Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13079/16.4T8SNT.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: INVENTÁRIO NOTARIAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Na pendência do processo de inventário notarial, o interessado que pretenda a prestação de contas pelo cabeça de casal, anteriores ou contemporâneas da referida pendência, terá de o requerer como incidente no processo de inventário notarial, não pertencendo pois a competência material para a referida prestação de contas ao tribunal.

    (Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.–Relatório:


J..., nos autos m.id., veio intentar contra M..., também nos autos m.id., a presente acção especial de prestação de contas, nos termos do artigo 941º e seguintes do CPC.

Alegou em síntese que pelo falecimento da mãe de ambos, M..., em 2003, se não procedeu ainda a inventário, apesar de se encontrar a correr o correspondente processo no Cartório Notarial do Estoril, aguardando a junção da relação de bens; que após o falecimento do cônjuge sobrevivo em 2012, o cargo de cabeça de casal pertence à Ré, por ser a herdeira mais velha. Aberta a herança e até hoje, a Ré não ofereceu nem prestou quaisquer contas da sua administração, não obstante lhe terem sido solicitadas.
Contestou a Ré excepcionando a sua ilegitimidade, relativamente ao tempo pelo qual foi cabeça de casal o cônjuge sobrevivo, J..., e excepcionando ainda a incompetência do tribunal em razão da matéria pois que, nos termos do artigo 947º do CPC, as contas do cabeça de casal são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita, e o inventário se encontra a correr no Cartório Notarial do Estoril/Cascais, no qual a Ré foi nomeada cabeça de casal. Nos termos do artigo 45º nº 1 e 2 da Lei 23/2013 de 5 de Março, o cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato podendo haver impugnação cuja competência de decisão pertence ao notário. Invocou ainda a Ré a não obrigação de prestação de contas no período que medeia entre 13.5.2012 e 23.2.2016 e defendeu-se ainda por impugnação.

Respondeu o Autor à contestação pugnando, além do mais, e para o que aqui interessa, pela competência do tribunal.

Foi então proferido o seguinte despacho: 

Da incompetência do tribunal:

A Requerida apresentou contestação onde excepcionou a competência do tribunal em razão da matéria, porquanto correndo termos um inventário no cartório notarial do Estoril, serão esses autos os competentes para a apresentação destas contas, na medida em que foi nesses autos que a Requerida foi investida da qualidade que a legitima a prestar contas.
Mais alegou que tal interpretação é conforme com o disposto no art. 947.º do CPC, que estipula a prestação de contas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita, e bem assim, com o art. 45.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, que aprovou o regime jurídico do inventário (RJI) o qual no n.º 2 do mesmo preceito, inclusive estende ao Notário a competência para decidir sobre a impugnação das contas apresentadas.
Alegou ainda que nessa sequência, deverá ocorrer absolvição da Requerida da instância, por incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria.
O Requerente respondeu à excepção apresentada, alegando que o art. 45.º do RJI não se encontra coadunado com o Código Civil, na parte em que prevê a prestação anual de contas (art. 2093.º, n.º 1 do Cód.Civil), sendo que também não abrange o período decorrido desde a abertura da herança até à prestação de compromisso de honra, pelo que só o processo de prestação de contas judicial é idóneo para os fins pretendidos.
Mais alegou que nessa medida, sendo incompatível a duplicação de processos, deve considerar-se que é o tribunal competente para obrigação da prestação de contas relativamente ao período decorrido desde a abertura da herança até ao fim do cabecelato.
Cumpre apreciar e decidir:
A obrigação legal de prestação de contas impende sobre o cabeça-de-casal desde a sua nomeação e até à liquidação e partilha (art. 2079.º do Cód.Civil).
O cargo de cabeça-de-casal pode ser deferido por via judicial (art. 2083.º do Cód.Civil) ou por acordo dos interessados (art. 2084.º do Cód.Civil) abrangendo a sua prestação de contas toda a administração dos bens do falecido, cabendo ao cabeça-de-casal, aprovar ou rejeitar qualquer administração de facto ocorrida antes do seu investimento nessa qualidade.
Nessa medida, a obrigação de prestação de contas é única e, em regra de carácter anual (art. 2093.º do Cód.Civil) o que não conflitua com a obrigação de a apresentar antes da conferência de interessados, na medida em que a mesma, pese embora diga respeito a eventos verificados já após a abertura da sucessão, pode influir com a composição das verbas da relação de bens, seja por aumento de receita no activo, seja por diminuição do passivo.
Nessa medida, veio o art. 45.º do RJI consagrar aquela que já era uma recomendação jurisprudencial, quanto ao momento da referida apresentação de contas, com vista a facilitar a percepção dos interessados na conferência preparatória
Assim, deve entender-se, na esteira de Tomé Ramião, in “O novo regime do processo de inventário, notas e comentários”, da Quid Juris, Lisboa, 2014, pág. 123, que o novo regime do processo de inventário veio excluir a necessidade do processo de prestação judicial de contas, devendo na conjugação com o art. 947.º do CPC ser interpretado no sentido de que “(…) a prestação de contas será processada por apenso ao processo de inventário, dele constitui apenso, processado autonomamente como um incidente (…)”.
Tal interpretação surge reforçada com a expressa referência à competência do notário para decidir a impugnação sobre a prestação de contas apresentada no n.º 2 do art. 45.º do RJI, o que inculca que o legislador pretendeu mesmo que notário tivesse efectivo controlo sobre todas as questões debatidas nos autos, sem prejuízo do poder-dever do mesmo de remessa do processo no caso de a complexidade das questões suscitadas o aconselhar (art. 3.º, n.º 4 RJI).
Por conseguinte, deve entender-se que são os autos de inventário do cartório notarial, a sede própria para a apreciação da prestação de contas do cabeça-de-casal da herança, devendo ocorrer absolvição da instância da Requerida, por motivo de incompetência material (art. 64.º CPC).
Pelo supra exposto, nos termos do art. 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a), 578.º e art. 278.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, julgo verificada a excepção de incompetência material da Instância Local Cível de Sintra, para conhecer da presente causa, e em consequência, absolvo a Requerida da instância.
Custas pelo Requerente”.

