Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1151/18.0TELSB-A.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: NATUREZA DO PRAZO DO INQUÉRITO
MEDIDA DE SUSPENSÃO DE OPERAÇÕES BANCÁRIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Encontrando-se ultrapassado o prazo do inquérito estabelecido no disposto nos arts. 276.°, n.º 3, a) e 215.°, n.º 2, do Código de Processo Penal, e não tendo sido declarado no processo a sua situação de especial complexidade, independentemente da natureza ordenadora do prazo do inquérito previsto no Código de Processo Penal, a lei 83/2017 estabelece consequências para a sua ultrapassagem, não podendo por isso a medida de suspensão de operações bancárias ultrapassar tal limite, nos termos do disposto no art. 49.°, n.º 2 da Lei n.º 83/2017, pelo que deverá ser indeferida a prorrogação de tal medida.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I–Relatório:


1.No âmbito do NUIPC 1151/18.0TELSB, a correr termos, em fase de inquérito, no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, foi, em 18 de novembro de 2020, pelo Mmº Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz 2, proferido, a fls. 362 dos autos principais (com a referência Citius n.º 401335893 e com certidão a fls. 135 do presente recurso em separado - cfr. referência Citius n.º 400660903), o seguinte despacho:
“Independentemente da natureza ordenadora do prazo do inquérito previsto no Código de Processo Penal, a lei 83/2017 estabelece consequências para a sua ultrapassagem, não podendo a medida de suspensão de operações bancárias ultrapassar tal limite, nos termos do disposto no art. 49.°, n.º 2 da Lei n.º 83/2017.
Encontrando-se ultrapassado o prazo do inquérito estabelecido no disposto nos arts. 276.°, n.º 3, a) e 215.°, n.º 2, do Código de Processo Penal, indefiro a prorrogação de tal medida” (fim de transcrição).

2.O Ministério Público, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1)-Os presentes autos foram autuados em 02/01/2019, neste DIAP por remessa do DCIAP, no qual foram autuados em 18/12/2018, na sequência de uma comunicação de uma transacção suspeita recebida na conta n.° ………., do BPI, balcão Rossio, titulada por AA.
2)-Constatou-se que, entre 24 de Outubro de 2018 e 26 de Novembro de 2018 o denunciado AA veio receber na sua conta bancária do BPI com o IBAN ………., duas transferências bancárias indevidas, no valor total de €………., 10, de emitentes na Turquia e Japão.
3)-Estes valores não foram recuperados pelos titulares das contas indicados, indiciando-se que tenham sido obtidos através de phishing, uma vez que os beneficiários que foram indicados nas ordens de transferência, não correspondem aos titulares das contas.
4)-Igualmente, em Novembro de 2018, em conta titulada pelo arguido do Millenium BCP, com o NIB ………., o mesmo recebeu a quantia de €………….,00 de empresa sedeada em Singapura.
5)-O suspeito não possui actividade fiscal que justifique a entrada destas quantias monetárias na sua conta bancária, indiciando-se que as obteve contra a vontade dos seus titulares.
6)-Indicia-se fortemente a prática pelo suspeito de dois crimes de burla qualificada p. e p. pelo artigo 217° e 218°, n.° 2, als. a) do Código Penal, bem como de um crime de branqueamento de capitais p. e p. pelo artigo 368°A, do Código Penal.
7)-Em 23/09/2019, foram emitidas cartas rogatórias para o Japão e para a Turquia, com vista a identificar e inquirir os titulares das contas ordenantes, cujo cumprimento se aguarda.
8)-Igualmente, nessa data, veio a ser remetida DEI às autoridades espanholas, com vista a interrogar AA, que, apesar de natural da Libéria, possui residência e nacionalidade espanhola. Diligência que, se veio a revelar infrutífera.
9)-Determina o artigo 49°, n.° 2, da Lei N.° 83/2017 que: "Compete ao juiz de instrução confirmar a suspensão temporária decretada por período não superior a três meses, renovável dentro do prazo do inquérito."
10)-Ora, é entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que o prazo de duração do inquérito tem natureza meramente ordenadora e não peremptória.
11)-Conforme salienta Germano Marques da Silva (citado no Código de Processo Penal-Comentários e Notas Criticas, Coimbra Editora, 2009, anotação ao art.276°, pág. 691) a duração do inquérito, embora fixada por lei na sua dição máxima, não constitui uma garantia para o arguido ou para o ofendido.
12)-O direito do arguido a uma justiça célere, tem de ser ponderada em conjunto com o contexto da investigação em concreto, variando de acordo com os interesses a conciliar; com a complexidade dos factos e sua extensão no tempo e com a natureza das diligências de investigação a realçar.
13)-Acresce que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 215°, n.° 2, al. e) e artigo 276°, n.° 3, al. c), o prazo de duração do inquérito seria de 18 meses.
14)-Ora, atendendo, igualmente ao disposto no artigo 276°, n.° 5, do CPP: "5 - Em caso de expedição de carta rogatória, o decurso dos prazos previstos nos n.ºs 1 a 3 suspende-se até à respectiva devolução, não podendo o período total de suspensão, em cada processo, ser superior a metade do prazo máximo que corresponder ao inquérito.".
15)-Assim, até 23/09/2019, data de emissão das cartas rogatórias, decorreram 9 meses e 5 dias.
16)-A este prazo acrescem 9 meses de suspensão que se iniciaram a 23/09/2019 até 23/06/2020, data em que se reiniciaria o prazo suspenso, pelo que, apenas decorreram nesta data 14 meses, dos 18 meses previstos para a duração do inquérito.
17)-Além de que, as medidas de suspensão das operações bancárias vêm maioritariamente aliadas a investigações de enorme complexidade, que envolvem esquemas financeiros complexos, quer face às ligações transnacionais e às inerentes dificuldades de cooperação com autoridades de diversos países, quer pelas ramificações a grupos de indivíduos e por vezes sociedades dispersas geograficamente, o que dificilmente seria compaginável com um prazo peremptório de terminus do inquérito e da cessação da SOB aos mesmos associada.
Porém V. Exas. farão como sempre a costumada JUSTIÇA" (fim de transcrição).

3.Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 136 dos autos principais (com a referência Citius n.º 400803360 e com certidão a fls. 136 presente recurso em separado - cfr. referência Citius n.º 400660903).


4.Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação teve neles “Vista” e, a 15 de janeiro de 2021, emitiu o seguinte parecer (cfr. referência Citius n.º 16481493):
“No recurso interposto pelo Ministério Público do despacho proferido pelo Mmo Juiz de Instrução criminal de 18 de novembro de 2020, a questão suscitada é a de saber se é ainda admissível a prorrogação da medida de suspensão de operações bancárias a débito sobre a conta n.º 3-5656383, do BPI, balcão do Rossio, ordenada nos autos.
Compulsados os autos emite-se parecer no sentido do recurso merecer provimento, nada mais se oferecendo aditar à correta argumentação do Magistrado do Ministério Público na 1ª instância que o fundamenta.” (fim de transcrição).

5.Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso (cfr. referência Citius n.º 16551174).
Por despacho do ora relator (cfr. referência Citius n.º 16581140) foi solicitado “ao Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa informação sobre se no processo principal:
- já foi deduzida acusação e, na afirmativa, quando;
- se os autos foram declarados, pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, de excepcional complexidade e, na afirmativa, quando;
- se a, requerimento do Ministério Público, já existe decisão judicial decretando o arresto preventivo, nos termos do art. 228.º do CPP, das quantias monetárias existentes nas contas alvo da medida de suspensão de operações bancárias a débito, já que a medida cautelar processual-penal de garantia patrimonial de arresto preventivo, contrariamente aqueloutra, não está sujeita aos prazo de duração máxima do inquérito previstos no art. 276.º do CPP;
remetendo-nos, se for o caso, cópia da respectiva despacho(s)/ decisão(ões).” (fim de transcrição).

A resposta foi dada pela 8ª Secção daquele DIAP, pelo oficio com a refª 402578377, datado de 3 do corrente, com cópia do despacho de fls. 417 dos autos principais, prolatado, a 2 de fevereiro de 2021, pelo Exmº Procurador da República, sendo do seguinte teor:
“Fls. 416 – Informe que ainda não foi proferido despacho de acusação, uma vez que se aguarda devolução das cartas rogatórias emitidas para o Japão e Turquia.
Não foi, igualmente, proferida declaração de excepcional complexidade.
Considerando que o recurso tem efeito suspensivo, não foi, por ora, determinada outra medida cautelar relativamente à conta bancária, como sejam o arresto ou a apreensão bancária, aguardando-se a decisão a proferir com vista a avaliar a sua necessidade.” (fim de transcrição - cfr. referência Citius n.º 513628).

6. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II–Fundamentação


1.Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
A questão suscitada pelo recorrente, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese, a de que nada obsta, no plano legal, à prorrogação da medida de suspensão de operações bancárias a débito, como lhe era requerido pelo Ministério Público, porquanto o prazo do inquérito não se mostrava ultrapassado e, mesmo que o estivesse, tendo natureza meramente indicativa/ ordenadora e não perentória, não havia fundamento para Mmº JIC, nessa base, ter indeferido tal pretensão.

2.Pela sua relevância, para o cabal esclarecimento do que nos é trazido apreciar e pelo contributo que a respectiva fundamentação comporta, começaremos, antes de mais, por transcrever o despacho prolatado a 19 de dezembro de 2018 nos autos pelo Mmº Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal e que foi do seguinte teor:
“Da medida de suspensão provisória de operações bancárias a débito.
Compulsados os autos verifica-se que, face aos indícios de movimentos de branqueamento sobre as identificadas contas bancárias, o detentor da acção penal determinou, ao abrigo do art.° 48.°, n.°s 1 e 3, da Lei 83/2017 de 18/08, a suspensão provisória das operações de movimentos a débito sobre as contas do BPI n.° ………., do balcão do Rossio e do Millennium/BCP n.° ………. e contas associadas.
O titular da acção penal, veio promover que seja confirmada tal medida de suspensão provisória de todas as operações a débito, sobre as indicadas contas, por um período de 3 meses, com os fundamentos constantes da douta promoção antecedente que aqui se dá por reproduzida, por mera economia processual.
O pressuposto de aplicação desta medida assenta na possibilidade de formulação de um juízo indiciário de que as operações detectadas (realizadas ou em curso), sejam particularmente susceptíveis de estarem relacionadas com a prática de actividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo.
Assim, por via da citada Lei 83/2017, pretendeu o legislador adoptar medidas preventivas de combate aos referidos fenómenos — branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo, o que fez por ter entendido que os instrumentos e mecanismos já disponíveis, designadamente os disciplinados pelo Código de Processo Penal, revelavam, desde logo, insuficiência e desadequação para a prossecução de tais fins preventivos, donde se poderá concluir que, se tratam, na verdade, instrumentos diversos e dependentes de pressupostos igualmente diferentes.
No nosso humilde entendimento, julgamos que o legislador compreendeu que o fenómeno do branqueamento de capitais deve ser visto como um processo e não como um acto isolado, uma vez que se visa ocultar ou dar nova justificação para um conjunto de fundos de indiciada origem ilícita, finalidade que apenas é alcançada por um somatório de operações/ manobras de colocação, de circulação e de integração, que, a final, pode permitir quebrar a ligação dos fundos com a sua real origem ilícita — vide "El delito de blanqueo de capitales", de Carlos Aránguez Sánchez, Editora Marcial Pons, ano 2000, página 45.
Ademais, a medida preventiva disciplinada pelo Lei 83/2017, de 17/08, não faz apelo aos pressupostos de que dependem os meios de obtenção de prova disciplinados pelo art.° 181° do CPP, relativamente a apreensões.
O mesmo será dizer que, limitar a fundamentação da medida preventiva com a verificação de indícios sérios, no momento inicial ou mesmo embrionário de uma investigação, poderia inviabilizar, por si só, grande parte da possibilidade de prevenção de práticas de branqueamento e de utilização do sistema financeiro para esse fim, quando a medida aqui em referência se propõe viabilizar a investigação relativamente à prática ou comportamento que se diagnostica na forma de suspeita.
Neste tocante, somos do entendimento de que a medida de suspensão de operações bancárias a débito, depende apenas da existência de suspeitas de prática de acto criminoso — de catálogo, e deve ser entendida como um meio especial cautelar, reservado, designadamente à criminalidade económico-financeira, capaz de inviabilizar a disseminação dos fundos detectados (de proveniência duvidosa) no sistema financeiro, devendo, posteriormente e de imediato prosseguir a investigação sobre a ilicitude da transacção bancária fundada na existência de um crime precedente.
Porém, a especificidade da medida de suspensão de operações bancárias a débito, não dispensa o apelo a princípios gerais da necessidade da aplicação de tal medida e da sua criteriosa proporcionalidade e busca da verdade material, critérios, aliás, orientadores de qualquer outra intervenção investigatória ou judicial, pelo que, defendemos que tal interpretação não belisca os princípios constitucionais de adequação e proporcionalidade e não comprime infundadamente Direitos, Liberdades e Garantias, protegidos pela Lei fundamental.
Reunidos que estejam os pressupostos fundamentais, o recurso a uma medida desta natureza, pretende, desde logo, defender os superiores interesses da investigação criminal em crimes desta natureza, que, no nosso entender, justificam o sacrifício imposto ao visado pela medida, pois que fica sujeito a uma mora na disponibilização de determinada quantia.
Ao sobredito acresce que, ao amparo do disposto nos art°s 15°, n° 2 e 40° , ambos da Lei 25/2008, de 05/06, essa apreciação é feita, em primeiro lugar, pelas entidades obrigadas a um dever de vigilância, entre as quais as entidades do sector financeiro e seus reguladores.

