Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5680/2006-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CONTRIBUIÇÃO PARA A SEGURANÇA SOCIAL
HIPOTECA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: A circunstância de os créditos pelas contribuições devidas à Segurança Social que, nos termos do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio gozam de privilegio imobiliários não serem oponíveis aos credores hipotecários, não significa que não prefiram relativamente a outros credores e muito memos que não seja reconhecidos e graduados no âmbito do apenso de reclamação de créditos.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 7 ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- RELATÓRIO

O Instituto de Gestão Financeira de Segurança Social apresentou requerimento de reclamação de créditos, por apenso à execução para pagamento de quantia certa e forma ordinária que a Caixa Geral de Depósitos, S A intentou, contra E. […], pedindo em síntese, o reconhecimento e graduação no lugar próprio do crédito no total de Euros 6.608,09, e respectivos juros de mora, que alegadamente detém sobre o executado por virtude da falta de pagamento das devidas contribuições de segurança social relativas a trabalhadores ao seu serviço.      

Admitida liminarmente a reclamação a Caixa Geral de Depósitos, exequente deduziu oposição, na qual e em suma, suscita a inconstitucionalidade material do artº11 do DL 103/80, de 9 de Maio, devendo em consequência ser indeferida daquele credor.

Após verificar a tempestividade e suporte documental probatório dos créditos reclamados, o Tribunal proferiu decisão, segundo a qual, concluindo pela inconstitucionalidade material do sobredito diploma legal face à violação dos princípios da confiança legítima e da proporcionalidade contidos nos artigos 2 e 11 da CRP, rejeitando a reclamação de créditos apresentada pelo IGFSS.  

Inconformado com o julgado, o IGFSS interpôs recurso, recebido como de apelação e efeito meramente devolutivo.

O recorrente alegou.

Das suas razões respigamos, em sinopse, o teor das conclusões:  

-Os créditos por contribuições para a Segurança Social (e juros de mora) gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral, sem que lhes faça qualquer restrição de eficácia;

- Só um privilégio creditório muito forte susceptível de garantir adequadamente os créditos devidos à Segurança Social, salvaguardando-se o respectivo interesse público permite o cumprimento adequado da obrigação constitucional atribuída ao Estado (artº63 da CRP);

- O legislador ao criar os referidos privilégios não podia ignorar o artº735, nº3 e artº751 do CCivil e, nessa medida, ao estabelecê-los, não chegando a concretizar a sua espécie (embora só possam ser considerados como gerais, por abrangerem o valor de todos os bens imóveis existentes no património do devedor à data da instauração do processo executivo), o legislador não pretendeu subtraí-los à norma do artº751 do CCivil respeitante exclusivamente, ao privilégio mobiliário geral, visto que o Código Civil não previa o imobiliário geral.

-A consagração do privilégio imobiliário geral a favor da Segurança Social, sem qualquer limitação, obriga à aplicação das regras fixadas no artº751 do CCivil, isto é, os privilégios imobiliários preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca, ao direito de retenção ainda que estas garantias tenham sido anteriormente constituídas, não sendo exigido o registo dos mesmos.    
     
Termina pugnando pela revogação da decisão que deve ser substituída por outra que a admita a reclamação de créditos.

     Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

II-   FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Estão provados com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
   
 - Encontra-se penhorado na acção executiva, um imóvel pertencente ao executado, sobre o qual incide hipoteca registada a favor da exequente.
     
- O ora Apelante, Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, reclamou o crédito no total líquido de Euros 6.608,09 e juros de mora correspondente a contribuições em dívida e juros de mora do executado e referentes aos anos de 1996, 1997, 1998, 1999, 2000 e até Janeiro de 2001.

 III – ENQUADRAMENTO JURÍDICO

   O que demanda pronúncia por banda deste Tribunal:
 
a) Cuidar do acerto da decisão no segmento que conclui por verificada inconstitucionalidade material no âmbito do disposto no artº11 do DL 103/80, de 9 de Maio;
 
b) Sufragando a cominação de tal vício e excluída portanto a aplicação da norma atingida, indagar, da rejeição da reclamação de créditos determinada na decisão sindicada.
     
No tocante à primeira das questões.

Dispõe o artº11 do DL 103/80, de 9de Maio que:

“Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artº748 do Código Civil.”

Por sua vez, dispõe o artº12 do mesmo diploma legal:

“ O pagamento das contribuições será também garantido por hipoteca legal sobre os imóveis existentes no património das entidades patronais, nos mesmos termos que a contribuição predial.”

