Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18/20.7JELSB.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
EMBARCAÇÃO SEM PAVILHÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES AGRAVADO
AVULTADA COMPENSAÇÃO REMUNERATÓRIA
CO-AUTORIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: - Embora o arguido/recorrente alegue que, tratando-se de uma embarcação de recreio, o seu registo na ..... poderia ser efectuado numa associação privada de automobilismo ou através do registo na autoridade portuária ou fluvial ....., sendo suficiente um dos dois registos para preenchimento dos requisitos necessários para a atribuição do direito (e obrigação) de arvorar o pavilhão ....., o certo é que as autoridades portuguesas não têm a obrigação de conhecer o direito ..... que define os requisitos necessários para a atribuição do direito de arvorar o pavilhão ..... e, portanto, para a atribuição da sua nacionalidade às embarcações.
- Por isso mesmo, o pedido/notificação foi endereçado à autoridade nacional competente, para os efeitos do artigo 17.º da Convenção de 1988, que respondeu negativamente quanto à existência de registo e caso as autoridades ..... considerassem insuficientes os elementos constantes do pedido/notificação que lhes foi dirigido, tendo em vista as eventuais particularidades da sua legislação nacional sobre concessão do pavilhão, certamente teriam solicitado informações ou esclarecimentos complementares às autoridades portuguesas, o que não aconteceu.
- No momento em que a Marinha de Guerra Portuguesa procedeu à abordagem da embarcação de recreio “.....” estava na presença de uma embarcação que não arvorava pavilhão – embarcação sem nacionalidade ou apátrida - tendo, por esse motivo, actuado em observância dos procedimentos impostos e admitidos nos artigos 17.° da Convenção de Viena e 110.°, n.° 1, al. d), da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, pelo que a abordagem efectuada à embarcação e os actos que se lhe seguiram, designadamente a sua condução para território nacional, onde veio a ser efectuada, pela PJ (a Marinha não actuou como órgão de polícia criminal, não tendo praticado actos regulados pelo Código de Processo Penal), a busca e apreensão do produto estupefaciente, documentada nos autos, não foi feita à revelia de qualquer disposição legal, nem enferma de qualquer nulidade, ou de qualquer outro vício, nem tal acontece com os actos de inquérito que se lhe seguiram, razão por que não se verifica a alegada “proibição de prova”.
- Discute-se, por vezes, se o poder conferido pelo artigo 340.º do C.P.P. é um poder discricionário ou, pelo contrário, é sindicável, questionando-se se é recorrível a decisão de indeferimento de um requerimento de prova apresentado, na fase de julgamento, ao abrigo do preceituado no artigo 340.º do C.P.P.
- Sobre a noção de avultada compensação remuneratória a que se refere o artigo 24.º, alínea c), é vasta a jurisprudência do S.T.J., que, inicialmente, começou pelo preenchimento deste conceito com o recurso à noção de valor consideravelmente elevado constante do artigo 202.º do Código Penal, transitando, depois, para o entendimento de que a integração do conceito deve ser feita de forma intra-sistemática, mas autónoma em relação aos escalões previstos no referido artigo 202.º.
- A jurisprudência do S.T.J. tem-se pronunciado no sentido de que a avultada compensação remuneratória que se obteve ou se procurava obter pode não resultar directamente da prova do efectivo lucro conseguido ou a conseguir. Deverão ser considerados, para apurar o montante da compensação remuneratória envolvida no tráfico, vários factores indiciários, como a qualidade e quantidade dos produtos estupefacientes traficados, o volume das vendas, a duração da actividade, o nível de organização e logística, ou o grau de inserção do agente na rede clandestina, pois um “correio”, por exemplo, não participa nos lucros da rede da mesma forma que os seus dirigentes, não se exigindo, porém, a prova contabilística rigorosa, impossível de obter em actividades desta natureza, tendo em vista a opacidade que normalmente as caracteriza.
  - Quer isto dizer que o carácter “avultado” da compensação terá que ser avaliado mediante a ponderação global de diversos factores indiciários, de índole objectiva, que forneçam uma imagem aproximada, com o rigor possível, da compensação auferida ou procurada pelo agente.
- In casu, pese embora esteja em causa uma única viagem e não se tenha dado como provado que o arguido integre uma organização dedicada ao tráfico de cocaína, do ..... para a Europa, certo é que estamos perante o transporte transnacional por via marítima de quase duas toneladas de cocaína (peso líquido de 1.687.326,125 gramas), tornado possível pela acção do arguido e pelo qual este visava obter uma compensação pecuniária de 100.000,00 € (cem mil euros).
- Afigura-se-nos, pois, que a compensação remuneratória que o arguido procurava obter, que está dada como provada e o arguido não impugna, ultrapassa, como ajuizou o tribunal recorrido, “de forma muito clara, aquela ordem de grandeza compatível com o crime-base, assumindo este valor, aos olhos do cidadão de média capacidade económica, uma dimensão impressionante, e sendo suficiente para concluir, com a necessária certeza, que o arguido visava obter avultada compensação remuneratória, verificando-se, pelo exposto, em relação a este arguido, a ocorrência da circunstância agravante da al. c) do art. 24.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, convocada na pronúncia, com referência à tabela I-B anexa.”
- Quer o co-autor, quer o cúmplice, concorrem para a produção do feito. Porém, enquanto o primeiro assume um papel de primeiro plano, dominando a acção (já que esta é concebida e executada com o seu acordo - inicial ou subsequente, expresso ou tácito - e contribuição efectiva), o segundo é, digamos, um interveniente secundário ou acidental: só intervém se o crime for executado ou tiver início de execução e, além disso, mesmo que não interviesse, aquele sempre teria lugar, porventura em circunstâncias distintas. É, neste sentido, um auxiliator simplex ou causam non dans, favorece a prática por outrem de um crime, mas está fora do acto típico, não participando na execução do plano criminoso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 18/20.7JELSB, procedeu-se ao julgamento dos arguidos AA e BB, melhor identificados nos autos, pronunciados pela prática, em co-autoria material e em concurso real, de factos susceptíveis de integrarem o tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela anexa I-B deste diploma, e de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.°, n.°s 1 e 2, do mesmo diploma (acusação formulada a fls. 579 a 594, 3.º volume; decisão instrutória de pronúncia a fls. 870 a fls. 877, 4.º volume).
No decurso da audiência, procedeu-se a uma alteração não substancial e a uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia, com relevo para a decisão da causa, tendo, em cumprimento do disposto no artigo 358.°, n.° 1 e 3 do Cód. Processo Penal, tais alterações sido comunicadas aos arguidos (a alteração da qualificação jurídica dos factos foi comunicada unicamente ao arguido BB), tendo ambos os arguidos prescindido de prazo para preparação da defesa.
Realizado o julgamento, foi proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos:
«Assim, pelo exposto, e tendo em conta as disposições legais consideradas, acordam os juízes que constituem o tribunal colectivo em julgar a pronúncia parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente:
A) Absolver os arguidos AA e BB relativamente à prática, em co-autoria material, de um crime de associação criminosa, p.p. pelo artigo 28.°, ns.° 1 e 2 do D.L. n.° 15/93, de 22/01;
B) Absolver o arguido BB relativamente à prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p.p. pelos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma;
C) Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, pelos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma, na pena de 11 anos e 6 meses de prisão;
D) Condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21.°, n.° 1 do D.L. 15/93, de 22/01, com referência à tabela anexa I-B, na pena de 9 anos de prisão;
E) Condenar o arguido AA na pena acessória de afastamento do território nacional após o cumprimento da pena principal, podendo o arguido requerer o levantamento da medida nos termos e prazo referidos no art. 27.°, n.°s 1 e 2 da Lei n.° 37/2006, de 9 de Agosto;
F) Determinar a aplicação ao arguido BB da pena acessória da expulsão do território nacional pelo período de 9 anos, em conformidade com o disposto nos arts. 34.° do D.L. n.° 15/93, de 22/01, 134.°, n.° 1, als. e) e f), 140.°, n.° 2 e 151.°, todos da Lei n.° 23/2007, de 4 de Julho;
G) Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido (art. 35.°, n.° 2 do D.L. n.° 15/93, de 22/01), determinando-se a destruição daquele que ainda não foi destruído;
H) Declarar perdidos a favor do Estado a embarcação de recreio, tipo ..... (veleiro com dois mastros), denominada “.....”, os oitenta e dois sacos desportivos e o telefone satélite, da marca “.....”, de cor preta, apreendidos aos arguidos (art. 35.°, n.° 1 do D.L. n.° 15/93, de 22/01);
(…)»
2. Os arguidos recorreram do referido acórdão, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões:
2.1. Recurso do arguido AA (transcrição das conclusões):
1. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao desconsiderar o dia 19 de janeiro de 2020 como data a contabilizar para efeitos de privação de liberdade, particularmente o facto de se ter baseado numa asserção de facto que foi oportunamente impugnada e, consequentemente, revista por Tribunal superior, o que foi desconsiderado.
2. Para efeitos de cômputo da privação da liberdade ao abrigo destes autos, deve, portanto, corrigir-se tal pressuposto ficando consignado que a detenção do ARGUIDO ocorreu no dia 19 de Janeiro de 2020.
3. O registo da embarcação ..... era (e ainda é) válido e, consequentemente, navegava licitamente com pavilhão ..... conforme respetiva documentação que foi erroneamente interpretada pelo Tribunal ao dar como provados os pontos 19 e 20 da matéria provada.
4. Na ..... as embarcações de recreio podem ser registadas através do registo numa associação privada ou através do registo na autoridade portuária ou fluvial ....., sendo que a embarcação dos autos estava validamente registada através da primeira hipótese.
5. As autoridades portuguesas, ao fazerem a abordagem nos termos em que fizeram, usaram ilegitimamente a força, violaram o domicílio e a pessoa dos ARGUIDOS, a quem privaram da liberdade e da propriedade sobre a embarcação e dos objetos apreendidos, atuação que, por aquelas razões, se reputa ilegal, circunstância que o Tribunal, pela errada interpretação que fez dos documentos que aqui relevam, não considerou.
6. No dia da abordagem, pelas 6:30, as autoridades portuguesas constataram que a embarcação de recreio ..... apresentava uma bandeira ....., circunstância que foi reputada pelo Tribunal a quo, não tendo, porém, relevado o facto de o RECORRENTE ter apresentado imediatamente documentação que indicava que a embarcação dispunha de registo ......
7. Confrontado com o documento de fls. 71 que foi apreendido ao Recorrente no momento da abordagem, o Tribunal a quo não poderia ter desconsiderado esta circunstância nem, muito menos, não levado à matéria de facto provada esse facto.
8. Não foram encetadas as diligências necessárias (ou pelo menos, aquelas que se exigiam) para confirmar se a embarcação se encontrava efetivamente registada na ......
9. No dia 19 de janeiro a Polícia Judiciária remeteu correspondência eletrónica, na qual informava que reencaminharam um pedido de intervenção ao abrigo do art. 17.° da convenção para as autoridades ....., no entanto essa comunicação foi erradamente dirigida, circunstância que afeta a validade do procedimento.
10. As autoridades portuguesas não se encontravam munidas de autorização emanada das autoridades competentes do Estado do pavilhão da embarcação, pelo que, nem o artigo 18.° da Lei n.° 34/2006, de 28 de Julho, nem, muito menos, o n.° 3 ou o n.° 5 do artigo 27.° da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar foram respeitados, o que o Tribunal a quo desconsiderou.
11. Não foi solicitada “ao Estado do pavilhão autorização para adotar as medidas adequadas em relação a esse navio”, violando-se, assim o art. 8.° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
12. O Tribunal a quo validou e utilizou elementos de prova cuja invalidade constitui proibição de prova, nos termos do artigo 126.°, n.°s 1 e 2, al. c), e 3, do CPP e que implicaria, nos termos do artigo 122.°, n.° 1, do CPP, a invalidade de todos os atos por esta afetados.
13. O Tribunal a quo violou a norma do artigo 340.° do CPP já que omitiu diligência probatória que devia ser ordenada oficiosamente, nulidade que implica a omissão de diligência essencial à descoberta da verdade.
14. O entendimento quanto à interpretação da norma do artigo 340.° n.° 1 do CPP, singularmente considerada ou conjugada com outro artigo, no sentido de não impor ao Tribunal o dever de ordenar oficiosamente diligências, desde que conexionadas com a questão de facto a decidir, que se reputam evidentes e essenciais à descoberta da verdade, viola a tutela constitucional das garantias de defesa, o princípio do contraditório e o direito a um processo justo e equitativo, tal como decorrem do disposto nos artigos 32.°, n.° 1 e 5 e 20.°, n.° 4 da CRP, e ainda nos art. 6.°, n.° 1, e 13.° da CEDH.
15. Não se apurou matéria de facto suficiente para enformar o conceito de remuneração avultada. Tendo-se provado o transporte de cerca de duas toneladas de cocaína (droga dura, ou seja, abaixo das drogas ultraduras e não a mais cara) e que o papel do Recorrente foi evidentemente diminuto (instrumental, auxiliar e substituível), resumindo-se, por conseguinte, àquele transporte (facto único e irrepetível), o ato ilícito não pode configurar uma situação de grande tráfico ou sequer de produto de elevada perigosidade e/ou de elevado lucro.
16. Deve revogar-se a decisão no sentido de condenar o RECORRENTE apenas pelo crime de tráfico de estupefaciente previsto e punível pelo artigo 21.°, n.° 1 do citado DL n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B anexa, não o tendo feito, violou o Tribunal o disposto no artigo 24.°, n.° 1 al. c) do mesmo diploma.
17. O Tribunal a quo, perante os factos apurados em julgamento, a personalidade do agente e as finalidades das penas, ao aplicar a pena de 11 anos e 6 meses, violou os artigos 70° e 71°, ambos do CP, já que várias circunstâncias militam a favor do RECORRENTE, e que não foram devidamente tidas em conta no acórdão recorrido.
18. A aplicação de pena próxima do limite máximo afronta, nos termos do artigo 18.°, n.° 2, da CRP, os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas, não sendo adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e ultrapassando, claramente, a medida da culpa do ARGUIDO, mostrando-se desproporcional e desadequada a uma linha uniforme e coerente na penalização dos agentes que verdadeiramente se dedicam ao tráfico internacional de droga.
19. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40.°, do C. Penal, na dimensão interpretativa que permita a aplicação de penas por força valorativa negativa das exigências de prevenção geral em detrimento das especiais, por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstrato ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, todas consagradas no artigo 18.°, n.° 2 da CRP.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso, deverá:
• Com fundamento na verificação da proibição de prova, revogar-se a douta decisão recorrida, absolvendo-se o Recorrente;
• Com fundamento na violação da norma do artigo 340.° do CPP, deverá ser ordenada a realização da omitida diligência, essencial à descoberta da verdade;
• condenar-se o Recorrente apenas pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artigo 21.° do DL 15/93, 22 de Janeiro.
• De igual modo, considerando que a pena ora aplicada se revela excessiva, injusta e desproporcional, será de aplicar uma pena próxima de metade do limite legal máximo do crime de tráfico de estupefacientes, pois é de concluir que essa pena realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, assim se fazendo a devida JUSTIÇA.           
2.2. Recurso do arguido BB (transcrição das conclusões):
A. Foi o arguido, ora recorrente, condenado como co-autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela anexa I-B, na pena de 9 anos de prisão efectiva, e ainda condenado na pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 9 anos, em conformidade com o disposto nos artigos 34.° do Decreto- Lei n.° 15/93, de 22/01, 134.°, n.° 1, als. e) e f), 140.°, n.° 2 e 151.°, todos da Lei n.° 23/2007, de 4 de Julho.
B. Inconformado com tal decisão, e estando em prazo para apresentar recurso, pretende o arguido fazê-lo, impugnando a matéria de facto e de direito.
C. Entende o ora recorrente que a decisão recorrida padece dos vícios a que alude o artigo 410.°, n.° 2, alínea b) e c) do Código de Processo Penal, concretamente por, no seu entender, existirem algumas contradições insanáveis entre a fundamentação e a decisão e ainda por existir um erro notório na apreciação da prova no que concerne à qualificação jurídica da actuação do citado arguido como co-autor dos factos.
D. Para a formação da convicção, o Tribunal a quo teve em conta os elementos de prova constantes dos autos e os resultantes da audiência de julgamento (designadamente, as declarações dos arguidos e o depoimento da testemunha CC, inspector da Polícia Judiciária, interveniente na investigação dos autos), que foram conjugados com o acervo documental junto aos autos e com as regras da experiência comum (cf. página 24 da decisão condenatória), tendo igualmente sido valorados os relatórios sociais para julgamento elaborados pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, relativamente à pessoa de cada um dos arguidos
E. Refere concretamente o Tribunal a quo que “[n] as declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido AA confirmou, no essencial, a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 1. a 5, 9., 10., 16., 17., 29., 31. e 33. e 34" — ou seja, das declarações daquele arguido, o Tribunal a quo deu como provado que:
a. Foi o arguido AA quem adquiriu, em ....., nas ....., uma embarcação de recreio;
b. Foi o arguido AA quem foi abordado em ...., por um indivíduo cuja identidade se desconhece, que lhe propôs que transportasse na embarcação “.....” embalagens de produto estupefaciente do ..... para o continente europeu, por via marítima e a troco do recebimento de quantias monetárias;
c. De acordo com o plano previamente traçado pelo arguido AA com o indivíduo de identidade desconhecida, os arguidos deveriam proceder à entrega dos 82 sacos desportivos, contendo no seu interior 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), num ponto indeterminado em alto mar, a indivíduos, de identidade desconhecida, e que lhes fossem indicados, que aí os abordariam numa outra embarcação.
F. E ainda deu o Tribunal a quo como provado o que referiu o arguido AA, concretamente, que “uma vez que era necessário conduzir a embarcação, através do oceano Atlântico, para a Europa, e não tinha capacidade de o fazer sozinho, já depois de ter procedido à sua compra, contactou o co-arguido BB, ....., que já conhecia há alguns anos, por terem amigos em comum, que se prontificou a acompanhá-lo, e que teria porfunção providenciar pela assistência técnica e mecânica que fosse necessária à embarcação, tendo, neste contexto, ambos os arguidos viajado para a ....., tendo efectuado um circuito pelas ....., rumando, depois, à ...... Já depois de terem zarpado da ....., decidiram cruzar a Linha do Equador, após o que, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a embarcação teve um buraco no casco, motivado pelo embate da âncora, e ficou com duas velas laceradas, motivo pelo qual ambos decidiram conduzir a embarcação até ao porto de ....., no ..... por ser o porto marítimo mais próximo e dispor das infraestruturas necessárias à sua reparação”.
G. Mais refere a decisão recorrida que “[n]as declarações que prestou em audiência dejulgamento, o arguido BB confirmou que o arguido AA o contactou, solicitando a sua colaboração para o ajudar na condução do veleiro “..... ” da ..... até à cidade de ....., na ....., o que aceitou, por na altura se encontrar sem ocupação profissional,, e mediante uma remuneração que se cifraria entre as £ 3000,00 (três mil libras esterlinas) e as £ 5000,00 (cinco mil libras esterlinas) mensais, equivalente à remuneração da última actividade profissional que tinha desempenhado, em ....., quantias estas que, atente-se, correspondem a cerca de €3500,00 e a cerca de €5.900,00, respectivamente (e daí o tribunal ter considerado como provada a factualidade a que é feita menção no ponto 30., sendo que a quantia a que aí é feita menção corresponde aos valores que o arguido BB iria auferir nos meses de Novembro e de Dezembro de 2019, e de Janeiro e Fevereiro de 2020, já depois de ter aderido ao projecto que lhe foi apresentado, em ....., pelo co-arguido.
H. Ou seja, não só considerou o Tribunal a quo como provado que a razão subjacente à presença do arguido BB na embarcação ..... tinha que ver com a necessidade de assistência técnica e mecânica que fosse essencial dar àquela — o que, aliás, veio a acontecer e foi igualmente dado como provado — como afirmou peremptoriamente a decisão recorrida que o ora recorrente apenas aderiu ao projecto que lhe foi apresentado pelo co-arguido ainda em ......
I. Aliás, resulta claramente do facto provado n.° 2 que o arguido BB se associou ao arguido AA ainda na ....., não tendo sido declarado provado que essa associação tivesse sido motivada tendo em vista o transporte futuro, e conjunto, de produto estupefaciente nessa embarcação — resultando ao invés apenas que a presença do arguido BB nessa embarcação visava apenas providenciar pela assistência técnica e mecânica que fosse necessária a esta.
J. Ora se até aqui o Tribunal a quo considerou como conforme à realidade que declarou provada praticamente toda a versão apresentada pelos arguidos, viria a recusá-la na parte em que ambos os arguidos referem — de forma totalmente coincidente — que apenas em alto mar, e no momento em que o transbordo estava a ser efectuado, é que o arguido BB tomou conhecimento de que iriam ser transportadas embalagens de produto estupefaciente na embarcação “....”, e de não ter concordado com tal transporte.
K. Para sustentar tal divergência limitou-se a avançar a consideração de que “desde logo por um transporte de droga desta dimensão não se compadecer com uma estrutura e com participações amadoras, antes sendo antecipada e meticulosamente programada, visando, também, que as operações decorram com a máxima descrição, rapidez e segurança, até para que os seus agentes se furtem à acção das autoridades” (cf. página 32).
L. Para tanto, e a propósito dos factos n.° 6, 7, 26, 27, 28, 30 e 32 dados como provados — melhor descritos supra — refere apenas a decisão recorrida que: “[o] tribunal socorreu- se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos atinentes aos elementos subjectivos e à ilicitude, (...) considerando-se a concreta forma de actuação de cada um dos arguidos nos termos apurados e as circunstâncias que as envolveram, à luz de regras de normalidade e de experiência, que permitem inferir estes factos subjectivos, sendo que não há o menor indício de que qualquer um dos arguidos tivesse sido coagido a actuar da forma como o fez” e que “é do conhecimento geral a ilicitude criminal deste tipo de condutas, e que, no concernente à droga, é de todos conhecido que o transporte e a simples detenção de estupefaciente, ainda para mais, quando esse produto se destina a ser entregue a terceiros, não é permitido, resultando, aliás, no caso vertente, de forma exuberante, dos cuidados empregues pelos arguidos com vista à ocultação da sua conduta, de que são elucidativas as circunstâncias de a operação de transbordo dos sacos desportivos, contendo as embalagens/placas de cocaína (cloridrato) ter tido lugar num ponto em alto mar, situado a cerca de cem milhas náuticas da costa ....., e de na viagem que se seguiu, com destino ao continente europeu, o sistema de localização/identificação denominado AIS da embarcação “.....” ter permanecido desligado durante um período de cerca de dois meses, até ao dia 13 de Janeiro de 2020 (apenas tendo sido ligado, no aludido período, no dia de Natal) e de, desde o momento em quefoi efectuado o mencionado transbordo dos sacos de desporto, em alto mar, no dia 15/11/2019, e o momento em que se deu a abordagem pela Marinha de Guerra Portuguesa, no dia 19/01/2020, a embarcação “.....” não ter aportado em nenhum porto ou marina, o que inviabilizou não apenas que os arguidos pudessem descansar, mas também que pudessem proceder a um reabastecimento de água, comida e/ou combustível, comportamentos estes que, conjugados com a própria postura dos arguidos em audiência de julgamento, denota que os mesmos são imputáveis e têm consciência dos actos que praticam”.
M. Segundo nos é permitido retirar deste excerto da decisão recorrida, não obstante o tribunal ter baseado grande parte da sua convicção nas declarações dos arguidos — que até vieram a consubstanciar uma alteração dos factos constantes da acusação — o facto de o arguido BB apenas ter tomado conhecimento do facto ilícito já em alto mar, já não seria concordante com as regras da experiência comum “desde logo por um transporte de droga desta dimensão não se compadecer com uma estrutura e com participações amadoras”.
N. Ora, em lado algum da decisão recorrida se refere ou, mais, se dá como provado, que os arguidos eram traficantes profissionais — por contraposição a traficantes “amadores”.
O. Isto porque, efectivamente, são os arguidos “amadores”, considerando os meios incipientes utilizados, desde logo, o meio de transporte improvisado — um veleiro com dois mastros, no qual nem sequer era possível esconder os 82 sacos que continham produto ilícito, e o facto de serem meros agentes de transporte de estupefacientes, por conta de outrem, que, no fundo, não passam de vítimas do sistema criminoso, tendo ambos assumindo uma função mínima na violação do bem jurídico.
P. Aliás, muito dificilmente seria compatível com uma qualquer actuação de cariz “profissional" a circunstância de ambos os arguidos desconhecerem qual o tipo de estupefaciente que transportavam, tal como o Tribunal a quo declarou sob o facto provado n.° 26.