Relativamente ao crime de branqueamento, designadamente quanto à sua autonomia, a mesma resulta de o crime ser previsto, pelo art.° 368°-A do Código Penal, relativamente a bens provenientes da prática de "factos ilícitos típicos", não se pressupondo, desde logo, a existência de uma condenação anterior ou sequer simultânea com a actividade de branqueamento, mas sim a verificação, independentemente de um juízo de culpa, de um "facto ilícito típico", que proporciona a produção de uma vantagem, a qual se pretende converter, transferir ou ocultar.
Tal autonomia do crime de branqueamento de capitais é imposta, desde logo, pelo art.° 9°, n° 5 da Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, concluída em Varsóvia a 16-05-2005, ratificada por Portugal, conforme Resolução da AR n° 82/2009, de 27 de Agosto, e Decreto do Presidente da República n° 78/2009, de 27/08, vigente relativamente a Portugal desde 01-082010.
No referido art.° 9°, n° 5 da Convenção, declaradamente se estatui que deverá ser garantida a possibilidade de condenação por branqueamento, independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente.

* * *

Nesse tocante, todas as operações bancárias que recaíam sobre os fundos cuja origem mereça a referida apreciação de risco devem ser consideradas suspeitas de constituírem manobras de branqueamento de capitais.
Aqui chegados, cumpre consignar que o TCIC, tem vindo a louvar-se no douto aresto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa — 5a Secção, datado de 10-01-2012, P° 169/10.6TELSB-A.L1, o qual nos ensina que a medida aqui em causa, sendo um instrumento de recolha de prova, não pressupõe obrigatoriamente a existência de fortes indícios da prática do crime de "catálogo" e de quem é ou são os seus agentes, isto porque o recurso à imposição de tal medida não depende da existência de fortes indícios da prática de um crime de "catálogo", como a seguir se transcreve:
(...) "Importa deixar claro que o recurso a tal-medida não depende da existência de fortes indícios da prática de um crime do catálogo.
Com efeito, sendo um instrumento de recolha de prova, não faria sentido que fosse legalmente exigida a existência dessa forte indiciação, sob pena de se contrariar, ou submeter a uma inversão intolerável, a lógica da reconstrução material- da verdade factual-levada a cabo pela investigação criminal.
A semelhança do que acontece com outros meios de obtenção de provas (v.g. as intercepções telefónicas), basta que haja suspeitas da prática do crime (de catálogo) e de quem é ou são os seus agentes. " ( ..)
Vai mais longe o supracitado Acórdão do TRL, quando nos aclara:
(...) "não se trata de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial -, mas essencial-mente de um meio de recolha de prova na investigação do branqueamento, não se lhe pode negar uma certa função cautelar (“prevenir a prática de crime de branqueamento de capitais”). Mas não podem restar dúvidas de que se trata de um dos instrumentos do regime específico de obtenção de prova instituído para superar alguns pontos de broqueio na investigação da criminalidade económico financeira organizada.
A suspensão de movimentos sobre contas de depósitos é, pois, uma medida que se integra no recentemente criado instituto de controlo ou vigilância de contas bancárias e os traços essenciais do seu regime são os seguintes:
tem de ser ordenada ou autorizada pelo juiz (caso em que será incluída no despacho judicial que ordena ou autoriza o controlo da(s) conta(s) bancária(s)) ou, sendo da iniciativa de uma "entidade sujeita" ao dever de abstenção, nos termos do disposto no n.° 1 do art.° 17.° da Lei n.° 25/2008, de 5 de junho, tem de ser confirmada pelo juiz de instrução criminal no prazo de dois dias úteis a contar da comunicação daquela entidade;
a sua aplicação terá lugar quando se revelar necessária a prevenir a prática de crime debranqueamento de capitais e tiver grande interesse para a descoberta da verdade." (...) (sic.)

Assim, face aos indícios da proveniência ilícita dos fundos e por forma a evitar que estes se dispersem na economia legítima enquanto se apura a verdade dos factos, deferindo-se ao doutamente promovido pelo titular da acção penal, confirmo a suspensão provisória decretada pelo DCIAP e determino, ao abrigo do disposto no art.° 49°, nos 1 e 2, da Lei 83/2017 de 18/08, a suspensão provisória das operações de movimentos a débito sobre as contas bancárias do BPI n.° 3-5656383 (do balcão do Rossio) e do Millennium/BCP n.° 45541645695 (do balcão 565), e contas associadas, a vigorar até 19 de Março de 2019.
Comunique de imediato, via fax, ao Departamento de Compliance das referidas IC. Notifique e D.N.
Após, devolva os autos ao DCIAP." (fim de transcrição).

3.Dito isto avancemos, aquilatando, então, se assiste razão ao recorrente.
Como resulta dos autos e da certidão que os instrui, os presentes autos (reportamo-nos ao processo principal) foram autuados, em 2 de janeiro de 2019, no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, por remessa do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, no qual foram autuados em 18 de dezembro de 2018, na sequência de uma comunicação de uma transacção suspeita recebida na conta n………., do BPI, balcão Rossio, titulada por AA.
Com efeito, constatou-se que, em 24 de outubro e 26 de novembro de 2018 o denunciado AA recebeu na sua conta bancária do BPI com o IBAN ………., duas transferências bancárias indevidas, a primeira, no valor de €……….,10, da conta titulada pela BB, proveniente do …………… Bank, do Japão, cuja devolução foi solicitada em 9 de janeiro de 2019, e a segunda, no valor de €…………,00, da conta titulada pela CC, proveniente do DD, na Turquia, cujo pedido de devolução foi efectuado em 11 de dezembro de 2018.
Estes valores não foram recuperados pelos titulares das contas indicados, indiciando-se que tenham sido obtidos através de phishing, uma vez que os beneficiários que foram indicados nas ordens de transferência, não correspondem aos titulares das contas.
Igualmente, em novembro de 2018, em conta do Millenium BCP, com o NIB ………., titulada pelo suspeito AA, o mesmo recebeu a quantia de €……….,00 de empresa sedeada em Singapura.

