 Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1993, p. 111.
8 Manuel Cavaleiro Ferreira, Curso de processo Penal, 1, 1986, p. 211.
9 A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal,1967-1968, p. 50.
10 Ibidem. Cfr. também Jorge de Figueire5WDiâsN1% itd Processual Penal, I, p. 203.
11 Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 205.
12 Ibidem.
13 F. Gomez de Liano, La Prueba en el Proceso Penal, p. 184.
14 A. Castanheira Neves, ob. cit. , p. 52
15 Ob. cit., p. 52
16 Ac. do S.T.J. de 18-01-2001, Proc. n.° 3 105/2000-5' Secção, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Boletim n° 47.
17 Manuel Cavaleiro Ferreira, Curso de processo Penal — II, Edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, 1970, p. 336.
18 Ibidem, pp. 338 e 359.
19 "Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial"
20 Américo Taipa de carvalho, in "Comentário Conimbricense do Código Penal" Tomo 1, Coimbra Editora, pág. 330.
21 Cfr. " Actas da Comissão de Revisão", Rei dos Livros, pp. 230/231.
22 Américo Taipa de Carvalho, in supra referido "Comentário Conimbricense do Código Penal", pág. 332.