Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2465/11.6TVLSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: CAUSA DE PEDIR
DOMÍNIO PÚBLICO
SOCIEDADES
PATRIMÓNIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: · Não pode a  autora fazer uma convolação da causa de pedir entre a primeira e a segunda instância, deixando de enquadrar a causa de pedir numa permuta de terreno privado subsequentemente nacionalizado para a atribuição originária da propriedade do terreno a título de indemnização por expropriação.
· Quer no direito privado quer nos contratos administrativos, um dos critérios decisivos na interpretação dos contratos reside no modo como as partes subsequentemente o executaram.
· O pagamento de taxa, durante dezenas de anos, pelo uso de parcela  conquistada ao Rio Tejo, pela A.., nos termos da Base 5ª do Decreto-lei nº 25.725 , reforça a conclusão que tal parcela se integra no domínio público do Estado, sob a jurisdição da Administração do Porto de Lisboa, tendo sido constituído sobre ela um direito de utilização privativa a favor das CRGE e das suas sucessoras legais.
· A taxa devida pela utilização do domínio público constitui uma contrapartida sinalagmática devida pela disponibilização de bens do domínio público, sendo que a transferência para a APL das atribuições do Estado relativas à gestão do domínio público portuário implicou a transferência simultânea dos poderes para figurar como sujeito ativo na relação jurídica que deu azo ao pagamento da taxa.
· Não podem ser nacionalizados  bens do domínio público  porque não se pode nacionalizar o que já é público.
· Nos termos do artigo 3º, nº1, do Decreto-lei nº205-G/75, de 16.4., o que foi transferido para o património autónomo das empresas foi o conjunto dos bens, direitos e obrigações que integravam o ativo e o passivo das sociedades nacionalizadas, ou seja, a universalidade de bens privados que constituía o estabelecimento das empresas nacionalizadas em que se inclui, naturalmente, o direito de utilização privativa de domínio público mediante o pagamento de taxa, a que se reportam estes autos.
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
A. demanda B., pedindo que seja o pleno direito de propriedade da autora sobre a parcela que se encontra atualmente inscrita na matriz predial urbana n.º 3061, da freguesia de M., e que integra a descrição predial n.º 1470, da freguesia de S.A.O..
(...)
A Ré contestou, pedindo a improcedência da ação e a intervenção do Estado Português.
(...)
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A fls. 610 dos autos (III vol.), a autora veio apresentar a sua réplica, reiterando a posição já por si defendida na petição inicial.
(...)
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A fls. 665 dos autos, a autora veio apresentar articulado superveniente, dando conta que o processo de retificação de registo/averbamento, que tinha por objeto o averbamento lavrado no prédio n.º 1470 na sequência da apresentação n,º 4309, foi objeto de despacho de indeferimento liminar.
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Por despacho proferido a fls. 684/686 dos autos, foi admitido o articulado superveniente apresentado pela autora e foi deferido o pedido de intervenção principal provocada do Estado Português
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A fls. 687 dos autos, a ré veio pronunciar-se sobre o alegado no articulado superveniente apresentado pela autora.
(...)
Citado para contestar, veio o interveniente Estado Português (Direção Geral do Tesouro e Finanças), representado pelo Ministério Público, apresentar a sua contestação, constante a fls. 720/731 dos autos, pedindo a improcedência da presente ação, não se reconhecendo a propriedade da autora sobre os terrenos que são do domínio público do Estado, sob a gestão da APL, absolvendo-se o interveniente do pedido.
(...)
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A fls. 843 dos autos, a autora veio apresentar a sua réplica à contestação do interveniente Estado Português reiterando a sua posição já defendida na petição inicial. Alega, para tanto e em síntese, que:
(...)
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A fls. 876 dos autos, a autora veio apresentar articulado superveniente, alegando que foi julgado improcedente o recurso interposto pela ora ré do despacho proferido pela Sr.ª Conservadora.
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Conforme consta de ata de fls. 952/953 dos autos, foi admitido liminarmente, por despacho judicial, o articulado superveniente apresentado pela autora.
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Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, julga-se improcedente a presente ação e, em consequência não se reconhece o pleno direito de propriedade da autora sobre a parcela que se encontra atualmente inscrita na matriz predial urbana n.º 3061 da freguesia de Marvila e que integra a descrição predial n.º 1470 da freguesia de Santo António dos Olivais, improcedendo, por isso, a presente ação.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a Autora, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
(...)
Termos em que se requer a V. Ex.as se dignem admitir o presente recurso jurisdicional, julgando-o procedente e, em consequência, determinar:
· A alteração da decisão sobre matéria de facto, mediante a eliminação ou modificação dos factos constantes das alíneas 19), 28), 31), 32) e 35) da lista de factos provados, nos termos supra descritos;
· A alteração da decisão sobre matéria de facto, mediante a ampliação da matéria de facto, considerando-se provados os factos indicados nas alíneas a) a g) do ponto 8. das presentes alegações de recurso, nos termos aí especificados;
· A alteração da decisão sobre a matéria de Direito, no sentido de ser reconhecido que a ora Recorrente, é titular do direito de propriedade sobre a Parcela;
· A revogação da sentença recorrida e a respectiva substituição por decisão que declare procedente a presente acção;
· A dispensa do remanescente da taxa de justiça, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, assim se fazendo JUSTIÇA!»
*
A apelada contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
«
(...)
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, Deverão V.as Ex.as:
a. Julgar totalmente improcedentes os erros de julgamento invocados pela Autora;
b. Indeferir a nulidade cuja declaração aquela requereu; e, em consequência
c. Manter na íntegra a Sentença.»
*
O Ministério Público , em representação do Estado Português, acompanhou as alegações apresentadas pela Ré ( fls. 1419-1421).
Em 12.3.2019, foi proferido desapacho que dispensou as partes  do pagamento de 70% do remanescente da taxa de justiça em primeira instância ( fls. 1445).
Após a prolação da sentença, foram juntos pareceres subscritos por Rui ... (fls. 1448-1466), Paulo ... (fls. 1465-1490), Eduardo ... e Miguel ... (fls. 1496-1516), André ... (fls. 1517-1580) e José ... (fls. 1586-1595).
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
· Nulidade da sentença por oposição entre a fundamentação e a decisão;
· Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
· Aditamento de factos provados;
· Reapreciação de mérito;
· Dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
(...)
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nulidade da sentença por oposição entre a fundamentação e a decisão
A apelante sustenta que a sentença é nula, por contradição entre os fundamentos e a decisão, na medida em que, embora tenha concluído que, aquando da nacionalização da CRGE (e sem prejuízo de não analisar a questão à luz do diploma que procedeu à criação da EDP), estava afeta a esta empresa uma parcela com a área de 9.108,00 m2, julgou totalmente improcedente a acção, ao invés de ter julgado a acção procedente, concretizando a área da Parcela pertencente à Lisboagás, como permite o princípio do dispositivo e impõe o princípio da economia processual (conclusão 20ª).
A apelada sustenta que não ocorre tal nulidade porquanto não ocorre uma contradição de ordem formal entre os fundamentos estabelecidos e utilizados na sentença e não aos que resultam do processo ( fls. 1439).
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o Artigo 615º, nº1, alínea c), que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio mas decide em colisão com tais pressupostos. A nulidade em questão ocorre quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos – cf. LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, 2000, p. 298. Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.3.2001, Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt.
Na explicitação circunstanciada do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.6.2016, Tomé Gomes, 1364/06,
«(…) quanto à oposição entre a fundamentação e a decisão, importa ter presente o disposto no artigo 607.º, n.º 3, parte final, do CPC, segundo o qual o juiz deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre: a base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável - a dita premissa maior; a factualidade dada como provada – a dita premissa menor; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir, portanto, um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de recíproca exclusão lógica. Com efeito, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é viável formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito. 
Assim, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da ação.»
A eventual contradição entre a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e a mesma decisão não integra a nulidade da sentença prevista na 1ª parte da al. c) do art. 615º do CPC, podendo, eventualmente, consistir em erro de julgamento na apreciação da matéria de facto provada.
Está em causa o seguinte segmento da sentença impugnada:
«Alega também a autora para fundamentar a sua pretensão que independentemente do regime a que a parcela de terreno em causa nos autos estaria sujeita anteriormente a 1975, a mesma passou a estar integrada no património da CRGE por força do DL 205-G/75, de 16.04, por se tratar de um bem afeto à exploração levada a cabo por esta empresa.
Salvo o devido respeito por opinião em contrário, também não poderemos concordar com a alegação da autora, não só pelas razões já acima apontadas, como também porque resultou provado que no final dos anos 60, início dos anos 70 do século XX, a fábrica da CRGE foi desativada e que, em inícios de 1975, uma parcela de 32.698m2 do terreno em causa nos autos passou a ser ocupada pela “Listráfego-Sociedade de Tráfego, Ld.ª, e uma parcela de 9.108m2, correspondente à parcela designada com o n.º 1845, continuou a ser utilizada pela CRGE, tendo sido formalizada cada uma das ocupações com a emissão das respetivas licenças para ocupação e uso privativo, em outubro de 1978, relativamente às quais foram estabelecidas taxas a pagar à ré por cada uma das identificadas entidades. Acresce que, posteriormente, em 1980, a utilização da parcela de terreno ocupada pela Listráfego, Ld.ª foi concessionada pela ré à Petroquímica, passando esta a pagar as respetivas taxas por tal utilização, e a licença de ocupação emitida pela ré a favor da EDP, EP, correspondente a 9.108m2, foi transmitida, posteriormente pela EDP, EP à Petroquímica por força do disposto no DL 346-A/88, de 29.09. Concretizando: o que foi transmitido pela EDP, EP à Petroquímica, quando a atividade de distribuição de gás de cidade transitou para esta, foi o direito de uso privativo da dita parcela e não a propriedade da mesma.»
Apesar do esforço argumentativo da apelante, não se divisa qualquer nulidade por contradição entre este segmento da fundamentação de direito e o dipositivo da sentença. Com efeito, é manifesto que o que foi dito na fundamentação anterior da sentença colhe aplicação, na íntegra, quanto aos 9.108 m2, o que resulta desta parte da fundamentação: «também não poderemos concordar com a alegação da autora, não só pelas razões já apontadas, como também porque (…)». Ou seja, a pretensão da autora no que tange aos 9.108 m2 improcede face à análise feita na sentença nos parágrafos que precederam os ora extratados, nos quais se conclui que a totalidade da parcela integrava o domínio público. O que o tribunal a quo fez nos parágrafos extratados foi aditar mais argumentos que sustentam a improcedência da ação, reportando-se de forma concretizada à utilização feita aos 9.108 m2. Ocorre uma cumulação de argumentos que sustentam a improcedência da ação e não uma argumentação seccionada apenas para os 9.108 m2.
Termos em que improcede a arguição de nulidade.
Impugnação da decisão da matéria de facto
(...)
Reapreciação de mérito
A Autora intenta ação declarativa de simples apreciação contra APL - Administração do Porto de Lisboa, SA, pedindo que seja reconhecido o pleno direito de propriedade da autora sobre a parcela de terreno que se encontra atualmene inscrita na matriz predial urbana sob o nº 3061, da freguesia de Marvila, e que integra a descrição predial nº 1470, da fregueisa de Santo António dos Olivais.
A ação foi julgada improcedente.
A autora/apelante insurge-se contra a decisão impugnada com diversa argumentação, arrumada em capítulos, sendo o primeiro: Da natureza jurídica da parcela após a conquista do terreno através de aterro ao Rio Tejo.
Neste circunspecto, o raciocínio do tribunal a quo foi este:
«Alega a autora que a parcela de terreno cuja atual descrição predial tem o n.º 1470 da freguesia de Santa Maria dos Olivais e que teve a sua origem num aterro de conquista de terras ao Rio Tejo para a instalação da fábrica de gás da Matinha é propriedade da autora, nunca tendo constituído domínio público do Estado afeto à APL, porquanto consubstanciam terrenos indispensáveis à execução de outros serviços públicos dado que a CRGE se encontrava investida nos poderes públicos necessários à execução do serviço público por força do contrato de concessão celebrado em 1928 com a Câmara Municipal de Lisboa.
Sem dúvida que resultou provado que a parcela de terreno em causa insere-se numa área de terreno conquistada ao Rio Tejo, cujo aterro foi efetuado, em 1938, pela Administração Geral do Porto de Lisboa (AGPL). Mais resultou provado que a fábrica de gás das Companhias Reunidas de Gás de Lisboa (CRGE) situava-se junto da Torre de Belém e que a sua transferência foi ordenada para terrenos a conquistar ao Rio Tejo, contíguos à Quinta da Matinha, na zona oriental de Lisboa. É isto que resulta do preâmbulo do Dec. Lei n.º 25.726, de 06.08.1935, publicado no Diário do Governo de 09.08.1935. Este diploma legal define as bases do contrato destinado a regular a transferência da fábrica de gás, que se situava junto à Torre de Belém, para os terrenos na Matinha conquistados ao Rio Tejo. Na Base 9.ª do identificado diploma prevê-se expressamente o pagamento pela CRGE de taxas nomeadamente pela utilização que passaria a efetuar dos terrenos conquistados ao rio Tejo, com exceção de uma faixa de cerca de 4.000m2 correspondente à área dos terrenos de Belém. O referido diploma legal previa que o aterro era a realizar pela AGPL, antecessora da ré, devendo a CRGE pagar taxas por essa utilização, o que se manteve ao longo dos anos como resulta da matéria de facto provada, razão pela qual não poderá aceitar-se, como faz a autora, que por a CRGE prosseguir atividade de interesse público estava o terreno que lhe foi afeto excluído da jurisdição da AGPL. Acresce que a exclusão da área de jurisdição da AGPL seriam apenas aquelas que seriam definidas em legislação em vigor (cf. DL. 24208 de 23 de julho de 1934) e nenhum diploma foi invocado que excluísse expressamente o terreno em causa da jurisdição da AGPL. Este diploma, o Dec. Lei n.º 24208, de 23 de julho de 1934, que aprovou a Lei Orgânica da Administração Geral do Porto de Lisboa, também estabelecia no seu art.º 2.º que a área de jurisdição da AGPL abrangia não só todo o trato do estuário do Tejo definido na al. b) do preceito legal, como também todos os terrenos conquistados ao Tejo pela Administração Geral do Porto de Lisboa. Acresce que o n.º 3 do citado diploma legal estabelecia que os terrenos sob jurisdição da AGPL faziam parte do domínio público. Assim, considerando tudo quanto se deixa exposto, é manifesto que o terreno em causa resultante do aterro efetuado e conquistado ao Rio Tejo estava sob a jurisdição da AGPL e integrava o domínio público, não podendo aceitar-se a posição defendida pela autora na petição inicial. Cumpre, ainda, referir, que a alegação da autora de que o citado DL 25728 faz expressa distinção entre os 39mil m2 conquistados ao Tejo e a faixa de 50 metros marginal considerando apenas esta última do domínio público, também não poderá proceder, porquanto este diploma não visava a definição de terrenos do domínio público daqueles que não o seriam, mas visava tão só regular a transferência a fábrica de gás da zona de Belém para a Matinha e as obrigações de cada uma das partes intervenientes, sendo que a este propósito estabelecia que os 50 metros marginais não poderia ser nunca objeto de ocupação pela CRGE.
A favor da sua pretensão, alega a autora que os terrenos que resultaram das obras de terraplanagem efetuada pela ré em execução da Base 5.ª do DL 25.726, de 06.08.1935, se integraram originariamente no domínio privado do Município de Lisboa, embora afetos à concessão da CRGE, por permuta com os terrenos da antiga fábrica de Belém, entretanto entregues ao Estado por intermédio da APL. Salvo o devido respeito por opinião em contrário não poderemos acompanhar a posição da autora, porquanto, de acordo com o citado diploma legal, e tal como já deixámos referido, o aterro foi efetuado pela AGPL e pela utilização de tais terrenos a autora pagaria à ré as taxas em vigor, o que veio a acontecer, tal como resultou provado, até 2004, data em que a autora deixou de proceder ao pagamento das referidas taxas.
O referido diploma legal apenas faz referência que as obras para a instalação da nova fábrica de gás tiveram um subsídio por parte da Câmara Municipal, não fazendo alusão a qualquer contrapartida por tal, muito menos a qualquer permuta de terrenos.»
Em 23.7.1934, foi publicado o Decreto-lei nº 24.208, que remodelou a Lei Orgânica da Administração Geral do Porto de Lisboa nestes termos:
« Artigo 1.° A Administração Geral do Pôrto de Lisboa constitue um organismo autónomo, com personalidade jurídica, dependente do Ministério das Obras Públicas Comunicações.
Art. 2.° A área sob a jurisdição da Administração Geral do Pôrto de Lisboa abrange:
· Os cais, docas, acostadouros, terraplenos e todas as obras de abrigo ou protecção existentes ou que venham a construir-se entre os dois limites abaixo fixados;
· Todo o trato do estuário do Tejo limitado a jusante pelo enfiamento das Torres de S. Julião e Bugio a montante pela linha definida pela foz da itibeira dos Olivais e pela testa da ponta de Alcochéte, e as partes das respectivas margens, nos limites de largura fixados por lei, correspondentes às obras definidas na alínea a) e às zonas necessárias à sua execução e conservação;
· Todos os terrenos adjacentes às faixas definidas na alínea anterior adquiridas ou conquistadas ao Tejo pela Administração Geral do Pôrto de Lisboa.
§ único. Exceptuam-se do disposto neste artigo as áreas fluviais e terrestres, indispensáveis à execução de outros serviços do Estado, definidas na legislação em vigor.
Art. 3.° Os terrenos sob a jurisdição da Administração Geral do Pôrto de Lisboa fazem parte do domínio público, não podendo as obras neles executadas ser embargadas ou suspensas, salvo por ordem do Ministro das Obras Públicas e Comunicações, ou, por motivo de defesa nacional, pelo Presidente do Conselho de Ministros, nem os móveis ou imóveis penhorados ou arrestados» (sublinhados nossos).
Nos termos do art. 49º, nº8,  da Constituição de 1933, pertencem ao domínio público do Estado, entre outros, «Quaisquer outros bens sujeitos por lei ao regime do domínio público”, o que abarca o disposto no art. 3º do Decreto-lei nº 24.208, sendo certo que a definição do domínio público não constituía matéria de reserva de lei ( cf. Art. 93º da Constituição de 1933). Conforme refere Nuno de Sá Gomes, “Nacionalizações e Privatizações”, in  Ciência e Técnica Fiscal, nº 351, 1988, p. 156, «Os bens indicados neste artigo 49º por forma direta e por remissão para a legislação do domínio público «pertencem ao domínio público do Estado» e, como tais, são, desde logo, «nacionalizados» por via constitucional, mesmo que estejam em propriedade privada, ficando submetidos ao direito público.»
Atento este enquadramento normativo, qualquer terreno conquistado ao Rio Tejo por trabalhos de aterro feitos pela Administração Geral do Porto de Lisboa integra, necessariamente, o domínio público, salvo disposição legal expressa em sentido contrário.
Em 9.8.1935, é publicado o Decreto-lei nº 25.726, com o seguinte teor:
«Artigo 1º
É o Governo autorizado a celebrar, pelo Ministério das Obras Públicas e Comunicações, com a Câmara Municipal de Lisboa e as Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade um contrato destinado a regular a transferência da fábrica de gás, junto à Torre de Belém, para outro local.
Artigo 2º
O contrato será lavrado de conformidade com as bases anexas a este decreto, que baixam assinadas pelo Ministério das Obras Públicas e Comunicações e que dele ficam fazendo parte integrante.»
No preâmbulo do Decreto-lei nº 25-726 consta, designadamente, o seguinte:
«Constitue uma velha aspiração dos habitantes de Lisboa ver desafrontada a Tôrre de Belém da vizinhança das instalações de gás das Companhias Retinidas Gás e Electricidade, vulgarmente conhecidas sob a designação de Fábrica de Belém. Uma tal vizinhança não só prejudica a estética do local e o quadro que deve servir de moldura à referida Tôrre como também dá origem a degradações nos materiais que a constituem, pelo ataque químico dos fumos ácidos produzidos na Fábrica.
(…)
Recentemente ainda, em 1928, a Câmara Municipal de Lisboa, ao celebrar um novo contrato com as Companhias Reünidas Gás e Electricidade aproveitou a oportunidade para procurar obter a desejada remoção da Fábrica, fazendo inserir no referido contrato uma cláusula por meio da qual julgou poder prestar à cidade o inestimável serviço de libertar a Tôrre da incómoda e perniciosa vizinhança da Fábrica.
Depois de laboriosos e demorados estudos feitos por uma comissão para tal fim nomeada, houve de reconhecer-se que mais uma vez não fera atingido o objectivo em vista.
Foi então que o actual Governo tomou a firme decisão de procurar remédio para a resolução dêste assunto.
(…)
As negociações com as Companhias Reunidas de  Gás e Electricidade, conduzidas pelo Govêrno, não foram fáceis nem rápidas, dada a complexidade dos elementos a atender, os encargos a suportar, as condições técnicas e financeiras emergentes do contrato de 1928, mas pôde encontrar-se finalmente uma solução para este problema de vital importância para os  interêsses citadinos.
Esta solução, salvaguardando devidamente os legítimos interesses em jôgo, foi aceite pelas Companhias teve imediatamente o acôrdo da Câmara Municipal de Lisboa.
Nela se estabelece :
1.° A mudança da Fábrica de Belém para a Quinta da, Matinha, junto ao Poço do Bispo, num prazo determinado ;
2.° A discriminação dos trabalhos a efectuar e a sua distribuição pelas entidades comparticipantes do contrato de 1928, dentro das cotas partes atribuídas a cada uma delas, e pelo Estado, por intermédio da Administração Geral do pôrto de Lisboa;
(…)
4.° A regulação do modo de utilização dos terrenos que ficam disponíveis com a mudança e dos que forem ocupados pelas novas instalações (…)
No que tange às bases a que se reporta o artigo 2º, relevam as seguintes:
«Base 2.a
Os trabalhos a executar para efectivo cumprimento do que neste contrato se dispõe devem iniciar-se dentro de seis meses e ficar concluídos no prazo de três anos, a contar da data em que o Govêrno puser à disposição das Companhias Reunidas Gás e Electricidade os terrenos. a conquistar ao Tejo onde deve instalar-se a nova fábrica.
(…)
Base 5.a
Compete ao Estado, por intermédio da Administração Geral do pôrto de Lisboa, a realização das seguintes obras:
a) A conquista ao Tejo da área necessária para a instalação das novas fábricas, num total de cerca de 39:000 metros quadrados, e de uma faixa marginal de largura não inferior a 50 metros, reservada ao domínio público;
b) A protecção do atêrro efectuado para a conquista do terreno ao Tejo;
c) A construção de uma ponte-cais com o comprimento necessário para atingir o nivel de 6 metros abaixo de zero hidrográfico.
(…)
Base 9.ª
Pela utilização dos terrenos e das obras marítimas a construir pela Administração Geral do perto de Lisboa pagarão as Companhias Retinidas Gás e Electricidade ao pôrto de Lisboa as-taxas constantes do seu regulamento de tarifas em vigor.
§ único. As Companhias Retinidas Gás e Electricidade ficarão isentas do pagamento de qualquer taxa em relação a uma área igual à dos terrenos que lhe pertenciam em Belém (4:000 metros quadrados) e que por este contrato são cedidos à Administração Geral do pôrto de Lisboa.»
Interpretando e articulando os dois diplomas referidos (Decreto-lei nº 24.208 e Decreto-lei nº 25.726), conjugados com a matéria de facto,  são inferíveis as seguintes conclusões, com relevância para a apreciação de mérito.
Em primeiro lugar, a Fábrica de Gás e seus anexos foi instalada em terreno conquistado ao Tejo pela APL, num total de 39.000 m2 , a que acresce uma faixa marginal de largura não inferior a 50 metros, «reservada ao domínio público» ( Bases 1ª, 5ª e factos 1, 2,  21 e 23).
Esta menção final ao domínio público deve ser entendida como reportada ao domínio público hídrico, na sequência de legislação que já provinha do século XIX. Com efeito, nos termos do Decreto nº 8 de 1.12.1892:
«Art. 4º - Nos lagos, lagoas, rios, vallas, esteiros e mais correntes de agua, a margem, incluindo os comoros, motas, vallados e diques, consistirá em uma faxa de terreno adjacente, junto á linha de agua, que se conserva ordinariamente enxuta, e é destinada aos serviços hydraulicos, de policia, ou accessorios de navegação e fluctuação.
 Nº 1 – Nos navegáveis ou flutuáveis as margens terão geralmente de 3 a 30 metros, e excepcionalmente até 50 metros de largura, a contar da linha que limita o leito ou álveo, conforme a importância ou necessidade do curso de água» (sublinhado nosso).
Posteriormente, o Art. 124º do Decreto nº 5787-IIII, de 10.5.1919, dispôs que: «As margens dos lagos, lagoas, valas e correntes do domínio público estão sujeitas, em toda a sua extensão, a uma servidão de uso público no interesse geral da pesca e da fiscalização e polícia das respectivas águas e nas águas navegáveis ou flutuáveis também para os serviços de navegação e flutuação» , a efetuar por regulamento (nº2).
Ou seja, o intuito da parte final da alínea a) do Base 5ª do Decreto-lei nº  25.725 é, apenas, o de esclarecer que, por via das restrições próprias do domínio público hídrico, as CRGE não poderiam utilizar uma faixa marginal de largura não inferior a 50 metros a contar do Rio Tejo. A única interpretação a contrario sensu que é possível extrair de tal ressalva é que havia que distinguir entre o âmbito próprio do domínio público hídrico( até 50 metros) e outros domínios públicos, em que se inclui o portuário (a partir dos 50 metros).
Em segundo lugar, apesar do teor do texto do Decreto-lei nº 25.725 não resultar uma classificação expressa da natureza privada ou dominial dos 39.000 m2 a conquistar ao Rio Tejo, certo é que na Base 9.ª se clarifica que os 4.000 m2 que as CRGE tinham em Belém «que por este contrato são cedidos à Administração Geral do Porto de Lisboa» . Ou seja, resulta daqui que, por força do contrato, as CRGE acordaram em ficar privadas dos 4.000m2 que anteriormente detinham na zona da Torre de Belém, sendo tal área cedida à APL. Este segmento articula-se, de forma clara e confluente, com o regime resultante do art. 3º do Decreto-lei nº 24.208, que dispõe que os terrenos sob a jurisdição da APL fazem parte do domínio público. Dito de outra forma, da Base 9ª infere-se que o intuito do Decreto-lei nº 25.725 foi o de atribuir o terreno em causa à jurisdição da APL e nunca o inverso. Mesmo que inexistisse esse segmento da Base 9.ª, a natureza de domínio público já resultava do art. 3º do Decreto-lei nº 24.208, não carecendo de ser reafirmada pelo subsequente Decreto-lei nº 25.725.
Em terceiro lugar, ao contrário do que é defendido em parecer junto pela Autora, reafirmado nas alegações de recurso, o Decreto-lei nº 25.725 não teve natureza expropriativa.
A este propósito, há que ressaltar o seguinte. Na petição inicial, a autora sustentou a tese de que os terrenos resultantes das obras de terraplanagem efetuadas pela Ré, em execução da Base 5ª, se integraram originariamente no domínio privado do Município de Lisboa, por permuta, embora afetos à concessão da CRGE (artigos 114º a 120º da pi). Agora, em sede de recurso, escudada em parecer que junta, vem a autora enquadrar a sua pretensão com a tese inovadora de que o Decreto-lei nº 25.725 produziu efeitos expropriativos no património das CRGE, sendo que a conquista dos terrenos ao Rio Tejo visou a compensação por uma efetiva expropriação, não cabendo no âmbito dos arts. 2º e 3º do Decreto-lei nº 24.208 (fls. 1401).
Ora, procedendo desta forma, a autora pretende fazer uma convolação não admissível da causa de pedir,  que deixa de se enquadrar numa permuta de terreno privado subsequentemente nacionalizado para a atribuição originária da propriedade do terreno a título de indemnização por expropriação.
Refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.9.2018, Tomé Gomes, 21852/15:
«(…) a causa de pedir, legalmente definida (art.º 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor[2]. É o que se designa por princípio da causa de pedirabertas.
Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares:
a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima, traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido;
b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota, o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico.
Sem necessidade de nos embrenharmos aqui nas conhecidas teorias da substanciação, da individuação e até da mais recente teoria da individuação aperfeiçoada, a orientação corrente vai no sentido de que o artigo 581.º, n.º 4, do CPC acolhe a doutrina da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.
(…)
Segundo Lebre de Freitas:
«(…) embora a causa de pedir seja integrada por factos concretos, está hoje abandonada a ideia de que ela se possa delimitar segundo critérios meramente naturalísticos, o que a conduziria à impossibilidade de a circunscrever em termos jurídicos. Fora o caso de concurso de normas meramente aparente, dois complexos de factos, cada um dos quais integre a previsão duma norma jurídica constitutiva de direitos, só constituirão a mesma causa de pedir se o núcleo essencial das duas normas for o mesmo»
Também Teixeira de Sousa elucida que:
«A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir.
 (…)
 Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais.»
Assim, embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir.
Em suma, sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular.»
Dentro da mesma linha de raciocínio, no Acórdão do STJ de 24.1.2019, Rosa Ribeiro Coelho, 948/14, afirmou-se:
«(…) em hipóteses como esta – que é a dos autos -, é de adotar, a ideia acima transcrita de Teixeira de Sousa – igualmente presente no ensinamento de Lebre de Freitas –, justificando-se, por isso, e tal como se disse no acórdão deste STJ de 18.9.2018, dar destaque, na configuração da causa de pedir concretamente invocada, ao vetor normativo seguido pelo autor, o que, no caso, aponta para a valoração dos factos enquanto integradores de um enriquecimento cuja restituição se pretende com a propositura da ação.
Assim definida a causa de pedir da presente ação, é de concluir que a sentença, ao valorar os factos na perspetiva da responsabilidade civil - e apesar de parecer ser permitida pela liberdade de qualificação jurídica consagrada no nº 3 do art. 5º do CPC -, operou convolação que extravasa o âmbito daquela tal como o definiu o autor, acabando por conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento.
Não se tratou de atribuir aos factos uma qualificação jurídica diversa, o que seria consentido pelo art. 5º, nº 3; apreciou-se, sim, uma pretensão qualitativamente diversa da formulada pelo autor “quer quanto à relação jurídica material controvertida, quer quanto ao próprio efeito pretendido, e portanto fora do perímetro da vinculação temática do tribunal, nos termos decorrentes dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º, 609.º e 611.º do CPC.”»
Ou seja, ao fazer este novo enquadramento da sua causa de pedir, a Autora procede a uma convolação não admissível da causa de pedir (cf. arts. 264º e 265º, nº1, do Código de Processo Civil ), introduzindo – do mesmo passo – em apreciação uma questão nova, o que não é admissível (cf. supra).
Tanto basta para não apreciar esta nova argumentação.
Todavia, mesmo que não ocorresse este óbice processual, certo é que a tese da apelante não colheria em qualquer caso.
Conforme decorre do que já se extratou supra, o disposto no Decreto-lei nº 25.725 resultou de uma negociação entre os intervenientes, sendo que «As negociações com as Companhias Reunidas de  Gás e Electricidade, conduzidas pelo Govêrno, não foram fáceis nem rápidas, dada a complexidade dos elementos a atender, os encargos a suportar, as condições técnicas e financeiras emergentes do contrato de 1928». Ou seja, não se tratou de um contrato ditado ou imposto mas do resultado de uma negociação, na qual as partes ponderaram os encargos a suportar, as condições técnicas e financeiras emergentes do contrato firmado entre a Câmara de Lisboa e as CRGE, em 1928. Logo se acrescentando que «Esta solução (…) foi aceite pelas Companhias e teve imediatamente o acordo da Câmara Municipal de Lisboa.» Deste modo, a ter ocorrido uma diminuição patrimonial na esfera das CRGE, a mesma decorre da sua vontade livremente expressa no acordo firmado. Não faz qualquer sentido cogitar que a perda do direito de propriedade sobre 4.000 m2 fosse compensada com a atribuição de um direito de propriedade sobre 39.000 m2, com a mesma aptidão funcional, sendo certo que os terrenos foram valorados pelas partes ao mesmo preço por metro quadrado (cf. Isenção da Base 9.ª do contrato de 1935).
Em 1935, encontrava-se em vigor o Código das Expropriações aprovado pela Lei de 23 de julho de 1850, segundo o qual a utilidade pública era declarada por lei (art. 2º), dando azo à instauração do processo para liquidação e pagamento do valor da propriedade (art. 2º, § 2º). Em caso de acordo quanto à cessão gratuita da propriedade a expropriar ou quanto à indemnização do seu valor, as partes lavravam contrato por escritura pública, por auto de conciliação ou por termo lavrado pelo escrivão (art. 13º; cf. Couto Martins, Código de Expropriações, Lisboa, 1933). É manifesto que não foi esse o caminho trilhado pelo Decreto-lei nº 25.725.
Em quarto lugar, é sabido que, quer no direito privado quer nos contratos administrativos, um dos critérios decisivos na interpretação dos contratos reside no modo como as partes subsequentemente o executaram : «O comportamento posterior dos contraentes, se não tiver sido ainda influenciado por eventual conflito, pode ser revelador do modo comum ou divergente de entender o contrato» -Carlos Ferreira de Almeida, Contratos IV, 2014, p. 283; cf. também Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, III, p. 388.
Ora, nos termos do acordo alcançado, plasmado na Base 9ª do Decreto-lei  25.725, As CRGE ficaram obrigadas a pagar à Ré «as taxas constantes do seu regulamento de tarifas em vigor», com a isenção expressa «do pagamento de qualquer taxa em relação a uma área igual à dos terrenos que lhe pertenciam em Belém (4.000 metros quadrados) e que por este contrato são cedidos à Administração Geral do Porto de Lisboa.» E, em execução do acordado e até maio de 2004, a autora pagava as taxas cobradas pela utilização das parcelas de terreno referidas em 33 e 39 ( facto 47; 9.108 m2 + 32.700 m2). A esta questão se reportam também os factos provados osb 24 , 25 e 51.
Este prolongado e reiterado comportamento das partes demonstra que, de forma consistente, foi entendido que a parcela -  conquistada ao rio nos termos da Base 5ª do Decreto-lei nº 25.725  - se integra no domínio público do Estado, sob a jurisdição da Administração do Porto de Lisboa, tendo sido constituído sobre ela um direito de utilização privativa a favor das CRGE, o qual teve como contrapartida o pagamento de uma taxa , a qual não incidia sobre 4.000 m2, correspondentes à área que as CRGE eram proprietárias anteriormente na zona de Belém.
Se a parcela em causa tivesse ficado a pertencer ao Município de Lisboa, evidente é que o pagamento da taxa seria devido ao Município e não à APL. A taxa devida pela utilização do domínio público constitui uma contrapartida sinalagmática devida pela disponibilização de bens do domínio público, sendo que a transferência para a APL das atribuições do Estado relativas à gestão do domínio público portuário implicou a transferência simultânea dos poderes para figurar como sujeito ativo na relação jurídica que deu azo ao pagamento da taxa.
 Conforme refere  Ana Raquel Gonçalves Moniz, O Domínio Público, O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, 2006, p. 400, «Outra referência a compreender dentro dos sujeitos titulares de bens submetidos ao estatuto da dominialidade prende- se com a situação daquelas entidades que gozam sobre as coisas dos poderes atribuídos ao titular do direito de propriedade sobre elas – atuam esse poderes em vez daquele titular. Existe aqui uma separação entre titularidade e exercício dos poderes sobre a coisa característicos do estatuto da dominialidade. Esta hipótese verifica-se com frequência nos casos em que a gestão do bem se encontra dissociada da propriedade pública, pelo que não é o titular do direito de propriedade pública (ou o ente administrativo a que a lei atribui poderes de domínio) que vai exercer as prerrogativas típicas do seu direito, mas outra entidade.»
Contraargumenta a apelante que «(…) é verosímil que as taxas servissem para custear serviços prestados pela AGPL no âmbito dos seus poderes de jurisdição, sendo indiferente se a natureza dominial da Parcela é pública ou privada. Outra hipótese é essas taxas terem o propósito de compensar o custo incorrido nas obras e suportado pela AGPL» (  fls. 1401 v.).
Esta argumentação claudica. Do teor textual da Base 9ª resulta que a taxa em causa é pela utilização de um terreno do domínio público, razão pela qual no § Único se especificou que não era devido o pagamento da taxa em relação aos 4.000 m2,área de que as CRGE eram proprietárias anteriormente em Belém.  Se o terreno fosse das CRGE, como é óbvio, a mesma não teria de pagar qualquer taxa pela sua utilização à APL. Também não colhe o argumento do custeamento nas obras suportado pela APL porquanto, nos termos da Base 11ª, «Pela execução dos trabalhos efetuados pela Administração Geral do Porto de Lisboa, nos termos da base 5ª, fica a Câmara Municipal de Lisboa obrigada a satisfazer àquele organismo, logo que as obras estiverem concluídas, a importância de 1.000.000$.» Finalmente, é certo que as CRGE teriam de pagar taxas de outra índole `a APL, v.g., de utilização do porto por embarque e desembarque. Contudo, conforme se refere no parecer de fls. 1545, «(…) a menção a essas taxas nas bases do Contrto de 1935 só seria necessária caso de tivesse pretendido isentar as CRGE do seu pagamento, pois, na hipótese inversa, o dever de pagar a taxa formar-se-ia sempre, com fundamento no regulamento aplicável, independentemente do que se dissesse naquelas bases, quando fosse solicitado o serviço ou o bem que determinava a necessidade do seu pagamento; a ser essa a sua interpretação, a Base 9ª do Contrato não serviria, pura e simplesmente, para nada.»
Em quinto lugar, ao contrário do que alega a apelante, o Decreto-lei nº 25.725 não revogou, nem expressa nem tacitamente, o Decreto-lei nº 24.208. Conforme deflui da análise feita supra, não há incompatibilidade do segundo com o primeiro, sendo que a coerência e complementaridade entre ambos resulta inequívoca da parte final da Base 9º («e que por este contrato são cedidos à Administração Geral do Porto de Lisboa»). Inexiste no segundo diploma norma que diga que as áreas sob a jurisdição da AGPL não incluem os terrenos conquistados ao Tejo pela AGPL ou que os terrenos sob a jurisdição desta não integram o domínio público.
Em suma, a parcela em discussão integrou ab origine o domínio público do Estado, estando abrangida pela jurisdição da AGPL, tendo sido constituído sobre tal parcela e a favor das CRGE um direito de utilização privativa de domínio público mediante o pagamento de taxa (com ressalva da área de 4.000 m2, isenta de taxa).
Numa segunda linha de argumentação, sustenta a apelante que a nacionalização resultante do Decreto-lei nº 205-G/75, de 16.4., seguida da criação da EDP (Decreto-lei nº 502/76, de 30.6) teve por efeito que os bens afetos  à exploração do serviços público do fornecimento de gás, fossem eles propriedade da sociedade nacionalizada ou de terceiros, foram transferidos, num primeiro momento, para o Estado, integrados no património autónomo da respetiva empresa nacionalizada. Num segundo momento, todos os bens que integravam o património autónomo de cada empresa nacionalizada ou que estivessem afetos à sua exploração formaram o património inicial da EDP, incluindo a parcela dos autos ( fls. 1403).
Há que começar por recapitular esta sucessão de factos plasmados em diplomas legais.
Nos termos do Artigo 1º do Decreto-lei nº 205-G/75, de 16.4.:
 1. São declaradas nacionalizadas, com eficácia a contar de 15 de Abril de 1975, as sociedades exploradoras do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica a seguir indicadas:
(…)
CRGE — Companhias Reunidas Gás e Electricidade, S. A. R. L.; (…).
Artigo 3º
· A universalidade dos bens, direitos e obrigações que integram  o ativo e o passivo das sociedades a que se refere o artigo 1º, ou que se encontrem afetos à sua exploração, são transferidos para o Estado, integrados no património autónomo das respetivas empresas ou a ela igualmente afetos.
· (…)
Nos termos do Decreto-lei nº 502/76, de 30.6.:
Artigo 1.°
 1. É criada a Electricidade de Portugal Empresa Pública, abreviadamente EDP, a qual se regerá pelo estatuto publicado em anexo a este decreto-lei e que dele faz parte integrante.
2. A EDP é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira patrimonial.
(…)
Art. 5.°
 1. O património inicial da EDP é formado:
a)     Pelos patrimónios autónomos referidos no n.° 1 do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 205-G/ 75 e pelos bens, direitos e obrigações a eles igualmente afectos nos termos da mesma disposição legal, com a excepção prevista no n.° 5 do presente artigo;
b)     Pelos serviços e instalações transferidos para o Estado ao abrigo do disposto no n.° 2 do artigo 6.° do Decreto-Lei n.° 205-G/75.
2. A titularidade dos patrimónios autónomos mencionados na alínea a) do número anterior e dos bens, direitos e obrigações a eles igualmente afectos e referidos na mesma alínea, bem como a dos serviços e instalações a que alude a alínea b) do mesmo número, considera-se transferida para a EDP na data da entrada em vigor deste decreto-lei.»
Nos termos do Decreto-lei nº 244/79, de 25.7.:
Artigo 1.°
 É instituída a empresa Petroquímica e Gás de Portugal, E. P., abreviadamente designada por «Empresa», a qual se rege pela lei aplicável às empresas públicas, pelo estatuto anexo, que faz parte integrante do presente diploma, e, subsidiariamente, pelas normas de direito privado.
Nos termos do Decreto-lei nº 346-A//88, de 29.9.:
Artigo 1.°
 1 — O património da Electricidade de Portugal, E. P. (EDP, E. P.), afecto ao serviço de distribuição pública de gás é destacado por cisão e integrado no património da Petroquímica e Gás de Portugal, E. P. (PGP, E. P.).
2 — Todos os direitos e obrigações decorrentes da actividade de distribuição pública de gás e de que a EDP, E. P., seja titular são também por esta forma transferidos para a PGP, E. P.
Artigo 2.°
1 — Do património imobiliário da EDP, E. P., é destacado o acervo de bens a seguir indicados:
a) Terrenos, edifícios e instalações situados na zona da Matinha, em Lisboa, com exclusão das casas de habitação adjacentes à Rua do Vale Formoso de Baixo, conforme planta anexa a este diploma;
b) Terreno e gasómetro situados na Avenida do Infante Santo, em Lisboa, com exclusão do edifício e respectivo logradouro situado na zona sul, conforme plantas anexas a este diploma.
No que tange à relevância das nacionalizações, há que começar for enfatizar que «tendo a nacionalização por escopo transferir os bens privados nacionalizados para o Estado, ou para as entidades públicas entretanto criadas, só são abrangidos por ela os bens que pertenciam a pessoas individuais e coletiva privadas, mas não já os bens do domínio público ou do domínio privado dos entes públicos, não sendo, em rigor, nacionalização a transferência de bens de qualquer natureza pertencentes ao Estado ou a outras pessoas coletivas públicas da administração estatal, regional ou local indiretas ou mesmo a outras pessoas coletivas de direito público de fins múltiplos ( v.g. municípios e regiões autónomas). E o legislador português teve a perceção do problema, pois, em vários casos, tratando-se de sociedades em que o Estado tinha participação social, só nacionalizou, como vimos, o capital privado» (sublinhado nosso) - Nuno de Sá Gomes, “Nacionalizações e Privatizações”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 351, 1988, pp. 196-197. Prossegue o mesmo autor: «(…) nestes casos de «nacionalização» de bens pertencentes a pessoas coletivas públicas, de direito público ou de direito privado, não estamos perante verdadeiros atos de nacionalização, quer em sentido político-social, quer em sentido jurídico. / Nestas hipóteses, haverá, segundo creido, uma mera transferência coativa dos bens dos entes públicos para o Estado ordenada por lei, com fundamento na necessidade de reestruturação das sociedades visadas, mas não verdadeira nacionalização» (p. 198).  E, mais adiante: «(…) foram nacionalizadas muitas empresas concessionárias de serviços públicos na sua totalidade (v.g. transportes, eletricidade , gás (…). Simplesmente, segundo parece, os respetivos contratos extinguiram-se com os atos de nacionalização,não porque as empresas nacionalizadas não possam ser concessionárias de serviços públicos ou de exploração de bens de domínio público, mas porque o contrato de concessão é um contrato administrativo, isto é, um contrato de direito público, que não é ato constitutivo de direito reais de gozo privados. E, nesse medida, ele mesmo não pode ser objeto de nacionalização. De resto, se da nacionalização resultasse a transferência automática da posição contratual de concessionário para o Estado, ipso facto, ocorreria a extinção da respetiva relação jurídica, por confusão, na titularidade do Estado, das posições ativa e passiva. /Em meu critério, o que pode ser nacionalizado é o estabelecimento de concessão e não a posição contratual de concessionário. Isto é, o que pode ser nacionalizado é a universalidade de bens privados que constitui o estabelecimento da concessão , e não os bens do domínio público ou os próprios serviços públicos concedidos, ou o contrato de concessão em si mesmo. E isto porque não se pode nacionalizar o que já é público» (sublinhados nossos).
Desta sucinta e clara exposição resulta que, integrando a parcela em discussão o domínio público do Estado aquando da entrada em vigor do Decreto-lei nº 205-G/75, de 16.4., não assiste a tal diploma a virtualidade de nacionalizar a parcela em questão pela singela razão de que tal diploma não podia nacionalizar o que já era público, integrando o domínio público estadual.
Nos termos do artigo 3º, nº1, do Decreto-lei nº205-G/75, de 16.4., o que foi transferido para o património autónomo das empresas foi o conjunto dos bens, direitos e obrigações que integravam o ativo e o passivo das sociedades nacionalizadas, ou seja, a universalidade de bens privados que constituía o estabelecimento das empresas nacionalizadas em que se inclui, naturalmente, o direito de utilização privativa de domínio público mediante o pagamento de taxa, a que se reportam estes autos. O que se percebe porquanto, por um lado, só podem ser transferidos - mesmo coativamente - direitos de que o sujeito passivo seja efetivamente titular (nemo potest plus iuris transfere in alium, quam sibi competere dignoscatur) e, por outro lado, na sucessão de diplomas legais a que nos reportamos falece qualquer especificação da parcela dos autos como sendo objeto de transferência por via da nacionalização, o que nem seria possível (cf. supra, não se pode nacionalizar o que já é público). O que foi sendo objeto de transferência/transmissão foi o direito de utilização privativa do domínio público e não a propriedade da parcela, a qual permaneceu na titularidade do Estado, sob a jurisdição da Ré.
O art. 3º, nº1, do Decreto-lei nº 205-G/75, de 16.4., visou garantir a continuidade do património e direitos existentes na esfera das empresas nacionalizadas, pese embora a mudança da titularidade das ações ou quotas para o Estado. Não visou ampliar tal património, o que não colhe o mínimo de expressão em tal diploma.
Não se encontra nos diplomas em causa norma equivalente ao artigo 7º, nº1, al. a), do Decreto-lei nº 662/76, de 4.8., que criou a ENATUR, segundo a qual Serão transferidos para a Enatur e integrados no respetivo património os seguintes bens: a) Imóveis do Estado afectos à exploração de estabelecimentos hoteleiros e similares, salvo no caso de se tratar de monumentos nacionais ou imóveis classificados (sublinhado nosso).
O diploma que criou a EDP limita-se a prever a transmissão dos patrimónios, direitos e obrigações a ele afetos (art. 5º, nº1, al. a)), prevendo que a EDP assumirá os direitos e obrigações derivados de atos ou contratos, praticados ou celebrados pelas empresas nacionalizadas (art. 8º). Inexiste norma que transfira a titularidade da parcela do Estado para a EDP. Conforme se refere pertinentemente no parecer de fls. 1510, «Estes diplomas estabelecem a sucessão nos direitos. Se o que pré-existia, quanto à Parcela, era um direito de utilização, e não de propriedade, o que passou a existir na esfera da nova entidade, após a nacionalização, tem também de ser o direito de utilização, e não a propriedade.»
Se a EDP se arrogasse proprietária da parcela, não teria dirigido à Ré a carta referida no facto 34 (de 28.11.1977) em que pede a regularização das ocupações por título formal de licença… Sendo que, em outubro de 1978, a Ré emitiu licença para ocupação e uso privativo, a título precário, a favor da EDP, o que demonstra que, na interpretação das partes intervenientes, não estava em discussão a natureza de domínio público da parcela. Subsequentemente, dentro da mesma linha coerente de atuação, a Sociedade Portuguesa de Petroquímica pediu à Ré, em 9.2.1979, a cedência da utilização do terreno (factos 36 e 37),vindo a instalar aí uma unidade de produção de plastificantes (facto 38).
O disposto no Decreto-lei nº 346-A/88, de 29.9., não trouxe qualquer inovação relevante. Com efeito, dos seus artigos 1º, 2º e 3º o que resulta é, novamente, a transferência do património já existente na esfera da EDP para a Petroquímica e Gás de Portugal, EP, inexistindo qualquer propósito minimamente expresso de transferir para o património da PGP bens e/ou direitos que não fossem já da EDP. Não resulta de tal diploma qualquer intuito de transferir, para a esfera jurídica da PGP, bens que pertencessem ao domínio público, para o que seria necessária uma formulação similar ao já mencionado Decreto-lei nº 662/76, de 4.8.. A menção aos «terrenos, edifícios e instalações situadas na zona da Matinha» (art. 2º, nº1, al. a), do Decreto-lei nº 346-A/88, de 29.9) explica-se porquanto, logo em 1938, as CRGE adquiriram os terrenos contíguos à parcela sob discussão (facto 3), sendo estes objeto da nacionalização ocorrida em 1975. Tal segmento não pode, de forma alguma, ser lido como implicando uma inclusão de bens do domínio público ou mesmo de terceiros privados na transferência para a titularidade da PGP, em violação da garantia constitucional da propriedade. Mesmo que as plantas anexas ao Decreto-lei nº 346-A/88, de 29.9., incluíssem a parcela sob discussão, tal integraria um erro da planta, tanto mais que a maior parte da parcela (32.700 m2) estava concessionada à Petroquímica desde 1980 (facto 39), não estando a ser utilizada pela EDP.
Note-se que, na sequência da Lei nº 1/82, de 30.9., a definição e o regime dos bens do domínio público constituíam matéria de reserva relativa da Assembleia da República (al. x) do então art. 168º, atual al. v), do nº1, do art. 165º da Constituição). Deste modo, não sendo o Decreto-lei nº 346-A/88, de 29.9., editado ao abrigo de qualquer autorização legislativa da Assembleia da República, a entender-se que o mesmo revertia bens do domínio público para a propriedade de uma empresa pública (o que se rejeita mas constitui tese da apelante), estaríamos perante uma inconstitucionalidade orgânica. Que, aliás, nem há notícia da sua arguição (desnecessária) porquanto quem usufruía da parcela continuou a não questionar a sua natureza de domínio público, o que ocorreu até 2004.
Em suma, o que foi novamente transmitido foi o direito à utilização privativa nos termos em que subsistia, não consubstanciando tal Decreto-lei norma que desafete do domínio público a parcela em causa.
Dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça
Nas suas alegações de recurso, a apelante requereu a reforma da sentença impugnada, pedindo a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça no processo. Argumenta, designadamente, que face ao valor fixado da ação de € 17.200.000, às partes pode ser solicitado o pagamento de taxa de justiça no valor de € 621.486 (cf. artigo 6º, nº7, do RCP e Tabela I-A; fls. 1386).
Pronunciando-se sobre a questão, o tribunal a quo dispensou apenas o pagamento de 70% do remanescente da taxa de justiça (fls. 1445 v.), sendo agora esse despacho a integrar o objeto do recurso (cf. Artigo 617º, nº2, do Código de Processo Civil). Nos termos da decisão da 1ª instância, as partes continuam vinculadas a pagar € 186.446 de taxa de justiça (30%).
Nos termos do Artigo 6º, nº7, do Regulamento das Custas Processuais, «Nas causas de valor superior a € 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerando na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta das partes, dispensar o pagamento
Esta norma teve como antecessora o Artigo 27º, nº3 do CCJ, segundo o qual «Se a especificidade da situação o justificar, pode o juiz de forma fundamentada e atendendo, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento do remanescente.»
Na interpretação desta norma, apelamos ao contributo doutrinário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.10.2009, Márcia Portela, 1179/03, nos termos do qual:
“O Decreto-Lei 324/2003, de 27.12, que introduziu alterações a vários artigos do CCJ, estabeleceu no nº 1 do artigo 27º um teto para o pagamento da taxa de justiça inicial e subsequente - € 250.000,00, fazendo considerar o remanescente na conta final (nº 2), admitindo, porém, a intervenção moderadora do juiz, que, se a especificidade da situação o justificasse, poderia dispensar o remanescente, em decisão fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à atuação processual das partes (nº 3).
Contudo, este diploma também não fornece critérios orientadores para a aferição da complexidade que justifique a dispensa do remanescente.
Diversamente, o Decreto-Lei 34/2008, de 26.02, que introduziu alterações em diversos diplomas, designadamente no CPC, e aprovou o Regulamento das Custas Processuais, introduziu limites máximos nas tabelas anexas, admitindo o agravamento da taxa de justiça em situações de especial complexidade (v. g., artigos 6º, nº 5; 7º, nº 5).
E desta vez não deixou de densificar o conceito de especial complexidade, no novo artigo 447º A, nº 7, CPC, nos termos do qual
«Para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as ações que:
· Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; e
· Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova extremamente complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas».
E no preâmbulo do diploma descortina-se o fundamento deste novo regime. Aí se lê:
«De um modo geral, procurou também adequar-se o valor da taxa de justiça ao tipo de processo em causa e aos custos que, em concreto, cada processo acarreta para o sistema judicial, numa filosofia de justiça distributiva à qual não deve ser imune o sistema de custas processuais, enquanto modelo de financiamento dos tribunais e de repercussão dos custos da justiça nos respetivos utilizadores.
De acordo com as novas tabelas, o valor da taxa de justiça não é fixado com base numa mera correspondência face ao valor da ação. Constatou-se que o valor da ação não é um elemento decisivo na ponderação da complexidade do processo e na geração de custos para o sistema judicial. Pelo que, procurando um aperfeiçoamento da correspetividade da taxa de justiça, estabelece-se agora um sistema misto que assenta no valor da ação, até um certo limite máximo, e na possibilidade de correção da taxa de justiça quando se trate de processos especialmente complexos, independentemente do valor económico atribuído à causa.
Deste modo, quando se trate de processos especiais, procedimentos cautelares ou outro tipo de incidentes, o valor da taxa de justiça deixa de fixar-se em função do valor da ação, passando a adequar-se à efetiva complexidade do procedimento respetivo».
À falta de outros critérios, e por forma a obviar ao subjetivismo e à arbitrariedade, podemos considerar os critérios aferidores da complexidade estabelecidos pelo Decreto-Lei 34/2008, de 26.02, com a advertência de que não se trata de aplicar retroativamente a nova legislação, mas tão só lançar mão da mais recente valoração do legislador nesta matéria e equacionar a problemática da complexidade dos autos em apreço à luz desses parâmetros.”
Já na vigência do atual Regulamento das Custas Processuais, o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 421/2013 de 15.7.2013, Fernandes Cadilha, pronunciou-se no sentido de que: são “inconstitucionais, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição, as normas contidas nos artigos 6.º e 11.º, conjugadas com a tabela I-A anexa, do Regulamento das Custas Processuais, na redação introduzida pelo DL 52/2011, de 13 de abril, quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título”.
Atualmente, os parâmetros aferidores da complexidade das ações estão consignados no Artigo 530º, nº7, do Código de Processo Civil, segundo o qual se consideram de especial complexidade as ações que: contenham articulados ou alegações prolixas; digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.  
Afirma Salvador da Costa, As Custas Processuais, 2017, 6ª edição, p. 134, que «A referência à complexidade da causa e à conduta processual das partes significa, em concreto, por um lado, a sua menor complexidade ou maior simplicidade, e, por outro, a atitude das partes na prática dos atos processuais necessários à correta decisão da causa, isto é, margem de afirmações ou alegações de índole dilatória.»
No caso em apreço, a petição inicial teve 193 artigos, sendo juntos 16 documentos. A contestação da APL teve 623 artigos, sendo juntos 62 documentos. A contestação do interveniente Estado Português teve 88 artigos, sendo juntos 12 documentos. Foram realizadas três sessões de julgamento com inquirição de oito testemunhas (fls. 1271, 1357-1358, 1360-1363).
A matéria objeto de apreciação é de assinalável complexidade jurídica porquanto abarca a análise e interpretação de diversos diplomas legais publicados desde 1934 até à atualidade. A complexidade das questões técnicas a apreciar está demonstrada, ipso facto, pela singela circunstância de terem sido juntos cinco pareceres de professores universitários após a prolação da decisão da primeira instância. 
Assim sendo, considerando os princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade bem como o disposto no Artigo 6º, nº7, do RCP, entendemos que o recurso neste segmento deve ser julgado parcialmente procedente, sendo dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça na proporção de 80%.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, isentando-se as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça na proporção de 80% (na primeira e segunda instância) e, no mais, mantém-se a decisão de improcedência da ação proferida na primeira instância.
Custas pela apelante e pela apelada, na vertente de custas de parte, na proporção de 99,31% para a apelante e 0,69% para a apelada (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 11.7.2019

Luís Filipe Sousa
Carla Câmara
Higina Castelo
Decisão Texto Integral: