Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
169/13.4TMFUN.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: INVENTÁRIO APÓS DIVÓRCIO
REGIME DE BENS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I-O objectivo primordial do inventário na sequência do divórcio será a partilha de bens consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges.
II-Deste modo, se o regime for o da separação não haverá lugar ao inventário - a partilha de bens «constitui a finalidade última do inventário».
III-Mesmo no regime de bens da separação podem ter sido adquiridos bens com dinheiro de ambos os cônjuges, bens de que ambos os cônjuges sejam comproprietários; todavia, nessas circunstâncias, a divisão não teria lugar em processo de inventário, não havendo que proceder a este, mas sim à divisão de coisa(s) comum(ns).

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.
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I-Relatório:


I–A….. requereu a abertura de inventário em consequência de divórcio, demandando B..... a quem caberiam as funções de cabeça de casal.

O requerido foi nomeado cabeça de casal vindo a declarar que fora casado com a requerente no regime imperativo da separação de bens pelo que não existiam bens comuns a partilhar.

Opôs-se a requerente do inventário, requerendo que se julgue procedente a excepção do abuso de direito e peticionando que, em consequência, seja determinado que o averbamento n.º 2, de 20-2-2015, ao assento de casamento dos interessados e referente ao regime de separação de bens aposto no referido assento de transcrição do casamento não releve para efeitos de partilha, devendo pautar-se pelo regime supletivo da comunhão de adquiridos.

O requerido respondeu.

Na sequência, veio a ser proferida a seguinte decisão:
«Atento o exposto, e à luz das normas legais citadas, não se tendo apurado bens comuns a partilhar há que concluir pela falta de fundamento legal para instauração do presente inventário, determinando-se o arquivamento do mesmo, o que se decide».

Apelou a requerente, concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:

1.-Mesmo que se considere que o regime de bens é o da separação, e por essa razão não se possa afirmar que os bens são comuns, também não pode o tribunal assegurar que esses bens são próprios do requerido pois que nada há nos autos que permita retirar essa conclusão.
2.-A aquisição de bens a título oneroso na constância do casamento de acordo com as regras do regime de bens supletivo, sem qualquer menção em contrário, presumem-se comuns.
3.-A decisão recorrida é nula nos termos da alínea d) do artigo 615.º do CPC, na medida em que o tribunal a quo, ao se pronunciar sobre a matéria referida nas duas conclusões anteriores, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
4.-A decisão recorrida é nula nos termos da alínea c) do artigo 615.º do CPC, na medida em que os fundamentos de facto estão em oposição com a decisão.
5.-A recorrente considera incorrectamente julgada a matéria do ponto 1.º dos factos provados, supra transcrito.
6.-O averbamento n.º 2 foi inserido no assento de transcrição do casamento n.º 415/2013, da Conservatória dos Registos Centrais, em 20/02/2015, como consta na certidão de fls. 87 a 89 dos autos. Nada permite situar o averbamento na data referida na sentença recorrida (20/02/2005).
7.-O tribunal a quo, por lapso, tomou como pressuposto que o averbamento para rectificação do regime de bens precedeu o divórcio, a revisão e confirmação de sentença estrangeira e o próprio pedido de partilha quando, na verdade, o que aconteceu, e os documentos invocados demonstram-no claramente, foi precisamente o inverso.
8.-Impõem-se, pois, a alteração do ponto 1 dos factos provados, no sentido de aí passar a constar apenas o seguinte:
«1.º Encontra-se inscrito na Conservatória dos Registos Centrais que requerente e requerido contraíram, entre si casamento católico em 24 de Novembro de 1979, sem convenção antenupcial, em Pretória, África do Sul.»