Inconformado, interpôs o Autor o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:

A.-Por Douta Sentença datada de 07/11/2016, o Tribunal a quo decidiu, nos termos dos art.ºs 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, julgar verificada a excepção de incompetência material, da Instância Local Cível de Sintra, para conhecer da presente causa, e em consequência, absolveu a Ré da Instância, entendimento este com o qual o Autor, ora Recorrente, não se conforma, na medida em que o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação das normas aplicáveis ao presente caso.
B.-De facto, uma leitura apressada do art. 45.º do RJPI poderia levar a tal conclusão.
C.-Sucede, contudo, que o art. 45.º do RJPI não está coordenado com a norma geral da prestação anual de contas, prevista no art. 2093.º, n.º 1, do Código Civil.
D.-Na verdade, tem vindo a ser entendido que a apresentação da conta do cabecelato nos termos do art. 45.º do RJPI visa “preparar” a nova “conferência preparatória”, pois doutro modo não seria entendível que tenha de cumprir-se “até ao 15.º dia que antecede” essa conferência.
E.-Por outro lado, a prestação das contas quanto à administração que tenha exercido quer desde a abertura da herança até à prestação daquele compromisso de honra, quer posteriormente à apresentação daquelas contas no processo de inventário até à decisão homologatória da partilha, não cai na competência do notário, e só pode ser pedida através do processo especial regulado nos actuais arts. 941.º e ss. do CPC de 2013, isto é, no tribunal do domicilio do réu, nos termos do art. 80.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
F.-Ora, tem-se considerado que o “plus” de responsabilidade que o juramento comporta não é factor para dividir o cumprimento, quanto ao processo a usar e à necessidade de protecção de direitos e de cumprimento de deveres ininterruptos.
G.-Pelo que, e atendendo a que existem razões de ordem prática e de indispensável economia processual que são incompatíveis com uma duplicação de processos, em especial atendendo ao “saldo” que vem detrás (desde o dia em que a ora Ré iniciou o cabecelato – 13 de Maio de 2012 – relativamente ao dia 23 de Fevereiro de 2016, em que a ora Ré prestou o compromisso do bom desempenho das funções de cabeça-de-casal), o qual não pode ser congelado enquanto se discute numa outra acção diferente o que é ou não é correcto, deve-se considerar que este Tribunal é competente para conhecer também da obrigação de prestação de contas relativamente a todo o período do cabecelato, neste se incluindo o período que antecedeu o início do processo de inventário e o período entre o início do mesmo e o fim do cabecelato.
H.-Mesmo que assim não se considerasse – o que não se concede a não ser por mero dever de patrocínio! -, sempre teria de se atender à finalidade do regime presente no art. 45.º do RJPI que, como já se demonstrou, é o de preparar a conferência de interessados.
I.-Sucede que o pedido do Autor, ora Recorrente, foi relativo à prestação de contas anuais a que se refere o art. 2093.º, n.º 1, do Código Civil, pelo que, quando seja este o caso, não se deve aplicar a tramitação presente no art. 45.º do RJPI e, em especial, a previsão de onde se retira que a competência é do notário.
J.-De facto, além do art. 45.º do RJPI ter carácter excepcional, o que afasta a sua aplicação analógica (nos termos do art. 11.º do Código Civil), comporta menores garantias processuais.
K.-Repare-se que a doutrina tem, igualmente, seguido esta argumentação, referindo que não prestando o cabeça-de-casal as contas a que está obrigado, deve entender-se que a prestação forçada das contas, todas elas, quer as respeitantes ao período de tempo decorrido entre a data da abertura da sucessão (ou entre a data do óbito do anterior cabeça-de-casal) e a data da nomeação formal do cabeça-de-casal em inventário, quer as posteriores a essa nomeação, já que é sabido que o cargo de cabeça-de-casal começa a ser desempenhado, independentemente de qualquer nomeação formal, desde a data da morte do autor da sucessão, (ou do anterior cabeça-de-casal) deve ser efectuada em acção judicial autónoma, segundo o processo especial do artigo 941.º e ss. do Código de Processo Civil, sendo o Tribunal competente o do domicílio do Réu.
L.-Assim, deve entender-se que quanto à prestação de contas forçada, tal procedimento corre no tribunal competente, devendo para tal ser requerida a apensação do processo de inventário, que terá de ser suspenso e remetido ao tribunal para que a acção possa prosseguir e devolvido ao notário apenas após a sua decisão, entendimento este que sai reforçado pela circunstância de antes de ser imposto a alguém que preste contas, dever o Tribunal decidir se o mesmo a isso está obrigado.
M.-Por outro lado, nos termos do art. 202.º, n.º 2, da Constituição da República, a função jurisdicional, que se consubstancia na actividade através da qual se procede à resolução de questões jurídicas suscitadas em controvérsias concretas, com o único fim de pronunciar, autoritariamente, a solução de direito dessas mesmas controvérsias, no uso de critérios estritamente jurídicos, está reservada aos tribunais, pelo que a transferência de competências do juiz para o notário no novo regime jurídico do processo de inventário pode levantar problemas de constitucionalidade.
N.-Na verdade, sendo a função e finalidade do processo de inventário as de descrever, avaliar e partilhar um determinado acervo patrimonial, é, nessa medida, um processo no qual se podem suscitar controvérsias de natureza privada que carecem de uma decisão jurídica com prerrogativas de autoridade, designadamente (mas não apenas) em incidentes processuais, podendo surgir matéria substancialmente jurisdicional que implique a indagação de complexa matéria de facto e de direito.
O.-Assim, dificilmente se percebe a norma do art. 45.º do RJPI como não atribuindo uma competência de natureza materialmente jurisdicional ao notário, pelo que o entendimento do Tribunal a quo, a ser correcto, equivaleria a reconhecer-se a possibilidade de um notário exercer funções materialmente jurisdicionais que, por imposição constitucional, cabem tão só e apenas aos Tribunais.
P.-Circunstancialismo este que não é aligeirado pelo facto existir a possibilidade de recurso das decisões do notário, atenta a exigência de que a reserva de jurisdição prevista no art. 202.º da Constituição da República Portuguesa dizer respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de ter não apenas a última, mas logo a primeira palavra.
Q.-Note-se, por fim, que a função a que o notário é chamado a desenvolver no processo de inventário é muito diferente da função que tradicionalmente desempenha, na medida em que percorrendo o Estatuto dos Notários, facilmente se compreende que o elenco de actos ali previsto como caracterizador da função notarial pouco tem que ver com a direcção activa de um processo e a prolação de decisões que se impõem aos sujeitos processuais.
R.-Razões pelas quais não se pode deixar de considerar que a entidade competente para conhecer das questões suscitadas, incluindo as referentes ao período que medeia entre 23 de Fevereiro de 2016 e o fim do cabecelato, é o tribunal, sob pena, inclusive, de uma interpretação inconstitucional das referidas normas.
S.-O Tribunal a quo ao proferir a decisão ora em crise, violou o disposto nos art.ºs 45.º do RJPI, 2093.º do Código Civil, 80.º, n.º 1 e 947.º do Código de Processo Civil.
T. Em face do exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogada a Douta Sentença recorrida e, consequentemente, ser a mesma substituída por Douto Acórdão que julgue a Instância Local Cível de Sintra como competente para conhecer do pedido deduzido pelo Autor, ora Recorrente.