Vasta e diferenciada foi a jurisprudência nos últimos anos ao discutir tal vexata quaestio – se o privilégio imobiliário criado pelo artº2 do DL 512/76, de 3/7, e após, confirmado no artº11 do DL 103/80, de 9 de Maio, preferindo, ou não, às garantias reais ainda que constituídas e registadas anteriormente aos diplomas legais enunciados.
 
Assim, numa resenha meramente indicativa, pode afirmar-se que, o Supremo Tribunal de Justiça preponderou para considerar a prevalência dos créditos contributivos, enquanto o Supremo Tribunal Administrativo (1) evoluiu em sentido oposto.

Mas, foi pela mão do Tribunal Constitucional, na senda de sucessivos arestos (2) que concluíram pela exigência de uma interpretação restrita do dito preceito por violação dos princípios constitucionais da confiança (3) e da proporcionalidade (4) que, por fim, surge a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória, do artº11 do DL 103/80, quando interpretado no sentido de conferir ao crédito da Segurança Social preferência sobre um direito de crédito garantido por hipoteca registada.
 
 Fê-lo através do Acórdão do Tribunal Constitucional nº363/2002 in DR I Série A, de 16/10, declaração ainda em vigente.

Em decorrência, vejamos quais os efeitos estabelecidos no ordenamento jurídico para a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral por apelo ao disposto nos art.º 207 e artº282 da CRP (5), embora, pressupondo na situação em apreço o teor restrito do juízo de inconstitucionalidade (reporta apenas a exclusão de certa interpretação da norma legal visada, nº4).

Temos então, como solução regra, a da repristinação da norma anterior à considerada inconstitucional, domínio contudo, prejudicado, como retro referido, por aquela verter conteúdo igual à norma que lhe sucedeu.
 
Donde, não podendo ainda assim o Tribunal deixar de decidir na causa (6), impõe-se na aplicação concreta igual interpretação restritiva imposta pela declaração do Tribunal Constitucional, qual seja, a de que os créditos da segurança social não preferem aos créditos garantidos por hipoteca.
   
 Posto o que, neste conspecto, é ocioso continuar a discutir nos autos a questão da inconstitucionalidade material daquele normativo, o que foi concluído pela decisão apelada, pese embora incompreensivelmente omitido o referido aresto do Tribunal Constitucional com força obrigatória geral.  
 
No julgamento do caso espécie será esta a interpretação que pontifica a respectiva solução jurídica.

Aproximando.

Não é pacífica a classificação da natureza jurídica das contribuições devidas pelas entidades patronais, caracterizando-a como taxa, imposto, prémio de seguro de direito público, ou imposto de regime especial (7).

O certo é que, à margem da dissertação sobre a motivação do legislador por tal opção, aquele atribuiu preferência aos créditos contributivos, mandando graduá-los logo a seguir aos impostos do Estado e ao ora denominado imposto municipal (ex-contribuição predial/contribuição autárquica).  

Assim no artº735 do CCivil o legislador prevê a existência de privilégios mobiliários gerais e especiais, e imobiliários apenas especiais, ao passo que, no artº751 do mesmo compêndio legal limita-se a definir quais os efeitos a atribuir a privilégios imobiliários especiais (8).

Parece não poder ser outro o alcance da categoria dos privilégios imobiliários prevista no artº751, que não os especiais previstos no mesmo Código, deixando à margem do efeito da oponibilidade a terceiro, designadamente com hipoteca sobre o imóvel, os privilégios imobiliários especiais estabelecidos em outras leis, como no artº11 do DL 103/80, referente aos créditos da segurança social e o património da entidade patronal devedora (9).

Na realidade, essa constitui a interpretação ajustada e em harmonia com os demais princípios do direito, designadamente a fé pública do registo e, a tutela da confiança, porquanto, ao não restringir-se tal amplitude em última análise, ficariam frustradas as expectativas dos outros credores que, acabariam surpreendidos com um crédito “garantido” sobre o bem imóvel, pois que goza de isenção de registo e insusceptível de chegar ao conhecimento geral.          

De todo em todo, e seguindo a hermenêutica constitucional acerca da limitação de abrangência do estabelecido no artº11 do DL 103/80, considerando que, é geral e não especial o privilégio imobiliário ali conferido aos créditos da Segurança Social, não prefere sobre o crédito hipotecário registado.
 
