Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
899/2008-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: FUNDO DE GARANTIA
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/13/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores apenas assegura o pagamento das prestações de alimentos devidas a menores, em substituição do devedor originário, a partir do momento em que ocorre a notificação da decisão do tribunal, não tendo aplicação, no caso, a regra inserta no artigo 2006º do Código Civil, segundo o qual os alimentos são devidos desde a proposição da acção.
II - Este entendimento é o que melhor interpreta o sentido e o alcance desta nova prestação social, que constitui apenas um paliativo para minorar as dificuldades de subsistência de crianças cujo progenitor, vinculado ao pagamento de prestação de alimentos, não cumpre essa obrigação, colocando-as numa situação de privação socialmente inaceitável.
III - O Estado substitui-se ao devedor, não para pagar as prestações em dívida por este, mas para assegurar os alimentos de que o menor carece, através das prestações fixadas nos termos dos novos diplomas. A dívida anterior serve apenas de pressuposto legitimador da intervenção, subsidiária, do Estado, para satisfazer uma necessidade actual do menor.
F.G.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
1. Relatório:
No Tribunal de Família e de Menores de Lisboa, S deduziu, contra P, incidente de incumprimento da regulação do exercício do poder paternal, em relação aos menores P, E, M e V, no que à obrigação de alimentos diz respeito.
O requerido foi devidamente notificado, nos termos do art. 181°, n.° 2, da OTM, nada tendo dito.
Prosseguindo os autos os seus trâmites, com as diligências instrutórias, veio ser proferida decisão, verificando o incumprimento do requerido relativamente às prestações vencidas, no valor de € 9 200,00 e condenando o requerido no pagamento em favor do Estado em € 249,40.
Tal decisão transitou em julgado.
Não tendo o requerido liquidado as prestações em dívida, o Ministério Público requereu a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, tendo-se ordenado a elaboração do inquérito a que alude o art. 4°, do DL 164/99, de 13/05.
Na sequência do dito inquérito, o Ministério Público promoveu se determinasse que o dito Fundo suporte, a favor de cada um dos menores, uma prestação mensal de € 75,00, vindo o Tribunal a condenar aquele Fundo a pagar as prestações vencidas e uma pensão de € 50,00, a cada um dos menores.

Inconformado com a decisão, veio o Fundo interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando alegações com as seguintes conclusões (sic):
«1. A douta decisão de de fls. ... de 12/11/2007, do 1.° Juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, condena o FGADM a assegurar o pagamento de todo o débito reiteradamente acumulado pelo progenitor, desde o seu início em Marco de 2003. até  Janeiro de 2007, com o valor global de € 9 200,00, em prestações mensais de € 100,00, muito embora somente em 30 de Janeiro de 2007 a progenitora tenha deduzido o incidente de incumprimento da obrigação de alimentos a favor dos filhos menores.
2. Desconhece o FGADM se, à data do início do incumprimento pelo obrigado, este já se encontrava na situação que determinou a impossibilidade da obtenção do pagamento coercivo da prestação de alimentos que ao mesmo incumbe.
3. Desconhece, de igual forma, se em Março de 2003, data do início da mora do progenitor obrigado, se encontravam já preenchidos os pressupostos legais para a atribuição de uma prestação a assegurar pelo Fundo aos menores.
4. Não obstante, ainda que assim fosse e/ou que o Fundo o não desconhecesse, salvo o devido respeito, não pode o ora recorrente concordar com tal entendimento, porquanto é diferente a natureza das obrigações.
5. Com efeito, dos diplomas que regulam e regulamentam o FGADM ressalta uma manifesta diferenciação jurídico-substantiva entre a obrigação de prestação de alimentos decorrente do vínculo específico de natureza familiar entre alimentante e alimentado, e a obrigação que recai sobre o Fundo.
6. As prestações alimentícias a satisfazer pelo Fundo não vêm substituir as prestações que tenham por fundamento uma relação familiar, como configurada pelo artigo 1576.° do Código Civil, e não existe qualquer analogia com o artigo 2006.° do C.C., segunda parte, uma vez que se está em presença de lei geral e lei especial.
7. Admitir o entendimento da decisão recorrida seria iludir o espírito da lei, premiando, por um lado, a omissão da progenitora, que durante quase 4 anos nada fez para valer os direitos dos menores, e por outro lado, abrindo a porta à desresponsabilização dos obrigados a prestar alimentos, por saberem a priori que o Estado supriria as suas faltas. Essa não foi, por certo, a intenção do legislador.
8. O poder/dever de prestar alimentos a filho menor incumbe, antes de mais, aos progenitores, e é, quanto a estes, irrenunciável.
9. Decorre do n.º 5, do art.  4.°, do  Decreto-Lei  n°  164/99,  de  13 de  Maio,  uma delimitação temporal expressa, segundo a qual "O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal".
10. Sendo certo que o legislador não desconhecia o art. 2006.° do CC, é forçoso concluir que pretendeu com aquela norma determinar o momento em que a obrigação se constitui para o Fundo.
11. A ratio legis dos diplomas que regulam o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores é a de suprir necessidades de alimentos actuais dos menores.
12. De facto, as necessidades pretéritas do menor estão, por natureza, satisfeitas. Apenas assim se compreende a determinação legal que faz impender sobre o Tribunal as obrigações de apuramento dos rendimentos do agregado familiar do menor e das necessidades deste, "posto o que decidirá".
13. É também este o motivo pelo qual "O montante fixado pelo Tribunal perdura enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão (...)", e "Compete a quem receber a prestação a renovação anual da prova".
14. "Se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente", o Juiz pode estabelecer uma prestacão de alimentos provisória, acautelando-se, deste modo, a situação do menor face a uma possível demora na tramitação do incidente.
15. Não colhe, portanto, qualquer argumento que justifique a_imposicão ao FGADM do pagamento de prestações vencidas,
16. Nos_termos_da decisão recorrida, não terão de existir elementos probatórios referentes ao período correspondente, às prestações vencidas, bastando-se o Tribunal com o incumprimento do devedor. Tal entendimento não é fundado em qualquer dos diplomas que regulam o FGADM.
17. A prestação a assegurar pelo FGADM não tem um carácter incondicional: depende da existência e da manutenção dos pressupostos exigidos por lei para a sua atribuição (art. 3.°, n.° 6 da Lei n.° 75/98; art. 9.°, n.° 1, do DL n.° 164/99). Ora, somente a sentença determina que se os mesmos se encontram preenchidos e fixa o valor da prestação, pelo que, só a partir da data da mesma se constitui para o Fundo a obrigação.
18. O objectivo visado pela lei do FGADM é, pois, o de assegurar pagamentos futuros, e não de ressarcir eventuais quantias em dívida.
19. Na interpretação dos diplomas que regem o FGADM, o elemento literal tem de ser dimensionado pelo princípio hermenêutico contido no artigo 9.° do Código Civil.
20. A decisão recorrida violou o n.° 5, do art. 4.°, do Decreto-Lei n°. 164/99, de 13 de Maio.
Nestes termos e demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, e, consequentemente, proferindo-se nova decisão, que defina que a obrigação de prestar alimentos aos menores se constitui para o FGADM no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, nos termos do artigo 4.°, n.° 5, do Decreto-Lei n°. 164/99, de 13 de Maio.»

Não houve contra-alegação.
Nada obstando ao conhecimento do agravo, cumpre decidir.

2. Fundamentos:
2.1. De facto:
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) O agregado familiar da requerente é constituído por si e pelos menores P, P, E, M e V;
b) O referido agregado familiar vive à custa do rendimento social de inserção, no valor de € 549,54, e do somatório das prestações familiares dos menores, no valor de € 125, 00 mensais;
c) O referido agregado familiar reside num fogo municipal, pelo que paga a renda mensal de € 18,27, com rendas em atraso;
d) A requerente não exerce actividade profissional;
e) Os menores encontram-se a frequentar estabelecimento de ensino oficial;
f) Não são conhecidos problemas de saúde aos menores;
g) Não se logrou obter o pagamento voluntário, nem coercivo das prestações alimentícias vencidas e vincendas, por parte do requerido Paulo Jorge dos Santos Jerónimo.

2.2. De direito:
A questão a resolver é a de saber se o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores somente deverá ser responsabilizado pelo pagamento das prestações fixadas e devidas a partir da notificação da decisão judicial.
Nos termos do art. 189º da OTM quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, proceder-se-á a pagamento das prestações de alimentos vencidas e vincendas, através de desconto no vencimento, ordenado, salário do devedor, ou de rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos e comparticipações que sejam processadas com regularidade.
Mas na hipótese de os alimentos devidos ao filho menor não poderem ser cobrados nos termos previstos no art. 189º da OTM, a Lei n.º 75/98, de 19/11 e o Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/5 atribuem ao Estado, através do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a obrigação de garantir esse pagamento, até ao efectivo cumprimento da obrigação pelo progenitor devedor.
Assim, a Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, consagrou a garantia de alimentos devidos a menores, estabelecendo no seu artigo 1º:
«Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação.».
E no seu artigo 2º prescreve:
«1 – As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC.
2 – Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.»          
Este diploma legal foi regulamentando pelo DL nº 164/99, de 13 de Maio, em cujo preâmbulo se reconhece expressamente o direito a alimentos, traduzido “no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”, acrescentando-se que para o não cumprimento da obrigação de alimentos devidos a menor, no âmbito dos deveres inerentes ao poder paternal, assumem, entre outros factores, “frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos, da toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais.”
Porém, a atribuição das prestações ao abrigo do regime instituído por estes diplomas pressupõe, cumulativamente, para além da impossibilidade da cobrança da prestação nos termos do art. 189º da OTM, estar a pessoa obrigada judicialmente a prestar alimentos a menor que resida em Portugal e que este não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre. Entendendo-se que o alimentado não beneficia de tal condição quando a capitação de rendimentos do respectiva agregado familiar não seja superior àquele salário.
Verificados tais requisitos, deverá o aludido Fundo ser responsabilizado pelo pagamento das prestações devidas ao menor, assegurando-se dessa forma “condições de subsistência mínimas” às crianças.
O montante das prestações a pagar pode não ter correspondência com a obrigação fixada ao devedor dos alimentos, uma vez que aquelas prestações, que não podem exceder mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC, são fixadas pelo tribunal quando se mostre inviável o cumprimento de tal obrigação, por insuficiência económica ou ausência do devedor, na sequência de diligências de prova consideradas indispensáveis pelo tribunal e de inquérito sobre as necessidades do menor (artigo 2º da Lei nº 75/98 e artigos 3º e 4º do DL nº 164/99).
E compreende-se que assim seja, visto que aos pais cabe, em primeira linha, proporcionar aos filhos os meios para o seu desenvolvimento harmonioso, nomeadamente na vertente do direito alimentos, surgindo a responsabilidade do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores apenas no caso de o progenitor obrigado a prestar alimentos não satisfazer essa obrigação e se verificarem os demais pressupostos legais.
O pagamento das prestações por conta do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores apenas se inicia no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal (artigo 4º nº 5 do DL nº 164/99).
Muito embora se conheça jurisprudência no sentido propugnado pela decisão recorrida, entende-se, face ao quadro legal desenhado, que o Fundo apenas assegura o pagamento das prestações de alimentos devidas a menores, em substituição do devedor originário, a partir do momento em que ocorre a notificação da decisão do tribunal, não tendo aplicação, no caso, a regra inserta no artigo 2006º do Código Civil, segundo o qual os alimentos são devidos desde a proposição da acção.
Este entendimento, que é maioritário na jurisprudência[1], é o que melhor interpreta o sentido e o alcance desta nova prestação social, que constitui apenas um paliativo para minorar as dificuldades de subsistência de crianças cujo progenitor, vinculado ao pagamento de prestação de alimentos, não cumpre essa obrigação, colocando-as numa situação de privação socialmente inaceitável. Só ao devedor originário pode exigir-se o pagamento nos termos estabelecidos no referido artigo 2006º.
Como se escreveu no Acórdão da RP de 13.01.2005[2] naqueles diplomas (Lei nº 75/98 e DL nº 164/99) “…não se alude às prestações anteriores em dívida, nem parece que lhes fosse devida qualquer referência: O Estado substitui-se ao devedor, não para pagar as prestações em dívida por este, mas para assegurar os alimentos de que o menor carece, através das prestações fixadas nos termos dos novos diplomas.
A dívida anterior serve apenas de pressuposto legitimador da intervenção, subsidiária, do Estado, para satisfazer uma necessidade actual do menor.
Por outro lado, pode afirmar-se que o pagamento das prestações relativas ao período anterior não visaria propriamente satisfazer as necessidades presentes de alimentos a menor, constituindo antes um crédito de quem, na ausência do requerido, custeou unilateralmente, ao logo dos anos, a satisfação dessas necessidades.”
Aliás, as “dotações orçamentais do Fundo são feitas anualmente (art. 6º nº 4 da Lei 75/98), sendo natural que elas obedeçam a uma avaliação prévia, por parte da tutela, das responsabilidades comunicadas pelos tribunais, em cada ano, ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social”, tornando difícil prever e assegurar os encargos decorrentes do tempo inerente ao processamento do incidente em causa e à realização das diligências de prova que devem preceder a decisão e que não respeitam já a uma necessidade actual, mas passada, que, bem ou mal, foi pela força das circunstâncias suprida.

Procede, assim, o núcleo essencial das conclusões da alegação do agravante.

3. Decisão:
Nesta conformidade, acorda-se em conceder provimento ao agravo e, consequentemente, determina-se que o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores assegure o pagamento da prestação de alimentos fixada a partir do mês seguinte ao da notificação da decisão recorrida, nessa parte se revogando esta decisão e confirmando-se no mais.
Sem custas.
13 de Março de 2008-03-07
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Pereira Rodrigues) vencido nos termos da declaração em anexo
_______________________
[1] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ de 27 de Setembro de 2007, proferido no Processo nº 2498/07-7ª, ao que se crê inédito, da RP de 04.07.2002, 28.11.2002, 08.07.2004 e 01.03.2005, da RC de 28.09.2004, estes disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Acessível em http://www.dgsi.pt.

___________________________________________

DECLARAÇÃO DE VOTO.
Confirmaria a decisão recorrida pelos seguintes fundamentos:
O problema que se coloca no recurso é o de saber se o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, nos termos da Lei n.º 75/98, de 19/11 e o Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/5 deve responder apenas pelas prestações vincendas ou se também pelas vencidas.
Sobre esta questão a jurisprudência encontra-se dividida entre as duas posições, esgrimindo argumentos num e noutro sentido, conforme a solução para que propende.
Uma corrente defende não ser o Fundo responsável pelas prestações vencidas, que seriam da responsabilidade do progenitor obrigado a prestar alimentos, até porque o pagamento das prestações por conta do Fundo se inicia apenas no mês seguinte ao da notificação da decisão condenatória. Nesse sentido se pronunciaram os doutos arestos: do Porto de 4.7.2002, 28.11.2002, 8.7.2004, 13.1.2005 e 1.3.2005; de Coimbra de 28.09.2004 e de Guimarães de 11.5.2003 e 11.2.2004[1].
Outra corrente defende ser o aludido Fundo, como garante legal do devedor principal, o progenitor condenado a pagar alimentos, responsável pelo incumprimento deste, desde que os débitos acumulados sejam posteriores à data da entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para o Ano de 2000. Neste sentido se pronunciaram os seguintes Acórdãos: do Porto de 21.09.2004; de 25.10.2004; de 22.11.2004; de 29.11.2004; de Lisboa de 12.07.2001; de Guimarães de 31.03.2004 e do STJ de 31.01.2002 [2].
Posição distinta de qualquer daqueles correntes é a que se perfilhou no Acórdão de Coimbra de 11.02.2004, que entendendo embora que os alimentos a suportar pelo Fundo não podem abranger as prestações acumuladas que o primitivo devedor não pagou,  defende, todavia, que os alimentos a suportar pelo Fundo são devidos desde a data em que foi apresentado o respectivo pedido, e não desde a data da decisão que os fixa[3].
Ora, analisadas as diferentes posições assumidas sobre a matéria em discussão, parece-nos de seguir aquela pela qual se bate a jurisprudência que defende o entendimento de que o Fundo é responsável pelos débitos acumulados desde que posteriores à entrada em vigor da lei que instituiu a intervenção daquele Fundo, ou seja, desde 01.01.2000.
Com efeito, do estatuído nos artigos 1º da Lei n.º 75/98 e 3.º n.º 1 al.s a) e b) do DL n.º 164/99, decorre que a aplicação do regime estabelecido por aquela Lei, ou seja, a intervenção do Fundo, se encontra dependente do facto de existir um progenitor obrigado, por decisão judicial, a prestar alimentos a menor e que não tenha cumprido, satisfazendo as quantias devidas, nem os alimentos tenham sido cobrados pelas formas previstas no artigo 189 da OTM. E ainda do facto de o menor não ter rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficiar nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre. Verificados tais requisitos, o Fundo pode ser responsabilizado pelo pagamento dos alimentos devidos ao menor e fixados pelo tribunal, ficando sub-rogado em todos os direitos daquele perante o devedor originário.
E em nosso entender, esta sub-rogação deve abarcar todas as prestações devidas ao menor, tanto as vencidas, que o obrigado não pagou, como as vincendas que o Fundo sempre deverá garantir, apenas se colocando como limite temporal – para as prestações vencidas – a entrada em vigor da Lei do Orçamento para o ano de 2000.
Com efeito, quando a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir. No caso o legislador não inseriu no preceituado da lei qualquer distinção entre prestações vencidas e prestações vincendas, pelo que não cabe ao intérprete distinguir aquilo que o legislador não distinguiu, sendo que se o legislador tivesse querido apenas garantir o pagamento das vincendas não deixaria, com clareza, de o afirmar, como fez no art. 2006º do Cód. Civil, relativamente às prestações aí previstas.
Mas não parece que fosse esse o desiderato da lei na medida em que tem por finalidade estabelecer um mecanismo para assegurar o incumprimento do devedor de alimentos. Como se refere no preâmbulo do DL n.º 164/99, a criação do Fundo destina-se a “assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor”, o que sugere que o Fundo irá suprir o que não foi cumprido em devido tempo, designadamente as prestações vencidas. O que se compreende, na medida em que o Fundo intervém inequivocamente em substituição do devedor relapso, actuando como garante do cumprimento das obrigações desse devedor.
Mas a intervenção do Fundo é, meramente, subsidiária só se verificando uma vez apurados os pressupostos acima descritos, o que pode implicar uma demorada tramitação processual.
Assim sendo, não se compreenderia que o menor, durante esse lapso de tempo, que pode ser dilatado, não beneficiasse da prestação alimentar. A satisfação das necessidades do menor não pode ficar na dependência da maior ou menor celeridade processual, nem da maior ou menor diligência de quem o represente.
E em sentido contrário não se pode argumentar que o Fundo apenas após a sua notificação se encontra obrigado a efectuar o pagamento das prestações de alimentos ao menor, dado o facto de o pagamento se iniciar apenas no mês seguinte ao da notificação da decisão condenatória. De facto assim é, mas tal circunstancialismo apenas tem o significado de fixar o momento a partir do qual o Fundo deve pagar e não o quantum abrangido por esse pagamento.
Também o facto de a prestação de alimentos a pagar pelo Fundo dever atender às condições actuais do menor e do seu agregado familiar, não afasta a possibilidade de o Fundo ser responsabilizado pelo pagamento das prestações vencidas, pois se tais condições justificarem a intervenção do Fundo sempre se justificará que seja no sentido de também abranger as prestações em atraso. É que não existe fundamento para defender o nascimento da prestação a cargo do Fundo, com a consequente obrigação de pagamento, apenas no mês seguinte à notificação ao organismo da Segurança Social. Na verdade, não havendo argumento literal razoável, também não existe ratio iuris que a tal nos conduza.
Nem se argumente que foi preocupação do legislador evitar o agravamento excessivo da despesa pública, um aumento do peso do Estado na sociedade portuguesa e que o legislador não teve em vista uma situação que a médio prazo se tornasse insustentável para a despesa pública, face à conjuntura sócio-económica já então perfeitamente delineada.
O argumento, de natureza meramente economicista, não parece colher, pois que não decorre da lei (nem da Lei n.º 75/98, nem do DL n.º 164/99) nada que possa confirmar aquela preocupação, que, de resto, não se justificaria que estivesse presente quando estão em causa deveres do Estado em assegurar a dignidade da criança, a quem é devida toda a protecção, por força do comando estabelecido no art. 69.º, da Constituição da República Portuguesa.
Também não convence a argumentação utilizada pela jurisprudência oposta para justificar que o Fundo não deve garantir as prestações vencidas e que é a de que a prestação a cargo do Fundo é uma prestação autónoma e nova, em face da obrigação de alimentos a cargo dos progenitores e não cumprida e, por isso, apenas essa prestação é devida.
Na verdade, é questionável tal entendimento, não parecendo tão líquido como se afirma. Não se esqueça que a prestação de alimentos a cargo do Fundo supõe uma prestação de alimentos a cargo dos progenitores e não paga, voluntária ou coercivamente (art. 1.º Lei n.º 75/98), que só subsiste enquanto aquela e o seu não cumprimento subsistirem (art. 3.º, n.º 4, Lei n.º 75/98. e art. 3.º, n.º 1, Dec. Lei n.º 164/99).
Acresce que o seu pagamento confere ao Fundo o direito de reembolso perante o obrigado a alimentos (art. 6.º, n.º 3, Lei cit. e art. 5.º do Dec. Lei n.º 164/99) em função quantum da mesma fixado por decisão judicial (art. 2.º da Lei n.º 75/98 e art. 3.º, n.º 3 do Dec. Lei n.º 164/99).
Por outro lado, como resulta do escopo da lei, a função desta prestação é sempre uma função de garantia relativamente à obrigação de alimentos a cargo dos progenitores.
Por estas razões não se descortina, pois, que o conjunto de normas e princípios da ordem jurídica nos permitam defender a tal autonomia desta obrigação, a cargo do Fundo, em face da obrigação imputável ao devedor.
Deste modo, parece improceder qualquer ilação no sentido de que o Estado, com os referidos diplomas legais, não se quis substituir ao devedor para garantir o pagamento das prestações vencidas, pois que, de outro modo, não se entenderia o cariz necessariamente substitutivo e de garantia do Fundo em relação às prestações já devidas, mas que não puderam ser coercivamente cobradas.
Não se pode perder de vista a natureza social do direito em causa, que postula interpretação que salvaguarde o direito do menor a uma prestação social já existente, mas não satisfeita, sendo que a intervenção do Fundo de Garantia é supletiva e só ocorre, na veste de garante, porque o devedor principal a incumpriu. E o momento em que opera essa intervenção de garantia deve reportar-se ao momento em que nasce o direito para o seu titular, apenas com as limitações temporais impostas pela data de entrada em vigor da lei que autoriza a intervenção do Fundo.
Nesse sentido parece ser também o entendimento de Remédio Marques quando escreve: “constatado o elevado número de situações de incumprimento de pensões de alimentos devidos a menores, já judicialmente decretados, aliado à circunstância de o art. 189º da OTM só prever uma medida pré-executiva relativamente aos devedores que trabalhem por conta própria ou que aufiram rendimentos certos e periódicos, a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, instituiu recentemente um mecanismo de garantia de alimentos, a suportar pelo Estado sendo os pagamentos efectivamente assegurados pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores”[4].
Entende-se, assim, que se os alimentos em dívida dizem respeito a período posterior à data de entrada em vigor da Lei 75/98 e do Dec. Lei n.º 164/99, que a regulamentou, o Fundo é garante das prestações, desde a data em que o direito em relação a ele entrou na esfera jurídica do menor credor.
Porque o Fundo de Garantia intervém em substituição do devedor, actua, autonomamente, mas tendo por base uma obrigação de garantia, que nasce no momento em que o devedor entra em situação de incumprimento, tornando-se, então, responsável pelo pagamento dos débitos acumulados, pois, de outro modo, não cumpriria a sua função de garante, que é, por natureza e definição, supletiva ou substitutiva.
Saliente-se que estando em causa a interpretação de diplomas que conferem direitos socais, constitucionalmente garantidos, a interpretação deve acolher um sentido que melhor se acomode aos fins que a norma prossegue, sendo que, na dúvida, os direitos devem prevalecer sobre as restrições.
Daí que não seja de recusar ao menor o pagamento de dívidas alimentares vencidas pois que seria, claramente, recusar-lhe um direito social derivado, com matriz constitucional relacionado com direitos fundamentais.
Dentro desta lógica interpretativa, importa que se afirme a prevalência da exegese que não esvazie de conteúdo a defesa de direitos fundamentais a prestações, como é o direito de protecção da criança, na vertente do direito a alimentos, que engloba o direito à saúde e à educação, que não podem deixar de merecer e exigir uma protecção à margem de quaisquer injustificadas limitações.
É que a tese oposta à que aqui se defende pode conduzir a que um direito essencial à sobrevivência do menor, afinal, não seja garantido na prática, ou não seja garantido convenientemente, quer por virtude dos trâmites processuais a percorrer no intuito da cobrança dos alimentos devidos pelo progenitor incumpridor antes da propositura da acção contra o Fundo, quer até em função de alguma inércia ou ignorância em demandar o mesmo Fundo por parte de quem represente o menor.
Não parece que um direito de tal natureza, instituído para ocorrer a situações de carência económica, deva ficar ao sabor de vicissitudes susceptíveis de prejudicar o titular do mesmo direito, quantas vezes, a criança mais carente e indefesa.
A intenção do legislador foi certamente a de substituir uma pensão que não era paga por outra a pagar e com afastamento de danos para o menor, o que não se satisfaz em ficar a segunda na dependência das contingências do processo ou das manobras dilatórias do Fundo de Garantia de Alimentos.
Pelos motivos expostos manteria a decisão recorrida, pela qual, a meu ver, se faz a melhor interpretação da lei e se patenteia notável sensibilidade jurídica, que no caso se alia a humanizado Julgamento.
–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––  
[1] Todos acessíveis in http://www.dgsi.pt
[2] Todos acessíveis in http://www.dgsi.pt
[3] Também acessível in http://www.dgsi.pt
[4]  “Algumas Notas sobre Alimentos…”, pg. 220.