Contra-alegou a Ré formulando a final as seguintes conclusões:
1)-A peça recursiva do recorrente padece de vício formal pois as conclusões apresentadas não cumprem o ónus legal de síntese e condensação que a lei processual exige o que obsta ao conhecimento do recurso exige, ex vi, os artigos 639.º n.º 1 e 652.º n.º 1 alínea b) do NCPC.
2)-Com a publicação da Lei n.º 23/2015, de 05 de Março, que aprovou o Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário (NRJPI) a prestação de contas do cabecelato passou a ser feita por apenso/incidente no processo de inventário atento o preceituado no artigo 45.º n.º 1 e 2 daquele diploma legal concatenado com o disposto no artigo 947.º do NCPC.
3)-A competência do notário para apreciar as contas do cabecelato e suas impugnações é a manifestação, em sede da Lei n.º 23/2015, de 05 de Março, da regra especial da competência por conexão o que, aliás, se coaduna com os princípios da agilidade e celeridade na administração de litígios e da conveniência em aproveitar o tratamento conjunto de questões.
4)-Ora, in casu, estando pendente processo de inventário – facto adquirido processualmente - necessariamente as contas do cabecelato são prestadas, por força da letra da lei, por apenso ao processo de inventário que corre termos no Cartório Notarial do Estoril/Cascais, da Sr.ª Notária Dr.ª Ana L...B...P....
5)-Os recursos destinam-se a reapreciar decisões jurisdicionais e não a conhecer de novas questões, designadamente, a tentativa do recorrido, nesta sede, tentar alegar questões novas não constantes da causa de pedir/pedido da p.i.
6)-A douta decisão recorrida é correta, quer na forma, quer no conteúdo, tendo julgado corretamente a questão sub iudice, estribando-se em válidos argumentos jurídicos pelo que é de manter.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir:

II.Direito.
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, a questão a decidir é a de saber se o tribunal é competente, em razão da matéria, para o conhecimento da presente acção.

III.–Matéria de facto - a constante do relatório que antecede.

Consigna-se ainda, com base nos documentos juntos aos autos, que:
-M... faleceu em 4.9.2003, no estado de casada com J..., sendo que este faleceu no estado de viúvo em 13.5.2012.
-Autor e Ré e J... foram habilitados como únicos herdeiros na herança aberta por M..., que não deixou testamento nem disposição de última vontade.
-Corre termos no Cartório Notarial do Estoril/Cascais o processo 6116/2015 de inentário para partilha de bens da herança de M... e da herança de J..., no qual foi nomeada cabeça de casal a Ré, a qual prestou compromisso de honra de bem desempenhar o cargo em 23.2.2016.
-Tal processo deu entrada no dia 17.12.2015 e a presente acção foi instaurada em 30.6.2016.

IV.–Apreciação.

Antes de mais, relativamente à primeira conclusão da contra-alegação, dizer que embora as conclusões do recurso não sejam um exemplo do poder de síntese, bem pelo contrário, se entende que a consequência do incumprimento não é o não conhecimento do recurso – artigo 652º nº 1 al. b) do CPC – mas sim o convite ao aperfeiçoamento – artigo 639º nº 3 do CPC – neste caso, à síntese, e que tal convite, atenta a rápida verificação das questões suscitadas, apesar da prolixidade, se entendeu desnecessário. Em consequência, nada obsta ao conhecimento do recurso.

Da competência do tribunal:

Nenhuma dúvida se levanta sobre o primeiro passo da fundamentação da decisão recorrida e citamos:
A obrigação legal de prestação de contas impende sobre o cabeça-de-casal desde a sua nomeação e até à liquidação e partilha (art. 2079.º do Cód.Civil).
O cargo de cabeça-de-casal pode ser deferido por via judicial (art. 2083.º do Cód.Civil) ou por acordo dos interessados (art. 2084.º do Cód.Civil) abrangendo a sua prestação de contas toda a administração dos bens do falecido, cabendo ao cabeça-de-casal, aprovar ou rejeitar qualquer administração de facto ocorrida antes do seu investimento nessa qualidade.
Nessa medida, a obrigação de prestação de contas é única e, em regra de carácter anual (art. 2093.º do Cód.Civil) o que não conflitua com a obrigação de a apresentar antes da conferência de interessados, na medida em que a mesma, pese embora diga respeito a eventos verificados já após a abertura da sucessão, pode influir com a composição das verbas da relação de bens, seja por aumento de receita no activo, seja por diminuição do passivo”.

Em segundo lugar, a Ré invoca que o Autor apresenta no recurso questões novas, a saber que o Autor “não concretizou que tipo de contas pretendia nem destrinçou períodos temporais relacionados com exercício de facto ou de direito do cabecelato”, o que só vem fazer no presente recurso.
Com o devido respeito, apesar de tal ser verdade relativamente à petição inicial, onde se usou uma fórmula generalista (“apesar da abertura de herança ter ocorrido há muito mais de dez anos, a ré não ofereceu nem prestou até hoje quaisquer contas da sua administração” – artigo 6º), à excepção de incompetência deduzida na contestação respondeu o Autor realçando a importância, em termos de apuramento jurídico da competência, dos diversos períodos da prestação de contas – artigos 16º, 18º e 20º - pelo que esta alegação podia ser considerada pelo tribunal recorrido antes e em fundamentação da sua decisão, não se vislumbrando existir aqui qualquer questão nova de que o tribunal de recurso, por força do artigo 627º nº 1 do CPC, não pudesse conhecer.

Vejamos:

O novo Regime Jurídico do Processo de Inventário decorre, antes de mais, da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, que estabelece no seu artigo 2º nº 1:O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de se realizar a partilha, a relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança”.
Nos termos do artigo 3º nº 1 – “Compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra”. Nos termos do nº 7 do mesmo preceito: “Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz”.

Nos termos do artigo 16º nº 1 “O notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade”. O nº 2 do mesmo preceito estabelece que “O notário pode ainda ordenar suspensão do processo de inventário, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior, aplicando-se o disposto no n.º 6 do artigo 12.º”. E o nº 3 do mesmo preceito estabelece que “A remessa para os meios judiciais comuns prevista no n.º 1 pode ter lugar a requerimento de qualquer interessado”.

Por outro lado, o artigo 45º determina:
1-O cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato, até ao 15.º dia que antecede a conferência preparatória, devidamente documentada, podendo qualquer interessado proceder, no prazo de cinco dias, à sua impugnação.
2- Compete ao notário decidir sobre a impugnação prevista no número anterior”.

Interessa-nos ainda relembrar o disposto no artigo 47º, segundo o nº 1 do qual:Resolvidas as questões suscitadas que sejam suscetíveis de influir na partilha e determinados os bens a partilhar, o notário designa dia para a realização de conferência preparatória da conferência de interessados”.

Não há dúvida que, bem ou mal e com maior ou menor alcance, o legislador entendeu, por razões de eficiência, que tanto se impunham para a morosidade especial que tradicionalmente afectava os processos de inventário, quando para os litígios sobrantes, retirar, na sua essencialidade, o processo de inventário da competência dos tribunais.
 