Q. Constituindo as regras da experiência comum ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos que tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem esses mesmos factos que serviram de base a essa generalização,
R. Entende o recorrente que a fundamentação da decisão recorrida nos termos supra expostos não assenta no conceito que a jurisprudência e a doutrina têm dado às “regras da experiência comum", já que um homem médio poderia perfeitamente não retirar a mesma conclusão que o Tribunal a quo extraiu.
S. De facto, temos como não menos aceitável e como não menos se afastando das “regras da experiência comum” a possibilidade de todo o plano de aquisição, transporte e entrega do estupefaciente na embarcação ter sido delineado quer pelo arguido AA quer por quem o contactou para fazer o transporte, aliás tal como confessado por aquele, tendo apresentado tais factos já consumados ao arguido BB quando o estupefaciente lhes foi entregue em alto mar.
T. Sendo assim, pelo menos de acordo com o princípio “in dubio pro reo" o Tribunal a quo não poderia ter dado como provado o facto descrito sob o n.° 6 situando, no espaço e no tempo, a adesão do ora recorrente ao plano traçado pelo arguido AA ainda antes de ambos terem saído do ..... — o que acarreta necessárias consequências quanto à motivação imputada ao arguido BB expressa no facto provado n.° 7.
U. A conclusão que expressa assim nos factos provados n.°s 6 e 7, nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-02-2011, proferido no âmbito do processo n.° 241/08.2GAMTR.P1.S2 — constitui assim “um salto lógico no desconhecido dando por adquirido aquilo que não é suportável à face da experiência comum", na medida em que essas mesmas regras, alicerçadas pela versão coincidente de ambos os arguidos, poderiam perfeitamente permitir que o tribunal concluísse em sentido completamente diferente.
V. Nesta medida, tal salto lógico constitui erro notório na apreciação da prova uma vez que viola as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis (neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, C.P.Penal Anotado, II vol., pág. 740) — erro notório esse que deverá ser declarado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.°, n.° 2, alínea c) do Código de Processo Penal.
W. Termos em que, deverá ser declarada a existência do referido erro notório na apreciação da prova, vício a que alude o artigo 410.°, n.° 2, alínea c) do Código de Processo Penal.
X. Pelo exposto, do conteúdo da decisão recorrida resulta apenas claramente demonstrado e provado que foi o arguido AA quem planeou e delineou o crime em causa nos presentes autos, tendo o arguido BB, ora recorrente, tão-só aderido posteriormente ao projecto.
Y. A propósito da distinção entre autoria e cumplicidade, teremos de atender às explicações dadas por Germano Marques da Silva, melhor descritas nas motivações apresentadas.
Z. A actuação do ora recorrente enquadra-se perfeitamente no conceito de “cumplicidade”, já que o mesmo apenas “aderiu” ao projecto que lhe foi apresentado pelo co-arguido — nas próprias palavras utilizadas pelo Tribunal a quo — sendo tão só a sua contribuição (novamente nas palavras de Germano Marques da Silva) um “mero auxilio, não sendo determinante da vontade dos autores, participando acessoriamente na execução do crime e apenas nessa medida, contribui para a sua prática, não detendo o domínio positivo do facto.
AA. A este propósito, e abstraindo-nos da questão puramente técnico-jurídica da distinção entre as duas figuras, importa que esse Venerando Tribunal se questione, se admitir, como acreditamos que o admitirá, pelo menos por força da aplicação do princípio in dúbio por reu que o arguido BB só teve conhecimento do plano gizado pelo seu co-arguido quando o estupefaciente foi entregue na embarcação em alto mar, que conduta diversa poderia aquele assumir naquelas circunstâncias.
BB. Segundo se faz eco na motivação da decisão recorrida o arguido ter-se-á limitado a declarar que não concordava com tal transporte.
CC. Mas importa reconhecer que no circunstancialismo em que se encontrava nenhuma alternativa lhe restava que não fosse a de aderir ao plano.
DD. Assim, e transpondo para o ponto de vista técnico é evidente que, na perspectiva que defendemos, o ora recorrente não tinha naquelas circunstâncias o domínio positivo do facto na medida em que nunca poderia prosseguir sozinho o transporte do estupefaciente porque desconhecia qual o seu destino — essa informação tem de ser-lhe prestada pelo seu co-arguido — nem poderia por si só assegurar esse transporte se o seu co-arguido desistisse a certa altura de o fazer.
EE. Nem se mostra claro que o arguido BB tivesse o domínio negativo do facto na medida em que, caso se tivesse recusado a participar no transporte — caso em que seria provavelmente abandonado em alto mar, no mínimo — nada nos permite concluir que este transporte ainda assim não teria lugar (o co- arguido e os transportadores deveriam por certo encontrar para o facto alguma solução).
FF. Acresce que o facto provado n.° 30, segundo o qual o arguido BB actuou nos moldes descritos visando obter, por essa via, quantia não inferior a € 14.000,00 (catorze mil euros), se mostra impossível de ser entendido na sua plenitude sem recurso à explicação constante da motivação da sentença — assim e ao contrário do que poderia parecer, não foi prometida ao arguido essa quantia pela sua participação no transporte do estupefaciente.
GG. Antes, e como se refere no Acórdão recorrido, “nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido BB confirmou que o arguido AA o contactou, solicitando a sua colaboração para o ajudar na condução do veleiro “..... ” da ..... até à cidade de ....., na ....., o que aceitou, por na altura se encontrar sem ocupação profissional, e mediante uma remuneração que se cifraria entre as £ 3000,00 (três mil libras esterlinas) e as £ 5000,00 (cinco mil libras esterlinas) mensais, equivalente à remuneração da última actividade profissional que tinha desempenhado, em ....., quantias estas que, atente-se, correspondem a cerca de €3500,00 e a cerca de € 5.900,00, respectivamente (e daí o tribunal ter considerado como provada a factualidade a que é feita menção no ponto 30., sendo que a quantia a que aí é feita menção corresponde aos valores que o arguido BB iria auferir nos meses de Novembro e de Degembro de 2019, e de Janeiro e Fevereiro de 2020, já depois de ter aderido ao projecto que lhe foi apresentado, em ....., pelo co-arguido".
HH. Com a ressalva de que, como se disse, a proposta não terá sido formulada em ..... mas apenas quando o estupefaciente entrou na embarcação do arguido AA já em alto mar, e embora se reconheça que esse facto não constitui um factor decisivo para a posição que se sustenta,
II. Não deixa o mesmo de inculcar a convicção de que o arguido BB actuou sempre sob as ordens e orientação do arguido AA, como seu assalariado, o que se mostra ser dificilmente compatível com os pressupostos de uma conduta prosseguida em co-autoria.
JJ. Assim, e consideradas as ressalvas assinaladas, o remanescente dos factos dados como provados (aliados com a argumentação explanada a propósito do erro notório de valoração da prova constante na decisão recorrida, que extrapolou os limites das regras da experiência comum) são notoriamente contraditórios com a decisão de condenar o arguido BB, ora recorrente, como autor material do crime de tráfico de estupefacientes, e não como mero cúmplice.
KK. Termos em que se impõe declarar a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos supra expostos, sendo tal vício correspondente ao vício a que alude o artigo 410.°, n.° 2, alínea b) do Código de Processo Penal.
LL. Desta forma, não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido BB é co-autor do crime de tráfico de estupefacientes de que vem condenado, razão pela qual deverá o Tribunal ad quem alterar a decisão recorrida para uma que condene o ora recorrente como cúmplice do crime de que vem acusado, o que não poderá deixar de repercutir-se na qualificação e na ilicitude dos factos praticados e ainda na medida da pena a aplicar, nos termos do disposto no artigo 27.°, n.° 2 do Código Penal.
MM. Ainda que não se entenda em conformidade com o capítulo anterior, sempre se dirá que a medida da pena aplicada em concreto ao arguido — 9 anos de pena de prisão efectiva — é manifestamente excessiva, injusta e desproporcional (nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa) e violadora dos artigos 40.°, 70.°, 71.° e 72.° do Código Penal, por ultrapassar claramente a medida da culpa do arguido, ora recorrente, e por não ter em conta as finalidades das penas, as circunstâncias do caso concreto, a personalidade e idade do arguido (que já é avançada), e o facto de se ter tratado de um único episódio, já que o ora recorrente não apresenta quaisquer antecedentes criminais.
NN. Dos factos dados como provados n.° 49 a 63 (melhor descritos supra), o arguido demonstra ter sido sempre uma pessoa estudiosa e trabalhadora ao longo de toda a sua vida, tendo, inclusive, perspectivas de trabalho para um futuro próximo — tendo sempre estado inserido social e familiarmente.
OO. Quanto ao grau de ilicitude do facto, o mesmo não pode ser considerado elevado, desde logo tendo em conta o grau e os meios amadores empregues (melhor explanados supra), aliado ao facto de o produto ilícito ter sido apreendido ainda na fase de transporte, não tendo chegado a ser comercializado — o que diminui substancialmente a gravidade das consequências a provocar na comunidade.
PP. Nas suas declarações, o recorrente mostrou profundo arrependimento em ter aderido aos factos ilícitos, tendo declarado ser um acto único e irrepetível, pelo que não existem motivos para crer que o arguido voltaria a praticar crimes desta ou de outra natureza, e não existem razões de prevenção que imponham a imposição de pena de prisão efectiva tão elevada, já que a personalidade do recorrente, vertida nos factos dados como provados, não demonstra, sequer, perigosidade social.
QQ. Para além disso o arguido desconhecia qual o tipo de estupefaciente que transportava e qual a sua quantidade concreta — cf. facto provado n.° 27.
RR. Aliás, conforme facto provado n.° 63, o arguido é “''primário’" — razão que ainda torna menos compreensível a decisão de o condenar a uma pena de 9 anos de prisão efectiva, quando a moldura penal varia entre 4 e 12 anos de prisão, conforme estatuído no artigo 21.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01.
SS. Pelo que, não se afigura viável formular um juízo de prognose no sentido de que, após o cumprimento da pena que haja de cumprir, o recorrente não se possa inserir na sociedade, bem pelo contrário, tudo indica que irá abster-se de voltar a perturbar a segurança e a ordem pública.
TT. Nestes termos, a pena de prisão efectiva, aplicada ao arguido é violadora dos artigos 40.°, 70.°, 71.° e 72.° do Código Penal, porquanto não realiza quaisquer fins de reintegração do agente na sociedade, muito pelo contrário, razão pela qual deverá a decisão recorrida ser alterada, alterando-se a pena imposta ao arguido para uma que seja inferior aos limites médios da pena aplicável.
Termos em que, decidindo em contrário do teor das conclusões ora expostas, a decisão recorrida terá violado quer o disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal quer o disposto nos artigos 26.°, 27.°, n.°s 1 e 2, 71.°, 72.°, n.° 1 e 73.°, n.° 1 do Código Penal pelo que deve nessa parte ser revogada e substituída por outra que, julgando o recurso procedente, declare ter existido contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e a existência de erro notório na apreciação da prova, operando a qualificação jurídica da conduta do arguido como cúmplice e não como co-autor, o que não poderá deixar de repercutir-se na medida da pena a aplicar.
Caso assim se não entenda, o que apenas por mera cautela se admite, deve o presente recurso ser julgado parcialmente procedente, condenando-se o arguido em pena que se situe no patamar inferior ao limite médio da pena abstractamente aplicável.
Assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!           
3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou respostas, em que concluiu no sentido de que os recursos não devem ser providos.                                                                     
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu o parecer de fls.1651 e segs, no qual sustentou que os recursos não merecem provimento.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P. e tendo sido apresentadas respostas ao parecer referido no ponto anterior, procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência dos recorrentes com a decisão impugnada, identificamos como questões colocadas as seguintes:
Recurso do arguido AA:
- erro de julgamento e consequente violação normativa na apreciação e aplicação do artigo 27.º, n.ºs 3 e 5, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10/12/1982 e do artigo 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas / verificação de proibição de prova / violação do artigo 340.º do C.P.P.;
- não preenchimento da alínea c) do artigo 24.º do D.L n.º 15/93;
- determinação da medida da pena com alegada violação dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal.
Recurso do arguido  BB:
- vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova;
- determinação da medida da pena.
2. Do acórdão recorrido
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
Da discussão da causa, com interesse para a decisão resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 7 de Agosto de 2019, o arguido AA adquiriu em ....., nas ....., uma embarcação de recreio, tipo ..... (veleiro com dois mastros), denominado “.....”, com 18,8 metros de comprimento e com o número de registo ....., pelo valor de € 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros).
2. Em data não concretamente apurada, mas situada no decurso do mês de Setembro de 2019, a embarcação “.....”, na qual vinham os arguidos AA e BB, zarpou da ....., tendo aí declarado que pretendiam navegar até à ......
3. Ainda no decurso do mês de Setembro de 2019, quando a embarcação “.....” navegava rumo ao ....., já após ter cruzado a Linha do Equador, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a embarcação teve um buraco no casco e ficou com duas velas laceradas, o que levou os arguidos a conduzirem a embarcação até ao porto de ....., no ....., a fim de aí diligenciarem pela necessária reparação.
4. A embarcação “.....” deu entrada nas águas da Marina de ....., sita em ....., no dia 27 de Setembro, tendo-se aí mantido parqueada até ao dia 15 de Novembro de 2019.
5. Em data não apurada, mas situada entre o dia 27 de Setembro e o dia 15 de Novembro de 2019, o arguido AA foi abordado em ....., por um indivíduo cuja identidade se desconhece, que lhe propôs que transportasse na embarcação “.....” embalagens de produto estupefaciente do ..... para o continente europeu, por via marítima e a troco do recebimento de quantias monetárias.
6. O arguido AA deu disso conhecimento ao arguido BB, tendo ambos os arguidos aderido a esse projecto.
7. No dia 15 de Novembro de 2019, os arguidos AA e BB, em execução do plano previamente traçado com o indivíduo de identidade desconhecida, a que é feita menção em 5., introduziram-se na embarcação “.....”, que se encontrava aportada na Marina de ....., e deslocaram-se a ponto indeterminado em alto mar, situado a cerca de cem milhas náuticas da costa ..... .
8. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, os arguidos recepcionaram no interior da embarcação “.....”, proveniente de uma outra embarcação, 82 (oitenta e dois) sacos desportivos, os quais continham no seu interior 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas.
9. De acordo com o plano previamente traçado pelo arguido AA com o indivíduo de identidade desconhecida, a que é feita menção em 5., os arguidos deveriam proceder à entrega dos 82 sacos desportivos, contendo no seu interior 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), a que é feita menção em 8., num ponto indeterminado em alto mar, situado no mar do Norte, sensivelmente a meio caminho entre a ..... e a ....., coincidente com as coordenadas geográficas indicadas ao arguido AA pelo indivíduo a que é feita menção em 5., a indivíduos, de identidade desconhecida, e que lhes fossem indicados, que aí os abordariam numa outra embarcação.
10. A embarcação “.....” foi tripulada pelo arguido AA, cabendo ao arguido BB providenciar pela assistência técnica e mecânica que fosse necessária à embarcação.
11. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 7. e 8., o sistema de localização/identificação denominado AIS (Automatic Identification System) da embarcação “.....” encontrava-se desligado, em virtude de ter sido desligado pelos arguidos no dia 12 do mesmo mês de Novembro.
12. Os arguidos apenas voltaram a ligar este sistema no dia 25 de Dezembro de 2019, quando se encontravam em plena travessia atlântica (coordenadas .....).
13. No dia 13 de Janeiro de 2020, a embarcação encontrava-se a navegar entre a ..... e a ....., no arquipélago dos ..... (coordenadas .....), a uma velocidade de 5.6 nós marítimos, adoptando um rumo de 049°.
14. Nessa altura, foi activado o Protocolo de Cooperação com a Marinha e Força Aérea portuguesas, tendo-se iniciado de imediato as diligências operacionais necessárias.
15. Foram desenvolvidos contactos junto das Autoridades ....., visto que a embarcação ostentava a bandeira deste país, no sentido de, ao abrigo do disposto no art. 17.° da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, se obter autorização para proceder à abordagem e inspecção em alto mar da mesma.
16. Contudo, as autoridades ..... informaram que a certidão do pavilhão da embarcação ..... havia já caducado.
17. No dia 18 de Janeiro de 2020, pelas 13H06, a embarcação “.....” navegava nas coordenadas ....., rumo ....., à velocidade 04 nós marítimos, estando a aproximadamente 500 milhas náuticas de território nacional.
18. No dia 19 de Janeiro de 2020, pelas 06H30, quando se encontrava nas coordenadas geográficas ..... a embarcação “.....” foi abordada por elementos da Marinha de Guerra Portuguesa, no âmbito das suas competências, com a finalidade de se proceder à sua identificação completa.
19. Aquando da entrada na embarcação, elementos da Marinha Portuguesa verificaram que a mesma não apresentava bandeira, tendo sido apenas encontrada documentação relativamente ao pavilhão que hasteara até Setembro de 2019, da …., …...
20. Verificou-se, igualmente, que, pese embora tivesse hasteada uma bandeira da ....., a embarcação não se encontrava registada nesse país, constatando-se, assim, que a embarcação navegava sem pavilhão efectivo, ou seja, sem nacionalidade.
21. Atendendo à factualidade verificada, a embarcação foi conduzida para território nacional, pela Marinha Portuguesa.
22. Assim, no dia 26 de Janeiro de 2020, pelas 00H16, a embarcação “.....”, escoltada por um meio naval da marinha portuguesa, entrou em mar territorial português, mais concretamente nas coordenadas geográficas ....., tendo-se dirigido para a Base Naval de ....., em ....., onde viria a atracar pelas 10H40, no Cais ......
23. Após a embarcação atracar, Inspectores da P.J. deram cumprimento ao Mandado de Busca emitido para a mesma.
24. No decurso da busca, pelas 10H45, foram encontrados e apreendidos:
- um total de 82 (oitenta e dois) sacos desportivos de várias cores, os quais continham no seu interior 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, dissimulados nos compartimentos à proa da embarcação, cujo acesso é efectuado pela zona comum do veleiro.
25. Foram, ainda, encontrados e apreendidos:
Na zona comum da embarcação:
- Um disco externo de cor azul, da marca ....., com o número de série .....;
- Um disco externo de cor preta, da marca ....., com o número de série .....;
- Um telemóvel da marca ....., de cor preta, com o IMEI ....., contendo inserido no seu interior um cartão SIM da operadora ....., com o número de série ....., e um cartão de memória de 8gb de capacidade, pertencente a BB;
- Um telemóvel da marca ....., modelo ....., de cor preta, acondicionado numa capa de cor branca, sem cartão SIM inserido, pertencente a AA;
- Um localizador GPS de emergência, de cor laranja e preto, com a inscrição “.....”;
- Um computador portátil da marca ....., modelo ....., com o número de série ....., pertencente a AA, com respectivo carregador.
Na cabine da ponte:
- Um tablet, da marca ....., modelo ....., de cor cinzenta, com o número de série ....., acondicionado numa capa de cor castanha, pertencente a AA;
- Um leitor multimédia da marca ....., modelo ....., com o número de série ....., de cor cinzenta;
- Aparelho GPS da marca “.....”, de cor laranja e preto, com o IMEI .....;
- Telefone satélite, da marca “.....”, de cor preta, com o IMEI ....., contendo inserido um cartão SIM da operadora “.....”, com o número de série ...., com respectivo manual de instruções;
- Um aparelho de navegação GPS da marca “.....”, modelo ....., com o número de série .....;
- Uma máquina fotográfica digital, da marca ....., contendo inserido um cartão de memória da marca ....., com 64Gb de capacidade, uma bateria. Ainda na bolsa em que a máquina se encontrava acondicionada, um cartão de memória da marca ....., com 64Gb de capacidade e 5 baterias extra;
- Um telemóvel da marca ....., modelo ....., com número de série ....., contendo inserido um cartão SIM sem operadora visível, com o número ....., acondicionado em capa de cor preta e pertencente a AA.
No camarote da popa, utilizado pelo arguido AA:
- Um telemóvel da marca ....., modelo ..... plus, dourado, acondicionado numa capa de cor castanha, sem cartão SIM inserido;
- Um boarding pass da transportadora aérea ....., relativo ao voo ....., com origem em ..... e destino a ....., no dia 09/11/2019, em nome de AA e voo de ligação ....., com origem em ..... e destino a ....., no mesmo dia e em nome do mesmo indivíduo;
- Um talão da transportadora aérea ....., de 02/11/2019, contendo no verso anotações manuscritas;
- Recibo da “.....”, datado de 25/05/2019;
- 2 talões de abastecimento de gasóleo, efectuados em ….., …..;
- 3 recibos da Marina de …., em nome de AA, relativos aos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2019;
- Um pedaço de uma folha com um número de contacto manuscrito;
- 2 recibos de estadia em hotel “.....”, em ....., em nome de AA, entre os dias 14 e 16 de Novembro de 2019;
- Uma factura de abastecimento de gasóleo, com data de 12/09/2019, em ….., ……;
- diversa documentação relativa à embarcação “.....” - 29 (vinte e nove) folhas;
- a quantia monetária de R$ 170,00 (cento e setenta reais .....);
- Um tablet da marca ....., modelo ....., de cor cinzenta, com o número de série .....;
- A quantia monetária de € 210,00 (duzentos e dez euros) em notas do Banco Central Europeu;
- Um tablet da marca ....., modelo ....., de cor cinzenta, com o número de série .....;
- Um computador portátil da marca ....., modelo ....., de cor preta, com o número de série .....;
- Um caderno de folhas quadriculadas, com a menção “.....”, com várias anotações manuscritas.
No camarote utilizado pelo arguido BB:
- Um livro de notas de cor castanha, com várias anotações manuscritas;
- Um telemóvel de marca ....., modelo ....., de cor preta, com os IMEI ..... e ....., contendo inserido no seu interior um cartão SIM sem operadora identificada, com o n.° ......
26. Os arguidos AA e BB, não conhecendo a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente (cocaína) que lhes foi apreendido, a que é feita referência no ponto 24., sabiam tratar-se o mesmo de uma das drogas mencionadas nas tabelas I a III anexas ao D.L. n.° 15/93.
27. Os arguidos AA e BB actuaram nos moldes descritos, em conjugação de vontades e esforços, com indivíduos ainda não identificados, com o propósito concretizado de receber e carregar consigo as 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, a que é feita referência em 24., do ..... para a Europa, e pese embora não conhecessem a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente (cocaína) que lhes foi apreendido, sabiam tratar-se o mesmo de uma das drogas mencionadas nas tabelas I a III anexas ao D.L. n.° 15/93, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias.
28. Os arguidos AA e BB actuaram nos moldes descritos com a finalidade comum de obterem benefícios económicos, não obstante saberem serem proibidas as respectivas condutas.
29. O arguido AA actuou nos moldes descritos visando obter, por essa via, a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros).
30. O arguido BB actuou nos moldes descritos visando obter, por essa via, quantia não inferior a € 14.000,00 (catorze mil euros).
31. O telefone satélite, da marca “....”, de cor preta, com o IMEI ....., apreendido aos arguidos, destinava-se a ser usado por estes nos contactos necessários à entrega do referido produto.
32. Os arguidos AA e BB agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização deste produto (cocaína) eram proibidos e punidos por lei.
33. O arguido AA não tem quaisquer familiares, amigos ou emprego em Portugal.
34. Onde apenas se deslocou para praticar os factos antes descritos, qualificados pela lei como crime.
35. Existe perigo de que o arguido AA continue a praticar crimes idênticos, caso seja autorizada a sua entrada e permanência em Portugal, atenta a facilidade de circulação de que irá beneficiar.
36. Os factos que o arguido AA cometeu são lesivos da tranquilidade e ordem pública, causando perturbação e alarme social.
37. O arguido BB é natural/nacional da ......, não possuindo quaisquer ligações familiares e/ou profissionais em Portugal, só se encontrando em Portugal para transportar a cocaína.
38. Deste modo existe fundado receio de que o arguido BB continue a cometer crimes da natureza do imputado, caso permaneça em território nacional.
Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:
39. O arguido AA possui nacionalidade ....., sendo o segundo de uma fratria de três irmãos germanos. A mãe trabalhava como ..... e o pai trabalhava por conta própria na ....., sendo proprietário de um barco, permitindo os proventos por ambos obtidos no exercício das respectivas actividades profissionais sustentar o agregado familiar sem dificuldades, pautando-se a dinâmica familiar por uma relação harmoniosa entre os diferentes membros do agregado.
40. O arguido iniciou o seu percurso escolar em idade própria, tendo, desde sempre, revelado motivação para a aprendizagem escolar. O seu percurso escolar foi interrompido pelo cumprimento do serviço militar na Marinha, motivo pelo qual terminou os estudos aos 26 anos de idade, possuindo, como habilitações literárias, a licenciatura em ......
41. Após ter completado o ensino superior, o arguido obteve colocação laboral na sua área de formação, tendo, ao longo do seu percurso profissional, exercido outras actividades de forma regular e com vínculos contratuais. Há cerca de 25 anos empreendeu, em regime de sociedade, uma actividade na área das ......
42. No domínio afectivo, contraiu matrimónio há cerca de 20 anos, tendo desta união nascido três filhas, já adultas. Este relacionamento afectivo foi sempre gratificante, pautando- se pela estabilidade, coesão e entreajuda entre o casal.
43. No que respeita aos seus relacionamentos sociais, o arguido sempre privilegiou o convívio no seio familiar e com pares com comportamentos socialmente ajustados, beneficiando de uma imagem positiva na comunidade onde residia.
44. Nos tempos livres dedicava-se à prática desportiva de vela, tendo dado a volta ao mundo por três vezes num veleiro de sua propriedade, e, antes de um acidente de trabalho que o vitimou, sido piloto de rally em competições não profissionais.
45. À data dos factos objecto dos presentes autos, o arguido residia na ....., na companhia da esposa e das duas filhas gémeas do casal, de 18 anos de idade, residindo o agregado familiar numa habitação arrendada, numa zona ordeira, habitada essencialmente por famílias de estrato social médio alto. Mantinha actividade regular na empresa de que é sócio e o cônjuge detinha igualmente um posto de trabalho regular, o que permitia ao agregado familiar manter um nível de vida sem constrangimentos económicos relevantes.
46. Desde que se encontra sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, o arguido apresenta um comportamento adequado e normativo, isento de sanções disciplinares, e boa integração e adaptação ao meio prisional.
47. Durante o tempo de reclusão não recebeu visitas, contactando com a família por via telefónica, no sentido de manter laços afectivos.
48. O arguido AA não tem antecedentes averbados no respectivo registo criminal.
*
49. O arguido BB é natural da ....., sendo fruto da relação entre um casal de médio estrato social, dissolvida durante o primeiro ano de vida do próprio, circunstância que determinou que tivesse sido junto do agregado da mãe e da avó materna que tenha decorrido o seu processo de desenvolvimento, num ambiente familiar afectivamente gratificante e harmonioso, isento de restrições a relevar ao nível da subsistência económica, porquanto a progenitora, que trabalhava como ….. numa fábrica de …., auferia de uma condição financeira compatível com as necessidades existentes por parte do descendente.
50. Não obstante ter vivido até se autonomizar junto do agregado familiar materno, o arguido sempre manteve uma relação próxima e convívio regular com a figura paterna, ..... de profissão e proprietário de um estabelecimento comercial no ramo, residente na mesma cidade, juntamente com a família conjugalmente recomposta, relacionamento do qual nasceram duas irmãs consanguíneas mais novas do arguido.
51. O arguido iniciou o percurso escolar em idade própria, tendo concluído o ensino secundário com a idade de 18/19 anos, registando uma trajectória motivada e marcada por razoável desempenho escolar.
52. Posteriormente ingressou no serviço militar obrigatório, findo o qual, após um ano, retomou o percurso formativo, tendo ingressado num curso de ensino politécnico no ramo da ....., que frequentou durante dois anos, e que não viria a concluir devido ao início da guerra no país de origem, em 1992.
53. Este conflito militar despoletou a sua saída voluntária do país, com destino à ....., onde permaneceu, durante cerca de um ano e meio, acolhido num campo de refugiados.
54.Em 1994, o arguido acabou por abandonar o país, tendo naquele ano emigrado para a ....., país em que a sua família do lado materno (mãe, avó e tios) havia fixado residência, após o despoletar da guerra em território ....., tendo constituído negócio familiar no sector da ......
55. Em território ....., o arguido veio a assumir relacionamento afectivo com uma cidadã ....., com quem viveu, durante quatro anos, em união de facto, tendo neste período retomado os estudos, tendo ingressado na Universidade onde frequentou e concluiu, ao fim de seis anos, o curso de ....... A nível laboral, no mesmo período, o arguido constituiu negócio em nome individual, tendo aberto uma ..... que manteve cerca de quatro anos, tendo, na sequência da mudança de residência para outra cidade, voltado a abrir novo estabelecimento de ....., que manteve durante um período de cinco anos. Seguiu-se um período de desemprego, em que, durante dois anos, o arguido subsistiu com apoios sociais do Estado, após o que conseguiu colocação como ..... numa empresa de ......
56. O arguido acabou por abandonar o posto de trabalho, na sequência de ter assumido relacionamento com uma cidadã ....., com quem contraiu casamento, tendo o casal fixado residência em ...... Este relacionamento conjugal, que perdurou durante cerca de oito anos, veio a terminar há dois anos, não existindo descendentes. Durante o período em que se manteve casado, o arguido trabalhou como ....., durante cerca de três anos, numa empresa de ....., tendo padecido de um acidente de trabalho (lesão num dedo de uma das mãos) que motivou a cessação das funções que desempenhava, tendo-lhe, neste contexto, sido atribuída, há dois anos atrás, uma pensão de invalidez, no valor mensal de € 500,00.
57. Posteriormente veio a trabalhar por conta de outrem, de forma irregular e sem vínculo, na ....., como trabalhador indiferenciado, em oficinas de .....e na entrega de ..... ao domicílio, para empresa do ramo.
58. Neste enquadramento, decidiu emigrar para a ....., em meados do ano de 2019, tendo sido acolhido por um amigo de nacionalidade ....., com quem coabitou, durante cerca de dois meses, na cidade de ...... Era objectivo do arguido fixar residência no país, tendo adquirido habitação (vivenda com terreno adjacente), que se encontrava em fase de construção à data da prática dos factos objecto dos presentes autos.
59. No plano da saúde, o arguido é portador de doença infetocontagiosa (hepatite C), condição de saúde que se encontra clinicamente controlada, e padece de stress pós-traumático (sequela deixada pela guerra no país natal), beneficiando o arguido de acompanhamento pelos serviços clínicos da prisão onde se encontra.
60. Ao nível aditivo, o arguido mantinha, desde os 35 anos de idade, consumos regulares de marijuana, bem como de álcool, adição para a qual já efectuou tratamento num passado remoto, no âmbito de uma injunção judicial.
61. Manifesta vontade de, uma vez restituído à liberdade, constituir actividade ..... por conta própria, com recurso a um pequeno terreno agrícola, adjacente à habitação adquirida, nomeadamente a ……, para a indústria de produtos ....., nomeadamente a marca “.....”.
62. Desde que se encontra sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, o arguido apresenta um comportamento regular, sem registo de sanções disciplinares.
63. O arguido BB não tem antecedentes averbados no respectivo registo criminal.
2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado no acórdão recorrido (transcrição):
a Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos constantes da pronúncia e/ou da contestação:
a) - que os arguidos, actuando de forma concertada com outros indivíduos não identificados, integram uma organização que se dedica à aquisição e venda de elevada quantidade de cocaína, do ..... para a Europa, passando por território nacional, por via marítima;
b) - que, dentro da referida rede de narcotráfico, os arguidos estavam incumbidos de efectuar o transporte do estupefaciente, no interior de uma embarcação marítima, por eles conduzida;
c) - que, ao adquirir a embarcação “.....”, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 1., o arguido AA o tivesse feito de acordo com um plano previamente delineado por membros da referida organização, a que ambos os arguidos aderiram, de forma a proceder ao transporte do referido produto;
d) - que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 2., nunca fosse intenção dos arguidos a de navegar até à ....., pois pretendiam rumar ao .....;
e) - que, durante o período compreendido entre os dias 6 e 8 de Novembro de 2019, a embarcação navegou ao largo da cidade de ....., no .....;
f) - que os arguidos adquiriram 1687326,125 gramas de cocaína (cloridrato);
g) - que, após dissimularem a cocaína no interior de sacos desportivos de várias cores, os arguidos transportaram-na para o interior da embarcação “.....”;
h) - que os arguidos sabiam que o produto estupefaciente que lhes foi entregue e apreendido, a que é feita referência nos pontos 8. e 24. da Matéria de Facto, se tratava de cocaína (cloridrato);
i) - que os arguidos integravam uma organização constituída e dirigida nos termos referidos, destinada a operações de importação e exportação de elevadas quantidades de cocaína com vista à colocação no mercado europeu, aceitando colaborar nos termos supra referidos;
j) - que a cocaína apreendida se destinava a ser entregue a outros membros da organização a que os arguidos pertenciam, e que lhes fosse indicada, e a ser comercializada com vista a auferirem elevada compensação económica;
k) - que, atento o peso e a quantia por que tal produto é normalmente vendido (não inferior à quantia de € 48,00 a grama), os arguidos visavam obter com a introdução e comercialização do produto em Portugal quantia superior a 54 milhões de euros;
l) - que as quantias monetárias apreendidas aos arguidos tinham sido obtidas com os proventos resultantes de transacções de cocaína efectuadas;
m) - que os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos eram usados por estes nos contactos necessários à comercialização do referido produto e tinham sido adquiridos com proventos daí resultantes;
n) - que os arguidos nunca constituíram, aderiram ou sequer estavam cientes de que poderia existir uma associação criminosa, muito menos agiram com tal desiderato;
o) - que em momento algum os arguidos cogitaram encontrar-se ou filiar-se no seio de um grupo destinado, com carácter de permanência e estabilidade, à prática de crimes.
2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
Nos termos do art. 205.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei, consagrando o Código de Processo Penal a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97.°, n.° 5 e 374.°, n.° 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
No caso vertente, o tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos considerados como demonstrados na apreciação, conjugada e de acordo com as regras da experiência comum, dos elementos de prova constantes dos autos e resultantes da audiência de julgamento, a saber as declarações dos arguidos AA e BB, e o depoimento da testemunha CC, inspector da Polícia Judiciária, interveniente na investigação dos autos, que foram conjugados com o acervo documental junto aos autos, designadamente com os documentos que adiante se particularizam:
- informação da MAOC (Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics), datada de 16/01/2020, que integra fls. 1 e 1v. (cujo teor foi determinante para prova da factualidade a que é feita menção nos pontos 11., 12. e 13. da Matéria de Facto);
- cota de fls. 5 e fotografias da embarcação “.....” de fls. 6;
- informação, remetida aos autos pelas Autoridades ....., datada de 17/01/2020, que integra fls. 33 (tradução a fls. 1295v.);
- o auto de busca e apreensão, que integra fls. 40 e 43 dos autos, de onde resulta que no dia 26/01/2020, na sequência da busca efectuada à embarcação “.....”, levada a cabo na Base Naval de ....., sita no ……, ……, foram apreendidos, designadamente, no interior dos dois camarotes à proa e do compartimento de arrumação sitos à proa, oitenta e dois sacos desportivos de várias cores, os quais continham no seu interior várias placas de uma substância em pó de cor branca, com um peso total bruto e aproximado de 1.820,80 Kg, que, submetida a teste rápido, reagiu positivamente para Cocaína: 81 sacos com cerca de 20 placas cada e 1 saco com apenas 10 placas;
- boarding pass da transportadora aérea ....., relativo ao voo ....., com origem em ..... e destino a ....., no dia 09/11/2019, em nome de AA, e voo de ligação ....., com origem em ..... e destino a ....., no mesmo dia e em nome do mesmo indivíduo, que integra fls. 44;
- três recibos emitidos pela “Marina de …..”, em nome de AA, referentes à embarcação “.....” e ao pagamento das diárias de 26/09 a 03/10/2019, de 13/10 a 27/10/2019 e de 27/10 a 10/11/2019, respectivamente, que integram fls. 47 e 48;
- dois talões de abastecimento de gasóleo efectuados em ….., ….., no dia 12/11/2019, que integram fls. 49;
- dois recibos respeitantes ao pagamento de estadia no hotel ....., em …., ….., em nome de AA, referentes ao período compreendido entre os dias 14 e 16 de Novembro de 2019, que integram fls. 50 e 51;
- declaração de entrada/saída de embarcação estrangeira de fls. 54, de onde resulta que a embarcação “.....” deu entrada nas águas do Porto de ....., com dois tripulantes a bordo, os ora arguidos AA e BB, no dia 27/09/2019, e daí saiu no dia 15/11/2019;
- requerimento apresentado pelo ora arguido AA, dirigido à Alfândega de ....., com data de 07/07/2019, solicitando a anulação do pavilhão ..... da embarcação “.....”, com vista ao seu registo na ....., que integra fls. 71 (tradução a fls. 1296);
- declaração simplificada de importação de fls. 72 e 73, com data de registo de 11/11/2019, relativa a uma vela para veleiro, em que figura como importador o ora arguido AA, com endereço em Marina ……, e como país de procedência .....;
- reportagem fotográfica de fls. 83 a 98;
 - auto de apreensão de embarcação, que integra fls. 99 dos autos, de onde resulta que, na mesma data, foi apreendida a embarcação “.....”;
- auto de notícia e de detenção em flagrante delito de fls. 100 a 103 (cujo teor foi determinante, designadamente, para prova da factualidade a que é feita menção nos pontos 18. e 22. da Matéria de Facto);
- imagens referentes às coordenadas geográficas da embarcação “.....”, relativas às datas de 13/01/2020, 18/01/2020 e 19/01/2020, respectivamente, de fls. 105 e 106;
- reportagem fotográfica de fls. 108 a 123;
- registo da embarcação “.....” na associação ..... de desportos náuticos, denominada ....., que integra fls. 1098 a 1100 (tradução a fls. 1233v. a 1234v.);
e
- informação da Embaixada da ..... em ..... remetida aos autos em 23/09/2020, que integra fls. 859, e da legislação em língua ..... remetida em anexo, que integra fls. 860 e 861 (disposições legais que, em sede de debate instrutório, foram traduzidas para língua portuguesa pelo Senhor Intérprete nomeado nos autos - a este propósito, cfr. acta de debate instrutório, realizado em 25/09/2020, que integra fls. 867 a 877, e CD com a tradução dos documentos juntos aos autos a fls. 860, 861, 863, 864, 865 e 866, que integra fls. 878), cujo teor foi determinante para prova da factualidade considerada como demonstrada no ponto 20. da Matéria de Facto.
Nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido AA confirmou, no essencial, a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 1. a 5., 9., 10., 16., 17., 29., 31. e 33. e 34. da Matéria de Facto, tendo, a este respeito, adiantado ser praticante de vela desde os 5 anos de idade, e que, no início do ano de 2019, ao pesquisar anúncios relativos à venda de embarcações na internet, encontrou um anúncio relativo à venda do veleiro “.....”, que se encontrava aportado num estaleiro na ....., que lhe suscitou interesse, tendo viajado para este local, com o propósito de proceder à inspecção do barco e negociar o respectivo preço, tendo procedido à sua compra ao então proprietário, de nacionalidade ....., pelo preço de € 200.000,00, sendo sua intenção a de usufruir do veleiro durante alguns anos, e, depois, proceder à sua revenda no continente europeu. Uma vez que era necessário conduzir a embarcação, através do oceano Atlântico, para a Europa, e não tinha capacidade de o fazer sozinho, já depois de ter procedido à sua compra, contactou o co- arguido BB, ....., que já conhecia há alguns anos, por terem amigos em comum, que se prontificou a acompanhá-lo, e que teria por função providenciar pela assistência técnica e mecânica que fosse necessária à embarcação, tendo, neste contexto, ambos os arguidos viajado para a ....., tendo efectuado um circuito pelas ....., rumando, depois, à ...... Já depois de terem zarpado da ....., decidiram cruzar a Linha do Equador, após o que, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a embarcação teve um buraco no casco, motivado pelo embate da âncora, e ficou com duas velas laceradas, motivo pelo qual ambos decidiram conduzir a embarcação até ao porto de ....., no ....., por ser o porto marítimo mais próximo e dispor das infraestruturas necessárias à sua reparação. No decurso das suas declarações, o arguido foi confrontado com as fotografias juntas a fls. 6, tendo reconhecido nelas a embarcação “.....”, que, na ocasião, se encontrava aportada no porto de ....., e arvorava pavilhão ...... Referiu, ainda, que enquanto a embarcação se encontrou aqui aportada, teve de efectuar três deslocações à ..... para adquirir peças necessárias à sua reparação (encontrando as declarações do arguido, neste particular, suporte de prova, no boarding pass da transportadora aérea ....., relativo ao voo ....., com origem em ..... e destino a ....., e voo de ligação ....., com origem em ..... e destino a ....., que integra fls. 44, nas fotocópias do passaporte da titularidade do arguido, que integram fls. 130 a 134, e na declaração simplificada de importação de fls. 72 e 73, relativa a uma vela para veleiro), e que, nesse período, foi abordado, em ....., por um indivíduo que apenas conhece pelo nome de “DD”, que falava fluentemente ....., e lhe propôs o transporte, na embarcação, de bolsas, contendo produto estupefaciente, para o continente europeu, mediante o pagamento do valor global de € 100.000,00, o que acabou por aceitar, por na altura se encontrar a passar por dificuldades económicas, uma vez que a reparação da embarcação foi muito dispendiosa, motivo pelo qual, nas suas palavras, “o dinheiro falou mais alto”, isto pese embora não tivesse conhecimento da concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente que iria transportar. Nessa sequência, e depois de a embarcação “.....” se encontrar em condições de navegabilidade, o referido indivíduo entregou-lhe um papel em que se encontravam anotadas as coordenadas geográficas correspondentes ao local, em alto mar, situado a cerca de cem milhas náuticas da costa ....., onde iriam recepcionar, proveniente de uma outra embarcação, as mencionadas bolsas, como, de facto, veio a suceder, bolsas essas que deveriam ser entregues pelos arguidos num ponto indeterminado em alto mar, situado no mar do Norte, sensivelmente a meio caminho entre a ..... e a ....., coincidente com as coordenadas geográficas que, oportunamente, lhe viriam a ser indicadas pelo “DD”. No decurso das suas declarações, o arguido foi, ainda, confrontado com as reportagens fotográficas de fls. 84 a 98 e de fls. 109 a 123, e com o requerimento de fls. 71, redigido em língua ....., por si assinado (tendo, na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11/03/2021, sido confrontado com a tradução deste mesmo documento para língua .....), cujo teor confirmou.
Nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido BB confirmou que o arguido AA o contactou, solicitando a sua colaboração para o ajudar na condução do veleiro “.....” da ..... até à cidade de ....., na ....., o que aceitou, por na altura se encontrar sem ocupação profissional, e mediante uma remuneração que se cifraria entre as £ 3000,00 (três mil libras esterlinas) e as £ 5000,00 (cinco mil libras esterlinas) mensais, equivalente à remuneração da última actividade profissional que tinha desempenhado, em ....., quantias estas que, atente-se, correspondem a cerca de € 3500,00 e a cerca de € 5.900,00, respectivamente (e daí o tribunal ter considerado como provada a factualidade a que é feita menção no ponto 30., sendo que a quantia a que aí é feita menção corresponde aos valores que o arguido BB iria auferir nos meses de Novembro e de Dezembro de 2019, e de Janeiro e Fevereiro de 2020, já depois de ter aderido ao projecto que lhe foi apresentado, em ....., pelo co-arguido). Referiu que viu a embarcação “.....”, pela primeira vez, na ....., e que acompanhou o co-arguido em todo o percurso efectuado até ....., tendo adiantado que, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a vela principal da embarcação ficou danificada, motivo pelo qual a embarcação ficou retida no porto de ....., durante um período de cerca de quarenta dias, tempo necessário para a sua reparação. Confirmou, ainda, encontrar-se a bordo da embarcação no momento do transbordo dos sacos de desporto, efectuado em alto mar, sacos estes que, salientou, ajudou a acondicionar no interior da embarcação “.....”, tendo acrescentado que, no decurso da travessia atlântica que se seguiu, o co-arguido trocou a bandeira ....., que se encontrava hasteada na embarcação, pela bandeira ....., tendo-lhe, na ocasião, referido que a embarcação tinha o direito de hastear a bandeira ....., adiantando, ainda, que desde o momento em que foi efectuado o transbordo dos sacos de desporto, em alto mar, e o momento em que se deu a abordagem pela Marinha de Guerra Portuguesa, a embarcação “.....” não aportou em nenhum país, nem em nenhum porto. No decurso das suas declarações, o arguido BB foi confrontado com as fotografias de fls. 6 e com as reportagens fotográficas de fls. 83 a 98 e de fls. 108 a 123, cujo teor confirmou, tendo igualmente confirmado a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 10. e 37. da Matéria de Facto.
Atendeu-se, igualmente, ao depoimento, claro, isento e preciso, da testemunha CC, inspector da Polícia Judiciária, interveniente na investigação dos autos, que começou por explicar a razão como a investigação se iniciou, a saber, por ter chegado àquela entidade policial a informação, proveniente da MAOC (Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics), junta a fls. 1 e 1v., dando conta de que no âmbito da análise de risco realizada por esta entidade foi detectado que o sistema AIS da embarcação “.....” se encontrava a funcionar de forma intermitente, o que foi considerado um indício relevante, e, na sequência da monitorização da embarcação efectuada, apurou-se que a embarcação, após ter saído de ....., no ....., esteve dois meses sem aportar, tudo isto a permitir legitimar a suspeita de a mesma puder transportar produto estupefaciente, tendo-se a Polícia Judiciária, na tentativa de localizar a embarcação, socorrido da colaboração da Força Aérea Portuguesa e da Marinha, e uma vez localizada, procedido à sua abordagem em águas internacionais. A testemunha CC referiu, ainda, que antes desta abordagem, a Polícia Judiciária encetou diligências tendentes a apurar qual o pavilhão que a embarcação “.....” arvorava, tendo obtido uma resposta das autoridades ..... dando conta de a certidão da embarcação “.....” já ter caducado no ano de 2019 (encontrando o seu depoimento, neste particular, suporte de prova na informação, remetida aos autos pelas Autoridades ....., datada de 17/01/2020, que integra fls. 33), tendo dado conta ao tribunal de não ter tomado parte na abordagem inicial à embarcação, efectuada em águas internacionais, apenas tendo subido a bordo quando a embarcação se encontrava na Base Naval do ....., em ...... No decurso da sua inquirição, a testemunha CC foi confrontada com a informação da MAOC de fls. 1 e 1v., com a cota de fls. 5 e as fotografias da embarcação “.....” de fls. 6, recolhidas pelas autoridades ....., com o auto de busca e apreensão, de fls. 40 a 43 (determinante para prova da factualidade a que é feita menção nos pontos 23. a 25. da Matéria de Facto), com o auto de apreensão de embarcação de fls. 99, com o auto de notícia e de detenção em flagrante delito, de fls. 100 a 103, e com o auto de teste rápido e pesagem de fls. 107, por si lavrados, com as reportagens fotográficas de fls. 83 a 98 e de fls. 108 a 123, e com as imagens referentes às coordenadas geográficas da embarcação “.....” de fls. 105 e 106, tendo confirmado o teor de todos estes documentos, tendo explicitado, no que respeita às coordenadas geográficas da embarcação “.....”, que as primeiras foram dadas pela localização do sistema AIS, as segundas pela Força Aérea Portuguesa e as terceiras pela Marinha. Inquirido, referiu não haver nenhuma informação que a embarcação “.....” tivesse como destino Portugal, bem como ser a rota seguida pela embarcação compatível com o destino mar do Norte. O depoimento da testemunha CC foi, na matéria aludida, relevante, atento o conhecimento directo demonstrado, obtido no âmbito e por virtude do exercício das suas funções, tendo o mesmo deposto com isenção, de forma desinteressada, explicativa, circunstanciada e sem qualquer outro desígnio que não o de colaborar com o tribunal na descoberta da verdade, motivo pelo qual nos mereceu credibilidade.
Quanto à qualidade e quantidade do estupefaciente em causa - cocaína (cloridrato), atendeu-se, ainda, para além do auto de busca e apreensão já referenciado, ao auto de teste rápido e pesagem de fls. 107, e ao exame toxicológico do Laboratório de Polícia Científica de fls. 701 dos autos.
O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos atinentes aos elementos subjectivos e à ilicitude, constantes dos pontos 6., 7., 26., 27., 28., 30. e 32., considerando-se a concreta forma de actuação de cada um dos arguidos nos termos apurados e as circunstâncias que as envolveram, à luz de regras de normalidade e de experiência, que permitem inferir estes factos subjectivos, sendo que não há o menor indício de que qualquer um dos arguidos tivesse sido coagido a actuar da forma como o fez. Aliás, é do conhecimento geral a ilicitude criminal deste tipo de condutas, e que, no concernente à droga, é de todos conhecido que o transporte e a simples detenção de estupefaciente, ainda para mais, quando esse produto se destina a ser entregue a terceiros, não é permitido, resultando, aliás, no caso vertente, de forma exuberante, dos cuidados empregues pelos arguidos com vista à ocultação da sua conduta, de que são elucidativas as circunstâncias de a operação de transbordo dos sacos desportivos, contendo as embalagens/placas de cocaína (cloridrato) ter tido lugar num ponto em alto mar, situado a cerca de cem milhas náuticas da costa ....., e de na viagem que se seguiu, com destino ao continente europeu, o sistema de localização/identificação denominado AIS da embarcação “.....” ter permanecido desligado durante um período de cerca de dois meses, até ao dia 13 de Janeiro de 2020 (apenas tendo sido ligado, no aludido período, no dia de Natal) e de, desde o momento em que foi efectuado o mencionado transbordo dos sacos de desporto, em alto mar, no dia 15/11/2019, e o momento em que se deu a abordagem pela Marinha de Guerra Portuguesa, no dia 19/01/2020, a embarcação “.....” não ter aportado em nenhum porto ou marina, o que inviabilizou não apenas que os arguidos pudessem descansar, mas também que pudessem proceder a um reabastecimento de água, comida e/ou combustível, comportamentos estes que, conjugados com a própria postura dos arguidos em audiência de julgamento, denota que os mesmos são imputáveis e têm consciência dos actos que praticam.
A este respeito, cumpre referir que, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, e ao ser confrontado com a circunstância, de, no decurso da viagem, o sistema de localização/identificação AIS da embarcação “.....” se ter encontrado desligado, o arguido AA adiantou que que tal resultou da circunstância de todos os três aparelhos de navegação que possuía na embarcação apresentarem defeito, e, por esse motivo, não funcionarem em condições, desligando-se automaticamente, tendo o arguido BB, pelo contrário, asseverado que o sistema de ligação/identificação da embarcação se manteve sempre ligado, sendo certo que, neste ponto, as declarações de cada um dos arguidos, contraditórias entre si, não mereceram ao tribunal colectivo qualquer credibilidade, por se encontrarem em patente desconformidade com a informação da “Maritime Analysis and Operations Centre (Narcotics)”, que integra fls. 1 e 1v., a qual, pela isenção e especial preparação da entidade (agentes policiais) que a elaborou, nos mereceu o máximo crédito.
Os arguidos AA e BB referiram, ainda, de forma coincidente, que o segundo apenas teve conhecimento de que iria ser efectuado o transbordo dos sacos desportivos, contendo produto estupefaciente, para a embarcação “.....”, em alto mar, e no momento em que o transbordo estava a ser afectuado, bem como de, até então, este desconhecer em absoluto tal situação, tendo ambos adiantado que, no período em que a embarcação “.....” se encontrou ancorada em ....., o arguido BB não presenciou os contactos e conversas que o arguido AA manteve com o indivíduo que o abordou, que apenas se identificou como tendo o nome de “DD”, e que, a realização do aludido transbordo motivou uma discussão e um conflito entre ambos, por o arguido BB não concordar com o transporte do produto estupefaciente, tendo este adiantado que, na sequência da discussão, “ameaçou saltar borda fora” e que ambos os arguidos ficaram duas semanas sem se falar.
No entanto, no caso vertente, em face das concretas circunstâncias em que tiveram lugar os factos objecto dos presentes autos, e tendo em conta a lógica, a experiência acumulada e aquilo que se pode designar por senso comum, a versão adiantada por ambos os arguidos em audiência de julgamento, no sentido de o arguido BB apenas em alto mar, e no momento em que o transbordo estava a ser afectuado, ter tomado conhecimento de que iriam ser transportadas embalagens de produto estupefaciente na embarcação “.....”, e de não ter concordado com tal transporte, não mereceu credibilidade ao tribunal colectivo, desde logo por um transporte de droga desta dimensão não se compadecer com uma estrutura e com participações amadoras, antes sendo antecipada e meticulosamente programada, visando, também, que as operações decorram com a máxima descrição, rapidez e segurança, até para que os seus agentes se furtem à acção das autoridades.
 Atente-se, desde logo, ter ficado demonstrado em audiência de julgamento, até porque ambos os arguidos o referiram, de forma coincidente, não ser viável que uma só pessoa conduza uma embarcação, com as características da embarcação “.....”, através do oceano Atlântico, do ..... para a Europa, tendo o arguido BB concretizado que o habitual é uma embarcação desta natureza ser navegável com, pelo menos, cinco navegantes, sendo de todo imprescindível a presença de, no mínimo, dois tripulantes, um com a função de estar ao leme e outro com a função de estar a arrear as velas, por a embarcação “.....” não dispor de um sistema de velas automático, pelo que não é crível que o arguido AA acedesse a fazer um transporte de produto estupefaciente desta dimensão, por via marítima, sem disso dar prévio conhecimento ao arguido BB, em virtude de a intervenção deste, quer a arrear as velas, quer a providenciar pela assistência técnica e mecânica que, ao longo da viagem, se viesse a revelar necessária, ser de todo imprescindível e indispensável à sua realização.
Refira-se, ainda, que, neste particular, as declarações prestadas pelo arguido BB revelaram contradições intrínsecas que lhes retiraram qualquer crédito. Ilustrando o que se acaba de concluir, saliente-se, a título meramente exemplificativo, que o arguido BB referiu que, na sequência da discussão mantida entre ambos, o arguido AA lhe implorou que o acompanhasse, pelo menos até chegarem a ……, com o argumento de não poder efectuar a viagem sozinho. Tendo sido perguntado ao arguido, na primeira sessão da audiência de julgamento, o motivo de não ter abandonado a embarcação “.....” quando a mesma passou ao largo do arquipélago dos ....., disse que não teve possibilidade de o fazer devido às condições meteorológicas, por, na altura, haver uma tempestade de categoria 3, que perdurou ao longo de um período de três dias. No entanto, tendo sido perguntado ao mesmo arguido, na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11/03/2021, o motivo de não ter abandonado a embarcação “.....” quando a mesma passou ao largo de ….. (ou seja, em momento prévio aquele em que a embarcação navegou ao largo do arquipélago dos .....), referiu que não o fez por ter preferido esperar pela chegada da embarcação à ..... ou à ....., tudo isto a permitir legitimar o entendimento de que, ao contrário do que referiu, em momento algum foi intenção do arguido BB a de abandonar a embarcação antes de a mesma chegar ao mar do Norte e de a entrega das 1628 embalagens/placas de cocaína acordada ser concretizada, precisamente por ter aderido ao projecto de que, ainda em ....., lhe foi dado conhecimento pelo arguido AA, o que fez movido pelo propósito de obter benefícios económicos, motivo pelo qual não nos mereceram qualquer credibilidade as declarações prestadas pelo arguido na primeira sessão da audiência de julgamento, ao referir que no momento em que iniciou o transbordo dos sacos de desporto e o seu acondicionamento no interior da embarcação “.....” se encontrar na convicção de os sacos conterem dinheiro no seu interior, e apenas no decorrer do transbordo se ter apercebido, pelo cheiro que os sacos exalavam, que continham produto estupefaciente (a este respeito o arguido concretizou que na altura pensou tratar-se de “heroína ou de alguma coisa mais forte”), que não teve outra opção, por ter estado sempre sobre pressão, desde logo em virtude de tal versão não ter sido corroborada por qualquer outro elemento probatório, sendo certo que de toda a actividade por si desenvolvida nada permite inferir que tal tivesse sucedido, e que era sua ideia a de saltar borda fora na primeira terra e fugir, por saber que “a uma viagem destas ninguém sobrevive’, da mesma forma que não nos mereceram qualquer credibilidade as declarações prestadas pelo arguido na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11/02/2021, quando asseverou que, no momento em que efectuava o transbordo, apenas se apercebeu que os sacos continham droga, depois de ter recebido o quarto ou quinto saco, e isto por ter notado que as pessoas que seguiam na outra embarcação se encontravam armadas, o que o levou a olhar para o co-arguido, que lhe disse para continuar a colocar os sacos no interior da embarcação “.....”, tanto mais que esta versão se encontra em patente contradição com as declarações prestadas na sessão de julgamento precedente, em que, reitere-se, o arguido afirmou ter-se apercebido que os sacos de desporto continham droga pelo cheiro que os mesmos exalavam.
Assim, perante os referidos elementos de prova, analisados criticamente, face aos dados da experiência comum, é possível, no entendimento do tribunal colectivo, formar um juízo seguro de certeza jurídica de que os arguidos AA e BB, em execução de um plano previamente traçado pelo primeiro com um indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, e a que o segundo aderiu, actuando em comunhão de vontades e esforços, aceitaram receber e carregar consigo as 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, apreendidas nos autos, do ..... para a Europa, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias, o que fizeram com a finalidade comum de obterem benefícios económicos (o montante de € 100.000,00, no caso do arguido AA; e montante não inferior a € 14.000,00, no caso do arguido BB), não obstante saberem serem as respectivas condutas proibidas por lei, constituindo a factualidade a que é feita menção nos pontos 35. e 38. o corolário lógico de, tendo os arguidos incorrido na prática dos factos objecto dos presentes autos, puderem no futuro sentir-se tentados a repetir comportamentos da mesma natureza, atentos os proventos fáceis e avultados que o tráfico internacional de produtos estupefacientes, designadamente de cocaína, possibilita aos seus agentes
Em suma, atentas as declarações dos arguidos AA e BB e o depoimento da testemunha CC, conjugados com a análise crítica da prova documental e pericial, a que acima se fez menção, e com as regras da experiência comum, formou o Tribunal Colectivo a convicção, firme, racional e estruturada, de que se verificaram efectivamente os factos vertidos nos pontos 1. a 38. da Matéria de Facto Provada.
Foram, igualmente, valorados os relatórios sociais para julgamento elaborados pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, relativamente à pessoa de cada um dos arguidos, onde se abordam os dados relevantes do respectivo processo de socialização, as respectivas condições sociais e pessoais, bem como o impacto da situação jurídico-penal (cfr. fls. 1061 a 1063; e fls. 1030 a 1033, respectivamente), cujo teor foi complementado e actualizado pelas declarações prestadas pelos próprios em audiência de julgamento, determinantes para prova da factualidade enunciada nos pontos 39. a 47. e 49. a 62., mostrando-se a ausência de antecedentes criminais de cada um dos arguidos certificada a fls.1096 e a fls. 1097, respectivamente, ambos com data de emissão de 12/01/2021.
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Já a convicção do tribunal no que se refere à factualidade considerada como não demonstrada, a que é feita menção nas als. a) a o), resultou da ausência de elementos de prova suficientes para convencerem da sua verificação, encontrando-se a factualidade a que é feita menção nas als. f), g) e h) em patente contradição com a matéria de facto considerada como demonstrada.
No que respeita à factualidade a que é feita menção nas als. a), b), c), i) e j), importa salientar que, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido AA referiu não ter conhecimento da identidade do dono das embalagens/placas de cocaína que foram apreendidas no interior da embarcação “.....”, nem da identidade das pessoas a quem as mesmas se destinavam, desconhecendo onde tal produto foi plantado, produzido e/ou embalado, bem como o preço de venda que o mesmo poderia atingir no mercado, frisando não ter ideia nenhuma de qual o preço de venda de uma grama de cocaína, sem que, neste particular, as declarações do arguido tivessem sido infirmadas por qualquer prova em contrário. Na realidade, dos elementos constantes dos autos não se olvida que o produto estupefaciente em causa nos autos (cocaína - cloridrato) terá sido produzido por terceiros não identificados e, considerando a quantidade, bem como, o grau de pureza, admite-se a possibilidade de estarmos perante uma organização, susceptível de integrar o tipo legal de associação criminosa. No entanto, não resultam dos autos quaisquer elementos probatórios que sustentem a existência de uma organização desta natureza, designadamente quanto ao seu carácter permanente e estável. Porém, no que diz respeito à sua comercialização e transporte, apesar do produto estupefaciente apreendido na embarcação “.....”, nos termos considerados como demonstrados, não resulta dos autos que os arguidos AA e BB, ao assim proceder, estivessem a prestar colaboração a qualquer organização criminosa, para efeitos do citado tipo legal, redundando que o faziam de modo próprio, para o seu interesse pessoal, com intervenção de terceiros, em conjugação de esforços, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 26.° do Cód. Penal. Efectivamente, os autos apenas evidenciam a existência de uma conjugação de vontades entre os arguidos AA e BB, para concretização do transporte das embalagens/placas de cocaína (cloridrato) apreendidas, sem que tivesse ficado demonstrado que qualquer um dos arguidos tivesse aderido ou prestado colaboração a qualquer associação, mas antes que os mesmos, por comum acordo, decidiram concertar vontades e saberes para, a troco de quantia monetária, procederem ao transporte do aludido produto estupefaciente, ainda que tivessem recebido instruções de terceiros, designadamente relativas ao concreto ponto, situado em alto mar, a cerca de cem milhas náuticas da costa ....., onde se deveriam dirigir, para recepcionarem o produto estupefaciente, tendo, ainda, ficado acordado que, no momento oportuno, o arguido AA iria receber instruções de terceiros quanto ao concreto ponto, situado em alto mar, no mar do Norte, onde a embarcação “.....” se deveria dirigir, para o efeito de os arguidos procederem à entrega das embalagens/placas de cocaína transportadas.
A este propósito, importa, no entanto, concretizar que o tribunal não considerou provado “que os arguidos nunca constituíram, aderiram ou sequer estavam cientes de que poderia existir uma associação criminosa, muito menos agiram com tal desiderato”, em virtude de uma total ausência de prova nesse sentido, motivo pelo qual a factualidade a que é feita menção nas als. n) e o) foi considerada como não demonstrada.
No que respeita à factualidade a que é feita menção em k), a mesma foi considerada como não provada, por não ter sido produzida prova de qual o país ou países em que a cocaína, após ser entregue pelos arguidos no mar do Norte, a indivíduos que aí os abordariam, iria ser distribuída, nem por quanto seria comercializada.
Importa, igualmente, ponderar que o tribunal não considerou provado “que os arguidos sabiam que o produto estupefaciente que lhes foi entregue e apreendido, a que é feita referência nos pontos 8. e 24. da Matéria de Facto, se tratava de cocaína (cloridrato)”, mas unicamente que os arguidos “pese embora não conhecessem a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente (cocaína) que lhes foi apreendido, sabiam tratar-se o mesmo de uma das drogas mencionadas nas tabelas IaIIIanexas ao D.L. n.° 15/93, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias”. Isto em virtude de todo o circunstancialismo fáctico indicar que a actividade de que os arguidos foram incumbidos se cingia a efectuar o transporte das 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato) desde o ..... até ao continente europeu, e à sua subsequente entrega, no mar do Norte, a indivíduos, de identidade desconhecida, que aí os abordariam numa outra embarcação. Ora, dizem-nos as regras da experiência que, normalmente, quem contrata este tipo de colaboradores ocasionais tem o cuidado de deixar que eles não conheçam de onde vem a droga ou quem é o seu dono. Percebe-se que assim seja. Não pertencendo estes colaboradores ocasionais ao núcleo de pessoas que detém e decide o destino da droga, nem sendo da sua confiança, há que acautelar a possibilidade de os mesmos serem detidos e disporem-se a colaborar com as autoridades, revelando quem os contratou e onde está a fonte da droga. Mas se, tudo o indica, terá sido também assim no caso destes autos, sendo perfeitamente natural que os arguidos AA e BB não soubessem muitos pormenores sobre a qualidade e quantidade do produto estupefaciente em questão, não podiam deixar de saber, pelo carácter sigiloso da conduta, pela sofisticação da actuação, por estar em causa um tráfico de cariz transcontinental, que se tratava de um transporte de droga e que se tratava necessariamente de um estupefaciente valioso, dos mais valiosos, e portanto daqueles cujo tráfico é mais severamente reprimido.           
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3. Apreciando
Passamos, agora, a apreciar as questões colocadas nos recursos, seguindo uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras.
3.1. RECURSO DO ARGUIDO AA          
3.1.1. Os arguidos, em sede de requerimento de abertura de instrução, alegaram, além do mais, que as autoridades portuguesas, ao fazerem a abordagem da embarcação de recreio “.....” em alto mar, nos termos em que o fizeram, usaram ilegitimamente a força, violando o domicílio e a pessoa dos arguidos, a quem privaram da liberdade e da propriedade sobre a embarcação e os objectos apreendidos, por não disporem “de um mandado de captura e/ou de buscas e apreensão legalmente suportado pela devida autorização do Estado do pavilhão da embarcação que lhes conferisse jurisdição para o efeito – concretamente da ..... e não da .....”.
Os arguidos argumentaram, então, que pela PJ não tinham sido encetadas as diligências necessárias para confirmar se a embarcação se encontrava efectivamente registada na ....., sendo que o registo numa associação privada era quanto bastava para que embarcações de recreio arvorassem pavilhão ....., concluindo no sentido do incumprimento do disposto no artigo 27.°, n.°s 3 e 5 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, e bem assim do artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, o que determinaria invalidade que constitui proibição de prova, nos termos do artigo 126.°, n.°s 1, 2, al. c) e 3, do C.P.P., a implicar “a invalidade de todos os actos por esta afectados, incluindo a abordagem à embarcação, a entrada na mesma, o seu apresamento e condução, a privação da liberdade dos arguidos e as buscas e apreensões realizadas, bem como dos actos que dela dependerem ou dos actos posteriores por ela afectados (…)”.
Em sede de decisão instrutória, o tribunal entendeu que a intervenção da marinha de guerra portuguesa e todos os demais procedimentos decorreram de acordo com a lei e as competências legalmente atribuídas, concluindo não se verificarem os vícios invocados pelos arguidos.
Na contestação, os arguidos retomaram a mesma questão, voltando a questionar a intervenção das autoridades portuguesas na embarcação em causa, na base do presssuposto, de que os arguidos partem, de que a dita embarcação apresentava validamente bandeira ......
O tribunal de 1.ª instância, no acórdão recorrido, apreciou a matéria como questão prévia, nos seguintes termos:
«Da violação do art. 27.°, n.°s 3 e 5 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de Dezembro de 1982
Na contestação apresentada, os arguidos AA e BB sustentam que as autoridades portuguesas, ao fazerem a abordagem da embarcação de recreio ….. em alto mar nos termos em que o fizeram, usaram ilegitimamente a força, violando o domicílio e a pessoa dos arguidos, a quem privaram da liberdade e da propriedade sobre a embarcação e dos objectos apreendidos, por não disporem de um mandado de captura e/ou de buscas e apreensão legalmente suportado pela devida autorização do Estado do pavilhão da embarcação (.....), que lhes conferisse jurisdição para o efeito, uma vez que a embarcação ..... não só exibia a bandeira ....., como efectivamente e legitimamente arvorava pavilhão ....., por se encontrar legalmente registada através de uma associação privada ....., concluindo ter existido violação do disposto no art. 27.°, n.°s 3 e 5 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, invalidade esta que entendem constituir proibição de prova, nos termos do art. 126.°, n.°s 1, 2, al. c) e 3 do Cód. Processo Penal, a implicar a invalidade de todos os actos por esta afectados, incluindo a abordagem à embarcação, a entrada na mesma, o seu apresamento e condução, a privação da liberdade dos arguidos e as buscas e apreensões realizadas, bem como dos actos que dela dependerem ou dos actos posteriores por ela afectados, a implicar a nulidade da acusação pública, por as provas em que esta alegadamente se baseia terem sido apreendidas no decurso da referida busca nula e das diligências probatórias nulas efectuadas sobre as mesmas.
Juntaram os documentos de fls. 1098 a 1100 (tradução a fls. 1233v. a 1234v.) e de fls. 1101 a 1123 (tradução a fls. 1268 a 1273 e a fls. 1282 a 1287).
Cumpre apreciar e decidir.
Para determinação do lugar da prática do facto deve atender-se ao disposto no art. 7.° do Código Penal, cujo n.° 1 estatui que “O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido”.
No que diz respeito à aplicabilidade da lei penal portuguesa, em razão do lugar da prática do facto, o art. 4.° do Cód. Penal assume o valor de princípio geral, consagrando o princípio da territorialidade, ao dispor:
“Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados:
a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou
b) A bordo de navios ou aeronaves portuguesas”.
Porém, tal regra é excepcionada nos termos do disposto no art. 49.° do D.L. n.° 15/93, de 22 de Janeiro (diploma que tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes), que estatui:
“Para efeitos do presente diploma, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional:
a) Quando praticados por estrangeiros, desde que o agente se encontre em Portugal e não seja extraditado;
b) Quando praticados a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988”.
Assim, e no que ora releva, importa verificar se os factos em causa nos presentes autos podem ser considerados praticados em território nacional (i), em navio ou aeronave com pavilhão nacional (ii) ou fora do território nacional, a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988 (iii).
Desde logo importa enunciar encontrar-se o território nacional delimitado pelo art. 5.° da Constituição da República Portuguesa, nele se incluindo as águas territoriais, bem como a zona económica exclusiva, dispondo o n.° 2 desta disposição legal que “A lei define a extensão e o limite das águas territoriais, a zona económica exclusiva e os direitos de Portugal aos fundos marinhos contíguos”.
Da interpretação conjugada do disposto no n.° 3 do art. 2.° preambular, do art. 56.°, com a epígrafe de “Direitos, jurisdição e deveres do Estado costeiro na zona económica exclusiva’”, e do art. 57.°, com a epígrafe de “Largura da zona económica exclusiva””, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de Dezembro de 1982 e o Acordo Relativo à Aplicação da Parte XI da Convenção adaptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 28 de Julho de 1994, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.° 60-B/97, de 14 de Outubro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.° 67-A/97, de 14 de Outubro, encontra-se reconhecido que “De acordo com as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, Portugal goza de direitos soberanos e de jurisdição sobre uma zona económica exclusiva de 200 milhas marítimas contadas desde a linha de base a partir da qual se mede a largura do mar territorial”.
Para além disso, e de acordo com o disposto no art. 27.°, n.° 1, al. d) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, está admitida a intervenção da jurisdição penal nacional, para investigações, a bordo de navio estrangeiro que passe pelo mar territorial nacional, quando esteja em causa e sejam necessárias para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.
Igualmente com relevância para o caso sub judice, importa ponderar que o art. 92.° da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, com a epígrafe de “Estatuto dos navios””, estatui, no seu n.° 1, que “Os navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente Convenção, devem submeter-se, no alto mar, à jurisdição exclusiva desse Estado. Durante uma viagem ou em porto de escala, um navio não pode mudar de bandeira, a não ser no caso de transferência efectiva da propriedade ou de mudança de registo”.
E o art. 110.° da mesma Convenção, com a epígrafe “Direito de visita”, estatui, no seu n.° 1, que “Salvo nos casos em que os actos de ingerência são baseados em poderes conferidos por tratados, um navio de guerra que encontre no alto mar um navio estrangeiro que não goze de completa imunidade em conformidade com os artigos 95. ° e 96.° não terá o direito de visita, a menos que exista motivo razoável para suspeitar que: a) O navio se dedica à pirataria; b) O navio se dedica ao tráfico de escravos; c) O navio é utilizado para efectuar transmissões não autorizadas e o Estado de bandeira do navio de guerra tem jurisdição nos termos do artigo 109.°; d) O navio não tem nacionalidade; ou e) O navio tem, na realidade, a mesma nacionalidade que o navio de guerra, embora arvore uma bandeira estrangeira ou se recuse a içar a sua bandeira’”, acrescentando-se, no n.° 2 do mesmo preceito, que “Nos casos previstos no n.° 1, o navio de guerra pode proceder à verificação dos documentos que autorizem o uso da bandeira. Para isso, pode enviar uma embarcação ao navio suspeito, sob o comando de um oficial. Se, após a verificação dos documentos, as suspeitas persistirem, pode proceder a bordo do navio a uma exame ulterior, que deverá ser efectuado com toda a consideração possível”.
No caso vertente, o local de intercepção da embarcação “.....” ocorreu na localização ....., ou seja, em águas não integradas na zona económica exclusiva (a este respeito, cfr. auto de notícia e de detenção em flagrante delito de fls. 100 a 104, designadamente o segundo e quinto parágrafos de fls. 101), logo, fora de território nacional, tendo, de imediato, os elementos da Marinha de Guerra Portuguesa constatado que a bordo da embarcação se encontravam inúmeros sacos de desporto, contendo no seu interior placas de uma substância suspeita de se tratar de produto estupefaciente, mais concretamente cocaína.
Tendo esta intercepção ocorrido fora do território nacional, a lei penal portuguesa, no que diz especialmente respeito ao tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, é, ainda assim, aplicável, nos termos do art. 49.° do Decreto-lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, acima transcrito.
In casu, importa atender ao art. 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n,° 29/91, de 06/09, e ratificada por Decreto do Presidente da República n.° 45/91, de 06/09, com a epígrafe de “Tráfico ilícito por mar”, que estatui o seguinte:
“1. As Partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar.
2. A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio com o seu pavilhão, ou sem qualquer pavilhão ou matrícula, é utilizado para o tráfico ilícito, pode solicitar auxílio às outras Partes a fim de pôr termo a essa utilização. As Partes assim solicitadas prestam essa assistência no limite dos meios de que dispõem.
3. A parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matrícula de uma outra Parte é utilizada para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adoptar as medidas adequadas em relação a esse navio.
4. De acordo com o n.° 3 ou com os tratados em vigor entre as Partes ou com qualquer outro acordo ou protocolo por elas celebrado, o Estado do pavilhão pode autorizar o Estado requerente a, inter alia:
a) Ter acesso ao navio;
b) Inspeccionar o navio;
c) Se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, adoptar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo.
5. Quando uma medida é adoptada de acordo com o presente artigo, as Partes interessadas devem ter devidamente em conta a necessidade de não pôr em perigo a segurança da vida no mar nem do navio ou da carga e de não prejudicar os interesses comerciais e jurídicos do Estado do pavilhão ou de qualquer outro Estado interessado.
 6. O Estado do pavilhão pode, em conformidade com as obrigações previstas no n.° 1 do presente artigo, subordinar a sua autorização a condições que sejam acordadas entre o referido Estado e a Parte requerente, incluindo condições relativas à responsabilidade.
7. Para os efeitos dos n.°s 3 e 4 do presente artigo, as Partes respondem sem demora aos pedidos de outras Partes com vista a determinar se um navio arvorando o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, assim como aos pedidos de autorização formulados nos termos do n.° 3. Cada Estado designa, no momento em que se tornar Parte da presente Convenção, a autoridade ou, se for caso disso, as autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos. Essa designação será notificada pelo Secretário-Geral a todas as outras Partes no mês seguinte ao da designação.
8. A Parte que tiver adoptado qualquer das medidas previstas no presente artigo informa de imediato o Estado do pavilhão dos resultados dessa medida.
9. As Partes devem considerar a possibilidade de celebrar acordos ou protocolos bilaterais ou regionais com vista a dar aplicação às disposições do presente artigo ou a reforçar a sua eficácia.
10. As medidas adoptadas nos termos do n.° 4 do presente artigo só são aplicáveis aos navios de guerra ou aeronaves militares ou quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente assinalados e identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e autorizados para esse fim.
11. Qualquer medida adoptada nos termos do presente artigo terá devidamente em conta a necessidade de não interferir nos direitos e obrigações dos Estados costeiros ou no exercício da respectiva competência, de acordo com o direito internacional do mar, nem de afectar esses direitos, obrigações ou competências”.
No caso vertente, os arguidos sustentam que as autoridades portuguesas, ao fazerem a abordagem da embarcação de recreio ..... em alto mar nos termos em que o fizeram, actuaram de forma ilegítima, por se encontrarem em embarcação com pavilhão ....., não tendo as autoridades portuguesas qualquer autorização do Estado ..... que permitisse e legitimasse a sua actuação, concluindo ter existido violação do disposto no art. 27.°, n.°s 3 e 5 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, invalidade esta que entendem constituir proibição de prova, nos termos do art. 126.°, n.°s 1, 2, al. c) e 3 do Cód. Processo Penal, a implicar a invalidade de todos os actos por esta afectados, incluindo a abordagem à embarcação, a entrada na mesma, o seu apresamento e condução, a privação da liberdade dos arguidos e as buscas e apreensões realizadas, bem como dos actos que dela dependerem ou dos actos posteriores por ela afectados,
No entanto, neste particular, é patente a sem razão dos arguidos, resultando da factualidade retratada nos autos que as autoridades nacionais actuaram de acordo com os procedimentos impostos e admitidos no referido art. 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, acima transcrito.
Na realidade, resulta dos autos que a embarcação “.....” teve inicialmente pavilhão emitido pelas Autoridades ....., pavilhão que, aquando da abordagem e inspecção em alto mar, efectuada por elementos da Marinha de Guerra Portuguesa, no dia 19 de Janeiro de 2020, já se mostrava caducado, como, de forma cristalina, resulta da informação, datada do dia 17 de Janeiro de 2020, remetida aos autos pelas Autoridades ....., que integra fls. 33 (tradução a fls. 1295v.).
Mediante a junção aos autos dos documentos de fls. 1098 a 1100 (tradução a fls. 1233v. a 1234v.) e de fls. 1101 a 1123 (tradução a fls. 1268 a 1273 e a fls. 1282 a 1287), os arguidos pretendem comprovar que, na data da abordagem e inspecção em alto mar, efectuada pela Marinha de Guerra Portuguesa, a embarcação “.....” tinha pavilhão ..... .
No entanto, e como resulta da própria tradução de fls. 1233v. a 1234v., o registo que aí se mostra espelhado é o da embarcação “.....” numa associação ..... de desportos náuticos, denominada “.....”, sediada na cidade de ....., dele resultando que “de acordo com as directrizes da Federação ..... de Vela e da Associação de Embarcações Desportivas de ..... tem o direito e a obrigação de arvorar pavilhão .....”, não resultando, do documento em análise, que a embarcação tivesse pavilhão ..... concedido pelas autoridades competentes para o atribuir.
Já no que respeita aos documentos de fls. 1101 a 1123 (tradução a fls. 1268 a 1273 e a fls. 1282 a 1287), os mesmos não assumem, no caso vertente, qualquer relevância, porquanto se trata de um mero comentário ao Código Penal ..... (Comentários sobre o Código Penal, Munchener, 4.a edição, 2020), cuja tradução integra fls. 1268 a 1273, e de uma publicação do Ministério Federal da Justiça, denominado “Lei sobre a bandeira de embarcações de alto mar e a bandeira de embarcações de navegação interior (Lei da Bandeira)", cuja tradução integra fls. 1282v. a 1287, impondo-se, ainda assim, ressalvar que o respectivo teor em nada contende com a informação remetida aos autos em 23/09/2020, pela Embaixada da ..... em ....., que integra fls. 859, cuja genuinidade ou veracidade não foi posta em causa pelos arguidos, e de onde resulta que “segundo a legislação ....., para que possa arvorar pavilhão ....., qualquer embarcação com mais de 15 metros de comprimento tem de ser registada num registo de embarcações (.....)", tal como resulta da análise conjugada da Regulamentação sobre Registo de Embarcações e da Lei que regula a utilização de pavilhão nacional e estrangeiro, acrescentando-se, na mesma informação, que “na ..... os registos das embarcações são efectuados nos tribunais de comarca", não estando “portanto previsto o registo de uma embarcação deste tipo numa associação de direito privado para que possa arvorar pavilhão .....", importando, ainda, salientar, que, a acompanhar a informação, a Embaixada da ..... em ..... remeteu cópia da legislação ..... pertinente, que integra fls. 860 e fls. 861 (disposições legais que, em sede de debate instrutório, foram traduzidas para língua portuguesa pelo Senhor Intérprete nomeado nos autos - a este propósito, cfr. acta de debate instrutório, realizado em 25/09/2020, que integra fls. 867 a 877, e CD com a tradução dos documentos juntos aos autos a fls. 860, 861, 863, 864, 865 e 866, que integra fls. 878).
Nestes termos, em face do teor da informação prestada pela Embaixada da …. em ….., que integra fls. 859, e da legislação ..... em causa, não pode deixar de concluir-se que sendo a embarcação “....." uma embarcação com mais de 15 metros de comprimento (tem 18,8 metros de comprimento), só poderia arvorar pavilhão ..... se o seu registo tivesse sido efectuado num Tribunal de Comarca ....., sendo patente que à associação ..... de desportos náuticos, denominada “.....", a que acima se fez menção, que emitiu o documento de fls. 1098 a 1100, não assiste competência para a concessão e legitimação de arvorar pavilhão ..... .
Em suma, no momento em que a Marinha de Guerra Portuguesa, autoridade marítima com atribuições no âmbito da prevenção e controlo da criminalidade, designadamente, narcotráfico (a este respeito, cfr. o disposto no art. 6.°, n.°s 1 e 2, al. k) do D.L. n.° 43/2002, de 02/03), procedeu à abordagem da embarcação de recreio “.....” em alto mar, estava na presença de uma embarcação que não arvorava pavilhão, tendo, por esse motivo, actuado em escrupulosa observância dos procedimentos impostos e admitidos nos arts. 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas e 110.°, n.° 1, al. d) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, não se suscitando qualquer dúvida quanto à legitimidade do procedimento levado a cabo, pelo que a abordagem efectuada à embarcação e os actos que se lhe seguiram, designadamente o seu apresamento e condução para território nacional e a apreensão do produto estupefaciente, documentada a fls. 40 a 43, não foi feita à revelia de qualquer disposição legal (designadamente do disposto no art. 27.°, n.°s 3 e 5 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar), nem padece de qualquer nulidade, ou de qualquer outro vício, nem tal acontece com os actos de inquérito que se lhe seguiram.»
É contra este entendimento do tribunal recorrido que o arguido/recorrente AA se insurge, alegando a existência de erro de julgamento e consequente violação normativa na apreciação e aplicação das disposições que invoca, alegando ter sido omitida a intervenção das autoridades ....., ao abrigo do artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas de 1988, porquanto a comunicação efectuada pelas autoridades portuguesas foi erradamente dirigida, o que afecta a validade do procedimento. Extrai como consequência a verificação de proibição de prova, além da violação do artigo 340.º do C.P.P.
Vejamos.
A investigação nos presentes autos teve como base informação remetida à Polícia Judiciária, pelo Maritime Anlyysis and Operations Centre - Narcotics (doravante MAOC), a qual dava conta de um possível transporte de produto estupefaciente, por via marítima, tratando-se de uma embarcação de recreio, tipo ....., denominado ....., com pavilhão ....., 19,8 metros de comprimento (mais adiante nos autos refere-se ter 18,8 metros de comprimento) e número de registo ....., que se encontrava já em curso, dirigindo-se para a Europa.
Muito embora se diga na informação respectiva não ser “de todo claro se a embarcação mudou o pavilhão da mesma ou não”, assinala-se que, ainda assim, a embarcação continuou a navegar com bandeira ..... que já teria caducado.
Os elementos dos autos, designadamente a cota de fls. 5 e as fotografias que se seguem, de acordo com informações veiculadas pelas autoridades ..... – recorde-se que a embarcação “.....” deu entrada nas águas da Marina de ….., sita em ....., no dia 27 de Setembro, tendo-se aí mantido parqueada até ao dia 15 de Novembro de 2019 – dão conta de que a embarcação, durante o período em que se encontrou em território ....., arvorou pavilhão ..... .
O artigo 92.° da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, com a epígrafe de “Estatuto dos navios”, estatui, no seu n.° 1, que “Os navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente Convenção, devem submeter-se, no alto mar, à jurisdição exclusiva desse Estado. Durante uma viagem ou em porto de escala, um navio não pode mudar de bandeira, a não ser no caso de transferência efectiva da propriedade ou de mudança de registo”.
E o artigo 110.º da mesma Convenção, com a epígrafe “Direito de visita”, estatui, no seu n.° 1, que “Salvo nos casos em que os actos de ingerência são baseados em poderes conferidos por tratados, um navio de guerra que encontre no alto mar um navio estrangeiro que não goze de completa imunidade em conformidade com os artigos 95. ° e 96.° não terá o direito de visita, a menos que exista motivo razoável para suspeitar que: a) O navio se dedica à pirataria; b) O navio se dedica ao tráfico de escravos; c) O navio é utilizado para efectuar transmissões não autorizadas e o Estado de bandeira do navio de guerra tem jurisdição nos termos do artigo 109.°; d) O navio não tem nacionalidade; ou e) O navio tem, na realidade, a mesma nacionalidade que o navio de guerra, embora arvore uma bandeira estrangeira ou se recuse a içar a sua bandeira’, acrescentando-se, no n.° 2 do mesmo preceito, que “Nos casos previstos no n.° 1, o navio de guerra pode proceder à verificação dos documentos que autorizem o uso da bandeira. Para isso, pode enviar uma embarcação ao navio suspeito, sob o comando de um oficial. Se, após a verificação dos documentos, as suspeitas persistirem, pode proceder a bordo do navio a uma exame ulterior, que deverá ser efectuado com toda a consideração possível”.
A mesma Convenção estabelece no seu artigo 108.º:
«Tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas
1 - Todos os Estados devem cooperar para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto mar com violação das convenções internacionais.
2 - Todo o Estado que tenha motivos sérios para acreditar que um navio arvorando a sua bandeira se dedica ao tráfico ilícito de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas poderá solicitar a cooperação de outros Estados para pôr fim a tal tráfico
Por sua vez, o artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas – que passaremos a designar de Convenção de Viena de 1988, prevê:
««Tráfico ilícito por mar
1 - As Partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar.
2 - A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio com o seu pavilhão, ou sem qualquer pavilhão ou matrícula, é utilizado para o tráfico ilícito, pode solicitar auxílio às outras Partes a fim de pôr termo a essa utilização. As Partes assim solicitadas prestam essa assistência no limite dos meios de que dispõem.
3 - A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matrícula de uma outra Parte é utilizado para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adoptar as medidas adequadas em relação a esse navio.
4 - De acordo com o n.º 3 ou com os tratados em vigor entre as Partes ou com qualquer outro acordo ou protocolo por elas celebrado, o Estado do pavilhão pode autorizar o Estado requerente a, inter alia:
a) Ter acesso ao navio;
b) Inspeccionar o navio;
c) Se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, adoptar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo.
5 - Quando uma medida é adoptada de acordo com o presente artigo, as Partes interessadas devem ter devidamente em conta a necessidade de não pôr em perigo a segurança da vida no mar nem do navio ou da carga e de não prejudicar os interesses comerciais e jurídicos do Estado do pavilhão ou de qualquer outro Estado interessado.
6 - O Estado do pavilhão pode, em conformidade com as obrigações previstas no n.º 1 do presente artigo, subordinar a sua autorização a condições que sejam acordadas entre o referido Estado e a Parte requerente, incluindo condições relativas à responsabilidade.
7 - Para os efeitos dos n.ºs 3 e 4 do presente artigo, as Partes respondem sem demora aos pedidos de outras Partes com vista a determinar se um navio arvorando o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, assim como aos pedidos de autorização formulados nos termos do n.º 3. Cada Estado designa, no momento em que se tornar Parte da presente Convenção, a autoridade ou, se for caso disso, as autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos. Essa designação será notificada pelo Secretário-Geral a todas as outras Partes no mês seguinte ao da designação.
8 - A Parte que tiver adoptado qualquer das medidas previstas no presente artigo informa de imediato o Estado do pavilhão dos resultados dessa medida.
9 - As Partes devem considerar a possibilidade de celebrar acordos ou protocolos bilaterais ou regionais com vista a dar aplicação às disposições do presente artigo ou a reforçar a sua eficácia.
10 - As medidas adoptadas nos termos do n.º 4 do presente artigo só são aplicáveis por navios de guerra ou aeronaves militares ou quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente assinalados e identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e autorizados para esse fim.
11 - Qualquer medida adoptada nos termos do presente artigo terá devidamente em conta a necessidade de não interferir nos direitos e obrigações dos Estados costeiros ou no exercício da respectiva competência, de acordo com o direito internacional do mar, nem de afectar esses direitos, obrigações ou competências.»
No caso em apreço, activado o Protocolo de Cooperação com a Marinha e Força Aérea portuguesas, a intercepção e abordagem da embarcação “.....” pela Marinha de Guerra Portuguesa fez-se ao abrigo do direito de visita previsto no supra citado artigo 110.º, n.º1, al. d).
Atente-se que nos autos foram colhidas duas informações, tendo em vista o artigo 17.º da Convenção de Viena de 1988: uma proveniente das autoridades ..... que informaram que a certidão do pavilhão da embarcação ..... havia já caducado (fls. 31-33); outra, das autoridades ....., com a informação de que a embarcação “has no registration in .....”.
Actuou-se deste modo porquanto, como já se assinalou, havia informação de que a embarcação, durante o período em que se encontrou em território ....., arvorou pavilhão ....., que já teria caducado, e ainda em razão de o proprietário ter nacionalidade ....., estando dado como provado o seguinte:
«19. Aquando da entrada na embarcação, elementos da Marinha Portuguesa verificaram que a mesma não apresentava bandeira, tendo sido apenas encontrada documentação relativamente ao pavilhão que hasteara até Setembro de 2019, da ….., …...
20. Verificou-se, igualmente, que, pese embora tivesse hasteada uma bandeira da ....., a embarcação não se encontrava registada nesse país, constatando-se, assim, que a embarcação navegava sem pavilhão efectivo, ou seja, sem nacionalidade
Como procederam as autoridades portuguesas para aferir da nacionalidade da embarcação junto das autoridades .....?
O pedido/notificação das autoridades ....., para os efeitos do artigo 17.º da Convenção de 1988, foi encaminhado pelo Gabinete Nacional da Interpol – GNI, sendo endereçado ao ..... Office ....., mencionando como Assunto: “Request under Article 17 of the United Nations Convention against illicit traffic of narcotic druges of 1988” e contendo as informações relevantes a respeito da embarcação em causa e do seu dono – o arguido AA (cfr. fls. 35).
Diz o arguido/recorrente que as autoridades portuguesas não encetaram as devidas diligências no sentido de apurar a validade do registo e, assim, a nacionalidade do pavilhão, alegando, a dado passo:
 «Neste contexto, o Tribunal a quo, ao validar este procedimento, fez incorrer o acórdão em violação do artigo 17.° da Convenção das Nações Unidas, nomeadamente o seu n.° 3, uma vez que a confirmação da matrícula ou, pelo menos, da alegada falta dela, apenas sucedeu através de mero correio eletrónico remetido pela INTERPOL DE ..... (cf. fls. 34, 35 e 36).
Daqui se retira que, de uma forma - comunicação tardia - ou de outra - comunicação para a entidade errada - as autoridades portuguesas efetivamente atuaram à margem dos factos e em violação dos procedimentos, circunstância que o Tribunal a quo, perante a prova documental e relato de diligências existente, não podia ter validado
A Convenção de Viena de 1988 foi celebrada sob a égide das Nações Unidas.
Se consultarmos o Practical Guide for Competent National Authorities under Article 17 of the United Nations Convention against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances 1988, publicado pelas Nações Unidas – “United Nations - Office on Drugs and Crime” (também designado de UNODC), facilmente se alcança que se privilegiam os meios de contacto entre autoridades das Partes na Convenção que sejam mais expeditos e diligentes, com recurso aos meios modernos de telecomunicação, como o e-mail.
A mesma agência da ONU - UNODC publicou a lista das autoridades competentes para os efeitos dos artigos 6.º, 7.º e 17.º da Convenção de 1988, intitulado, na sua versão inglesa, “Competent National Authorities under the United Nations Convention against Transnational Organized Crime and the Protocols Thereto and Articles 6, 7 and 17 of the United Nations Convention against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances of 1988” (https://www.unodc.org/documents/legal-tools/CNA_Directory_2011_2_Ebook.pdf).
Enunciando a intenção da listagem, a cargo da UNODC, diz-se, na versão em espanhol:
«A fin de facilitar la cooperación entre los Estados con arreglo a los tratados internacionales relativos a las drogas y a la delincuencia y tras la entrada en vigor de la Convención de las Naciones Unidas contra el Tráfico Ilícito de Estupefacientes y Sustancias Sicotrópicas de 1988, la Oficina de las Naciones Unidas contra la Droga y el Delito (UNODC) ha venido reuniendo información de los Estados Miembros sobre las autoridades nacionales competentes designadas conforme a lo dispuesto en la Convención de 1988 para recibir, atender y tramitar solicitudes de extradición (artículo 6), solicitudes de asistencia judicial recíproca (artículo 7) y solicitudes de cooperación para reprimir el tráfico ilícito por mar (artículo 17).»
Tem-se em vista, por conseguinte, em ordem a facilitar a cooperação, fornecer aos Estados informação sobre as autoridades nacionais competentes que estão designadas pelas Partes na Convenção para receber, atender e tramitar os pedidos aí referidos, entre os quais se encontram os pedidos / notificações efectuados ao abrigo do artigo 17.º da mencionada Convenção de 1988.
Se procurarmos a referência “.....”, encontramos a indicação da autoridade nacional competente, para os efeitos do artigo 17.º da Convenção de 1988, do seguinte modo (versão inglesa):
«…… Office
….. Office
…….
……..
……..
……..»
Mais se indicam os números de telefone, fax e endereço de e-mail, as línguas de comunicação admitidas – ..... e ..... -, consignando-se, expressamente, que os pedidos podem ser efectuados via Interpol (“Request by INTERPOL: yes”).
Temos, assim, que ao contrário do que alega o recorrente, o pedido/notificação efectuado ao abrigo do artigo 17.º da Convenção de 1988, foi encaminhado para as autoridades ..... via GNI, como está expressamente previsto, tendo sido endereçado precisamente para as autoridades competentes designadas pela ....., conforme consta da listagem de autoridades competentes divulgada pelas Nações Unidas - “United Nations - Office on Drugs and Crime” (UNODC).
Supondo que as autoridades ..... consideravam insuficientes os elementos constantes do pedido/notificação que lhes foi dirigido, tendo em vista as eventuais particularidades da sua legislação nacional sobre concessão do pavilhão, certamente teriam solicitado informações ou esclarecimentos complementares às autoridades portuguesas, o que não aconteceu.
Alega o arguido/recorrente que, tratando-se de uma embarcação de recreio, o seu registo na ..... poderia ser efectuado numa associação privada de automobilismo ou através do registo na autoridade portuária ou fluvial ....., sendo suficiente um dos dois registos para preenchimento dos requisitos necessários para a atribuição do direito (e obrigação) de arvorar o pavilhão ......
Ora, alega o recorrente que a embarcação em causa foi registada através de uma associação, concretamente a ....., adquirindo, dessa forma, o pavilhão ..... (fls. 854-857).
A este respeito importa assinalar o seguinte:
As autoridades portuguesas não têm a obrigação de conhecer o direito ..... que define os requisitos necessários para a atribuição do direito de arvorar o pavilhão ..... e, portanto, para a atribuição da sua nacionalidade às embarcações.
Por isso mesmo, o pedido/notificação foi endereçado à autoridade nacional competente, para os efeitos do artigo 17.º da Convenção de 1988, que, como já se disse, respondeu negativamente quanto à existência de registo.
Por outro lado, tendo em vista a alegação do arguido, ora recorrente, notificou-se a Embaixada da ....., em ....., no sentido de esclarecer qual o regime jurídico de registo de embarcações marítimas com pavilhão ....., nomeadamente se é legalmente admissível que uma embarcação se encontre simplesmente registada numa associação de direito privado (fls. 780, 788,791, 826, 837, 844), que respondeu, após insistências como consta de fls. 859-862, em ofício onde se consigna “por ordem EE, Oficial de Ligação B…..”.
O recorrente desvaloriza a informação prestada, alegando ter sido enviada pelo Oficial de Ligação da Embaixada “que, como é facto notório e público, não é jurista nem, muito menos, está qualificado para categorizar o conteúdo da sua informação”.
Ocorre que a informação prestada – após insistências enquanto a Embaixada realizava as consultas necessárias – não chegou através de um qualquer Oficial de Ligação, mas pelo “Oficial de Ligação B…..”.
“B…..” é a forma como é designada e conhecida a “B…..” (B…. – B….), que, como já vimos, constitui a autoridade nacional competente designada para os efeitos do artigo 17.º da Convenção de 1988.
De acordo com a informação prestada pela Embaixada da ....., para que se possa arvorar pavilhão ....., segundo a respectiva legislação, qualquer embarcação com mais de 15 (quinze) metros tem de ser registada num registo de embarcações efectuado nos Tribunais de Comarca, não estando previsto o registo de uma embarcação deste tipo numa associação de direito privado para que possa arvorar pavilhão ..... .
A nosso ver, nada mais era exigível às autoridades portuguesas.   
Como acertadamente se assinala no acórdão recorrido:
«Mediante a junção aos autos dos documentos de fls. 1098 a 1100 (tradução a fls. 1233v. a 1234v.) e de fls. 1101 a 1123 (tradução a fls. 1268 a 1273 e a fls. 1282 a 1287), os arguidos pretendem comprovar que, na data da abordagem e inspecção em alto mar, efectuada pela Marinha de Guerra Portuguesa, a embarcação “.....” tinha pavilhão ..... .
No entanto, e como resulta da própria tradução de fls. 1233v. a 1234v., o registo que aí se mostra espelhado é o da embarcação “.....” numa associação ..... de desportos náuticos, denominada “.....”, sediada na cidade de ....., dele resultando que “de acordo com as directrizes da Federação ….. de Vela e da Associação de Embarcações Desportivas de ..... tem o direito e a obrigação de arvorar pavilhão .....”, não resultando, do documento em análise, que a embarcação tivesse pavilhão ..... concedido pelas autoridades competentes para o atribuir.
Já no que respeita aos documentos de fls. 1101 a 1123 (tradução a fls. 1268 a 1273 e a fls. 1282 a 1287), os mesmos não assumem, no caso vertente, qualquer relevância, porquanto se trata de um mero comentário ao Código Penal ..... (Comentários sobre o Código Penal, Munchener, 4.a edição, 2020), cuja tradução integra fls. 1268 a 1273, e de uma publicação do Ministério Federal da Justiça, denominado “Lei sobre a bandeira de embarcações de alto mar e a bandeira de embarcações de navegação interior (Lei da Bandeira)", cuja tradução integra fls. 1282v. a 1287, impondo-se, ainda assim, ressalvar que o respectivo teor em nada contende com a informação remetida aos autos em 23/09/2020, pela Embaixada da ..... em ....., que integra fls. 859, cuja genuinidade ou veracidade não foi posta em causa pelos arguidos, e de onde resulta que “segundo a legislação ....., para que possa arvorar pavilhão ....., qualquer embarcação com mais de 15 metros de comprimento tem de ser registada num registo de embarcações (.....)", tal como resulta da análise conjugada da Regulamentação sobre Registo de Embarcações e da Lei que regula a utilização de pavilhão nacional e estrangeiro, acrescentando-se, na mesma informação, que “na ..... os registos das embarcações são efectuados nos tribunais de comarca", não estando “portanto previsto o registo de uma embarcação deste tipo numa associação de direito privado para que possa arvorar pavilhão .....", importando, ainda, salientar, que, a acompanhar a informação, a Embaixada da ..... em ..... remeteu cópia da legislação ..... pertinente, que integra fls. 860 e fls. 861 (disposições legais que, em sede de debate instrutório, foram traduzidas para língua portuguesa pelo Senhor Intérprete nomeado nos autos - a este propósito, cfr. acta de debate instrutório, realizado em 25/09/2020, que integra fls. 867 a 877, e CD com a tradução dos documentos juntos aos autos a fls. 860, 861, 863, 864, 865 e 866, que integra fls. 878).
Nestes termos, em face do teor da informação prestada pela Embaixada da ..... em ....., que integra fls. 859, e da legislação ..... em causa, não pode deixar de concluir-se que sendo a embarcação “....." uma embarcação com mais de 15 metros de comprimento (tem 18,8 metros de comprimento), só poderia arvorar pavilhão ..... se o seu registo tivesse sido efectuado num Tribunal de Comarca ....., sendo patente que à associação ..... de desportos náuticos, denominada “.....", a que acima se fez menção, que emitiu o documento de fls. 1098 a 1100, não assiste competência para a concessão e legitimação de arvorar pavilhão .....
Conforme já se disse e reitera, as autoridades portuguesas não têm a obrigação de conhecer o direito ..... que define os requisitos para a atribuição da sua nacionalidade às embarcações e, por isso, o pedido/notificação, para os efeitos do artigo 17.º da Convenção de 1988, foi endereçado à autoridade nacional competente que respondeu negativamente quanto à existência de registo, sem que essa autoridade tenha considerado insuficientes os elementos constantes do pedido/notificação que lhe foi dirigido, caso em que certamente teriam sido solicitadas informações ou esclarecimentos complementares às autoridades portuguesas para se habilitarem a responder, o que não aconteceu. Não pode aceitar-se, por isso, a alegação de que “muito dificilmente seria possível à INTERPOL DE ..... apurar essas informações” sobre o pavilhão da embarcação quando a “.....” em ..... é a autoridade designada - e como tal divulgada pela competente Agência das Nações Unidas - para esse efeito.
Carece, pois, de fundamento pretender-se que as autoridades portuguesas não realizaram as devidas diligências no sentido de apurar a validade do registo e, assim, a nacionalidade do pavilhão, ignorando o recorrente, manifestamente, que as informações foram transmitidas pela “B….. – B…..” – directamente num caso e pelo respectivo Oficial de Ligação, no outro -, autoridade nacional competente designada para os efeitos do artigo 17.º da Convenção de 1988.
A pretensão do recorrente de que as autoridades portugueses deveriam continuar a indagar da nacionalidade da embarcação para além das diligências que foram realizadas junto a autoridade competente não tem, a nosso ver, razão de ser, não se vislumbrando que fosse exigível proceder a outras diligências para além das realizadas – o que era exigível fazer foi feito.
E, mais uma vez afirmamos, se as autoridades ....., tendo em vista as particularidades do seu direito interno, que necessariamente conhecem, julgassem insuficientes as informações prestadas pelas autoridades portuguesas em ordem a poderem responder às solicitações que lhes foram dirigidas, certamente teriam pedido os esclarecimentos tidos por necessários para se habilitarem a responder, o que não fizeram, pelo que não se vislumbra qualquer falha no procedimento / protocolo que haja culminado, como alega o recorrente, em “erro na entidade contactada”.
Assim, vistos os elementos de prova dos autos – incluindo os indicados pelo recorrente -, entendemos ser forçoso concluir que no momento em que a Marinha de Guerra Portuguesa procedeu à abordagem da embarcação de recreio “.....” estava na presença de uma embarcação que não arvorava pavilhão – embarcação sem nacionalidade ou apátrida - tendo, por esse motivo, actuado em observância dos procedimentos impostos e admitidos nos artigos 17.° da Convenção de Viena e 110.°, n.° 1, al. d), da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, pelo que a abordagem efectuada à embarcação e os actos que se lhe seguiram, designadamente a sua condução para território nacional, onde veio a ser efectuada, pela PJ (a Marinha não actuou como órgão de polícia criminal, não tendo praticado actos regulados pelo Código de Processo Penal), a busca e apreensão do produto estupefaciente, documentada nos autos, não foi feita à revelia de qualquer disposição legal, nem enferma de qualquer nulidade, ou de qualquer outro vício, nem tal acontece com os actos de inquérito que se lhe seguiram, razão por que não se verifica a alegada “proibição de prova”.
Alega o recorrente que o tribunal a quo omitiu diligência essencial à descoberta da verdade, convocando, para o efeito, o comando ínsito no artigo 340.° do C.P.P. e o princípio da investigação oficiosa, que, segundo o recorrente, impunha que o tribunal contactasse directamente o Tribunal da Comarca de ..... no sentido de esclarecer o procedimento de registo e se, em concreto, o registo apresentado pelo recorrente é ou não válido à luz da legislação ..... .
Estabelece o artigo 340.º do C.P.Penal:
1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa;
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.
A procura da verdade material, tendo em vista a realização da justiça, constitui o fim último do processo penal.
A lei atribui ao tribunal o poder/dever de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, o que constitui a consagração, no nosso sistema, do princípio da investigação ou da oficialidade.
O C.P.P. estabelece no artigo 340.º os princípios gerais em matéria de produção de prova na audiência, encontrando-se vários outros critérios de admissibilidade de prova dispersos noutros preceitos do mesmo diploma, com recurso a expressões como, entre outras, essencial, indispensável, necessário, previsivelmente necessário, absolutamente necessário, útil.
Discute-se, por vezes, se o poder conferido pelo artigo 340.º do C.P.P. é um poder discricionário ou, pelo contrário, é sindicável, questionando-se se é recorrível a decisão de indeferimento de um requerimento de prova apresentado, na fase de julgamento, ao abrigo do preceituado no artigo 340.º do C.P.P.
Impõe-se distinguir duas situações, como assinala o acórdão da Relação do Porto, de 12.02.2014, proferido no proc. n.º 93/08.2GASJP.P1 (em www.dgsi.pt, como outros que venham a ser indicados sem diferente indicação):
«Discutia-se (na doutrina e na jurisprudência) se o poder conferido pelo artigo 340.º do Cód. Proc. Penal é um poder discricionário ou, pelo contrário, é sindicável.
Concretamente, questionava-se se era recorrível a decisão de indeferimento de um requerimento de prova apresentado, na fase de julgamento, ao abrigo do preceituado no artigo 340.º do Código de Processo Penal.
O citado preceito tem um conteúdo normativo que tutela o princípio da investigação para que a decisão final se conforme, no possível das provas, com a verdade material. Trata-se de um poder vinculado do tribunal, de exercício obrigatório, verificado o condicionalismo nele previsto: que a produção dos meios de prova se afigure necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
O correcto exercício desse poder/dever é sindicável, ou seja, a eventual violação dos pressupostos legais do exercício desse poder é impugnável, mediante recurso.
Impõe-se, no entanto, distinguir duas situações:
Pode acontecer que, no decurso da audiência de discussão, se venha a revelar essencial para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa a realização de diligências de prova não requeridas, nem na acusação, nem na contestação do arguido: por exemplo, a realização de um exame à letra e assinatura de um documento, de uma perícia psiquiátrica ou até a audição de uma testemunha cujo depoimento se venha a revelar decisivo.
A omissão dessa diligência de prova reputada de essencial para a descoberta da verdade constitui uma nulidade sanável (portanto, dependente de arguição pelo interessado), nos termos do artigo 120.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Penal.
(…)
Mas também pode acontecer que qualquer dos sujeitos processuais, tendo-se apercebido da essencialidade de uma diligência de prova, apresente um requerimento para a sua realização.
Exatamente como aconteceu no caso sub judice (…)
Se o tribunal indefere o requerimento de realização da diligência, o sujeito processual interessado pode reagir recorrendo do despacho de indeferimento, pois, como já se referiu, o poder conferido pelo artigo 340.º do Cód. Proc. Penal não é discricionário.
Se o não fizer, ou não o fizer tempestivamente, o despacho transita em julgado e o tribunal superior não pode sindicar o indeferimento».
Nesse sentido, podemos ler no Código de Processo Penal Comentado por Conselheiros do S.T.J. (2016, Almedina, 2.ª Edição Revista, p. 1049), em comentário do Juiz Conselheiro Oliveira Mendes ao artigo 340.º do C.P.P.:
«O juízo de necessidade ou desnecessidade de produção de prova cabe ao tribunal, ou seja, aos juízes que o compõem (…). A decisão ssobre a necessidade ou desnecessidade da prova, sobre a admissibilidade da prova, pertence naturalmente àqueles que têm de apreciar a prova e julgar a causa.
(…)
A omissão de produção de meio de prova necessário, ou seja, essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, quer a sua produção haja sido ou não requerida, constitui nulidade relativa, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 120.º. Quando a omissão ocorre apesar da produção da prova ter sido requerida, ou seja, quando o tribunal indefere o requerimento para a produção da prova, a impugnação deve ser feita por via de recurso. Caso contrário o interessado na produção da prova deve arguir a nulidade até ao encerramento da audiência [alínea a) do n.º 3 do artigo 120.º], sob pena de sanação, sendo que no caso de não obter deferimento deve interpor recurso da respectiva decisão.»
Não vislumbramos que haja sido requerida pelo arguido/recorrente a realização da diligência de prova em causa e que o tribunal a quo a tenha indeferido, situação em que, sobre tal despacho, recairia a possibilidade de recurso.
Por conseguinte, se o arguido/recorrente, não a tendo requerido, entendia que o tribunal de instância omitira diligência essencial à descoberta da verdade, tinha, como interessado na produção da prova, a faculdade de arguir, até ao encerramento da audiência de julgamento, a respectiva nulidade (relativa) prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), podendo, sendo caso disso, interpor recurso do despacho que recaisse sobre tal arguição.
Nenhuma destas situações ocorreu: nem o arguido/recorrente requereu a realização da diligência em questão e a viu indeferida pelo tribunal a quo, nem procedeu perante o mesmo tribunal à arguição da referida nulidade (relativa) quando verificou que o tribunal, oficiosamente, não ordenara tal diligência.
Por conseguinte, a dita nulidade, a existir, ficou sanada.
Porém, pelas razões supra expendidas, temos de concluir que as autoridades portuguesas realizaram as devidas diligências no sentido de apurar a nacionalidade da embarcação.
Como já foi sublinhado, as informações tidas como relevantes para a questão foram transmitidas pela “B… - B…..” – directamente num caso e pelo respectivo Oficial de Ligação na Embaixada da ....., em ....., no outro -, autoridade nacional competente designada para os efeitos do artigo 17.º da Convenção de Viena 1988.
A pretensão do recorrente de que as autoridades portuguesas deveriam sobrepor-se às informações recebidas da autoridade competente e continuar a indagar da nacionalidade da embarcação para além das diligências que foram realizadas não tem, a nosso ver, fundamento, não se vislumbrando que fosse exigível ao tribunal recorrido proceder a quaisquer outras diligências, para além das realizadas, em ordem à descoberta da verdade.
Razão por que, mesmo que se considerasse que o arguido/recorrente, sem arguir perante o tribunal de 1.ª instância a alegada nulidade relativa, o poderia fazer em sede de recurso do acórdão condenatório, o que afastamos, ainda assim há que concluir pela inverificação da dita nulidade.
Não vemos, pois, que o acórdão recorrido, ou o presente, tenha como ratio decidendi o entendimento quanto à interpretação da norma do artigo 340.° n.° 1 do C.P..P, singularmente considerada ou conjugada com outro artigo, “no sentido de não impor ao Tribunal o dever de ordenar oficiosamente diligências, desde que conexionadas com a questão de facto a decidir, que se reputam essenciais à descoberta da verdade”, violando “a tutela constitucional das garantias de defesa, o princípio do contraditório e o direito a um processo justo e equitativo, tal como decorrem do disposto nos artigos 32.°, n.° 1 e 5 e 20.°, n.° 4 da CRP, e ainda nos art. 6.°, n.° 1, e 13.° da CEDH”, pelo que não se constata qualquer interpretação normativa ferida de inconstitucionalidade.
3.1.2. Questiona o recorrente o preenchimento da alínea c) do artigo 24.º do D.L n.º 15/93.
Lê-se no acórdão recorrido:
«Estabelece o citado artigo 21.°, n.° 1 do Decreto-Lei 15/93 de 22.01, que quem “sem para tal se encontrar autorizado cultivar, produzir, fabricar, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver”, produtos estupefacientes, integra aquela previsão.
São, assim, elementos típicos do crime previsto no art. 21.°, n.° 1:
- o transportar, o importar, o fazer transitar ou a detenção, sem autorização;
- de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, que não se destinem ao consumo do próprio.
O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico, plasmado neste art. 21.°, n.° 1 do D.L. n.° 15/93, corresponde aos casos de tráfico normal e que, pela amplitude da respectiva moldura penal (4 a 12 anos de prisão), abrange os casos mais variados de tráfico, considerados dentro de uma gravidade mínima, mas já suficientemente acentuada para caber no âmbito do padrão de ilicitude requerido pelo tipo, cujo limite inferior da pena aplicável é indiciador dessa gravidade, e de uma gravidade máxima, correspondente a um grau de ilicitude muito elevada, tão elevada que justifique a pena de 12 anos de prisão.
O crime base do artigo 21.° está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico.
Esta previsão, que constitui o tipo base do crime de tráfico de estupefacientes, tipifica uma pléiade de acções e não apenas o tráfico em sentido estrito e desenha um crime de perigo abstracto, em que se procurou tipificar todas as formas de contacto com produtos estupefacientes, desde o produtor até ao consumidor final, potencialmente lesivas do bem jurídico tutelado - a saúde pública. Procura punir-se todo o comportamento capaz de contribuir para o consumo, por mais leve que seja, pois a saúde pública, e a própria segurança pública, sofrem de forma idêntica com a transmissão onerosa ou gratuita de estupefacientes.
Ao punir o tráfico de estupefacientes, tipificando essa conduta como crime, o legislador tem em vista proteger uma pluralidade de bens jurídicos estruturantes e comuns a todas as sociedades modernas, designadamente a vida, a integridade física e a liberdade de autodeterminação (esta apresenta-se absolutamente coarctada nos consumidores de estupefacientes), pretendendo ainda evitar as graves perturbações da vida em sociedade causadas pela toxicodependência, bem como os efeitos criminógenos que lhe andam associados.
O crime de tráfico de substâncias estupefacientes é de trato sucessivo, em que a mera detenção de droga é já punida como crime consumado, dada a sua vocação para ser transaccionada.
Os casos excepcionalmente graves estão previstos no art. 24.°, pela indicação taxativa das várias circunstâncias agravantes que se estendem pelas diversas alíneas do art. 24.°, enquanto que os casos de considerável diminuição da ilicitude estão previstos no art. 25.°, aqui por enumeração exemplificativa de algumas circunstâncias que, fazendo baixar a ilicitude para um limiar inferior ao requerido pelo tipo-base, não justificam (desde logo por não respeitar o princípio da proporcionalidade derivado do art. 18.° da Constituição) a grave penalidade prevista na moldura penal estabelecida para o tráfico normal.
Por conseguinte, a grande generalidade do tráfico de estupefacientes caberá dentro das amplas fronteiras do tipo matricial; os casos de gravidade consideravelmente diminuída (pequeno tráfico) serão subsumidos ao tipo privilegiado do art. 25.° e os casos de excepcional gravidade serão agravados de acordo com as circunstâncias agravantes do art. 24.°.
Este último normativo rege para situações que desbordam francamente, pela sua gravidade, do vasto campo dos casos que se acolhem à previsão do art. 21.° e que ofendem já de forma grave ou muito grave os bens jurídicos protegidos, o que se verifica quando o agente pratica os factos que integram o crime simples de tráfico de estupefacientes e, ao fazê-lo, concorrem uma ou mais das circunstâncias ali enumeradas taxativamente, como sejam, as substâncias ou preparações serem entregues ou destinarem-se a menores ou diminuídos psíquicos, ou serem distribuídas por um grande número de pessoas, ou o agente ter obtido ou procurado obter avultada compensação remuneratória, etc..
Trata-se, efectivamente, de circunstâncias que agravam em especial a ilicitude e cuja consideração faz aumentar as exigências de prevenção geral do crime. Com efeito, nesses casos, a moldura penal modifica-se, com a agravação do mínimo e do máximo da pena em um quarto, pois, como se lê no preâmbulo do diploma legal em causa “os crimes mais graves de tráfico de droga devem merecer equiparação ao tratamento previsto (...) para a criminalidade violenta ou altamente organizada e para o terrorismo’.
Estabelece o citado art. 24.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, que “As penas previstas nos artigos 21. e 22.° são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se: (...) c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória”.
Analisando esta circunstância de agravação, dir-se-á que a mesma tem por referência a contrapartida económica alcançada pelo agente ou que este pretendeu alcançar com o seu comportamento delituoso.
Nesta disposição legal, a compensação a que se alude é, tão somente, a pretendida obter (ou efectivamente obtida) pelo agente em causa, tendo-se em vista, apenas, a compensação que o agente - aquele concreto agente - para si obteve ou pretendeu obter, não abarcando, naturalmente, a compensação visada ou obtida por terceiros (neste sentido, com interesse, cfr. Ac. STJ, de 28/09/2006, relatado por Rodrigues da Costa, disponível em INTERNET www.dgsi.pt/isti. e Acs. RE, de 05/03/2013, relatado por Sénio Alves, de 28/05/2013, relatado por Maria Fernanda Palma, e de 02/10/2013, relatado por Vasques Osório, disponíveis em INTERNET www.dgsi.pt/itre), tendo o legislador utilizado um conceito indeterminado que necessita de ser densificado.
Neste sentido, cumpre citar o Ac. RE, de 16/04/2013, relatado por António João Latas, disponível em INTERNET www.dgsi.pt/itre), onde se salienta que «como resulta decisivamente da letra do preceito e é confirmado pela respectiva teleologia - tanto quanto podemos percebê-la - a al. c) do art. 24.° apenas se tem por preenchida quando o agente do crime obteve ou visava obter com a sua conduta concreta (nas suas dimensões objectiva e subjectiva), avultada compensação remuneratória, independentemente da conduta (objectiva e subjectivamente perspectivada) dos demais participantes e da dimensão financeira da operação de tráfico globalmente em causa, quando estes aspectos não se repercutam na compensação remuneratória obtida ou visada pelo arguido. Embora a agravante da al. c) do art. 24.°, como a generalidade das demais circunstâncias qualificativas ali previstas, respeitem à ilicitude por revelarem um aumento do perigo para os bens jurídicos que as incriminações dos tráficos de estupefacientes se destinam a tutelar (cfr. Ac. STJ de 26/01/2005 citado supra), a redacção do preceito permite compreender a punição diferenciada do(s) agente(s) do crime que procure ganhos especialmente relevantes, em  atenção à ligação estreita que pode considerar-se existir, em regra, entre a dimensão daqueles ganhos e a intensidade com que são atingidos bens jurídicos de natureza coletiva protegidos na nossa legislação da droga (. . .). Daí que, sendo reconhecido o papel determinante que a procura de ganhos avultados assume na génese do tráfico de estupefacientes e, portanto, na motivação daqueles que na cadeia de envolvidos determinam decisivamente a existência e dimensão do mercado ilícito, se compreenda - do ponto de vista político criminal - a punição mais grave de quem obtém ou procura obter ganhos avultados, como forma de reprimir e prevenir de forma mais eficaz o tráfico praticado pelos que se encontrarão na sua génese. Assim sendo, compreende-se que a al. c) do art. 24. o do dec-lei 15/93 preveja moldura abstrata mais grave apenas para o maior desvalor da ação de quem obteve ou procurou obter compensação avultada, não agravando a responsabilidade penal dos comparticipantes que não se enquadrem no mesmo patamar. Deste modo e tendo presente que é da ordem das verificações empiricas e da sociologia ambiencial da actividade (terminologia colhida do acórdão do STJ de 26.01.2005) que os diversos intervenientes auferem ganhos distintos segundo o papel efetivamente desempenhado na cadeia ou rede de envolvidos nas diversas operações de tráfico, não bastam os elementos objetivos caraterizadores da concreta atividade de tráfico globalmente considerada (como sejam o volume de vendas, a duração da atividade, o nível de organização da atividade e da sua logistica), para poder concluir-se pelo preenchimento da previsão da al. c) do art. 24.º do Dec-lei 15/93. Na falta de apuramento, directo ou indirecto, dos montantes envolvidos que permitam comparações e conclusões a esse nível, é essencial ainda que - cumulativamente - o grau de inserção do agente na rede respetiva ou, em todo o caso, que a relevância do seu papel no caso concreto, sejam de molde a permitir concluir-se, qualitativamente, que o agente em causa não deixou de obter ou procurar compensação remuneratória superior à que se pressupõe na generalidade das condutas abrangidas pelo tipo base do art. 21.º»
A este propósito, importa ponderar que a venda de droga constitui um negócio ilícito que, em geral, proporciona uma elevada remuneração a quem a tal actividade se dedica, o que motiva o traficante a correr os riscos inerentes a uma actividade delituosa objecto de acentuada repressão. Por isso, quando o legislador qualifica a compensação económica de“avultada” e a toma como circunstância agravante modificativa, fá-lo na mira duma projecção de especial saliência, avaliada por elementos objectivos que revertem, necessariamente, à intensidade (mais que à duração) da actividade, conjugada com as quantidades de produto e montantes envolvidos, o que aponta para operações ou negócios de grande tráfico, longe, por regra, das configurações da escala de base típicas, ou do médio tráfico de distribuição intermédia - neste sentido, cfr. Ac. STJ, de 04/05/2005, relatado por Henriques Gaspar, disponível em INTERNET www.dgsi.pt/istj.
Concretamente, é a dimensão da vantagem ou lucro obtido ou que se espera obter, que constitui fundamento de agravação, ou seja, a intenção lucrativa do agente perante actividade criminosa que decide assumir e que sabe altamente lesiva da saúde pública pelas nefastas consequências que provoca na comunidade.
Nesta perspectiva, a “elevada compensação remuneratória” que o agente obteve ou procurava obter, tem de se revelar da ordem de grandeza que se afaste, manifestamente e segundo parâmetros objectivos, das projecções do crime base, uma vez que em todos os tráficos (é da ordem das verificações empíricas e da sociologia ambiencial da actividade) os agentes procuram obter os ganhos (compensações remuneratórias) que a actividade lhes possa proporcionar e, por isso, também, já a previsão de acentuada gravidade da moldura do artigo 21.°.
A dimensão da vantagem, na economia do preceito, há-de ser avultada, ou seja, terá de assumir um valor considerável.
Daí que sobre o julgador recaia o dever de, a partir de factos objectivos, e não de meros juízos de valor, verificar se a compensação económica obtida pelo arguido, ou que ele pretendia obter, ultrapassa o mero negócio rentável, sendo certo que o legislador não pretendeu usar neste domínio conceitos como os de valor elevado ou consideravelmente elevado ou de fazer do crime modo de vida.
Para o preenchimento do conceito legal “avultada compensação remuneratória”, não é absolutamente necessário conhecer o valor mais ou menos exacto do montante pecuniário de tal compensação. Como seus elementos concretizadores deverão considerar-se a quantidade e qualidade da droga e a relação entre ela e o agente - tudo em conexão com a notoriedade, com o conhecimento geral, do valor da droga no mercado, especialmente na venda a consumidores, para além, obviamente, da diferença entre o preço da compra e o da venda.
Examinando o teor dos acórdão publicados sobre esta matéria, da parte do S.T.J., constatamos que a integração de tal agravante foi sempre efectuada através da comprovação de factos muito concretos - não só uma pluralidade de actividades, em lapso temporal definido, aproveitamentos económicos precisos, como também expressões numéricas, diferenças entre despesas e expectativas de lucro ou lucro efectivo - neste particular, cfr., com especial interesse, Ac. STJ, de 11/03/1998, relatado por Virgílio Oliveira, in CJSTJ, ano VI, t. I, pp. 220 a 230; Ac. STJ, de 17/05/2000, relatado por Lourenço Martins, in CJSTJ, ano VIII, t. II, pp. 193 a 197; e Ac. STJ, de 04/10/2001, relatado por Pereira Madeira, in CJSTJ, ano IX, t. III, pp. 178 a 182, procedendo-se, nestes dois últimos acórdãos, à avaliação e apreciação de montantes líquidos.
Revertendo ao caso objecto dos presentes autos, importa ponderar ter resultado provado que os arguidos AA e BB, em execução de um plano previamente traçado pelo primeiro com um indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, e a que o segundo aderiu, actuando em comunhão de vontades e esforços, aceitaram receber e carregar consigo as 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, apreendidas nos autos, do ..... para o continente europeu, cientes de que participavam numa operação de transporte transcontinental de produto estupefaciente, de cuja venda resultam avultados ganhos financeiros, e sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias, tendo actuado nos moldes descritos com a finalidade comum de obterem benefícios económicos, não obstante saberem serem as respectivas condutas proibidas, patenteando os meios empregues uma organização de grande envergadura, de contornos internacionais, como o releva o facto de as embalagens/placas de cocaína terem sido transportadas por via marítima, com o que isso implica de meios logísticos, que não se compadecem com estruturas amadoras, antes exigindo e pressupondo um plano devidamente estruturado que permita o sucesso da operação, e que só é possível concretizar-se com a actuação de várias pessoas em conjugação de esforços.
A cocaína, que encontra previsão na tabela anexa ao referido D.L., na sua tabela I-B, é uma droga com efeitos muito perversos, qualificável como droga dura, numa escala que, partindo das drogas ultra-suaves, passa pelas suaves, semi-suaves, semi-duras, duras e ultra- duras (heroína e crack) - neste sentido, cfr. Recomendações da Comissão de Inquérito do Crime Organizado Ligado ao Tráfico da Droga, aprovadas pelo Parlamento Europeu, publicadas na revista “Sub-Judice”, n.° 3, pp. 95 e ss.. Nessa escala, a cocaína é uma droga dura.
Apesar de a legislação portuguesa não contemplar um critério de gravidade relativa das drogas, ou seja, de distinção entre drogas duras e drogas leves, é médica e cientificamente reconhecido que os efeitos das ditas drogas duras (como é o caso da cocaína) são bem mais perniciosos, nomeadamente pela habituação e dependência que provocam, com efeitos reconhecidamente devastadores na saúde dos consumidores.
Apurou-se, igualmente, que, com tal actuação, o arguido AA pretendia obter uma compensação pecuniária de € 100.000,00, dúvidas não se suscitando, perante a factualidade provada, em como a compensação remuneratória que o mesmo procurava obter, ultrapassa, de forma muito clara, aquela ordem de grandeza compatível com o crime-base, assumindo este valor, aos olhos do cidadão de média capacidade económica, uma dimensão impressionante, e sendo suficiente para concluir, com a necessária certeza, que o arguido visava obter avultada compensação remuneratória, verificando-se, pelo exposto, em relação a este arguido, a ocorrência da circunstância agravante da al. c) do art. 24.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, convocada na pronúncia, com referência à tabela I-B anexa.»
O argumento essencial do recorrente no sentido de não estar preenchida a qualificativa em questão é o de que “uma vez que a cocaína é vendida entre 25 euros e 216 euros o grama, dependendo do grau de pureza, e que estávamos perante cerca de duas toneladas de produto, a margem de lucro poderia ultrapassar centenas de milhões de euros, pelo que, torna-se patente que a reduzida retribuição que o RECORRENTE (enquanto um mero transportador) visava obter é tudo menos acima da média”.
Segundo o recorrente:
«É que se se considera o mero transporte de cerca de duas toneladas de cocaína agravado, o que dizer, por exemplo, do tráfico de heroína ou de crack?»
Noutro passo:
«Intervenções isoladas, de contexto único e irrepetível, e não essenciais, mas meramente instrumentais, auxiliares ou fungíveis não devem ser agravadas, mais a mais quando o RECORRENTE, através de uma conduta amadora, nada recebeu e, provavelmente, nem ia receber
Mais adiante:
«Tendo-se provado o transporte, por banda do RECORRENTE, de cerca de duas toneladas de cocaína (droga dura, ou seja, abaixo das drogas ultraduras e não a mais cara) e que o papel do recorrente foi evidentemente diminuto (instrumental, auxiliar e substituível), resumindo-se, por conseguinte, àquele transporte (facto único e irrepetível), o ato ilícito não pode configurar uma situação de grande tráfico ou sequer de produto de elevada perigosidade e/ou de elevado lucro
É sabido que no tráfico de estupefacientes, a escada entre a base e o topo da pirâmide tem múltiplos degraus, indo desde o pequeno traficante de rua, passando pelo traficante de zona, de região, de país ou de escala universal.
O S.T.J. tem procurado fazer a destrinça entre os diversos tipos de tráfico que se encontram previstos nos artigos 21.º, 22.º e 24.º (para os grandes traficantes), 25.º (pequeno e médio tráfico) e 26.º (pequeno tráfico com finalidade exclusiva de conseguir o produto para uso pessoal) do DL 15/93.   
Sobre a noção de avultada compensação remuneratória a que se refere o artigo 24.º, alínea c), é vasta a jurisprudência do S.T.J., que, inicialmente, começou pelo preenchimento deste conceito com o recurso à noção de valor consideravelmente elevado constante do artigo 202.º do Código Penal, transitando, depois, para o entendimento de que a integração do conceito deve ser feita de forma intra-sistemática, mas autónoma em relação aos escalões previstos no referido artigo 202.º.
A jurisprudência do S.T.J. tem-se pronunciado no sentido de que a avultada compensação remuneratória que se obteve ou se procurava obter pode não resultar directamente da prova do efectivo lucro conseguido ou a conseguir. Deverão ser considerados, para apurar o montante da compensação remuneratória envolvida no tráfico, vários factores indiciários, como a qualidade e quantidade dos produtos estupefacientes traficados, o volume das vendas, a duração da actividade, o nível de organização e logística, ou o grau de inserção do agente na rede clandestina, pois um “correio”, por exemplo, não participa nos lucros da rede da mesma forma que os seus dirigentes, não se exigindo, porém, a prova contabilística rigorosa, impossível de obter em actividades desta natureza, tendo em vista a opacidade que normalmente as caracteriza.
Quer isto dizer que o carácter “avultado” da compensação terá que ser avaliado mediante a ponderação global de diversos factores indiciários, de índole objectiva, que forneçam uma imagem aproximada, com o rigor possível, da compensação auferida ou procurada pelo agente.
In casu, pese embora esteja em causa uma única viagem e não se tenha dado como provado que o arguido integre uma organização dedicada ao tráfico de cocaína, do ..... para a Europa, certo é que estamos perante o transporte transnacional por via marítima de quase duas toneladas de cocaína (peso líquido de 1.687.326,125 gramas), tornado possível pela acção do arguido e pelo qual este visava obter uma compensação pecuniária de 100.000,00 € (cem mil euros).
Não se entende como é que o arguido/recorrente se refere à concreta actividade de tráfico aqui em causa como referente ao “mero transporte de cerca de duas toneladas de cocaína”.
Basta olhar para os dados estatísticos sobre salário mínimo na ..... em 2019 para se constatar que, por meio da operação em causa, visava o arguido/recorrente obter uma compensação equivalente a quase sessenta e cinco salários mínimos.
Afigura-se-nos, pois, que a compensação remuneratória que o arguido procurava obter, que está dada como provada e o arguido não impugna, ultrapassa, como ajuizou o tribunal recorrido, “de forma muito clara, aquela ordem de grandeza compatível com o crime-base, assumindo este valor, aos olhos do cidadão de média capacidade económica, uma dimensão impressionante, e sendo suficiente para concluir, com a necessária certeza, que o arguido visava obter avultada compensação remuneratória, verificando-se, pelo exposto, em relação a este arguido, a ocorrência da circunstância agravante da al. c) do art. 24.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, convocada na pronúncia, com referência à tabela I-B anexa.”
Conclui-se que não merece censura o enquadramento jurídico-penal efectuado no acórdão recorrido.
3.1.3. Insurge-se o arguido contra a pena de prisão aplicada, que considera manifestamente excessiva.
Lê-se no acórdão recorrido:
«Apreciada a conduta dos arguidos AA e BB, vejamos as suas consequências penais, sendo a primeira operação a efectuar, naturalmente, a determinação da respectiva moldura penal ou pena abstractamente aplicável a cada um dos crimes em cuja prática cada um dos arguidos incorreu:
- crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo art. 21.°, n.° 1 do D.L. n.° 15/93, de 22/01: moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão;
- crime de tráfico de estupefacientes agravado, p.p. pelos arts. 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01: moldura penal abstracta de 5 a 16 anos de prisão.
Na ponderação concreta da pena, tendo em atenção os critérios do artigo 71.° do Código Penal, cumpre determinar a medida da pena em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, sem olvidar que a finalidade última da intervenção penal é a reinserção social do delinquente.
No entanto, e conforme ensina Figueiredo Dias, a medida concreta da pena não deve baixar para além do “quantum da pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais. Essa medida mínima da moldura de prevenção, denominada de defesa do ordenamento jurídico, em nada pode ser influenciada por considerações seja de culpa seja de prevenção especial” - Direito Penal Português, Vol. II - As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pp. 242 e 243.
No caso vertente está-se, pois, perante o tráfico de cocaína, substância incluída na tabela I-B anexa do D.L. n.° 15/93, cujo abastecimento e disseminação tem vindo a aumentar com os efeitos perniciosos conhecidos, sendo de atender às elevadas exigências de defesa do ordenamento jurídico, estando em equação, por colocado em perigo e sobressalto constante, por forma directa, um dos mais apreciáveis bens da comunidade, a saúde pública, para além dos consabidos efeitos colaterais, sendo o custo social e económico derivado do tráfico e consequentemente do consumo de droga, designadamente cocaína, acentuado, já que essa actividade continua a ser um dos flagelos da actualidade, que urge combater com firmeza, dado os crimes e violência que origina e erosão dos valores que provoca, sendo, por isso, muito acentuada a necessidade de prevenir e reprovar a prática de crimes desta natureza. Trata-se de um crime de acentuada danosidade social.
Na verdade, há que ter em atenção as grandes necessidades de prevenção geral numa sociedade assolada pelo fenómeno do tráfico de droga, que a jusante gera outro tipo de criminalidade, mas inteiramente relacionada com esta, senão mesmo por ela determinada, pois é das leis de mercado que os bens têm um preço de aquisição e quando escasseia o meio para a sua obtenção muitas poderão ser as formas de alcançar o necessário e imprescindível poder aquisitivo, em vistas da satisfação das necessidades geradas pela toxicodependência e como é sabido uma dessas formas mais comuns é a prática de crimes contra o património, máxime furtos e roubos, havendo que dar satisfação ao sentimento de justiça da comunidade.
Ponderando toda a factualidade provada, debruçados sobre a gravidade objectiva e subjectiva dos factos, recorta-se acentuada a ilicitude, como o é o grau de culpa dos agentes, que, actuando com dolo directo e adequado à dinâmica delitiva, se mostraram indiferentes ao malefício das drogas, às consequências terríveis e nefastas decorrentes do seu consumo, contando apenas o desejo da obtenção do lucro.
A ilicitude é, de facto, elevadíssima, face à enorme quantidade de estupefaciente em causa e à dimensão dos meios empregues, pois estamos em presença de um transporte, por um veleiro com dois mastros, de cerca de 1687 (mil seiscentos e oitenta e sete) quilos de cocaína (produto estupefaciente de elevado teor aditivo, quer pelo grau elevado de dependência que cria, quer pelos efeitos que provoca no dependente, fonte de ampla criminalidade directa e indirecta), do ..... para o continente europeu, com vista à sua comercialização, tudo isto a denotar que se tratava de uma actividade de tráfico de grande envergadura.
E embora os arguidos AA e BB sejam meros agentes de transporte de estupefacientes, por conta de outrem, não são vítimas do sistema criminoso, antes assumindo uma função preponderante na violação do bem jurídico, permitindo e incrementando o negócio do tráfico, uma vez que, de forma consciente e intencional, se predispuseram a transportar a droga, do fornecedor ao destinatário, representando um papel fundamental na cadeia de comercialização do tráfico de estupefacientes, pois é graças aos “transportadores” ou “correios” que aos grandes traficantes é possível fazer circular com facilidade parte do produto estupefaciente que comercializam e fazê-lo à escala mundial, sendo que, no caso vertente, os arguidos aceitaram ser uma peça na cadeia que leva a droga do produtor aos consumidores, ultrapassando continentes, sujeitando-se a riscos que os grandes traficantes não quereriam correr, deste modo participando na globalização deste crime e não se importando, cada um deles, de ser usado como instrumento descartável nas mãos dos grandes traficantes, tendo como única motivação o lucro e encontrando-se os arguidos bem cientes de que, com a sua actividade, poderiam proporcionar a outrem avultada compensação económica, manifestando, ao assim procederem, uma total indiferença para os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e sociedade em geral, o que não abona em favor da sua personalidade.
As razões de prevenção geral são muito elevadas, uma vez que o tráfico de produto estupefaciente é um crime frequente, sendo, nos dias de hoje, a necessidade de combate ao tráfico de droga, em particular o tráfico internacional, indiscutivelmente, uma exigência da comunidade internacional, interiorizada na consciência da generalidade das pessoas, a que os tribunais não podem ficar indiferentes ao administrar a justiça, cumprindo o dever de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos (art. 202.°, n.° 2 da C.R.P.), e que razões de política criminal impõem seja punido por forma suficientemente dissuasora;
- as exigências de prevenção especial, decorrentes, desde logo, da quantidade elevadíssima de cocaína transportada pelos arguidos, o que denuncia uma particular ilicitude e insinua um acentuado juízo de censura, sendo ponderável em desfavor de cada um dos arguidos o motivo determinante da acção, a obtenção de lucro, que merece censura através da aplicação da pena;
- o produto apreendido não chegou a entrar no “giro” comercial, por ter sido apreendido na fase do transporte, antes de qualquer distribuição, circunstância que não pode subvalorizar-se;
- nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais, evidenciando ambos hábitos de trabalho, sendo que qualquer um deles tem mantido um comportamento adequado no Estabelecimento Prisional.
Face a todos estes factores, considerando que a aplicação de penas tem como primordial finalidade a de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico- penal, considerando todas as envolventes do comportamento dos arguidos, tendo em conta as exigências de reprovação e prevenção da prática de futuros crimes e os demais factores estabelecidos no art.° 71.° do Código Penal, face ao quadro punitivo aplicável a cada um dos arguidos, entende-se adequada a aplicação:
- ao arguido AA da pena concreta de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão, situada um pouco acima do termo médio da moldura abstracta aplicável;
e
- ao arguido BB da pena concreta de 9 (nove) anos de prisão, situada um pouco acima do termo médio da moldura abstracta aplicável.
A aplicação a cada um dos arguidos das referidas penas não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas (art. 18.°, n.° 2 C.R.P.), nem as regras da experiência, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa dos arguidos, mostrando-se proporcional e adequada a uma linha uniforme e coerente na penalização dos agentes que se dedicam ao tráfico internacional de droga.»
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cfr., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).
Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exacto de pena.
O juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.
Estabelece o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer.
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.
In casu, tendo em vista as diversas circunstâncias sopesadas pelo tribunal recorrido, o grau de ilicitude dos factos é de grande intensidade, participando activamente o arguido numa operação de transporte internacional por via marítima de quase duas toneladas de cocaína – droga considerada “dura”, de que são conhecidos os efeitos nefastos do consumo, responsável directo ou indirecto de grande parte da criminalidade e fonte de desagregação familiar e social –, ainda que o produto apreendido não tenha chegado a entrar no “giro” comercial, por ter sido apreendido na fase do transporte, o que não deixa de relevar.
A ideia que o arguido/recorrente pretende transmitir, de ser um mero peão na engrenagem do tráfico, com uma “função mínima na violação do bem jurídico”, não é aceitável e não se enquadra nos factos provados.
Como ressalta o acórdão recorrido, embora o arguido seja mero agente de transporte de estupefacientes, por conta de outrem, não é uma vítima do sistema criminoso, antes assumindo uma função preponderante na violação do bem jurídico, uma vez que, de forma consciente e intencional, se predispôs a transportar droga, do fornecedor ao destinatário, através da sua embarcação, em viagem de travessia do Atlântico, movido unicamente pelo desejo do lucro, representando um papel fundamental na cadeia do tráfico de estupefacientes, deste modo participando na globalização deste crime e não se importando com os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e sociedade em geral.
Ainda assim, o tribunal deu como provado que o arguido não conhecia a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente, embora sabendo tratar-se de uma das drogas das tabelas I a III anexas ao D.L. n.º 15/93.
As necessidades de prevenção geral são prementes, atendendo à elevada dimensão e repercussão social que assume uma operação como a dos autos, de tráfico internacional de mil seiscentos e oitenta e sete quilos de cocaína, com o elevado sentimento de insegurança que gera na comunidade.
O arguido não tem antecedentes criminais, evidencia ambos hábitos de trabalho, tem mantido um comportamento adequado no Estabelecimento Prisional, contando no seu país com integração familiar, social e profissional.
Tudo visto e ponderado, sopesando todas as circunstâncias no quadro do binómio culpa e prevenção, tendo como limite insuperável a culpa do arguido - que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas -, entendemos justa, adequada e proporcional a pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão – pena que não viola os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas e é consentida pela culpa do arguido /recorrente.
Finalmente, não se identifica que haja sido efectuada qualquer interpretação do artigo 40.º do Código Penal contrária ao artigo 18.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa.
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3.2. RECURSO DO ARGUIDO BB
3.2.1. Alega o recorrente que o acórdão recorrido enferma dos vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
 No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.
Quer isto dizer que enquanto os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada.
Concretamente quanto aos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e cuja verificação há-de, necessariamente, como resulta do preceito, ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma.
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3).
 Não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento, nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pp. 71 a 73).
Finalmente, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994).
O recorrente começa por transcrever os pontos de facto provados 1 a 10, 26 a 28, 30 e 32.
Seguidamente, transcreve segmentos da motivação da decisão de facto.
Continuando a analisar a motivação, diz o recorrente que não só o tribunal a quo considerou como provado que a razão subjacente à presença do arguido BB na embarcação ..... tinha que ver com a necessidade de assistência técnica e mecânica que fosse essencial dar àquela, “como afirmou peremptoriamente a decisão recorrida que o ora recorrente apenas aderiu ao projecto que lhe foi apresentado pelo co-arguido ainda em .....”, resultando “claramente do facto provado n.° 2 que o arguido BB se associou ao arguido AA ainda na ....., não tendo sido declarado provado que essa associação tivesse sido motivada tendo em vista o transporte futuro, e conjunto, de produto estupefaciente nessa embarcação”.
No essencial, o recorrente insurge-se contra a circunstância de o tribunal, para alguns factos, ter considerado provada “praticamente toda a versão apresentada pelos arguidos”, mas ter-se afastado dessa versão na parte em que ambos referiram “que apenas em alto mar, e no momento em que o transbordo estava a ser efectuado, é que o arguido BB tomou conhecimento de que iriam ser transportadas embalagens de produto estupefaciente na embarcação “.....”, e de não ter concordado com tal transporte”.
Alega o recorrente para o efeito, a existência de um “salto lógico” a consubstanciar o vício do erro notório, que identifica na circunstância de o tribunal a quo não ter dado como provado que foi o arguido AA quem planeou e delineou o crime em causa nos presentes autos, tendo o arguido BB, ora recorrente, tão-só aderido posteriormente ao projecto, o que afastaria a co-autoria, remetendo a factualidade para o domínio da mera cumplicidade.
Com base neste raciocínio, identifica também o recorrente um segundo vício: o da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, sendo esta a decisão de direito, como se evidencia pela circunstância de se dizer que os factos provados – não os que o tribunal deu como provados, mas aqueles que o recorrente entende deveriam ter sido dados como provados – “são notoriamente contraditórios com a decisão de condenar o arguido BB, ora recorrente, como autor material do crime de tráfico de estupefacientes, e não como mero cúmplice”.
Importa sublinhar o seguinte:
Os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, reportam-se, como já se sublinhou, à decisão de facto.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão existe quando, de acordo com um raciocínio lógico baseado no texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação da convicção justifica decisão sobre a matéria de facto oposta ou não justifica a decisão que foi tomada em termos de matéria de facto assente como provada e não provada, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova que fundamentaram a convicção do tribunal.
Quer isto dizer que, quando o artigo 410.º, n.º 2, al. b), do C.P.P., fala em contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, não se está a referir à contradição entre matéria de facto assente como provada e a errada subsunção ao direito que depois foi feita desses factos, mas antes à contradição entre a fundamentação da convicção e a decisão dada ao caso em termos de matéria de facto assente como provada e não provada.
Ora, o arguido/recorrente pretende identificar o vício decisório na relação entre os factos que entende o tribunal deveria ter dado como provados – eliminando aqueles que julga afectados pelo já referido vício do erro notório – e o enquadramento jurídico-penal na co-autoria efectuado no acórdão condenatório, o que, manifestamente, não merece acolhimento.
O recorrente não impugou amplamente a decisão de facto, o que, a ter acontecido, habilitaria o tribunal superior a analisar a prova pessoal gravada.
O que realmente resulta, sob o pretexto da alegação da existência de vícios decisórios, é a divergência entre a convicção pessoal do arguido sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a livre apreciação da prova, cumprindo não olvidar que, mesmo havendo impugnação ampla – e não há -, constitui jurisprudência corrente dos Tribunais Superiores que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for plausível segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Mesmo perante uma impugnação ampla, há que ter em consideração que a imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Quer isto dizer que a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova pessoal, tem por base uma valoração do julgador que, enquanto fundada na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. acórdão da Relação do Porto, de 21/04/2004, Processo: 0314013; acórdãos da Relação de Coimbra, de 18/02/2009, Proc. 1019/05.0OGCVIS.C1, de 10/11/2010, Proc. 2354/08.1PBCBR.C2, e de 09/01/2012, Proc. 102/10.5 TAANS.C1).
O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação a prova, a entender como uma apreciação racional e crítica, de acordo com as regras da lógica, da razão e da experiência comum.
Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática ou prático-jurídica e processualmente válida (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1984, p. 194 2 204; Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1968, Coimbra, p. 48-50) –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”.
A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados e não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão, certamente difícil, de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos, ultrapassado que está o regime da prova legal ou tarifada, substituído pelo princípio da livre apreciação da prova.
O tribunal recorrido deu como provado, além do mais:
1. No dia 7 de Agosto de 2019, o arguido AA adquiriu em ....., nas ....., uma embarcação de recreio, tipo ..... (veleiro com dois mastros), denominado “.....”, com 18,8 metros de comprimento e com o número de registo ....., pelo valor de € 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros).
2. Em data não concretamente apurada, mas situada no decurso do mês de Setembro de 2019, a embarcação “.....”, na qual vinham os arguidos AA e BB, zarpou da ....., tendo aí declarado que pretendiam navegar até à ..... .
3. Ainda no decurso do mês de Setembro de 2019, quando a embarcação “.....” navegava rumo ao ....., já após ter cruzado a Linha do Equador, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a embarcação teve um buraco no casco e ficou com duas velas laceradas, o que levou os arguidos a conduzirem a embarcação até ao porto de ....., no ....., a fim de aí diligenciarem pela necessária reparação.
4. A embarcação “.....” deu entrada nas águas da Marina de ….., sita em ....., no dia 27 de Setembro, tendo-se aí mantido parqueada até ao dia 15 de Novembro de 2019.
5. Em data não apurada, mas situada entre o dia 27 de Setembro e o dia 15 de Novembro de 2019, o arguido AA foi abordado em ....., por um indivíduo cuja identidade se desconhece, que lhe propôs que transportasse na embarcação “.....” embalagens de produto estupefaciente do ..... para o continente europeu, por via marítima e a troco do recebimento de quantias monetárias.
6. O arguido AA deu disso conhecimento ao arguido BB, tendo ambos os arguidos aderido a esse projecto.
27. Os arguidos AA e BB actuaram nos moldes descritos, em conjugação de vontades e esforços, com indivíduos ainda não identificados, com o propósito concretizado de receber e carregar consigo as 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, a que é feita referência em 24., do ..... para a Europa, e pese embora não conhecessem a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente (cocaína) que lhes foi apreendido, sabiam tratar-se o mesmo de uma das drogas mencionadas nas tabelas I a III anexas ao D.L. n.° 15/93, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias.
28. Os arguidos AA e BB actuaram nos moldes descritos com a finalidade comum de obterem benefícios económicos, não obstante saberem serem proibidas as respectivas condutas.
 29. O arguido AA actuou nos moldes descritos visando obter, por essa via, a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros).
30. O arguido BB actuou nos moldes descritos visando obter, por essa via, quantia não inferior a € 14.000,00 (catorze mil euros).
Lê-se na motivação da decisão de facto:
«Nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido BB confirmou que o arguido AA o contactou, solicitando a sua colaboração para o ajudar na condução do veleiro “.....” da ..... até à cidade de ....., na ....., o que aceitou, por na altura se encontrar sem ocupação profissional, e mediante uma remuneração que se cifraria entre as £ 3000,00 (três mil libras esterlinas) e as £ 5000,00 (cinco mil libras esterlinas) mensais, equivalente à remuneração da última actividade profissional que tinha desempenhado, em ....., quantias estas que, atente-se, correspondem a cerca de € 3500,00 e a cerca de € 5.900,00, respectivamente (e daí o tribunal ter considerado como provada a factualidade a que é feita menção no ponto 30., sendo que a quantia a que aí é feita menção corresponde aos valores que o arguido BB iria auferir nos meses de Novembro e de Dezembro de 2019, e de Janeiro e Fevereiro de 2020, já depois de ter aderido ao projecto que lhe foi apresentado, em ....., pelo co-arguido). Referiu que viu a embarcação “.....”, pela primeira vez, na ....., e que acompanhou o co-arguido em todo o percurso efectuado até ....., tendo adiantado que, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a vela principal da embarcação ficou danificada, motivo pelo qual a embarcação ficou retida no porto de ....., durante um período de cerca de quarenta dias, tempo necessário para a sua reparação. Confirmou, ainda, encontrar-se a bordo da embarcação no momento do transbordo dos sacos de desporto, efectuado em alto mar, sacos estes que, salientou, ajudou a acondicionar no interior da embarcação “.....”, tendo acrescentado que, no decurso da travessia atlântica que se seguiu, o co-arguido trocou a bandeira ....., que se encontrava hasteada na embarcação, pela bandeira ....., tendo-lhe, na ocasião, referido que a embarcação tinha o direito de hastear a bandeira ....., adiantando, ainda, que desde o momento em que foi efectuado o transbordo dos sacos de desporto, em alto mar, e o momento em que se deu a abordagem pela Marinha de Guerra Portuguesa, a embarcação “.....” não aportou em nenhum país, nem em nenhum porto. No decurso das suas declarações, o arguido BB foi confrontado com as fotografias de fls. 6 e com as reportagens fotográficas de fls. 83 a 98 e de fls. 108 a 123, cujo teor confirmou, tendo igualmente confirmado a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 10. e 37. da Matéria de Facto
Mais adiante:
«O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos atinentes aos elementos subjectivos e à ilicitude, constantes dos pontos 6., 7., 26., 27., 28., 30. e 32., considerando-se a concreta forma de actuação de cada um dos arguidos nos termos apurados e as circunstâncias que as envolveram, à luz de regras de normalidade e de experiência, que permitem inferir estes factos subjectivos, sendo que não há o menor indício de que qualquer um dos arguidos tivesse sido coagido a actuar da forma como o fez. Aliás, é do conhecimento geral a ilicitude criminal deste tipo de condutas, e que, no concernente à droga, é de todos conhecido que o transporte e a simples detenção de estupefaciente, ainda para mais, quando esse produto se destina a ser entregue a terceiros, não é permitido, resultando, aliás, no caso vertente, de forma exuberante, dos cuidados empregues pelos arguidos com vista à ocultação da sua conduta, de que são elucidativas as circunstâncias de a operação de transbordo dos sacos desportivos, contendo as embalagens/placas de cocaína (cloridrato) ter tido lugar num ponto em alto mar, situado a cerca de cem milhas náuticas da costa ....., e de na viagem que se seguiu, com destino ao continente europeu, o sistema de localização/identificação denominado AIS da embarcação “.....” ter permanecido desligado durante um período de cerca de dois meses, até ao dia 13 de Janeiro de 2020 (apenas tendo sido ligado, no aludido período, no dia de Natal) e de, desde o momento em que foi efectuado o mencionado transbordo dos sacos de desporto, em alto mar, no dia 15/11/2019, e o momento em que se deu a abordagem pela Marinha de Guerra Portuguesa, no dia 19/01/2020, a embarcação “.....” não ter aportado em nenhum porto ou marina, o que inviabilizou não apenas que os arguidos pudessem descansar, mas também que pudessem proceder a um reabastecimento de água, comida e/ou combustível, comportamentos estes que, conjugados com a própria postura dos arguidos em audiência de julgamento, denota que os mesmos são imputáveis e têm consciência dos actos que praticam.
A este respeito, cumpre referir que, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, e ao ser confrontado com a circunstância, de, no decurso da viagem, o sistema de localização/identificação AIS da embarcação “.....” se ter encontrado desligado, o arguido AA adiantou que que tal resultou da circunstância de todos os três aparelhos de navegação que possuía na embarcação apresentarem defeito, e, por esse motivo, não funcionarem em condições, desligando-se automaticamente, tendo o arguido BB, pelo contrário, asseverado que o sistema de ligação/identificação da embarcação se manteve sempre ligado, sendo certo que, neste ponto, as declarações de cada um dos arguidos, contraditórias entre si, não mereceram ao tribunal colectivo qualquer credibilidade, por se encontrarem em patente desconformidade com a informação da “Maritime Analysis and Operations Centre (Narcotics)”, que integra fls. 1 e 1v., a qual, pela isenção e especial preparação da entidade (agentes policiais) que a elaborou, nos mereceu o máximo crédito.
Os arguidos AA e BB referiram, ainda, de forma coincidente, que o segundo apenas teve conhecimento de que iria ser efectuado o transbordo dos sacos desportivos, contendo produto estupefaciente, para a embarcação “.....”, em alto mar, e no momento em que o transbordo estava a ser afectuado, bem como de, até então, este desconhecer em absoluto tal situação, tendo ambos adiantado que, no período em que a embarcação “......” se encontrou ancorada em ....., o arguido BB não presenciou os contactos e conversas que o arguido AA manteve com o indivíduo que o abordou, que apenas se identificou como tendo o nome de “DD”, e que, a realização do aludido transbordo motivou uma discussão e um conflito entre ambos, por o arguido BB não concordar com o transporte do produto estupefaciente, tendo este adiantado que, na sequência da discussão, “ameaçou saltar borda fora” e que ambos os arguidos ficaram duas semanas sem se falar.
No entanto, no caso vertente, em face das concretas circunstâncias em que tiveram lugar os factos objecto dos presentes autos, e tendo em conta a lógica, a experiência acumulada e aquilo que se pode designar por senso comum, a versão adiantada por ambos os arguidos em audiência de julgamento, no sentido de o arguido BB apenas em alto mar, e no momento em que o transbordo estava a ser afectuado, ter tomado conhecimento de que iriam ser transportadas embalagens de produto estupefaciente na embarcação “.....”, e de não ter concordado com tal transporte, não mereceu credibilidade ao tribunal colectivo, desde logo por um transporte de droga desta dimensão não se compadecer com uma estrutura e com participações amadoras, antes sendo antecipada e meticulosamente programada, visando, também, que as operações decorram com a máxima descrição, rapidez e segurança, até para que os seus agentes se furtem à acção das autoridades.
 Atente-se, desde logo, ter ficado demonstrado em audiência de julgamento, até porque ambos os arguidos o referiram, de forma coincidente, não ser viável que uma só pessoa conduza uma embarcação, com as características da embarcação “.....”, através do oceano Atlântico, do ..... para a Europa, tendo o arguido BB concretizado que o habitual é uma embarcação desta natureza ser navegável com, pelo menos, cinco navegantes, sendo de todo imprescindível a presença de, no mínimo, dois tripulantes, um com a função de estar ao leme e outro com a função de estar a arrear as velas, por a embarcação “.....” não dispor de um sistema de velas automático, pelo que não é crível que o arguido AA acedesse a fazer um transporte de produto estupefaciente desta dimensão, por via marítima, sem disso dar prévio conhecimento ao arguido BB, em virtude de a intervenção deste, quer a arrear as velas, quer a providenciar pela assistência técnica e mecânica que, ao longo da viagem, se viesse a revelar necessária, ser de todo imprescindível e indispensável à sua realização.
Refira-se, ainda, que, neste particular, as declarações prestadas pelo arguido BB revelaram contradições intrínsecas que lhes retiraram qualquer crédito. Ilustrando o que se acaba de concluir, saliente-se, a título meramente exemplificativo, que o arguido BB referiu que, na sequência da discussão mantida entre ambos, o arguido AA lhe implorou que o acompanhasse, pelo menos até chegarem a África, com o argumento de não poder efectuar a viagem sozinho. Tendo sido perguntado ao arguido, na primeira sessão da audiência de julgamento, o motivo de não ter abandonado a embarcação “.....” quando a mesma passou ao largo do arquipélago dos ....., disse que não teve possibilidade de o fazer devido às condições meteorológicas, por, na altura, haver uma tempestade de categoria 3, que perdurou ao longo de um período de três dias. No entanto, tendo sido perguntado ao mesmo arguido, na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11/03/2021, o motivo de não ter abandonado a embarcação “.....” quando a mesma passou ao largo de ….. (ou seja, em momento prévio aquele em que a embarcação navegou ao largo do arquipélago dos .....), referiu que não o fez por ter preferido esperar pela chegada da embarcação à ..... ou à ....., tudo isto a permitir legitimar o entendimento de que, ao contrário do que referiu, em momento algum foi intenção do arguido BB a de abandonar a embarcação antes de a mesma chegar ao mar do Norte e de a entrega das 1628 embalagens/placas de cocaína acordada ser concretizada, precisamente por ter aderido ao projecto de que, ainda em ....., lhe foi dado conhecimento pelo arguido AA, o que fez movido pelo propósito de obter benefícios económicos, motivo pelo qual não nos mereceram qualquer credibilidade as declarações prestadas pelo arguido na primeira sessão da audiência de julgamento, ao referir que no momento em que iniciou o transbordo dos sacos de desporto e o seu acondicionamento no interior da embarcação “......” se encontrar na convicção de os sacos conterem dinheiro no seu interior, e apenas no decorrer do transbordo se ter apercebido, pelo cheiro que os sacos exalavam, que continham produto estupefaciente (a este respeito o arguido concretizou que na altura pensou tratar-se de “heroína ou de alguma coisa mais forte”), que não teve outra opção, por ter estado sempre sobre pressão, desde logo em virtude de tal versão não ter sido corroborada por qualquer outro elemento probatório, sendo certo que de toda a actividade por si desenvolvida nada permite inferir que tal tivesse sucedido, e que era sua ideia a de saltar borda fora na primeira terra e fugir, por saber que “a uma viagem destas ninguém sobrevive’, da mesma forma que não nos mereceram qualquer credibilidade as declarações prestadas pelo arguido na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11/02/2021, quando asseverou que, no momento em que efectuava o transbordo, apenas se apercebeu que os sacos continham droga, depois de ter recebido o quarto ou quinto saco, e isto por ter notado que as pessoas que seguiam na outra embarcação se encontravam armadas, o que o levou a olhar para o co-arguido, que lhe disse para continuar a colocar os sacos no interior da embarcação “.....”, tanto mais que esta versão se encontra em patente contradição com as declarações prestadas na sessão de julgamento precedente, em que, reitere-se, o arguido afirmou ter-se apercebido que os sacos de desporto continham droga pelo cheiro que os mesmos exalavam.
Assim, perante os referidos elementos de prova, analisados criticamente, face aos dados da experiência comum, é possível, no entendimento do tribunal colectivo, formar um juízo seguro de certeza jurídica de que os arguidos AA e BB, em execução de um plano previamente traçado pelo primeiro com um indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, e a que o segundo aderiu, actuando em comunhão de vontades e esforços, aceitaram receber e carregar consigo as 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, apreendidas nos autos, do ..... para a Europa, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias, o que fizeram com a finalidade comum de obterem benefícios económicos (o montante de € 100.000,00, no caso do arguido AA; e montante não inferior a € 14.000,00, no caso do arguido BB), não obstante saberem serem as respectivas condutas proibidas por lei, constituindo a factualidade a que é feita menção nos pontos 35. e 38. o corolário lógico de, tendo os arguidos incorrido na prática dos factos objecto dos presentes autos, puderem no futuro sentir-se tentados a repetir comportamentos da mesma natureza, atentos os proventos fáceis e avultados que o tráfico internacional de produtos estupefacientes, designadamente de cocaína, possibilita aos seus agentes
Em suma, atentas as declarações dos arguidos AA e BB e o depoimento da testemunha CC, conjugados com a análise crítica da prova documental e pericial, a que acima se fez menção, e com as regras da experiência comum, formou o Tribunal Colectivo a convicção, firme, racional e estruturada, de que se verificaram efectivamente os factos vertidos nos pontos 1. a 38. da Matéria de Facto Provada.»
No erro notório na apreciação da prova está em causa, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, mas a utilização que foi dada à referida prova, no quadro do texto da decisão, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto.
In casu, da análise do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer erro ostensivo – uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos ou arbitrários - que evidencie o desacerto da opção tomada quanto à matéria que o tribunal considerou provada.
Na fundamentação quanto à matéria de facto dada como assente, o tribunal a quo elencou as razões da valoração que efectuou, identificando a prova que relevou na formação da sua convicção e indicando os aspectos da mesma que, conjugadamente, o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a factualidade que deu como provada.
Atente-se que a fundamentação de uma sentença visa permitir a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial e não promover, necessariamente, o convencimento do destinatário da decisão quanto ao bem fundado dessas razões.
Perante as provas cada pessoa formará a sua convicção. O que importa é que o julgador dê a conhecer, de forma clara e no quadro do que é razoável exigir, as razões da sua convicção, de forma que possam ser compreendidas, e não que logre convencer todos da sua razão, pois à convicção do tribunal sempre se contrapõem as convicções divergentes de outros sujeitos processuais.
Percebidas as razões do julgador, assiste aos sujeitos processuais, com recurso ao registo da prova, argumentar para que o tribunal de recurso altere a matéria de facto fixada. Aqui, porém, já se está em sede de impugnação da matéria de facto e não de qualquer vício da decisão.
Ora, o tribunal de 1.ª instância apresentou as razões por que não reconheceu credibilidade à versão dos arguidos de que o ora recorrente BB ignorava, antes da recepção do produto estupefaciente, que tal iria acontecer.
O tribunal não aceitou as explicações prestadas pelo recorrente e justificou a razão do seu juízo sobre as mesmas, apelando à lógica e à experiência e salientando a existência de “contradições intrínsecas” nas declarações do recorrente – e também entre os arguidos - que as descredibilizam, em termos que não suscitam objecções.
Diz o recorrente que “resulta claramente do facto provado n.° 2 que o arguido BB se associou ao arguido AA ainda na ....., não tendo sido declarado provado que essa associação tivesse sido motivada tendo em vista o transporte futuro, e conjunto, de produto estupefaciente nessa embarcação”.
Porém, esquece o recorrente que nessa altura, segundo resulta da matéria provada, nem mesmo o arguido AA havia sido contactado para o transporte de produto estupefaciente, pelo que tal alegação em nada contende com a afirmação de que o ora recorrente aderiu ao projecto que lhe foi apresentado pelo co-arguido ainda em ....., explicando também o tribunal recorrido a razão do ponto de facto provado 30 que “corresponde aos valores que o arguido BB iria auferir nos meses de Novembro e de Dezembro de 2019, e de Janeiro e Fevereiro de 2020, já depois de ter aderido ao projecto que lhe foi apresentado, em ....., pelo co-arguido”.
Não ignorando a polémica doutrinal que envolve a fundamentação do princípio in dubio e a sua relação com o princípio da presunção de inocência – entre teorias uniformizadoras que identificam os dois princípios e teorias diferenciadoras que distinguem o seu alcance e conteúdo -, temos que perante uma dúvida sobre os factos desfavoráveis ao arguido, que seja insanável, razoável e objectivável, o tribunal deve decidir “pro reo”.
Não tendo sido deduzida impugnação ampla da decisão de facto, só pode conhecer-se da violação desse princípio quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido; ou então quando, não tendo o tribunal a quo reconhecido esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova.
Tal não se verifica.
Em suma, os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes; visionando toda a matéria factual, não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação de facto ou entre esta e a decisão de facto; também não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta.
Do que se conclui que do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum - enquanto critérios generalizantes e tipificados, assentes na experiência, de inferência factual, simples índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância orientando caminhos de investigação e oferecendo probabilidades conclusivas (cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1968, Coimbra, p. 45) -, não resulta a verificação de qualquer dos apontados vícios decisórios.
Aqui chegados, importa recordar que, na co-autoria desenhada no artigo 26.º, do Código Penal, são de imputar a cada autor, como próprios, os contributos do outro, como se ele próprio os praticasse; o acordo, como é pacífico entendimento, não pressupõe a participação de todos os co-autores na elaboração do projecto comum, não necessita de ser expresso e sequer ser anterior ao início do contributo do co-autor. Ele tanto pode ser expresso, para a prática do acto, como do elenco dos factos provados, concludentemente, surgir, ao longo da execução conjunta do facto, tanto na fase inicial do processo executivo como na fase sucessiva. A adesão a um projecto executivo em marcha integra a co-autoria sucessiva. A condição da existência de acordo é a de uma consciência bilateral de colaboração entre os comparticipantes no crime.
Quer o co-autor, quer o cúmplice, concorrem para a produção do feito.
Porém, enquanto o primeiro assume um papel de primeiro plano, dominando a acção (já que esta é concebida e executada com o seu acordo - inicial ou subsequente, expresso ou tácito - e contribuição efectiva), o segundo é, digamos, um interveniente secundário ou acidental: só intervém se o crime for executado ou tiver início de execução e, além disso, mesmo que não interviesse, aquele sempre teria lugar, porventura em circunstâncias distintas. É, neste sentido, um auxiliator simplex ou causam non dans, favorece a prática por outrem de um crime, mas está fora do acto típico, não participando na execução do plano criminoso.
Manifestamente, não é esse o caso do recorrente, havendo que assinalar não ser viável que uma só pessoa conduza uma embarcação, com as características da embarcação “.....”, através do oceano Atlântico, do ..... para a Europa, sendo o próprio recorrente a reconhecer ser “de todo imprescindível a presença de, no mínimo, dois tripulantes, um com a função de estar ao leme e outro com a função de estar a arrear as velas, por a embarcação “.....” não dispor de um sistema de velas automático”.
Conclui-se que, não merecendo reparo a decisão de facto, não há fundamento, com base na matéria assente, para considerar que a actuação do recorrente foi a de mero cúmplice e não a de co-autor, pelo que nenhuma objecção suscita o enquadramento jurídico-penal efectuado no acórdão recorrido.
3.2.2. O recorrente questiona a pena de prisão aplicada, que considera “manifestamente excessiva, injusta e desproporcional (nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa) e violadora dos artigos 40.°, 70.°, 71.° e 72.° do Código Penal, por ultrapassar claramente a medida da culpa do arguido manifestamente excessiva”.
Em 3.1.3. tecemos considerações sobre o procedimento de determinação da pena, que aqui damos como reproduzidas.
Tendo em vista as diversas circunstâncias sopesadas pelo tribunal recorrido, o grau de ilicitude dos factos é de grande intensidade, participando o arguido numa operação de transporte internacional por via marítima de quase duas toneladas de cocaína – droga considerada “dura”, de que são conhecidos os efeitos nefastos do consumo, responsável directo ou indirecto de grande parte da criminalidade e fonte de desagregação familiar e social –, ainda que o produto apreendido não tenha chegado a entrar no “giro” comercial, por ter sido apreendido na fase do transporte, o que não deixa de relevar.
Como ser diz no acórdão recorrido:
«E embora os arguidos AA e BB sejam meros agentes de transporte de estupefacientes, por conta de outrem, não são vítimas do sistema criminoso, antes assumindo uma função preponderante na violação do bem jurídico, permitindo e incrementando o negócio do tráfico, uma vez que, de forma consciente e intencional, se predispuseram a transportar a droga, do fornecedor ao destinatário, representando um papel fundamental na cadeia de comercialização do tráfico de estupefacientes, pois é graças aos “transportadores” ou “correios” que aos grandes traficantes é possível fazer circular com facilidade parte do produto estupefaciente que comercializam e fazê-lo à escala mundial, sendo que, no caso vertente, os arguidos aceitaram ser uma peça na cadeia que leva a droga do produtor aos consumidores, ultrapassando continentes, sujeitando-se a riscos que os grandes traficantes não quereriam correr, deste modo participando na globalização deste crime e não se importando, cada um deles, de ser usado como instrumento descartável nas mãos dos grandes traficantes, tendo como única motivação o lucro e encontrando-se os arguidos bem cientes de que, com a sua actividade, poderiam proporcionar a outrem avultada compensação económica, manifestando, ao assim procederem, uma total indiferença para os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e sociedade em geral, o que não abona em favor da sua personalidade.»
Ainda assim, o tribunal deu como provado que o arguido não conhecia a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente, embora sabendo tratar-se o mesmo de uma das drogas das tabelas I a III anexas ao D.L. n.º 15/93.
As necessidades de prevenção geral são prementes, atendendo à elevada dimensão e repercussão social que assume uma operação como a dos autos, de tráfico internacional de mil seiscentos e oitenta e sete quilos de cocaína, com o elevado sentimento de insegurança que gera na comunidade.
O arguido não tem antecedentes criminais e tem mantido um comportamento adequado no Estabelecimento Prisional. Manifesta vontade de, uma vez restituído à liberdade, constituir actividade ..... por conta própria, com recurso a um pequeno terreno agrícola, adjacente à habitação adquirida, nomeadamente a ....., para a indústria de ....., nomeadamente a marca “.....”.
Tudo visto e ponderado, sopesando todas as circunstâncias no quadro do binómio culpa e prevenção, tendo como limite insuperável a culpa do arguido - que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas -, entendemos justa, adequada e proporcional a pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão – pena que não viola os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas e é consentida pela culpa do arguido /recorrente.
***
Finalmente:
No acórdão recorrido consta: “Deixa-se consignado, para efeitos do disposto no art. 80.° do Cód. Penal, que os arguidos AA e BB se encontram sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem destes autos, desde 29/01/2020, tendo sido detidos em 26/01/2020”.
Ocorre que este Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão, em 23/04/2020, decidindo que a detenção ocorreu no dia 19/01/2020, “para efeitos de cômputo da privação da liberdade ao abrigo destes autos”, muito embora com declaração de voto do juiz desembargador-adjunto no sentido de que, para os efeitos do disposto no artigo 254º/1-a), do C.P.P., a detenção ocorreu à chegada, em 26/01/2020, à Base Naval do ..... .
Por conseguinte, no seguimento do já decidido, deve o acórdão recorrido ser corrigido nessa parte, nos termos do artigo 380.°, n.º1, alínea b), do C.P.P., pelo que, onde se lê “detidos em 26/01/2020”, deverá ler-se “detidos em 19.01.2020”.
***
III – Dispositivo          
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em:
A) No provimento parcial do recurso interposto por AA, condenam o mesmo pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma, na pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão;
B) No provimento parcial do recurso interposto por BB, condenam o mesmo pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.°, n.° 1 do D.L. 15/93, de 22/01, com referência à tabela anexa I-B, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Corrige-se o acórdão recorrido na parte em que diz “Deixa-se consignado, para efeitos do disposto no art. 80.° do Cód. Penal, que os arguidos AA e BB se encontram sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem destes autos, desde 29/01/2020, tendo sido detidos em 26/01/2020”, por forma a que, onde se lê “detidos em 26/01/2020”, deverá ler-se “detidos em 19.01.2020”.
Sem tributação.
Remeta de imediato cópia do presente acórdão ao tribunal de 1.ª instância.

Lisboa, 26 de Outubro de 2021
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
Jorge Gonçalves
Fernando Ventura