9.-Uma vez que o tribunal a quo não considerou a referida factualidade impõem-se a ampliação da matéria de facto relevante para a boa decisão da causa, designadamente no que respeita à apreciação do abuso de direito, considerando-se documentalmente provados os seguintes factos:
-Em 05/07/1983, o B..... requereu a transcrição do casamento, junto da Secção Consular da Embaixada de Portugal em Pretória.
-A transcrição do casamento foi precedida do processo preliminar de publicações perante a referida Secção Consular, sem que nada fosse referido ou registado no que respeita à ausência de publicações antes do casamento.
-O casamento foi registado por transcrição na referida Secção Consular em 14/07/1983, nada tendo sido referido na parte destinada à aposição de “Menções Especiais”, ou seja, no respectivo assento não foi feita qualquer menção referente à ausência de processo preliminar que justificasse o regime imperativo de separação de bens, nem foi feita qualquer menção quanto à sujeição do casamento a este regime.
-A Conservatória dos Registos Centrais admitiu a integração do casamento nos respectivos registos em 30/11/1983 (registo n.º 16960), sem suscitar qualquer impedimento de ordem formal.

10.-Ainda que o casamento não tivesse sido precedido de processo preliminar de publicações, a transcrição do casamento foi precedida do processo preliminar de publicações perante a Secção Consular da Embaixada de Portugal em Pretória – vide doc. de fls. 102 a 107 dos autos – razão pela qual, em nosso entender, o casamento não se considera submetido ao regime da alínea a) do n.º 1 do artigo 1720.º do CC.
11.-Meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida:
Prova documental - docs. de fls. 06 a 10, 87 a 89, 100, 102 a 107, 109 a 113, 199 a 205 e 220 a 234 dos autos;
Prova por confissão – vide matéria vertida nos artigos 1º a 3.º do requerimento registado sob o n.º 18938712 e documento de folhas 109 a 113 dos autos.
12.-Nas circunstâncias supra descritas, a iniciativa do requerido no sentido rectificar o regime de bens, com exclusivo relevo patrimonial, não pode deixar de ser entendida como instrumentalização dos mecanismos registrais para fins diversos daqueles a que o registo verdadeiramente se destina, revelando a tentativa de, desse modo, obter benefícios decorrentes da indicação tardia do regime de separação de bens, em clara deturpação dos objectivos visados pelo registo civil quanto à definição do estatuto patrimonial dos cônjuges, à sua estabilidade e à protecção das expectativas individuais.
13.-Ou seja, o averbamento foi requerido não com o objectivo de proceder à correcção do registo civil mas unicamente como meio de buscar vantagens patrimoniais.
14.-Situação expressamente assumida pelo requerido em vários requerimentos juntos quer aos autos de arrolamento quer a estes autos.
15.-A ilegitimidade do resultado não poderá deixar de ser apreciada num contexto em que o averbamento foi inserido depois da persistente ausência de qualquer referência ao regime de bens durante um largo período de tempo (mais de 35 anos), numa altura em que o vínculo matrimonial já se encontrava dissolvido há mais de 6 anos e o respectivo processo judicial de partilha instaurado há quase 2 anos.
16.-Situação que não tem qualquer correspondência com a actuação dos cônjuges durante todos os 28 anos, 3 meses e 23 dias que durou o casamento, tempo durante o qual a actuação de ambos sempre se pautou pelo regime de comunhão de bens.
17.-Donde resulta que, a manter-se o averbamento de rectificação do regime de bens, devem ser restringidos os efeitos de natureza patrimonial que nele se pretendem fundar, por se mostrar substancialmente ilegítima a aplicação retroactiva do regime de separação de bens, em lugar do regime supletivo de comunhão de adquiridos.
18.-No caso concreto, a aplicação tardia, apenas na ocasião em que se pretende proceder à partilha dos bens, de um regime patrimonial diverso fere de forma manifesta e intolerável a relação de confiança decorrente do registo civil e do regime jurídico-patrimonial dos cônjuges que, em momento oportuno, ninguém - nem o requerido nem as autoridades civis - se importou em questionar.
19.-A extracção, a partir do averbamento, dos resultados normais e com efeitos retroactivos, representa um resultado que afecta, de forma grave e destemperada, o equilíbrio a que tende todo o sistema jurídico.
