Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS ALMEIDA | ||
Descritores: | MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES BEM JURÍDICO PROTEGIDO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/27/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Sumário: | 1. Para efeitos de integração do conceito de maus tratos referido no art.º 152º CP, assumem relevância não só as injúrias proferidas em alta voz que se prolongaram no tempo, durante meses, e se seguiram a comportamentos idênticos valorados no âmbito de anterior condenação, mas também a ameaça e o repetido bater com força a porta do frigorífico e as loiças, o que, tudo junto, provocou «estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição aos humores dele». 2. Os maus-tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe «a normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar». 3. O bem jurídico tutelado com a incriminação das condutas abrangidas no n.º 2 do art.º 152º CP, quer se considere ser a saúde física, psíquica ou mental quer se entenda ser a paz familiar, é diferente daqueles que são protegidos por outras incriminações que a conduta do agente pode, eventualmente, também ter preenchido, como sejam a integridade física e diferentes dimensões da liberdade. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO 1 – O arguido A… foi acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de embriaguez p. e p. pelo n.º 1 do artigo 295º, com referência ao artigo 152º, n.ºs 1 e 2, alínea a), ambos do Código Penal. Tendo sido julgado no 4º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de P…, veio a ser absolvido (sentença proferida no dia 22 de Novembro de 2007). Nessa peça processual o tribunal considerou provado que: A) «Sentença transitada em 11 de Janeiro de 2007 dissolveu o casamento que A… celebrara com M… . O casal tinha tido dois filhos, um dos quais é V… , nascida a 23 de Dezembro de 1994. Depois do divórcio, e com a intenção de ser provisória a situação, ele continuou a morar na casa de morada da família. B) Ainda no tempo de casados, queixas apresentadas por M… deram lugar a procedimento criminal contra ele, que findou por condenação no processo 610/05.0PBPDL, com trânsito em 15/5/06. Os factos respectivos traduziram-se em repetidas vezes e na frente da filha do casal, apodar a mulher de “puta”, bêbada”, “nojenta” e de prometer que a matava e, numa ocasião, afirmar que lhe enfiava um prato na cabeça. Episódios desta natureza levavam a que a mulher e a filha se refugiassem na casa da mãe da primeira. C) Após o julgamento no processo-crime, A… prometeu rectificar os seus comportamentos e durante o mês de Maio de 2006, cumpriu o prometido. Mas logo voltou ao que anteriormente fazia: a dirigir nomes ofensivos da honra e consideração da então esposa, como “puta”, “nojenta”, “porca”, “comilona”. Fazia-o em casa, a alta voz, por vezes de modo a ser ouvido na rua, e, quando calhava, diante da filha. D) Em Junho de 2006, M… comunicou-lhe que não poderia suportar mais comportamentos daquela natureza e informou-o de que iria pedir o divórcio. Ele afirmava-se descrente da coragem dela de o fazer. Quando em Setembro de 2006 encetou diligências no sentido de tratar do divórcio, o comportamento dele manteve-se como dantes, ora dirigindo-lhe, frequentemente, as expressões acima referidas, ora batendo com força a porta do frigorífico e as loiças. Um dia disse-lhe, ainda que não fizesse menção de efectivamente fazê-lo, que queimaria a casa. E) Estas actuações provocaram em M… e na filha, estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição aos humores dele. F) A… era, à data dos factos, homem que ingeria, em excesso, bebidas com álcool e era sob a influência delas que agia de forma descrita. Em estando sóbrio, não molestava a mulher. Estava ciente do conteúdo criminal da sua conduta e quis levá-la a efeito. A ingestão excessiva de álcool começou há cerca de 8 anos. Efectuou desintoxicação alcoólica em regime de internamento entre 15.2.2007 e 16.3.2007 e desde então mantém-se abstémio. Continua a efectuar tratamento, em regime ambulatório, e cumpre as indicações médicas. Mostra-se triste pela desestruturação da sua vida afectiva e pela desagregação da sua família. Vive com uma irmã e aguarda a resposta sobre um emprego na ilha do Faial, de modo a afastar-se temporariamente da família. Beneficia de subsídio de desemprego. Para além da condenação acima referida, foi já condenado, por 4 vezes, como autor de um crime de falsificação de documento e 3 vezes como autor de um crime de burla, uma delas qualificada». Se bem atentarmos na matéria de facto provada verificamos que se encontra assente que o arguido, depois de ter sido condenado pela prática de um crime de maus tratos[2], apenas modificou o seu comportamento durante o mês de Maio de 2006, tendo voltado «ao que anteriormente fazia: a dirigir nomes ofensivos da honra e consideração da então esposa, como “puta”, “nojenta”, “porca”, “comilona”. Fazia-o em casa, a alta voz, por vezes de modo a ser ouvido na rua, e, quando calhava, diante da filha». Depois de a ofendida lhe ter comunicado que não poderia suportar mais comportamentos daquela natureza e de o ter informado que iria pedir o divórcio, em Setembro de 2006, quando ela «encetou diligências no sentido de tratar do divórcio, o comportamento dele manteve-se como dantes, ora dirigindo-lhe, frequentemente, as expressões acima referidas, ora batendo com força a porta do frigorífico e as loiças. Um dia disse-lhe, ainda que não fizesse menção de efectivamente fazê-lo, que queimaria a casa». Tais «actuações provocaram em M… e na filha estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição aos humores dele». A nosso ver, embora se deva reconhecer que este não é um dos casos mais sérios de violência doméstica[3]/[4], entendemos que, para o fim indicado, assumem relevância não só as injúrias proferidas em alta voz (que se prolongaram no tempo, durante meses, e se seguiram a comportamentos idênticos valorados no âmbito de anterior condenação), mas também a ameaça e o repetido bater com força a porta do frigorífico e as loiças, o que, tudo junto, provocou «estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição aos humores dele». ² Lisboa, 27 de Fevereiro de 2008 (Carlos Rodrigues de Almeida) (Horácio Telo Lucas) _______________________________________________________ [1] Subsidiariedade expressa que não exclui os casos de subsidiariedade implícita, justificando todos eles a existência de um concurso aparente de normas. [2] Se dúvidas existissem, poderia ver-se da sentença transitada em julgado em 15/5/2006, cuja certidão se encontra a fls. 25 a 32, que o arguido foi condenado pela prática deste crime na pena de 2 anos de prisão suspensa pelo período de 4 anos sob condição de iniciar, no prazo de 3 meses, tratamento de desintoxicação do álcool e de se apresentar periodicamente no IRS. [3] Sobre as diversas modalidades de violência doméstica veja-se, nomeadamente, MEDINA, Juan J., in «Violência contra la mujer en la pareja: investigación comparada y situación en España», Tirant lo Blanch, Valência, 2002, p. 60 e segs. [4] Sobre as diversas expressões utilizadas para designar este fenómeno, veja-se MEDINA, ob. cit. p. 58, LARRAURI, Elena, in «Criminologia Crítica y Violência de Género», Editorial Trotta, Madrid, 2007, p. 17 e segs., e CORCOY BIDASOLO, Mirentxu, in «Tendências de la Política Criminal en Matéria de Violência Doméstica y de Género», in «Política Criminal e Reforma Penal», Editorial B de F, Montevideo y Buenos Aires, 2007, p. 274 e segs. [5] Dada pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio. [6] Introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro. [7] Veja-se, nesse sentido, MEDINA, ob. cit. p. 66 e, se bem que noutra perspectiva, a «roda de Duluth» desenvolvida nessa cidade do Minnesota pelo “Domestic Abuse Intervention Project”, in LARRAURI, ob. cit. p. 42. [8] Ideia veiculada em Espanha pela Fiscalia General del Estado, como se pode ver em CORCOY, ob. cit. p. 278, nota 14. [9] Veja-se «Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão», Ministério da Justiça, Lisboa, 1993, p. 230 e segs. [10] Que pretende ser um dos meios de enfrentar, antes de mais, a violência contra as mulheres no contexto das relações do casal uma vez que esta se encontra, «na sua maior parte, enraizada nas tradições e condições sociais e institucionais, o que a converte numa forma de comportamento arreigado, complexo e ambivalente, inclusive em sociedades que se esforçam por eliminá-la» (DOBASH, Russell P. e DOBASH, Rebecca E., in «Efectividad de los Programas Penales de Tratamiento de Maltratadores», in «La Delincuencia violenta – Prevenir, castigar o rehabilitar?», Tirant, Valência, 2005, p. 151. [11] Ver, neste sentido, CARVALHO, Américo Taipa de, in «Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 332, concepção que nos parece dificilmente sustentável em face da última revisão do Código Penal. [12] CORCOY BIDASOLO, ob. cit. p. 291. [13] Citando o Tribunal Supremo espanhol diz a referida autora que «o bem jurídico protegido é a paz familiar, sancionando aqueles actos que exteriorizam uma atitude tendente a converter aquele âmbito num microcosmo regido pelo medo e pela dominação». Tratar-se-á de um bem jurídico intermédio ou de referente individual que representa um adiantamento da tutela penal relativamente a bens jurídicos de natureza pessoal como sejam a integridade física e diversas dimensões da liberdade (veja-se, sobre a caracterização dos bens jurídicos intermédios, MATA y MARTÍN, Ricardo M., in «Bienes Jurídicos Intermédios y Delitos de Peligro», Editorial Comares, Granada, 1997). |