Após transferência desta quantia para contas no estrangeiro, veio a ser encerrada esta conta, pelo que, não veio a ser sujeita a SOB.
O suspeito não possui actividade que justifique a entrada destas quantias monetárias nas suas contas bancárias, indiciando-se que as obteve contra a vontade dos seus titulares.
Com efeito, como resulta da prova indiciária carreada para os autos AA apresentou o passaporte de nacional de Espanha com o n.º ………… (constam cópias a fls. 10, 64 e 86 do presente recurso em separado, como as demais de que não se indique origem), no qual figura ter nascido em XX, na Libéria, a ………., bem como disse ser servente da construção civil e obras públicas, tendo apresentado nesse sentido, no banco BP1, balcão do Rossio, em 29 de agosto de 2018 e para abertura de conta bancária, cópia de um "contrato de trabalho", celebrado entre si e a empresa "ZZZ Lda", NIF ………., com efeitos a partir de 1 de junho de 2018, para a categoria de servente, com um ordenado mensal ilíquido de €580,00 (quinhentos e oitenta euros) acrescido de €5,78 (cinco euros e setenta e oito cêntimos) de subsídio de alimentação diário, a ser pago através de cheque (consta cópia a fls. 15, considerando e fundamentando a PJ a fls. 36 e 68 que tal contrato de trabalho é documento sem qualquer correspondência com a realidade, dada, nomeadamente, a inactividade daquela empresa, com sede na Amadora, que alegadamente se dedica ao ramo de actividade da área de construção civil e obras públicas).
Mais consta que o suspeito é titular do NIF …….., e dá como n.º de telefone ……….. e morada em Portugal na Rua ………. - Amora e em Espanha quer na Calle ………. - Huelva, bem como nas duas moradas de Madrid, constantes de fls. 109.
A sua morada em Portugal mostra-se inclusive atestada pelo Presidente da Junta de Freguesia da Amora, no ATESTADO emitido em 23 de agosto de 2018, onde indica que o mesmo é domiciliado, desde 1 de janeiro de 2016, na Rua ………. e tem a nacionalidade portuguesa (constam cópias a fls. 14 e 67).
Acresce que, AA consta como "Não Residente" e "Sem Representante de IR", e, à data de 18 de dezembro de 2018, não possuía rendimentos declarados em Portugal nos últimos 5 anos, nem constava como proprietário de quaisquer imóveis.
Por isso, como anteriormente dissemos e resulta, designadamente de fls. 10 e 38 e seguintes, as relevantes entradas de dinheiro registadas nas suas contas bancárias do BPI e do Millenium BCP em questão, desde a sua abertura, pela sua origem/proveniência, mormente geográfica, e elevados montantes envolvidos declarada por AA, sendo absolutamente incompatíveis com o seu estatuto remuneratório.
Assim, indicia-se fortemente a prática pelo suspeito AA de dois crimes de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217.° e 218.°, n.° 2, alínea a), ambos do Código Penal, bem como de um crime de branqueamento de capitais p. e p. pelo artigo 368.°-A, do Código Penal.
Nessa sequência, obtida a documentação bancária considerada relevante, em 23 de setembro de 2019, foram emitidas cartas rogatórias para o Japão e para a Turquia, com vista a identificar e inquirir os titulares das contas ordenantes, cujo cumprimento se aguarda.
Igualmente, nessa data, veio a ser remetida DEI às autoridades espanholas, com vista a interrogar AA, que, apesar de natural da ::::::::::::, possui residência e nacionalidade espanhola. Diligência que, se veio a revelar infrutífera.
Determina o artigo 49.°, n.° 2, da Lei n.° 83/2017 que: "Compete ao juiz de instrução confirmar a suspensão temporária decretada por período não superior a três meses, renovável dentro do prazo do inquérito."
Perante a indiciada prática de crimes de burla e de branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e não tendo sido deduzida acusação, nos termos da conjugação dos artigos 276.°, n.°s 1 e 3, alínea a), e 215.°, n.°s 1, alínea a), e 2, alíneas d) e e), ambos do CPP, o prazo de duração máxima do presente inquérito é de 14 (catorze) meses.
Prazo que, face ao estabelecido no art. 215.°, n.° 3, alínea c), do CPP, seria elevado para 18 (dezoito), se o procedimento se revelasse de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
Porém, o processo não foi judicialmente declarado de excepcional complexidade (vd. supra I-5).
Pese embora alegue o recorrente que são de enorme complexidade as investigações, que envolvem esquemas financeiros complexos, quer face às ligações transnacionais e às inerentes dificuldades de cooperação com autoridades de diversos países, quer pelas ramificações a grupos de indivíduos e por vezes sociedades dispersas geograficamente (vd. sua conclusão 17ª), com o que este tribunal ad quem concorda em termos genéricos, certo é que o Ministério Público não alega nem que o presente processo tenha sido judicialmente declarado de excepcional complexidade nem sequer explicitamente que o processo seja de excepcional complexidade, embora isso esteja implícito nas suas motivações e conclusões, sendo certo que, como se deu conta em sede de relatório do presente acórdão (vd. supra I-5), o processo não foi até agora declarado de excepcional complexidade.

E, nos termos do n.º 4 do no art. 215.°, do CPP, “a excepcional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente”, caso tenham já sido constituídos no processo, o que não sucedeu in casu até à prolação da decisão recorrida.
Excepcional complexidade que, como verificámos, não foi declarada, naqueles termos, como se impunha.
Atendendo, igualmente ao disposto no artigo 276.°, n.° 5, do CPP “Em caso de expedição de carta rogatória, o decurso dos prazos previstos nos n.ºs 1 a 3 suspende-se até à respectiva devolução, não podendo o período total de suspensão, em cada processo, ser superior a metade do prazo máximo que corresponder ao inquérito.".
Assim, tendo-se o inquérito iniciado em 18 de dezembro de 2018, até 23 de setembro de 2019, data de emissão das cartas rogatórias, haviam decorrido 9 meses e 5 dias.
A este prazo acrescem 7 meses de suspensão (a tal metade do prazo máximo que corresponde ao inquérito a que alude o artigo 276.°, n.° 5, do CPP) que se iniciaram a 23 de setembro de 2019 até 23 de abril de 2020, data em que se reiniciou o prazo suspenso, pelo que à data em que foi proferido o despacho ora recorrido (18 de novembro de 2020), já haviam decorrido nessa data 23 meses dos 21 (14 + 7 meses) legalmente estabelecidos para a duração do inquérito.
Destarte, tal como afirmado pelo Mmº Juiz a quo na decisão ora sub iudice, o prazo do inquérito estava ultrapassado pelo que não havia motivo para, nessa base, não ter prorrogado a medida de suspensão de operações bancárias a débito, como lhe era requerido pelo Ministério Público, no pressuposto que o prazo do inquérito era in causu de 18 meses, o que levaria a que o seu terminus só viesse a ocorrer no dia 18 de março de 2021, isto é ao fim de 27 meses (18 + 9 meses) não estando, por isso, e segundo o ora recorrente, precludido. Todavia, como vimos não é esse o prazo máximo do presente inquérito.

Mais defende o recorrente que, mesmo que estivesse ultrapassado o prazo legal do inquérito, não tendo este natureza meramente indicativa/ ordenadora e não perentória, não havia fundamento para Mmº JIC, também nessoutra base, ter indeferido aquela pretensão.
Invoca, para tanto o Ministério Público ser entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que o prazo de duração do inquérito tem natureza meramente ordenadora e não peremptória.

Neste sentido trouxe o recorrente à colação o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.° 122/13.8TELSB-AG.L1, onde se expendeu:
"Não se compreenderia a atribuição de natureza peremptória a esses prazos processuais, conhecida que é a crescente complexidade dos processos e, em especial, a própria natureza da matéria em causa, que integra a própria pretensão do Estado, em termos de exercício do seu poder soberano de perseguir e reprimir o crime.
Como muito bem acentua o Ex.mo PGA, no douto parecer que elaborou, a certeza e a segurança jurídicas, e a definição do estatuto dos arguidos, serão alcançados mediante a aplicação ao caso dos prazos de prescrição do procedimento criminal." (fim de transcrição).

Acrescentando o recorrente:
“Conforme salienta Germano Marques da Silva (citado no Código de Processo Penal - Comentários e Notas Criticas, Coimbra Editora, 2009, anotação ao art. 276.°, pág. 691) a duração do inquérito, embora fixada por lei na sua dição máxima, não constitui uma garantia para o arguido ou para o ofendido.
O exercício da acção penal não se encontra assim, sujeito a uma regra de caducidade, encontrando-se apenas limitado pela subsistência da pretensão punitiva do Estado, traduzida nas regras de prescrição do procedimento criminal.
O direito do arguido a uma justiça célere, tem de ser ponderada em conjunto com o contexto da investigação em concreto, variando de acordo com os interesses a conciliar; com a complexidade dos factos e sua extensão no tempo e com a natureza das diligências de investigação a realçar.” (fim de transcrição).

Concordamos com esta posição, só que essa natureza meramente indicativa/ordenadora e não perentória do prazo legal do inquérito, não implica que não tenha de ser escrupulosamente respeitado e seja vinculativo como quando estão em causa graves restrições de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como sucede com a prisão preventiva e a OPHVE, e daí os prazos inultrapassáveis previstos no art. 215.º e 218.º, n.º 3, este último com referência aquele art. 215.º e ao 201.º, todos do CPP, e também com a medida de suspensão de operações bancárias a débito, sendo inultrapassável o prazo previsto no n.º 2 do art. 49.°, da Lei n.º 83/2017.
Assim, terá de improceder o recurso.

III–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Sem custas por delas estar isento o Ministério Público (art. 522.º do CPP).
Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP).


Lisboa, 11 de fevereiro de 2021

(Calheiros da Gama)
(Abrunhosa de Carvalho)