20.-O quadro circunstancial referido configura uma actuação claramente abusiva, nos termos e para os efeitos do artigo 334.º do CC, quer na modalidade de “venire contra factum proprium”, quer na modalidade das chamadas “inalegabilidades formais”.
21.-A decisão recorrida é, pois, incorrecta e injusta.
22.-Normas jurídicas que a recorrente considera que foram violadas: as normas das alíneas c) e d) do artigo 615.º do CPC e artigo 334.º do Código Civil. A Recorrente considera ainda violada a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 1720.º do CC, quando interpretada no sentido de se considerar submetido ao regime de separação de bens o casamento celebrado no estrangeiro que, muito embora não tivesse sido precedido do processo preliminar de publicações, foi precedido do referido processo preliminar antes da respectiva transcrição.
O requerido contra alegou nos termos de fls. 286 e seguintes.
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II-O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1.º-Encontra-se inscrito na Conservatória dos Registos Centrais que requerente e requerido contraíram, entre si casamento católico em 24 de Novembro de 1979, sem convenção antenupcial, em Pretória, África do Sul, sujeito ao regime imperativo de separação de bens, conforme averbamento n.º 2, de 20.02.2015 ([1]), fundado em Despacho arquivado no Proc. n.º 20019-SIT/2014, da aludida conservatória, por falta de processo preliminar de publicações;
2.º-Em 18 de Março de 2008, foi proferida decisão de divórcio pelo Supremo Tribunal de África do Sul, transitada em julgado e objecto de revisão e confirmação por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa proferida em 08 de Outubro de 2012 também transitada em julgado;
3.º-Em 19.03.2013 foi requerida a partilha judicial pelo presente inventário.
4.º-O Prédio urbano, localizado no Pico dos Barcelos, freguesia de Santo António, concelho do Funchal, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ….. e descrito na conservatória do registo predial do Funchal sob n.º ………, foi inscrito a favor do requerido por ap. 30 de 1998/01/27 no estado de casado com a requerente no regime da comunhão de adquiridos, pendente de rectificação no que respeita ao regime de bens.
5.º-O Prédio urbano, localizado no sítio da Vitória, freguesia São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz respectiva sob o artigo …… e descrito na conservatória do registo predial do Funchal sob n.º ………., foi inscrito a favor do requerido por ap. 16 de 1995/04/20 no estado de casado com a requerente no regime da comunhão de adquiridos, pendente de rectificação no que respeita ao regime de bens.
6.º-O Prédio urbano, localizado no Caminho do Pilar, freguesia de Santo António, concelho do Funchal, inscrito na matriz respectiva sob o artigo …….. e descrito na conservatória do registo predial do Funchal sob o n.º …….., foi inscrito a favor de requerente ap. 10 de 2006/03/03, actualizada por ap. 2030 de 2012/06/01, pendente de rectificação no que respeita ao regime de bens.
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III-São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo.
Tendo em consideração o teor das conclusões da apelante, as questões que se colocam são, essencialmente, as seguintes: se o despacho recorrido é nulo, nos termos do nº 1, alíneas c) e d) do art. 615 do CPC; se deverá ser alterada a matéria de facto consignada no despacho recorrido, consoante proposto pela apelante; se não deveria ter lugar o determinado arquivamento do inventário, antes devendo o mesmo prosseguir, uma vez que existem bens comuns a partilhar.
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IV–1-Temos, pois, como questão de fundo que se coloca nesta conjuntura da tramitação processual a de se o processo de inventário deverá prosseguir por existirem bens comuns do casal a partilhar ([2]).
Nos termos do nº 1 do art. 1689 do CC (sob o título «Partilha do casal. Pagamento de dívidas») cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a esse património.
Em consonância com o disposto neste artigo o anterior CPC, no seu art. 1404, regulava o processamento do inventário em consequência, designadamente, do divórcio, estabelecendo desde logo que decretado este qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens - salvo se o regime de bens do casamento for o da separação.

Assim, salientava João António Lopes Cardoso ([3]) que o inventário em consequência do divórcio é necessáriamente um inventário divisório, sendo o seu objectivo o de «partilhar os bens que fazem parte de um património comum nos precisos termos que a lei civil estabelece».

Pelo que o objectivo primordial do inventário na sequência do divórcio será a partilha de bens consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges. Deste modo, se o regime for o da separação não haverá lugar ao inventário - a partilha de bens «constitui a finalidade última do inventário» ([4]).

É certo que mesmo no regime de bens da separação podem ter sido adquiridos bens com dinheiro de ambos os cônjuges, bens de que ambos os cônjuges sejam comproprietários ([5]); todavia, nessas circunstâncias, a divisão não teria lugar em processo de inventário, não havendo que proceder a este, mas sim à divisão de coisa(s) comum(ns).
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IV–2–Tecidas estas considerações gerais debrucemo-nos em concreto sobre as questões que se nos colocam.

Sustenta a apelante que a decisão recorrida é nula, nos termos da alínea d) do artigo 615.º do CPC, na medida em que o tribunal de 1ª instância ao concluir que os bens mencionados sob os pontos 4), 5) e 6) dos factos provados são bens próprios do requerido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.

A nulidade por excesso de pronúncia está correlacionada com o nº 2 do art. 608 do CPC - devendo o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Em conformidade, o nº 1 – d) do art. 615 do CPC, dispõe ser nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Não nos parece que ocorra a nulidade em referência.

O Tribunal de 1ª instância entendeu que não havia bens comuns a partilhar e, logo, que não havia lugar a processo de inventário – questão que se colocava no processo. Para ali chegar ponderou – bem ou mal, não interessa por ora aferir – que não havia bens comuns porque os bens mencionados nos autos eram bens próprios do requerido.

Com isto não extravasou o que podia conhecer, seguindo uma linha de raciocínio pela qual optou, de acordo com os factos e as possíveis teses que lhe foram oferecidas pelas partes no processo.
Por outro lado, nos termos do art. 615, nº 1-c) do CPC a sentença será nula quando «os fundamentos estejam em oposição com a decisão».

Entre «os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa da nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade» ([6]).

Ora, o que a apelante pretende é que dos factos provados o Tribunal de 1ª instância não poderia concluir pela inexistência de bens comuns, mas antes que os bens ali referidos são bens comuns. Assim, estamos no âmbito de um invocado erro de julgamento, algo bem diverso do que a nulidade prevista na primeira parte do nº 1-c) do art. 615 do CPC.

A fundamentação deduzida, no seu conjunto, vista em termos globais, conduz à decisão proferida – de que, todavia, poderemos discordar.

Pelo que não ocorrem as nulidades previstas no nº 1-c) e no nº 1-d) do art. 615 do CPC invocadas pela apelante.
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IV–3-Pretende a apelante que seja alterada a decisão sobre a matéria de facto provada, desde logo quanto ao ponto 1) dos Factos Provados. Referindo que o «averbamento n.º 2 foi inserido no assento de transcrição do casamento n.º 415/2013, da Conservatória dos Registos Centrais, em 20/02/2015, como consta na certidão de fls. 87 a 89 dos autos» e não em 20-2-2005, conclui impor-se a alteração do ponto 1 dos factos provados, no sentido de aí passar a constar apenas o seguinte: «Encontra-se inscrito na Conservatória dos Registos Centrais que requerente e requerido contraíram, entre si casamento católico em 24 de Novembro de 1979, sem convenção antenupcial, em Pretória, África do Sul.»

Consta do ponto 1) dos Factos Provados: «Encontra-se inscrito na Conservatória dos Registos Centrais que requerente e requerido contraíram, entre si casamento católico em 24 de Novembro de 1979, sem convenção antenupcial, em Pretória, África do Sul, sujeito ao regime imperativo de separação de bens, conforme averbamento n.º 2, de 20.02.2015, fundado em Despacho arquivado no Proc. n.º 20019-SIT/2014, da aludida conservatória, por falta de processo preliminar de publicações».

Todavia a data de 20-2-2015 resulta de rectificação operada pelo despacho proferido a fls. 300, uma vez que da versão original constava 20-2-.2005.
Realizada aquela rectificação, não se vê motivo para proceder a qualquer outra alteração no que a este ponto dos factos provados respeita, uma vez que o ali transcrito resulta da certidão de registo civil (assento de casamento) de que se encontra cópia a fls. 87-89.
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IV–4-Seguidamente sustenta a apelante que deverão ser aditados aos factos julgados provados os seguintes factos:

-Em 05/07/1983, o B..... requereu a transcrição do casamento, junto da Secção Consular da Embaixada de Portugal em Pretória.
-A transcrição do casamento foi precedida do processo preliminar de publicações perante a referida Secção Consular, sem que nada fosse referido ou registado no que respeita à ausência de publicações antes do casamento.
-O casamento foi registado por transcrição na referida Secção Consular em 14/07/1983, nada tendo sido referido na parte destinada à aposição de “Menções Especiais”, ou seja, no respectivo assento não foi feita qualquer menção referente à ausência de processo preliminar que justificasse o regime imperativo de separação de bens, nem foi feita qualquer menção quanto à sujeição do casamento a este regime.
-A Conservatória dos Registos Centrais admitiu a integração do casamento nos respectivos registos em 30/11/1983 (registo n.º 16960), sem suscitar qualquer impedimento de ordem formal.
Efectivamente, resulta do documento de fls. 102 que em 5 de Julho de 1983 o requerido B..... requereu a transcrição do seu casamento com a requerente A, junto da Secção Consular da Embaixada de Portugal em Pretória; resulta, igualmente que a transcrição do casamento foi precedida do processo preliminar de publicações perante a referida Secção Consular – documentos de fls. 103-107; temos, também, face aos documentos de fls. 7-10 e 105-106, que o casamento foi registado por transcrição na Secção Consular em 14-7-1983, nada tendo sido referido na parte destinada à aposição de “Menções Especiais”; por fim, sabemos que a Conservatória dos Registos Centrais admitiu a integração do casamento nos respectivos registos em 30-11-1983, registo n.º 16960 (ver fls. 7).

Assim, entende-se ser de aditar aos factos provados os seguintes factos:
7-Em 5-7-1983, B..... requereu a transcrição do casamento contraído com A, junto da Secção Consular da Embaixada de Portugal em Pretória.
8-A transcrição do casamento foi precedida do processo preliminar de publicações perante a referida Secção Consular, sem que nada fosse referido no que respeita à ausência de publicações antes do casamento.
9-O casamento foi registado por transcrição na referida Secção Consular em 14-7-1983, nada tendo sido referido na parte destinada à aposição de “Menções Especiais”.
10-A Conservatória dos Registos Centrais admitiu a integração do casamento nos respectivos registos em 30-11-1983, registo n.º 16960.
Será, também de aditar, porque resultante de fls. 100 e com interesse para melhor concretização da situação dos autos (tendo, aliás, sido invocado pela requerente no ponto 11) do seu requerimento de fls. 92 e seguintes):
11-Em 6-6-2014 o requerido B..... requereu na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa que fosse rectificado o assento do seu casamento com a requerente A, celebrado sem precedência do processo preliminar de casamento, considerando-se o mesmo contraído sob o regime imperativo da separação de bens (fls. 100).
Bem como, consoante resulta do documento de fls. 191-193 e havendo sido mencionado pelo requerido no artigo 6 do seu requerimento de fls. 73 e seguintes:
12-No «Processo Justificação/Rectificação nº 20019/2014» a que aquele requerimento deu lugar foi determinado, por decisão proferida na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa em 20-2-2015 que fosse retificado o assento de casamento nº 42/1983 da Secção Consular da Embaixada de Portugal em Pretória, integrado na Conservatória sob o nº 16960/1983 no sentido de que «o casamento ficou sujeito ao regime imperativo da separação de bens», havendo-se ali entendido: «…o casamento em análise, celebrado no estrangeiro, entre dois portugueses, perante entidade local, sem ter sido precedido de processo de publicações perante autoridade portuguesa, não pode deixar de estar sujeito ao regime imperativo da separação de bens, tal como resulta do estatuído no mencionado art.º 1720º, nº 1, alínea a) do Código Civil».
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IV–5-Sustenta a apelante ([7]) que o casamento não se considera submetido ao regime da alínea a) do n.º 1 do artigo 1720.º do CC uma vez que a transcrição do casamento foi precedida do processo preliminar de publicações perante a Secção Consular da Embaixada de Portugal em Pretória.

Foi, todavia, proferida na Conservatória a decisão aludida em 12) dos Factos Provados, nos termos dos arts. 92 e seguintes do Código de Registo Civil. Ora, o presente processo de inventário não é o meio adequado para pôr em causa o despacho ali proferido com o consequente averbamento que veio a constar no assento do casamento que as partes haviam contraído.

Tendo em consideração as regras dos arts. 1 a 4 do Código de Registo Civil deveremos ter em consideração o casamento das partes e o que resulta do dito averbamento, não nos cabendo aqui discutir se, afinal, não se trataria o caso dos autos de situação a incluir no âmbito do nº 1-a) do art. 1720 do CC.

Como explica José Manuel Vilalonga ([8]) «a força probatória, material e formal do registo só pode ser abalada através de uma acção. Esta será de registo, se se visara realização de alterações ao próprio assento registal por motivo de comprovada inexactidão, deficiência ou irregularidade ou proceder à declaração da sua inexistência ou nulidade; ou de estado, se se visar proceder à impugnação do próprio acto registado…»

Não nos cumpre, pois, aqui, pronunciar sobre a (não) manutenção do averbamento. Mesmo a pretensão da apelante de «a manter-se o averbamento de rectificação do regime de bens, devem ser restringidos os efeitos de natureza patrimonial que nele se pretendem fundar», dada a sua dimensão genérica excede o que se poderá decidir neste processo de inventário.
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IV–6-Afigura-se-nos que numa diferente perspectiva se poderia ponderar a questão da partilha de bens que eventualmente se venham a qualificar como bens comuns tendo em consideração o instituto do abuso de direito.

Como vimos, a partilha de bens comuns constituíria a finalidade deste inventário; não existindo bens comuns não haveria lugar ao mesmo.

Será que por via do dito instituto do abuso de direito poderíamos concluir que no caso dos autos existem bens comuns a partilhar?
Defende a apelante que no caso concreto, a aplicação tardia de um regime patrimonial diverso fere de forma manifesta e intolerável a relação de confiança decorrente do registo civil e do regime jurídico-patrimonial dos cônjuges que, em momento oportuno, ninguém questionou e que a extracção a partir do averbamento, dos seus resultados normais e com efeitos retroactivos, representa um resultado que afecta, de forma grave e destemperada, o equilíbrio a que tende todo o sistema jurídico, configurando-se uma actuação claramente abusiva, nos termos e para os efeitos do artigo 334.º do CC.

Dispõe o art. 334 do CC que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Trata-se de uma figura correspondente a uma válvula de segurança para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico imperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito conferido pela lei; é genericamente entendido que existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.

No caso dos autos resulta que:
-Em 24-11-1979 em Pretória, África do Sul, requerente e requerido contraíram entre si casamento católico, sem convenção antenupcial, vindo o casamento a ser integrado no Registo Civil Português em 30-11-1983.
-Três prédios urbanos - um deles sito no Pico dos Barcelos, freguesia de Santo António, concelho do Funchal, descrito na conservatória do registo predial do Funchal sob n.º 2012/19950320, outro localizado no sítio da Vitória, freguesia São Martinho, concelho do Funchal, descrito na conservatória do registo predial do Funchal sob n.º 1873/19950420 e outro localizado no Caminho do Pilar, freguesia de Santo António, concelho do Funchal, descrito na conservatória do registo predial do Funchal sob o n.º 2011/199540320 – foram inscritos a favor do requerido, respectivamente pelas ap. 30 de 1998-01-27, ap. 16 de 1995/04/20 e ap. 10 de 2006/03/03, constando inicialmente daquelas inscrições (agora pendentes de rectificação quanto ao regime de bens) que o estado civil do requerido era o de casado com a requerente no regime da comunhão de adquiridos.
-Relativamente àquele casamento, em 18-3-2008, foi proferida decisão de divórcio pelo Supremo Tribunal de África do Sul, transitada em julgado e objecto de revisão e confirmação por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa proferida em 8-10-2012 também transitada em julgado.
-O presente processo de inventário - em que a requerente afirmou que o dissolvido casal tinha imóveis comuns em território português - iniciou-se em Março de 2013 e a citação do requerido teve lugar em Abril de 2013;
-Em 6-6-2014 o requerido B..... requereu na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa que fosse rectificado o assento do seu casamento com a requerente A, celebrado sem precedência do processo preliminar de casamento, considerando-se o mesmo contraído sob o regime imperativo da separação de bens.
–No «Processo Justificação/Rectificação nº 20019/2014» a que aquele requerimento deu lugar foi determinado, por decisão proferida na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa em 20-2-2015 que fosse retificado o assento de casamento nº 42/1983 da Secção Consular da Embaixada de Portugal em Pretória, integrado na Conservatória sob o nº 16960/1983 no sentido de que «o casamento ficou sujeito ao regime imperativo da separação de bens».

Temos, pois, que enquanto vigorava o casamento contraído entre a requerente e o requerido, sendo aparentemente o regime de bens o da comunhão de adquiridos, foram adquiridos pelo requerido vários imóveis que, naquele pressuposto de regime de bens, integrariam os bens comuns. Todavia, tal deixaria de assim ser, retroactivamente, dada a rectificação do regime de bens a que deu origem o pedido formulado junto do Registo Civil pelo requerido, passando a inexistir bens a partilhar.

Segundo a requerente o objectivo do requerido foi o de obter vantagens patrimoniais decorrentes da aplicação tardia do regime de separação de bens, situação sem correspondência com a actuação dos cônjuges durante os anos em que durou o casamento, deturpando os objectivos visados pelo registo civil quanto à definição do estatuto patrimonial dos cônjuges, à sua estabilidade e protecção das expectativas individuais (assim, os arts. 6, 9, 14, 37, 38 do requerimento de fls. 92 e seguintes).

Já o requerido reclama que assim não é, que a divisão de bens conjuntos fora acordada, que nesses termos os bens sitos na Madeira lhe ficavam a pertencer e que a requerente já recebera em dinheiro o que fora convencionado entre ambos e que é a requerente que se quer locupletar à custa do património do requerido, actuando em abuso de direito (requerimento de fls. 150 e seguintes).

Como refere Menezes Cordeiro ([9]) «o abuso de direito implica, sempre, uma ponderação global da situação em jogo, sob pena de se descambar no formalismo de que se pretende fugir; assim, embora sendo um instituto objectivo, a intenção das partes pode constituir um elemento a ter em conta».

Não se põe em dúvida que como se sintetizou no acórdão desta Relação de 1-7-2003 ([10]) ([11]) o «Direito da Família não está imune à excepção peremptória do abuso de direito prevista no art. 334º do CC, nomeadamente na parte em que se regulam os efeitos patrimoniais decorrentes do casamento».

Todavia, nem se reúne aqui e desde já toda a factualidade necessária para tal, nem se nos afigura que tal averiguação se compadeça com o processamento de uns autos de inventário.
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IV–7-Dispõe o nº 1 do art. 1335 que se «na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados».

Segundo Lopes do Rego ([12]) neste preceito regula-se o regime das questões ou causas prejudiciais “essenciais” de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha.

Da questão de existirem, ou não, bens comuns a partilhar dependerá a admissibilidade do processo de inventário para partilha de bens, nos termos do nº 3 do art. 1326 e do art. 1404 do anterior CPC.

A questão a que nos reportamos, quando perspectivada sob a hipótese acima aludida do abuso de direito, tem subjacente uma factualidade complexa que torna inconveniente a sua decisão incidental no inventário, tratando-se de um caso em que se justifica a remessa dos interessados para os meios comuns.

Por outro lado, como também foi referido supra, para a eventual refutação do que fora decidido no Registo de Civil com o consequente averbamento de que a apelante discorda, integralmente ou mesmo com os limites da restrição aos efeitos de natureza patrimonial do mesmo decorrentes, não é este processo de inventário o meio próprio para o efeito de tal fazer valer.

Pelo que as partes deverão ser remetidas para os meios comuns, suspendendo-se a presente instância até que ocorra decisão definitiva.

Não se justifica, todavia, que desde já seja determinado o arquivamento do processo consoante decidido no despacho recorrido – apesar de ali se ter equacionado a hipótese de as partes serem remetidas para os meios comuns quanto às questões suscitadas pela requerente no que respeita ao abuso de direito.

A pretensão da apelante é a do prosseguimento destes autos com vista à partilha de bens (termina a sua alegação de recurso pedindo que seja julgado «procedente o invocado abuso de direito, determinando-se expressamente que o averbamento de alteração do regime de bens não releva para efeitos de partilha dos bens comuns, a qual deverá reger-se pelo regime supletivo da comunhão de adquiridos, determinando-se, ainda, o normal prosseguimento dos autos»).

Entendendo-se que não se justiça desde já o arquivamento, pelas razões aduzidas entende-se igualmente que não se poderá desde já determinar o prosseguimento do processo, pelo que só em parte obtém provimento a pretensão da apelante.
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V-Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogam o despacho recorrido, substituindo-o pela decisão de suspender a instância até que ocorra decisão definitiva, remetendo-se as partes para os meios comuns.
Custas da apelação por ambas as partes na proporção de metade.
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Lisboa, 26 de Janeiro de 2017  
                     


Maria José Mouro
Teresa Albuquerque
João Vaz Gomes



[1]Conforme rectificação decorrente do despacho proferido a fls. 300, uma vez que da versão original constava 20.02.2005.
[2]Reportamo-nos, tão só, aos bens a partilhar, sem fazer referência a dívidas porque nada nos autos nos remete para elas.
[3]«Partilhas Judiciais», 3ª edição, vol. III, pag. 348.
[4]Expressão utilizada no acórdão do STJ de 16-5-1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, vol. II, pag. 83.
[5]Conforme sumariado no acórdão do STJ de 2-12-2008, ao qual se pode aceder em  http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 08A3489, «o simples facto de estar provado que as partes foram casados um com outra, segundo o regime de separação de bens, não inviabiliza a partilha dos bens que ambos adquiriram com o seu esforço, pois eles são seus comproprietários, antes a impõe desde que um deles manifeste tal vontade».
[6]Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, «Código de Processo Civil Anotado», Coimbra Editora, II vol., pag. 670.
[7]Na conclusão 10ª da sua alegação de recurso.
[8]Em «Eficácia e natureza jurídica do registo de casamento», em «O Direito», ano 132º, 2000 I-II (Janeiro-Junho), pags. 60-61.
[9]«Tratado de Direito Civil», I, Parte Geral, Almedina, tomo IV, 2005, pags. 376-377.
[10]Ao qual se pode aceder em  http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, processo 1943/2003-7.
[11]Numa situação de facto subjacente muito similar à destes autos, embora com factualidade adicional apurada e no âmbito de um recurso numa acção de justificação judicial com vista à eliminação de averbamento introduzido no registo.
[12]Em «Comentários ao Código de Processo Civil», Almedina, 1999, pag. 702, comentário ao art. 1335.