Donde, o crédito reclamado pelo Apelante, titular de direito que, recaindo sobre o imóvel penhorado nos autos não é oponível ao exequente, credor titular de hipoteca registada, tal como prevê o artº749, nº1 do CCivil e ainda visto o que dispõem os artº687, 798 do mesmo Código e também nos artº2, nº1al) h e artº50 do Código do Registo Predial.

 Passando agora à segunda questão.
 
Sequencialmente, a decisão recorrenda ao tirar a conclusão da inconstitucionalidade material sobredita, ditou o destino da pretensão do Apelante, rejeitou, em segunda apreciação (10), a reclamação de créditos do IGFSS.

Neste particular assiste inteira razão ao Apelante ao concluir nas alegações que a sua reclamação deve ser, sem dúvida, admitida.

Ressalvado o devido respeito, o reconhecimento do crédito não se confunde com a sua graduação ou ordem de pagamento pelo produto da venda do bem penhorado.

A leitura do invocado na decisão nº1 do Artº865, do CCivil, deverá, naturalmente, abranger os credores admitidos a reclamar na execução os créditos mercê de garantia real e ou de privilégio/preferência de pagamento atribuído por lei, tal como o Apelante e outras entidades dispõem (11).
 
Ora, no caso apesar de o Apelante não deter preferência no pagamento sobre o exequente, e já vimos das razões, decerto tem preferência sobre outros credores, e sempre após reconhecimento sobre o valor excedente que resultar da liquidação do valor daquele.  

Ademais, conquanto em leitura apressada se pondere a inviabilidade da satisfação efectiva do crédito do Apelante, dada a preferência e o valor do crédito do exequente (valor que aliás neste apenso é desconhecido), basta ponderar, ao invés, para a pertinência do reconhecimento do seu crédito, a ocorrência de um cenário optimista da venda do imóvel por preço superior ao valor do crédito hipotecário, ou, o pagamento extrajudicial do crédito do exequente, socorrendo-se o reclamante da faculdade de prosseguir os autos para liquidação do seu crédito que tem de estar reconhecido, ao abrigo do disposto no artº920, nº2 do CPC.
 
Em síntese conclusiva:

 a) A interpretação do disposto no artº11 do DL 103/80, de 9/5 à luz das regras vigentes da Constituição determina que o crédito contributivo reclamado pelo Apelante não deve ser graduado preferencialmente sobre o crédito do exequente garantido por hipoteca registada sobre o imóvel penhorado na execução;

b) Porém a reclamação do Apelante IGFSS que foi considerada tempestiva e cujo crédito foi provado documentalmente de forma cabal deverá ser admitida, reconhecido o crédito, graduando - o no lugar próprio com os demais credores de acordo com o disposto no artº868 do CPC.    

  IV - DECISÃO

 Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando parcialmente a decisão, que deverá ser substituída por outra que reconhecendo o crédito do Apelante o gradue com os demais em conformidade com as regras legais acima enunciadas.

Custas a cargo do executado.

Lisboa, 10 de Outubro de 2006

Isabel Salgado
Soares Curado
Roque Nogueira



______________________________________
1.-Ex.Ac.STA

2.-Ex,Ac.TC de 22/3/00 in BMJ 495, pag.45

3.-Princípio da confiança (artº2 da CRP) ínsito ao Estado de Direito e que postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e das expectativas que lhe são juridicamente criadas.

4.-Princípio da proporcionalidade (artº18 da CRP) que pontifica uma medida adequada à protecção do direito.

5.-Gomes Canotilho e Vital Moreira in CRP anotada, 3ª, pag.1039 e 1040.

6.--Gomes Canotilho e Vital Moreira in Fundamentos da Constituição, 1991, pag.275 e 276.

7.-Salvador da Costa : « a contribuição devida pelos empregadores, pelas suas características de prestação unilateral legalmente estabelecida para a prestação do fim público da segurança social, parece configurar-se como um imposto de regime especial. » in O Concurso de Credores, 2ª edição, pag.214

8.-Na redacção conferida pelo DL 38/2003, de 8/3, aqui aplicável nos termos do artº12, nº2 do CCivil .

9.-Posição sustentada por Almeida Costa in Direito das Obrigações, 5ª edição., pag.824.

10.-Decerto apoiando-se na previsão do nº4 in fne do artº868 do CPC, caso haja escapado na apreciação liminar da reclamação.

11.-Salvador da Costa in obra já citada, pag.243/4.