Porventura também ciente das questões de constitucionalidade que se adivinhavam, o processo de inventário não foi totalmente desjudicializado, como se intencionou em vários passos do complicado e longo processo legiferante, mas a divisão de competência entre o notário e o tribunal é expressamente assumida (artigo 3º) sendo a competência do tribunal quase residual e dificilmente autorizando que se fale numa chancela judicial integrada na decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio prevista no artigo 66º.
A intervenção do tribunal surge mais ligada porém à decisão das questões mais complexas de facto e de direito, por iniciativa do notário ou a requerimento das partes, nos termos do artigo 16º.

A lei em causa entrou em vigor no primeiro dia útil de Setembro de 2013, não se aplicando aos processos de inventário pendentes nesta data – artigos 8º e 7º. No caso dos autos não oferece pois dúvida que o novo RJPI tem inteira aplicação.

Na mesma data entrou em vigor o novo Código de Processo Civil em cujo artigo 947º se mantém a previsão da prestação de contas pelo cabeça de casal, a prestar por dependência em que a sua nomeação como cabeça de casal tenha sido feita. Em rigor, a redacção é:As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”.
Como entender “judicialmente nomeados” e “dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”, no que toca ao cabeça de casal, se o legislador sabia que o processo em que o cabeça de casal era nomeado já não continha uma nomeação judicial? Sob pena de pura incongruência, a menção justifica-se pela subsistência dos processos de inventário judicial pendentes: neles podia não ter surgido ainda, à data de entrada em vigor do novo regime de inventário notarial, a prestação de contas do cabeça de casal, e a disposição continuava pois a interessar.
Pode dela retirar-se que mesmo no caso de inventário notarial, a prestação de contas será feita necessariamente por dependência deste processo? A prestação de contas está directamente regulada pelo artigo 45º do novo regime, e dele resulta directamente que a prestação de contas ocorre no processo de inventário notarial e que a competência para decidir as impugnações dessas contas é do notário.
Mas será sempre assim?
Expressamente parece que, desde que esteja a correr o inventário notarial, a prestação de contas que venha a surgir voluntariamente pelo cabeça de casal, em cumprimento do dever que lhe é imposto no artigo 45º, ocorrerá sempre no inventário notarial e a competência para a decisão da impugnação dessas contas é do notário.
Se o cabeça de casal não cumprir, não apresentar voluntariamente a conta do cabecelato? Incumprirá as suas funções e pode ser removido – artigo 22º. E, por força da aplicação subsidiária do processo civil que resulta do artigo 82º, pode o interessado prejudicado naturalmente requerer a prestação de contas nos termos dos artigos 971º e seguintes do CPC, devendo então ler-se, com as devidas adaptações, o artigo 974º do CPC, e desta leitura se podendo concluir na mesma pela dependência da prestação de contas ao processo pendente de inventário, e pela competência do notário para a apreciar, nos termos do artigo 45º.
Se as contas a prestar pelo cabeça de casal já eram devidas anualmente e não foram prestadas até à interposição do inventário notarial? Para estas usa-se a prestação de contas regulada no artigo 974º?
O cabeça de casal está obrigado a prestar as contas no inventário notarial até ao 15º dia antecedente à conferência preparatória. Portanto, no que toca a uma prestação voluntária de contas, estando pendente inventário notarial, mesmo que as contas de anos anteriores não tenham sido prestadas, não pode dizer-se que o cabeça de casal deva prestar contas voluntariamente através duma acção de prestação de contas a intentar em tribunal, mas sim, apenas, que ele tem de prestar contas do cabecelato no inventário notarial – e essas contas são quaisquer contas que estiverem por prestar, independentemente do “saldo”, como lhe chama o recorrente, ou do peso desse saldo.
O interessado a quem as contas devem ser prestadas? Parece que se aplica o mesmo raciocínio: estando já pendente o inventário notarial, não haverá de recorrer à prestação de contas judicial, pois estaria, como bem nota o recorrente, a produzir-se uma duplicação de acções ou procedimentos: as contas anteriores processar-se-iam mediante acção de prestação de contas e as contas contemporâneas à pendência do inventário notarial prestar-se-iam neste.
Não há qualquer previsão neste sentido da duplicação. E também não há qualquer previsão no sentido pretendido pelo recorrente de que, para evitar tal duplicação, então as contas todas – anteriores e contemporâneas, podem ser pedidas em acção de prestação de contas. Salvo o devido respeito, tal corresponde a uma anulação completa da disciplina do artigo 45º.
O mesmo se diga para as contas posteriores ao momento previsto no artigo 45º: influindo elas na liquidação e partilha, devem ser renovadas no inventário notarial no qual, posteriormente, a resposta passará por emenda ou partilha adicional.
Apesar do recorrente dizer que pretende a prestação de contas anuais, a verdade é que nos anos decorridos que entretanto entraram já na fase de inventário notarial, e em cada ano que neste porventura passasse, as contas a prestar são unas, estão sujeitas a um único regime. E disto tem o recorrente consciência quando afinal pugna pela subtracção das contas na pendência do inventário notarial a este inventário e à intervenção do notário, invocando uma “poupança” de acções que determinaria a competência judicial.
Neste aspecto, com o maior respeito, afigura-se-nos que lavra em erro: não há à partida um tipo de contas que deva ser sujeito a acção judicial de prestação de contas e outras que devam ser sujeitas ao procedimento do artigo 45º, e sendo reclamadas aquelas então também estas devem ser processadas pelo tribunal. O primeiro passo do raciocínio é determinar se as contas a prestar pelo cabeça de casal são ou não processadas, digamos, no inventário notarial ou na acção de prestação de contas.
Como, com respeito, não se pode esquecer o artigo 45º, parece que a solução é esta: estando pendente o inventário na altura em que o cabeça de casal as presta ou o interessado na prestação de contas as pede, a competência é notarial; se porém o inventário ainda não estiver pendente, o regime jurídico processual das contas anualmente a prestar só pode ser o da acção judicial de prestação de contas. 
Ora, no caso concreto, está adquirido que a prestação de contas é pedida, nestes autos, já depois de se ter iniciado o inventário notarial.
Quanto à conciliação da prestação de contas anual com o momento previsto no artigo 45º, que o recorrente invoca como dificilmente conciliável, a resposta já resulta do anteriormente exposto: antes da pendência do inventário notarial, e por cada ano em que as contas devam ser prestadas, o interessado nelas pode recorrer à acção judicial de prestação de contas, a partir do momento em que o inventário notarial esteja pendente as contas que não tiverem sido pedidas entrarão na conta de cabecelato referida no artigo 45º.
Este preceito não altera portanto o dever de prestação de contas anual do cabeça de casal: o que sucede é que não há um momento pré-definido legalmente para a instauração de inventário e por isso pode ocorrer que o cabeça de casal tenha de prestar contas vários anos, anualmente, antes de chegar o momento a que se refere o artigo 45º, antes de se iniciar o processo de inventário notarial, caso em que o fará, como dissemos, na acção judicial de prestação de contas.
Que a finalidade do preceito é a da preparação da conferência, pois é certo que sim, mas daí nada resulta em termos de se autonomizar a prestação da conta do cabecelato das demais contas que deviam ser prestadas até ao início do inventário porque, em todo o caso, a prestação de contas sempre interessa à definição do acervo patrimonial que integra a herança e que será partilhado, objectivo que a conferência preparatória intenta facilitar.
Em conclusão, na pendência do processo de inventário notarial, o interessado que pretenda a prestação de contas pelo cabeça de casal, anteriores ou contemporâneas da referida pendência, terá de o requerer como incidente no processo de inventário notarial.
Deste modo, e no que toca ao primeiro conjunto, digamos, de argumentos do recurso, entendemos que não logram destronar o bem fundado da decisão recorrida sobre a incompetência do tribunal e a absolvição da instância. 
O recorrente invoca ainda – sem expressamente invocar a inconstitucionalidade, pelo menos ao nível da indicação final das normas jurídicas violadas – a duvidosa constitucionalidade da atribuição de funções tipicamente jurisdicionais a entidades não jurisdicionais.
No seu sentido, e pelo recorrente não indicado, encontramos a posição de Filipe César Vilarinho Marques, juiz de direito, no artigo “Linhas Orientadoras do Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei n.º 23/2013, de 05 de março) (Um novo paradigma ou a falta dele?)” em anexo ao Guia Prático do Novo Processo de Inventário, Cadernos do Centro de Estudos Judiciários, onde afirma, citamos:
Além disso, com esta alteração está a alargar-se a competência dos notários não apenas para a  decisão do processo de inventário, mas também para a decisão de acções de prestação de contas, mais  uma matéria em que não estamos perante um simples processo de jurisdição voluntária e que deve ser  alvo de decisão judicial. Com efeito, prevê-se no art.º 45.º a apresentação da conta do cabeçalato por parte do cabeça-de-casal, podendo qualquer interessado proceder no prazo de cinco dias à sua impugnação e competindo ao notário decidir sobre a mesma. Actualmente o cabeça-de-casal deve prestar contas através do processo especial de prestação de contas previsto nos arts. 1014.º e ss. do Código de Processo Civil, o que é feito por apenso ao processo de inventário (art.º 1019.º). Com a alteração pretendida, parece ser intenção do legislador que este processo especial de prestação de contas deixe de ser aplicável à prestação de contas do cabeça-de-casal em inventário, tudo passando a ser decidido pelo notário, nos termos gerais do incidente previsto nos arts. 14.º e 15.º. Ora, a experiência judicial demonstra que aquilo que se refere como mera “apresentação da conta”, dá origem a acções declarativas que seguem muitas vezes a forma de processo ordinário, nas quais a prova a produzir é extensa e minuciosa (pois reporta-se frequentemente a despesas e receitas de vários anos e com inúmeras parcelas). Além de se duvidar que no processo simples do incidente previsto nos arts. 14.º e 15.º possa caber a discussão de todas as questões aqui envolvidas (o que levará a que na maioria dos casos haja lugar novamente a uma suspensão nos termos do disposto no art.º 16.º), mais uma vez se demonstra que há uma clara violação da reserva da função jurisdicional, que torna inconstitucional a Lei aqui em apreço.

Com o devido respeito pelo ilustre colega, sendo certo que o apuramento duma inconstitucionalidade por violação da reserva da função jurisdicional se faz por análise das funções incumbidas, neste caso, ao notário, não podemos deixar de notar que não houve da parte do legislador uma opção clara, antes um retrocesso, pela desjudicialização total do processo de inventário, a gerar ela sim a pretendida inconstitucionalidade, e que antes ficaram abertas portas de rejudicialização concreta: acompanhando a tendência da desjudicialização em nome da eficácia, libertando os tribunais de questões de menor complexidade, o que vemos acontecer desde há décadas em inúmeros assuntos e litigâncias, o certo é que no caso do inventário e em concreto no caso da prestação de contas do cabeça de casal, não ignorando a possibilidade de se converterem em litígios de grande complexidade a suscitarem a intervenção dos tribunais, enquanto direito aliás dos cidadãos à acção destes, o legislador optou por um duplo esquema de responsabilização e salvamento: quando a complexidade fáctica ou técnica da questão se revele, o notário pode-deve remeter a questão para os tribunais e os interessados também podem solicitar tal remessa.

Perspectivado o exercício da função jurisdicional em consonância com o direito constitucional de acesso à justiça, ao interessado neste acesso é aberta a possibilidade de ponderar se a complexidade do seu caso exige a intervenção judicial ou se não a justifica. Quando nem os interessados nem o notário entendam que é necessária uma intervenção judicial, podemos invocar uma violação da reserva da função jurisdicional?
Parece que não, sob pena duma visão estática, que ignora aliás a possibilidade de auto-composição legitimamente permitida.
Entendemos pois que não ocorre qualquer inconstitucionalidade no normativo constante do artigo 45º do RJPI.
Em conclusão, improcede o recurso.           
Tendo nele decaído, é o recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.

V.–Decisão:

Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.



Lisboa, 30 de Março de 2017



Eduardo Petersen Silva
Maria Manuela Gomes
Fátima Galante
Decisão Texto Integral: