Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
318/21.9PGCSC.L1-5
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: COMPETÊNCIA DA POLÍCIA MUNICIPAL
ORGÃOS DE POLÍCIA CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – Está vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal. Não podendo duvidar-se que a recolha de prova pericial em ordem à perseguição criminal de pessoa que conduz sob influência do álcool está incluída no exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, falta-lhes, porém, competência para determinar ao arguido a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


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I–RELATÓRIO:


1.–No Juízo Local de Pequena Criminalidade de Cascais, o arguido BC, com os demais sinais dos autos, foi submetido a julgamento em processo especial sumário, sob acusação do Ministério Público, que lhe imputou a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.

2.–Por sentença de 14 de julho de 2021, foi decidido:
“Tudo visto e ponderado julga-se a acusação improcedente por não provada e, em consequência, absolve-se o arguido BC  da prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido nos termos do nº 1 do artigo 292º do Código Penal.
Sem custas, por não serem devidas.

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Após trânsito:
- Comunique ao Digníssimo Magistrado do MP que integra o Conselho de Segurança Municipal, para os efeitos tidos por convenientes.
- Comunique ao Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de Cascais, de cuja dependência hierárquica depende o serviço de POLMUN.”

3.–Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o Ministério Público, pedindo que a sentença recorrida seja substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de que vinha acusado:”
Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
1.-A sentença recorrida absolveu o arguido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.°, n.°1 do Código Penal, de que estava acusado.
2.-O Tribunal a quo absolveu o arguido porquanto considerou que o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, realizado pela Polícia Municipal, constitui uma prova proibida em processo penal, em violação do disposto no art.  126.°, n.° 1, 2 al. b) e c) do CPP.
3.-Efectivamente, na sentença posta em crise, a Mmª Juiz a quo considerou que a Polícia Municipal, que “não é força de segurança e muito menos órgão de polícia criminal”, ao ter realizado o teste quantitativo para pesquisa de álcool no sangue, ao abrigo da manutenção de uma detenção ilegal, agiu fora do âmbito das suas competências, regulamentadas na Lei n° 19/2004, de 20 de Maio.
4.-A detenção por parte das Polícias Municipais tem sempre como pressuposto a ocorrência de um crime público ou semi-público, punível com pena de prisão e em situação de flagrante delito.
5.-No caso dos autos, Agentes da Polícia Municipal presenciaram, no exercício das suas funções, o arguido a conduzir um veículo automóvel numa via pública e solicitaram-lhe que realizasse o teste qualitativo de álcool no sangue.
6.-O arguido acusou, então, uma TAS superior à legalmente permitida, o que integra uma situação de flagrante delito, ou, pelo menos, de uma forte suspeita da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, crime este que, em abstracto, é punível com pena de prisão e que se enquadra, enquanto crime rodoviário, nas funções de fiscalização da circulação rodoviária, o que legitima os Agentes da Polícia Municipal a efectuarem detenções, a coberto das disposições legais acima invocadas.
7.-Nesta situação, qual a actuação seguinte que deveria tomar a Polícia Municipal? Conduzir o condutor às Instalações da PM e realizar o necessário teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue. Só depois deste teste quantitativo, é que obtém prova segura de que o visado conduz com uma taxa de álcool superior à legalmente admitida- e qual a concreta taxa-, pelo que só neste momento é que o Agente da Polícia Municipal pode elaborar o competente auto de notícia e deter o infractor em flagrante delito. Este é o entendimento perfilhado pelo Ministério Público da Comarca de Cascais,
Ou,
8.-Conduzir, no imediato, o condutor ao Posto da GNR ou à Esquadra da PSP com jurisdição na área de detecção do ilícito ou, em alternativa, contactar aquela força de segurança para que pudesse entregá-lo no imediato, dando conta, da verificação de flagrante delito da prática de condução em estado de embriaguez. Este é o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo.
9.-A situação em apreço foi já analisada detalhadamente pelo Tribunal da Relação de Lisboa no douto Acórdão de 29 de Julho de 2020, proferido no processo n.° 34/20.9PBCSC.L1, do Juízo de Pequena Criminalidade de Cascais.
10.-Do mesmo modo, foi analisada, mais recentemente, pelo Tribunal da Relação de Lisboa no douto Acórdão de 5 de Maio de 2021, proferido no processo n.° 395/20.5PDCSC.L1, do Juízo de Pequena Criminalidade de Cascais.
11.-Diga-se que não desconhecemos que o mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu douto Acórdão de 8 de Julho de 2020, proferido no processo n.° 86/20.1PBCSC-L1, do Juízo de Pequena Criminalidade de Cascais e, bem assim, no douto Acórdão de 24 de Março de 2021, proferido no processo n° 244/20.9PCCSC, pugnou pelo entendimento seguido na sentença recorrida, embora, neste último, com voto vencido.
12.-Contudo, aderimos aos fundamentos explanados no douto Acórdão de 29 de Julho de 2020, proferido no processo n.° 34/20.9PBCSC.L1, do Juízo de Pequena Criminalidade de Cascais, que, desde já, citamos: “o artigo 4° n° 1 alínea e) da Lei n.° 19/2004, incluí entre as competências próprias da polícia municipal, a detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal. Pese embora não deva usar do prazo de 48 horas previsto no art. 254° n° 1 al. a) do CPP, a alusão a entrega imediata reforça a necessidade de o detido ser entregue com urgência, no mais curto espaço de tempo possível, mas é compatível com a elaboração do auto de notícia pela polícia municipal, o qual não prescinde da realização prévia do teste quantitativo do álcool e, uma vez realizado este e obtida uma TAS superior a 1,20 gr/litro está perfeitamente consolidado o flagrante delito”.
13.-Assim sendo, o Ministério Público considera que a Polícia Municipal tem competência para a realização do teste quantitativo, não podendo este ser considerada prova proibida, nos termos do art.126° do C.P.P., estando em causa a violação de tal preceito legal.
14.-Pelo exposto, a sentença recorrida deve ser substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de que vinha acusado.”.

4.–O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.

5.–O arguido não apresentou resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público.

6.–Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, secundando a motivação e conclusões do recurso, apresentou parecer com o seguinte teor:
“Vem interposto Recurso, pelo MºPº, da douta sentença absolutória que se fundamentou na existência de prova proibida, recolhida por entidade materialmente incompetente, dissentindo a Srª PR recorrente, na sua muito profícua peça processual, dos motivos (estritamente jurídicos) em que se ancorou a absolvição.
Acompanhamos a Exmª Magistrada nos seus esclarecedores e convincentes argumentos recursórios, aliás na senda de igual Parecer que emitimos noutra recente e análoga situação.
Na verdade, apesar de coincidirmos na natureza específica da Polícia Municipal (PM), enquanto serviços municipais, que não forças de segurança ou OPCs, não podemos deixar de notar que àquela sempre são concedidos poderes de autoridade -na circunscrição territorial/Município respectivos-, como flui do art 1º, da Lei regulamentadora da Lei Quadro que define o regime e competência das Polícias Municipais (L 19/04, 20.05).
Poderes esses que se traduzem, nomeadamente, e para o que ora releva, na capacidade de actuação sobre o trânsito rodoviário (art 3º, 2, e), L 19/04), regulando-o e fiscalizando-o, aqui se inserindo, pacificamente, o procedimentos de pesquisa de álcool no sangue durante a condução automóvel (art 153º, C.Estrada).
O “nó górdio” com que nos confrontamos, nesta hipótese a sindicar, radica na aludida (in) competência da Polícia Municipal para deter um condutor, pretensamente com taxa de álcool proibida (segundo o teste inicial de despistagem, qualitativo), submetendo-o a outro, mais fiável e decisivo (quantitativo, com aparelho analisador e regulamentar de ar expirado), para confirmação de infracção e também da sua natureza (criminal ou contra-ordencional: arts 292º,1, CP, e 145º, 1, l), CE).
Ora, do regime aplicável, que delimita o âmbito e forma de actuação funcional, constata-se que podem e devem esses agentes municipais lavrar autos de notícia, de condução e de detenção, bem como actos de inquérito, mesmo em domínio criminal, sem embargo de lhes competir apresentar o infractor/arguido perante a autoridade judiciária ou OPC competentes, no mais curto prazo compatível, em caso de flagrante delito (arts 3º, 3 e 4 , e 4º, 1,e), L 19/09, 20.05).
Justamente, na situação “sub judice”, para caracterizar o flagrante como ilícito contra-ordenacional ou criminal, ou seja, para habilitar à libertação, detenção e entrega subsequentes, careciam os agentes de sujeitar o condutor ao teste de pesquisa quantitativo de álcool, mais a mais sabendo-se dos curtos prazos para esses procedimentos (art 153º,CE), impondo-se-lhes, claramente, a prática de actos cautelares de polícia, tendentes ao acautelamento da prova (art 249º, CPP), o que, imaculadamente, afigura-se-nos, cumpriram.
Só após esse “iter” policial poderiam os agentes apurar a tipologia indiciada, e, assim, decidir o encaminhamento processual devido, o que bem fizeram.
Nesta esteira, já este Tribunal Superior se pronunciou, validando a actuação da PM, em caso de contornos perfeitamente coincidentes, excluindo a ilegalidade da detenção e a proibição da prova (teste quantitativo), antes reputando idêntica sentença absolutória inquinada de contradição entre a factualidade provada e a decisão final (art 410º,2, b), CPP) e afectada de erro notório na sua génese (art 410º,2, c), CPP).
Como bem enfatiza a Srª Magistrada do MºPº na 1ª Instância, também o Parecer do CC de 8.05.08 acresce razão ao Recurso, pronunciando-se pela legitimação da actuação da PM, neste domínio, estradal, autorizando a utilização da prova pericial/técnica recolhida.
Donde que, remetendo para a fundamentação invocada, subscrevamos a necessidade de inversão do sentido decisório.”.

7.–Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.

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II–QUESTÕES A DECIDIR.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt,no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença final absolutória proferida nos autos –, a questão a examinar e decidir prende-se com a questão de saber se é válida a prova produzida e recolhida pela Polícia Municipal no que respeita ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue e, consequentemente, se o Tribunal a quo deveria ter dado como provados os factos que foram dados como não provados.

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III–TRANSCRIÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA.
 
Da decisão recorrida consta o seguinte:
“(…)
O Ministério Público, em processo sumário, com intervenção deste Tribunal, acusa:
BC,
melhor identificado no TIR prestado a fls. 7;
Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.°, n.° 1 conjugado com o art. 69.°, n.° 1 al. a) ambos do Código Penal.

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O Tribunal é competente.

O Ministério Público detém legitimidade para o exercício da acção penal.

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Suscita-se-nos questão relacionada com a susceptibilidade de actuação do Serviço Municipal de Polícia neste domínio e, bem assim, das suas consequências, quer por violação de Direitos, Liberdades e Garantias do cidadão, quer em razão de proibição (de valoração) de prova cujo substracto factual, em virtude de estar reportado a factos contraditados, se difere para a fundamentação fáctico conclusiva respectiva.

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Procedeu-se a julgamento com observância das legais formalidades.

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Factualidade

Factos Provados

Da produção de prova e discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1.–No dia 01-07-2021, pelas 04h10 horas, na estrada nacional 6-7, em São Domingos de Rana, o arguido conduzia o automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula 54... .
2.–Interceptado pela Polícia Municipal de Cascais foi determinado ao arguido a realização de teste de álcool através do analisador do ar expirado (de despiste qualitativo), tendo o mesmo dado o resultado aproximado de 1,50 g/l de sangue;
3.–Acto contínuo, os Agentes da Polícia Municipal determinaram ao arguido que os acompanhasse no “carro de patrulha” da Polícia Municipal de Cascais;
4.–Dirigiram-se com ele até ao Departamento de Polícia onde foi realizado o teste de pesquisa de álcool no sangue através do analisador do ar expirado (aparelho quantitativo).
5.–Consta junto aos autos, Auto denominado “de notícia por detenção”, exarado no Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
6.–Consta também, e igualmente da lavra do Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização, “notificação”, a fls. 14 dos autos, da qual resulta, entre os mais, a indicação de que o cidadão foi notificado de que poderia realizar a “contra-prova” relativamente ao exame quantitativo realizado e de que o mesmo havia prescindido da sua realização.
7.–O aludido escrito está subscrito pelo aqui arguido e pelo agente autuante.
8.–Consta dos autos, “auto de notícia por detenção”, a fls. 4 e seg., desta feita da lavra da PSP na Divisão Policial de Cascais: “Data/hora: 01.07.2021; 06h09 (...)
Na qualidade de graduado de serviço, compareceram perante mim os elementos da Polícia Municipal, (...) a fazer a entrega sob detenção do ora arguido (...) .
9.–Constam averbadas no certificado de registo criminal do arguido as seguintes condenações:
a)-Pela prática de crime de consumo de estupefacientes na pena de 40 dias, à razão diária de € 6,00, no montante global de € 240, por sentença transitada em 30.11.2011.
b)-Pela prática de crime de condução sem habilitação legal na pena de 20 dias, à razão diária de € 5,00, no montante global de € 100, por sentença transitada em 17.05.2012.
c)-Pela prática de crime de consumo de estupefacientes na pena de 120 dias, à razão diária de € 5,00, no montante global de € 600, por sentença transitada em 07.03.2013.
d)-Pela prática de crime de detenção de arma proibida e de tráfico de estupefacientes, na pena de 190 dias de multa, à razão diária de € 5,00, no montante global de € 950 e na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, por sentença transitada em julgado em 26.02.2018.
10.–O arguido encontra-se a desempregado, embora empreenda biscates na construção civil, auferindo diariamente cerca de € 40,00.
11.–Reside com a sua avó na casa desta, após separação recente da sua namorada, com quem vivia em união de facto.

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Factos Não Provados

a)-No circunstancialismo descrito em 1., com uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,86 g/l, correspondente a 1,71 g/l, deduzido o erro máximo admissível.
b)-O arguido conhecia as características do veículo e do local onde conduzia, agindo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que não podia conduzir veículo na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas.
c)-Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

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Motivação da matéria de Facto

Para decidir da factualidade tal como acima consta fixada, baseou-se o Tribunal na prova testemunhal produzida, de acordo com o prescrito nos art. 128.' a 130.' e 348.' do CPP e ainda na prova documental junta aos autos, ao abrigo do art. 340.' e por referência aos art. 164.' e 165.' do CPP, tudo, como se verá adiante, através da análise crítica e conjugada dos meios de prova ao alcance do Tribunal, com vista à descoberta da verdade material e em abono da livre apreciação daquela, mediante parâmetros objectiváveis e motiváveis (art. 127.' do CPP) e fazendo jus aos princípios constitucionais e às regras processuais que norteiam a produção e valoração de prova em direito processual penal.
Observemos em pormenor.
O arguido, querendo, contou ao Tribunal que tinha estado a beber e colocou-se na condução após o que foi abordado pelos agentes da POLMUN (Polícia Municipal de Cascais). Determinaram-lhe então a realização do teste de despiste de álcool no sangue e como acusou resultado de taxa crime, determinaram-lhe então que os acompanhasse às instalações policiais, ao que o mesmo anuiu na convicção de ter de cumprir tal ordem.
O mesmo acompanhou-os sem qualquer resistência, denotou que não lhe deram qualquer alternativa e como se tratava de uma autoridade acatou todas as ordens que lhe deram.
Já no Departamento Municipal o arguido aguardou e realizou o teste quantitativo. Ali esperou que elaborassem todo o expediente e por lhe terem dito que teria de esperar sentado, ficou. Informaram-no da possibilidade de realização da contra-prova, do que o mesmo prescindiu.
Tornou a acompanhar os agentes até à Divisão da PSP de Cascais.
Mostrou-se arrependido da sua conduta.
Deu ainda conhecimento ao Tribunal das suas condições socio-económicas.
Observou-se também o teor da prova documental junta ao processado,
conjugada com as declarações prestadas pela agente autuante João Carvalho, nomeadamente os autos lavrados pela POLMUN e aqueles constantes do expediente preenchido pela PSP na decorrência da entrega do (então) cidadão detido.
Foi por essa via que se observou que a condução teria ocorrido em momento temporal anterior pelas 04h00 como fixado na factualidade assente, bem como que todo o expediente substancial, bem como a recolha de prova (realização do teste pericial, termos e cominação da possibilidade de realização da contra-prova) havia decorrido por conta dos agentes administrativos e sem a intervenção ou sequer testemunho dos agentes de segurança pública/PSP onde o arguido só veio a ser “entregue” para efeito de constituição formal de arguido e tomada de TIR.
Acrescentou ainda o agente da POLMUN que actuam nos precisos termos em que lhes são determinados pelas chefias e que se limitam a cumprir as suas determinações e orientações, daí que os cidadãos, mesmo quando no teste indiciário acusam “taxa crime”, sejam conduzidos veementemente no carro patrulha da POLMUN, em marcha de urgência e com destino ao Departamento Municipal em detrimento de serem entregues ao OPC competente do local da intercepção (no caso a PSP de Trajouce), o que apenas vem a ocorrer ulteriormente e já não na força de segurança pública do local da ocorrência, nem tão pouco para instrução do processo, mas sempre na Esquadra de Fiscalização de Cascais e apenas para preenchimento da documentação administrativa que segundo orientações superiores os agentes administrativos não podem apresentar ao cidadão Ç!).

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Referencia-se desde já e rigorosamente que o tipo de ilícito de que o arguido se encontra acusado (crime de mera actividade) se consuma no momento da constatação da condução sob efeito de taxa de alcoolemia proibida (indiciada directa e imediatamente no local da alegada infracção, pelo resultado do teste de despiste de álcool no sangue) e não quando o arguido realiza o teste quantitativo, cujo fundamento e finalidade é precisamente o de obter, através de exame pericial, prova judiciariamente vinculada e subtraída à cognição do Tribunal.
Na realidade, o teste de despiste, não acusa tão-só “positivo” ou “negativo”, indicia justamente uma taxa concreta, e é precisamente por isso que legitima (ou não) a realização de ulterior recolha de prova da infracção nos termos legalmente exigíveis (por órgão competente) para o efeito, tal como subsequentemente apreciaremos.

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A existência de antecedentes criminais está provada atento o teor do certificado de registo criminal do arguido.

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Tal como adiantado na análise dos pressupostos de regularidade da instância, afigura-se-nos necessária uma consideração relativa à (forma de) actuação da Polícia Municipal de Cascais na fiscalização perpectrada.
A pronúncia em causa pode sumariar-se da seguinte forma:
a)-Das medidas de Polícia e da sua conformação constitucional;
b)-Dos procedimentos de fiscalização da Polícia Municipal (POLMUN),
c)-Da fiscalização da condução sob o efeito de álcool pela POLMUN, em especial;
d)-Da detenção em flagrante delito e das obrigações imediatas e inerentes à mesma por banda da polícia administrativa;
e)-Das medidas cautelares ou da recolha de meios de prova; e finalmente,
f)-Das consequências legais da actuação da POLMUN.

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a)-Das medidas de Polícia e da sua conformação constitucional.

Prescreve a Constituição da República, para o que releva:

Artigo 237.º
(Descentralização administrativa)
1.–As atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos
seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa.
(...)3.–As polícias municipais cooperam na manutenção da tranquilidade pública e na
protecção das comunidades locais.
(...)

Artigo 266.º
(Princípios fundamentais)
1.–A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
2.–Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.

Artigo 272.º
(Polícia)
1.–A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.
2.– As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário.
3.–A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
4.–A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional. [sublinhados nossos]

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Considerando o teor dos preceitos constitucionais citados e acompanhando a doutrina pacífica na matéria, o conceito de polícia, tal qual fixado por Marcello Caetano surge como o modo de actuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objecto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir (Manual de Direito Administrativo,Tomo I, 10.ª Ed., reimpressão, Almedina, Coimbra, 1980, p. 1150).
Paradigmaticamente, tendem a distinguir-se, em sentido funcional (aquele que realmente importa ao caso), entre polícia administrativa e polícia judiciária.
À última cabe essencialmente a investigação dos delitos, a reunião das provas e a entrega dos suspeitos aos tribunais encarregados de os punir e à polícia administrativa incumbe a manutenção habitual da ordem pública em toda a parte e em todos os sectores da administração geral. (Sérvulo Correia (1994) Polícia, Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. VI, Lisboa, p. 405)
Por sua vez, e em razão do conjunto de autoridades desta índole, a “polícia administrativa” subdivide-se entre polícia administrativa geral e polícia administrativa especial.
Por norma, a polícia administrativa geral destina-se a garantir a ordem pública, e, por sua vez, a polícia administrativa especial tem por objecto a prevenção num determinado sector da vida social - do sanitário ao ambiental.
A doutrina administrativa portuguesa considera que a polícia administrativa visa predominantemente fins de segurança genérica, pelo que associa o conceito de polícia administrativa geral com a noção de polícia de segurança. Nessa ordem de ideias, a actividade administrativa de polícia geral está “associada entre nós à polícia de segurança(Paulo Daniel Peres Cavaco (2003) A Polícia no Direito Português, Hoje, Estudos de Direito de Polícia, 1.° Vol., Seminário de Direito Administrativo de 2001/2002, Reg. Jorge Miranda, AAFDL, Lisboa, p. 84)

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No seguimento do pensamento dos autores já citados, que acompanhamos de perto, enquanto a polícia administrativa especial se baseia no exercício de competências especializadas em razão da matéria, em que o estado intervém nos diversos domínios (municipal, fiscal, de estrangeiros e fronteiras, florestal, ambiente, segurança alimentar, etc.) a polícia administrativa geral prossegue, predominantemente, os fins de segurança pública, fins esses de carácter geral, e que, ao visá-los, pretende proteger a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas (assim, Sérvulo Correia (1994) Medidas de Polícia e Legalidade Administrativa, Polícia Portuguesa, Ano LVIII, n.° 87, Maio/Junho, p. 2).
Posto o primeiro enquadramento podemos desde já concluir que a POLMUN consubstancia corpo de polícia administrativa especial, limitada geograficamente à área do município e materialmente à cooperação na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais, cuja actuação dos respectivos agentes está subordinada à constituição e pela lei, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. (cfr. art. 237.°, n.° 3 e 266.° da CRP)
Assim, operacionalizando-o, o supra citado art. 272.°, n.° 2 da CRP, estabelece prontamente que as medidas de polícia estão sujeitas ao princípio da tipicidade e da proibição do excesso, remetendo-nos para o conceito de proporcionalidade estrita ou da justa medida da actuação:
O princípio da proibição do excesso significa que as medidas de polícia devem obedecer aos requisitos da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade. Trata-se de reafirmar, de forma enfática, o princípio constitucional fundamental em matéria de actos públicos potencialmente lesivos de direitos fundamentais e que consiste em que eles só devem ir até onde seja imprescindível para assegurar o interesse público em causa, sacrificando no mínimo os direitos dos cidadãos (Gomes Canotilho e Vital Moreira (1993) Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. Coimbra Editora, Vol. II, p. 955).
Consequentemente, inexiste legitimidade, em nosso entendimento, para que a polícia (leia-se, qualquer corpo ou departamento de polícia) restrinja, por sua emanação própria (seja corporizado em eventual regulamento, norma de execução permanente, orientação procedimental, diretriz ou até num mero acto policial), direitos fundamentais, tais como a liberdade de decisão ou de determinação ou quaisquer outros direitos pessoais, sob pena de violação do princípio da legalidade da sua actuação e da tipicidade nas medidas de que pode(m) lançar mão:
A expressa tipicidade legal das medidas de polícia significa que as entidades com poderes de polícia estão proibidas, sem consentimento legal, de conformar e concretizar os direitos liberdades e garantias, especificando limites implícitos a esses direitos, sem consentimento da lei, mesmo executando directamente a Constituição. (Pedro Lomba (2003) Sobre a Teoria das Medidas de Polícia Administrativa, Estudos de Direito de Polícia (coord. Jorge Miranda) AAFDL, Vol. I, p. 198)
No fundo, o legislador constitucional reconheceu, geneticamente, a necessidade de impor limites próprios ao exercício de poderes de polícia, que por natureza e finalidade são aptos à possibilidade de se manifestar sob a forma de coacção directa (física ou persuasiva).
Tais limites, transpostos para o caso que apreciamos, podem sumariar-se, consoante se verá adiante, numa vinculação quanto à competência cometida a cada órgão de polícia (administrativa ou judiciária), aos fins (de cooperação na manutenção da tranquilidade pública ou de garantia da segurança interna), e aos modos de actuar (consoante as medidas atributivas de cada polícia, administrativa ou judiciária), e sumariar-se na convicção de que vivemos num Estado de Direito e não num Estado de Polícia.

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É precisamente atenta a aptidão originária e finalística das medidas de polícia para brigarem com direitos, liberdades e garantias (designadamente, a liberdade nas suas múltiplas vertentes) ou outros direitos constitucionais análogos (como o direito a uma polícia que actue de acordo com padrões de legalidade constitucional na salvaguarda dos direitos dos cidadãos) que se defende:
Uma actividade que se traduz eminentemente na susceptibilidade de recurso à força física deve encontrar desde logo o seu fundamento na Constituição (artigo 272.°, n.° 2, 1.ª parte). Num Estado que erige como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana (artigo 1.° Constituição), que no catálogo de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados contempla os direitos à vida, à integridade física e psíquica (artigo 25.°, n.° 1 e 2 da Constituição), à liberdade e à segurança (artigo 27.°, n.° 1 da Constituição), que impõe a reserva de lei restritiva, o carácter restritivo das restrições (artigo 18.°, n.° 2 da Constituição) e o respeito pelo conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.°, n.° 3) da Constituição), a utilização da violência física sobre os cidadãos deve ser objecto de autorização legal formal expressa, não valendo qualquer presunção de protecção da ordem e segurança públicas. A vinculação à lei visa garantir que a polícia seja um elemento de preservação da liberdade, e não uma fonte de opressão. (Carla Amado Gomes (1999) Contributo Para o Estudo das operações materiais da administração pública e do seu controlo jurisdicional, Coimbra Ed., p. 164 a 166)
Em consonância, o direito a uma polícia que actue num quadro de legalidade estrita consubstancia, pois, um direito fundamental, análogo aos direitos, liberdades e garantias e, por isso, sujeito a tal regime jurídico, prescrito e directamente aplicável, nos termos conjugados do disposto nos art. 266.°, 272.°, 17.° e 18.° da CRP, cuja violação importa a radicalidade da nulidade absoluta de qualquer actuação a desrespeito do prescrito no Tit. II da parte (I) relativa aos Direitos e Deveres Fundamentais na Constituição da República:
A relevância dos direitos fundamentais para a actividade de polícia manifesta-se, desde logo, na aplicabilidade directa e na vinculação de todas as entidades públicas aos direitos liberdades e garantias (artigo 18.º da Constituição), bem como na consagração ampla do direito de resistência contra quaisquer actos de poderes públicos que afrontem ilegitimamente os direitos individuais (artigo 21.° da Constituição). Tal adstrição atinge não só o legislador a quem cabe elaborar as normas de polícia mas também a própria actividade de polícia administrativa (Pedro Lomba (2003) Sobre a Teoria das Medidas de Polícia Administrativa, Estudos de Direito de Polícia (coord. Jorge Miranda) AAFDL, Vol. I, p. 197).
A circunstância tem incidência óbvia na concretização prática das garantias do arguido em processo penal (desde a sua instauração, note-se), e por referência ao preceituado especificamente no n.° 8 do art. 32.° da CRP de cuja doutrina que adoptamos partilhamos desde já:
[Embora o art. 32.° da CRP constitua] um preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explícitas nos números, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos do arguido em processo criminal. Em “todas as garantias de defesa” engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (...) Este preceito pode, portanto, se fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma, a “orientação para a defesa” do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 516)
Releve-se, pois, que não são apenas as pessoas, os indivíduos, cidadãos comuns que por via constitucional, sofrem limitações na sua liberdade. Também o próprio Estado, e por inerência os seus órgãos, são limitados pelas normas constitucionais. E as grandes limitações à actuação da máquina do Estado, são precisamente, os direitos, liberdades e garantias de que são tributários os seu cidadãos, todos os cidadãos, desde o recém-nascido ao idoso, da vítima ao suspeito da prática de crime.

Observemos então, neste enquadramento constitucional, a sua concretização legal:

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b)-Procedimentos de fiscalização da Polícia Municipal (POLMUN)
A actuação daquela polícia administrativa é a regulada diante da Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio, com as alterações decorrentes da lei n.° 50/2019, de 24 de Julho.

Para o que releva, ali se dispõe:

Artigo 3.° Funções de Polícia
1-As polícias municipais exercem funções de polícia administrativa dos respectivos municípios, prioritariamente nos seguintes domínios:
a)- Fiscalização do cumprimento das normas regulamentares municipais;
b)- Fiscalização do cumprimento das normas de âmbito nacional ou regional cuja competência de aplicação ou de fiscalização caiba ao município; (...)
2- As polícias municipais exercem, ainda, funções nos seguintes domínios: (...)
e)- Regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal.
3- Para os efeitos referidos no n.° 1, os órgãos de polícia municipal têm competência para o levantamento de auto ou o desenvolvimento de inquérito por ilícito de mera ordenação social, de transgressão ou criminal por factos estritamente conexos com violação de lei ou recusa da prática de acto legalmente devido no âmbito das relações administrativas.
4- Quando, por efeito do exercício dos poderes de autoridade previstos nos n.° 1 e 2, os órgãos de polícia municipal directamente verifiquem o cometimento de qualquer crime podem proceder à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como à sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente.
5- Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.
(sublinhados nossos)

Acrescenta ainda o art. 4.º, sob epígrafe Competências:
1- As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de: (...)
b)- Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal;
e)- Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de  crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual  penal;
f)-Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares  necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;
g)- Elaboração dos autos de notícia, autos de contra-ordenação ou transgressão por infracções às normas referidas no artigo 3.º;
(sublinhados nossos)

Finalmente e no que concerne a Poderes de Autoridade, disciplina o art. 14.º:
1- Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos que tenham sido regularmente comunicados e emanados do agente de polícia municipal será punido com a pena prevista para o crime de desobediência.
2- Quando necessário ao exercício das suas funções de fiscalização ou para a elaboração de  autos para que são competentes, os agentes de polícia municipal podem identificar os infractores, bem como solicitar a apresentação de documentos de identificação necessários à acção de fiscalização, nos termos da lei-

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Em suma, a regulação vigente que enquadra a actuação, funções, competências e poderes das Polícias Municipais (POLMUN) distingue de forma cristalina (no art. 3.° do dispositivo normativo acima indicado) entre competências próprias e competências complementares com as forças de segurança nacionais (entre as quais GNR e PSP).
Cabe desde já recordar que a lei empreende um claro esforço na distinção entre a Polícia Municipal e as forças de segurança, sendo um desses exemplos o disposto no artigo 7.° quanto ao modelo de uniforme. Assim, segundo o n.° 1, o uniforme do pessoal das polícias municipais é único para todo o território nacional, devendo ser concebido de forma a não só permitir a sua identificação enquanto tal, mas também a distingui-los dos agentes das forças de segurança. O mesmo quanto aos distintivos heráldicos e gráficos (cf. Artigo 7.°, n.° 2).
Este mesmo intuito de clara distinção entre Polícia Municipal e as forças de segurança está ainda expresso no artigo 19.° da mesma lei onde se estatui que as denominações das categorias que integrarem a carreira dos agentes da polícia municipal não podem, em caso algum, ser iguais ou semelhantes às adoptadas pelas forças de segurança.
Resulta, assim, evidente que o legislador não quis que as Polícias Municipais fossem equiparadas às forças de segurança, querendo manifestamente restringir a sua actuação em situações muito específicas, visando afastar expressamente a actuação da mesma nas vestes de polícia de segurança ou judiciária.
Por fim, refira-se o disposto no artigo 16.° da Lei n.° 19/2004, de 20/05, onde se determina que os agentes de polícia municipal só podem usar os meios coercivos previstos na lei que tenham sido superiormente colocados à sua disposição, na estrita medida das necessidades decorrentes do exercício das suas funções, da sua legítima defesa ou de terceiros.
E ainda, quando o interesse público determinar a indispensabilidade do uso de meios coercivos não autorizados ou não disponíveis para a polícia municipal, os agentes devem solicitar a intervenção das forças de segurança territorialmente competentes.
Adiante-se pelo exposto que, por referência ao prescrito na Lei n.° 53/2008, de 29 de Agosto, com as devidas actualizações legais, a POLMUN não integra as forças nem os serviços de segurança (vide art. 25.° do diploma) não sendo, por isso, passível de considerar-se que as medidas gerais e especiais de polícia (art. 28.° e seg.) integradas nesta Lei de Segurança Interna constituam, no que à POLMUN diz respeito, normas atributivas de competências.
(No mesmo sentido e com análoga conclusão Catarina Sarmento e Castro (2003) A questão das Polícias Municipais, Coimbra Ed., p. 334)
Estabelece (a Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio), no que concerne à aplicação, execução e fiscalização de normas municipais ou cuja fiscalização de cumprimento está deferida aos municípios um conjunto de poderes, abrangentes e adequados a permitir, num quadro amplo e proporcionado, que a polícia administrativa em causa exerça as funções que lhe estão cometidas por lei (art. 3.°, n.° 1 al. a) e n.° 3).
Trata-se fundamentalmente de matérias de ambiente, urbanismo, tratamento de resíduos, etc.
Neste quadro legal, permite-se que a POLMUN elabore autos, instrua procedimentos administrativos, exija o cumprimento de posturas e decisões municipais e, se necessário, imponha a identificação coerciva dos agentes das infracções (de natureza administrativa), sendo com a inerente cominação de que o incumprimento das suas determinações pode implicar a prática de crime de desobediência (art. 14.°).
A polícia municipal consiste num serviço municipal de polícia e nunca num serviço desconcentrado da Administração Pública Central (...)
Por imperativo constitucional, a promoção da segurança interna incumbe tão-somente às forças e serviços de Segurança, cujo universo não inclui os serviços municipais de polícia; certamente, “as polícias municipais não são forças de segurança.”
De facto, a prossecução das atribuições dos municípios em matéria de polícia administrativa faz-se sem prejuízo do previsto na Lei de Segurança Interna e nos estatutos das forças de segurança. (...)
(Pedro Clemente (2010) Polícia e Segurança – Breves Notas, Lusíada Rev. Política Internacional e Segurança, n.' 4, Lisboa, p. 159-160)
Já no domínio da cooperação com as forças de segurança, na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais desenvolvem as acções taxativamente elencadas no art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 19/2004, numa densificação do previsto no art. 237.º, n.º 3 da CRP.
Em consonância, e como medidas de polícia que lhes estão cometidas, podem identificar e revistar suspeitos, adoptar medidas cautelares de polícia (no local do cometimento do ilícito) e proceder à detenção em flagrante delito por crime a que corresponda a aplicação de pena de prisão, devendo entregar no imediato o cidadão dedito ao OPC (órgão de polícia criminal) competente.
Aliás, o exercício das funções neste âmbito surge clara e expressamente limitado pelo preceito correspondente que dispõe:
Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, isto é, da identificação e da revista (de segurança), é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.
Mais se acrescentando mesmo que não podem as POLMUN tomar conta de acidentes de viação que envolvam eventual procedimento criminal.
A matéria encontra-se cabalmente analisada no Parecer da PGR, n.º convencional 2971, homologado em 23.06.2008.
De onde citamos apenas que as polícias municipais são, de acordo com o disposto no artigo 1.°, n.° 1, da Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio, serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa no espaço territorial correspondente ao do respectivo município (...)
As polícias municipais não constituem forças de segurança, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias de órgãos de polícia criminal, excepto nas situações referidas no artigo 3.°, n.os 3 e 4, da Lei n.° 19/2004 (...)
De acordo com o disposto no artigo 4.°, n.° 1, alínea f), da Lei n.° 19/2004, e do artigo 249.°, n.os 1 e 2, alínea c), do CPP, os órgãos de polícia municipal devem, perante os crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, até à chegada do órgão de polícia criminal competente, competindo-lhes, nomeadamente, proceder à apreensão dos objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime (...)
(sublinhados nossos)

Esclarecendo situação paralela à que aqui se trata, pronunciou-se igualmente o Venerando TRC, em acórdão de 28.05.2008, relatado por Fernando Ventura em doutrina que subscrevemos:
I.- O dever de identificação do responsável da infracção estradal decorrente do art° 151° do Código da Estrada tem como pressuposto a verificação imediata pelo funcionário autuante de quem foi o autor da conduta ilícita.
II.- Iniciado o procedimento contra-ordenacional através da elaboração de auto e aposição do respectivo duplicado no veículo, esgotou-se esse dever funcional.
III.- Os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança.
IV.- Excede os respectivos poderes, constituindo ordem ilegítima, a conduta de agente de polícia municipal que ordena a cidadão a entrega dos documentos de identificação e documentos de veículo, sem ligação funcional à elaboração de auto ou acção de fiscalização e,  subsequentemente, profere voz de detenção quando tal não acontece.

Acrescenta-se, pois, também aqui a nova doutrina extraída do Ac. TRL, de 23.03.2021, proc. n.º 244/20.9PCCSC.L1-5, disponível em www.dgsi.pt) cujo sumário é claríssimo a respeito:
- Como resulta do artigo 4°, alínea b), da aludida Lei n° 19/2004, a Polícia Municipal tem competência para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, mas está excluída a participação de acidentes de viação que envolvam procedimento criminal.
- Porque assim é, estando vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, não podemos deixar de concluir que lhe faltava competência para determinar ao arguido a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no artigo 153°, do Código da Estrada e que nestas se incluem, manifestamente.
- Se aos agentes da Polícia Municipal faltava competência para intimar ao arguido a ordem para se submeter ao exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, a recusa do mesmo não se enquadra no crime de desobediência, por falta daquele pressuposto objectivo do tipo de ilícito – legitimidade da ordem.

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Daqui retiramos várias ilacções que importa caracterizar em ordem à sua operacionalização para o estudo da questão vertente:
- A POLMUN não é um OPC. Constitui serviço municipal de polícia administrativa.
- Estão-lhe cometidas funções prioritárias atinentes à aplicação das posturas municipais e às regras jurídicas cuja lei defira ao município respectivo executar e fiscalizar.
- Podem ainda, em cooperação com as forças de segurança, que não integram, e finalisticamente orientadas à manutenção da tranquilidade pública e protecção das comunidades locais, guardar espaços municipais, promover a segurança nas escolas, disciplinar o trânsito, fiscalizando o estacionamento de viaturas e o trânsito rodoviário e pedonal.
- No desenvolvimento da sua missão, a lei confere-lhes os poderes que o e legislador considerou suficientes e adequados ao eficiente desempenho da actividade da POLMUN, onde se integra a possibilidade de elaborar aos de notícia por contra-ordenação (por violação das relações administrativas – art. 3.°, n.° 3, ultima parte da Lei n.° 19/2004);
- Ordenar a identificação de suspeitos, executar medidas cautelares de polícia, no local do facto típico, empreender detenções em flagrante delito e entregar no imediato o suspeito ao OPC competente;
(observe-se lateralmente que no caso concreto, consoante se apurou, o cidadão foi interceptado cerca das 04h10 (mais próximo da Esquadra da PSP de Trajouce ou do Posto da GNR de Alcabideche do que do próprio Departamento Camarário, mas só entregue a um OPC a partir do Departamento Municipal, cerca de duas horas depois (fazendo fé no auto de notícia por detenção da PSP, e agora na Divisão Policial de Cascais, e não naquela Esquadra que seria a competente no local da efectiva condução do veículo em alegado estado de embriaguez, visto que o arguido foi deslocado do local de cometimento do ilícito, momento de realização de teste de despistagem em que acusa taxa compatível com a prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez) para o Departamento Municipal de Polícia, onde foi sujeito a prova pericial e “notificado” da possibilidade de realização da contra-prova, após o que tornaram a “deslocá-lo” para a Divisão da PSP);

- O incumprimento das suas determinações (desde que legítimas) pode implicar a prática de crime de desobediência:
De acordo com legislador constitucional, “as polícias municipais cooperam na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais.” Conquanto não concorram para a consecução dos fins inerentes à política de segurança interna, as polícias municipais participam na co-produção da segurança local: “les polices municipales doivent être un complément de la police nationale” [citação de Jean-Jacques Gleizal, La Police en France, Presses Universitaires de France, Paris, 1993, p. 43]
Enfim, a polícia municipal cinge-se a uma polícia administrativa local, sem competências de órgão de polícia criminal, não obstante a lei autorizar tanto a identificação e a revista de suspeito da prática de crime – um acto processual judiciário em sede do direito penal adjectivo –, como a realização de inquéritos criminais, por factos conectados com a violação da legalidade, no âmbito das relações administrativas.
(Pedro Clemente, Op. cit., p. 160).

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Oferece-nos acrescentar, ainda que colateralmente relacionada com a questão fulcral que se aborda que a “limitação de competências de âmbito de polícia criminal”, por referência à teleologia da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, se justifica igualmente pelo facto de que, ao contrário das forças de segurança que são OPC, os agentes da POLMUN não estão adstritos ao estatuto profissional inerente ao regulamento profissional e de avaliação, quer da PSP quer da GNR, nem ao seu código deontológico, nem tão pouco as seus agentes estão vinculados a comandos policiais, seja do Director Nacional da PSP ou do Comandante-geral da GNR, mas apenas à dependência hierárquica do Presidente de Câmara respectivo, o que não é, de todo em todo, identitário, por motivos óbvios de se tratar de um comando meramente político e administrativo (e não policial).
Ademais, recorde-se que, ao contrário do que sucede (a título exemplificativo) com a POLMUN de Lisboa, cuja actuação está também disciplinada por Regulamento próprio (publicitado em DR através do Aviso n.° 11359/2018 de 16.08.2018) onde se estabelece o recrutamento de agentes na PSP e que estes, no desempenho de funções se mantêm vinculados ao Estatuto Profissional de origem, seja quanto a direitos, deveres ou de avaliação, ou até ao seu código deontológico (art. 7.° do respectivo regulamente) inexiste normativo análogo, quer em termos de exigência quer quanto a procedimentos de conduta, pelo menos no que à POLMUN de Cascais diz respeito, até em virtude da forma de recrutamento e formação conferida aos agentes. (sendo certo que os Agentes da POLMUN de Lisboa, no exercício de funções, não fiscalizam a condução sob o efeito de álcool ou substâncias psicotrópicas por se considerar que, enquanto no exercício de tais funções de polícia municipal, tal missão não lhes está cometida).
Ora, esta diferenciação entre o regime a que estão vinculadas as forças de segurança e as exigências da sua actuação, simbioticamente relacionadas com as funções que legalmente lhes estão cometidas, e cuja diferença relativamente à POLMUN é marcante, deve também ser considerada no modo como se interpreta a lei habilitante, tal como na (im)possibilidade de interpretar extensivamente e até analogicamente (por referência aos poderes funcionais conferidos aos OPC) os poderes de autoridade de que a POLMUN se arroga:
Na verdade, adianta-se desde já, numa interpretação de tal modo desligada da lei habilitante que permita que se desloque um cidadão em viatura da polícia administrativa para onde o entendam levá-lo, mas não para o OPC competente, que instruam autos de detenção, de recolha de prova pericial e de contra-prova relativos à prática de crime, que notifiquem o sujeito disso mesmo e, após, toda a instrução processual preponderante para o julgamento do tipo de crime de delito comum (desde logo indiciado claramente por um teste de despiste com resultado indiciário
superior a 1,50 g de álcool por litro de sangue) já está terminada, então o levam à PSP onde lhe é feita a constituição de arguido, tomado o TIR e notificado para comparecer no dia subsequente em Tribunal.
Aliás, observe-se a análise constitucional acima empreendida, para que se remete por desnecessidade de duplicação de explanação, da qual decorre inequivocamente a impossibilidade de interpretação extensiva ou de aplicação analógica das medidas de polícia permitidas às forças de segurança e aquelas que por lei expressa (na concretização do princípio da tipicidade) são atribuídas ao  desempenho de funções da POLMUN).
Em suma, parece-nos que devem entender-se como tal tão-só e estritamente aquelas medidas de polícia prescritas na Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio, e não a extensão e conteúdo daquelas cujo exercício está permitido às forças de segurança.
No seguimento de análise e em razão da matéria vertente releva uma cuidada abordagem às normas que disciplinam a fiscalização de condutores no âmbito do despiste da condução em estado de embriaguez.

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b)-Da fiscalização da condução sob o efeito de álcool pela POLMUN, em especial.

Disciplina, em termos gerais e para o que releva, o Código da Estrada (art. 152.°):
1- Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a)- Os condutores; (...)
3- As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
As formalidades de Fiscalização da condução sob influência de álcool (art. 153.° do Código da Estrada, doravante abreviadamente designado CE) impõem:
1- O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2- Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente:
a)- Do resultado do exame;
b)- Das sanções legais decorrentes do resultado do exame;
c)-De que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e que o resultado desta prevalece sobre o do exame inicial; e
(...)
3- A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando (...)
Em termos gerais, poderia admitir-se que, a partir do momento em que a lei (n.º 19/2004, na redacção actual) admite a regulação e fiscalização do trânsito rodoviário pela POLMUN, está a permitir que, no âmbito dessa mesma fiscalização, a POLMUN possa empreender os exames de pesquisa de álcool no sangue.
Sucede, porém, que não se concebe tal interpretação, já por não ter a mais pequena ancoragem constitucional, já porquanto importa a aplicação analógica para um serviço municipalizado de um poder funcional manifestamente concorrente com o das forças de segurança e inerente à execução de acções de fiscalização dos condutores (e não estritamente do trânsito rodoviário, do que não é sinonímia, e neste âmbito de direito sancionatório é primordial que sejamos rigorosos na interpretação, literal, mas também consoante acima se adiantou, teleológica e sistemática dos preceitos legais) e cujo conteúdo e finalidades vai muito para além das acções administrativas (funções de fiscalização e elaboração de autos) para que são competentes, enquadrando-se claramente no quadro de funções de repressão policial, as quais, devidamente analisado o diploma atributivo de competências às POLMUN apenas podem exercer em cooperação (e jamais em concorrência) com as forças de segurança nacionais (adoptando apenas medidas cautelares, no local de cometimento do ilícito e destinadas à preservar a prova, por isso, sujeitas a princípios de urgência e necessidade).
Mais, não nos parece que possa entender-se aqui a POLMUN como autoridade ou agente de autoridade para estes efeitos (veja-se que, na citada Lei de Segurança Interna, as POLMUN não são tidas como autoridades de polícia – art. 25.º e 26.º da Lei 53/2008, de 29 de Agosto para exercício de funções e adopção de medidas de polícia ali precritas).
Ora da conjugação dos respectivos preceitos legais, princípios constitucionais e análise doutrinárias se conclui que, fora do âmbito das atribuições administrativas especificamente acometidas à Polícia Municipal, esta só pode, perante crimes de delito comum, ou de crimes que caem fora do âmbito administrativo que lhes pertence, e desde que sejam de natureza pública ou semi-pública, e puníveis com pena de prisão, identificar sujeitos, detê-los e proceder à obtenção e preservação cautelar de vestígios de prova se:
- o crime for detectado em flagrante delito;
- a detenção, identificação e preservação da prova também se faça em sede de flagrante delito
(...)
Ora o Digno recorrente assenta o seu entendimento no facto de no n° 2 do citado art° 2° se fazer referência apenas a “entidade fiscalizadora” pelo que a Polícia Municipal seria tida, para efeitos deste diploma, como entidade fiscalizadora.
Em nosso ver tal subsunção não é possível atento o quadro legal em que a Polícia Municipal se move, em especial o disposto no art° 3° n°s 4 e 5 da Lei n° 19/2004 de 20-05.
Repare-se que a Polícia Municipal, no caso em apreço, não age como entidade fiscalizadora,  isto é, não tem legitimidade para de forma aleatória proceder a fiscalizações – vulgarmente conhecidos por “operação stop” – tendo a sua intervenção no caso em apreço se constrangido ao facto de se ter apercebido de que um crime poderia estar a ser cometido, daí a sua intervenção ser considerada no âmbito de um flagrante delito.
Por outro lado, a recolha de prova indiciária no caso em apreço surge como forma de confirmar o possível ilícito penal, e assim, justificar a intervenção da Polícia Municipal numa situação em que a mesma não estaria legitimada a actuar, e não no âmbito de uma simples fiscalização aleatória, própria das polícias de segurança pública.
A Lei nº 18/2007 de 17-05 não tem a virtualidade de atribuir funções à Polícia Municipal que esta não tenha por força do regime legal que a rege em especial.
Assim, porque a Polícia Municipal apenas podia deter o arguido em flagrante delito e constatando a indiciação da prática de crime, entregá-lo de imediato à PSP a quem competira efectuar a restante recolha de prova, nunca podia tal Polícia Municipal “acompanhar” o  detido – como sem o manter detido? – a local onde o segundo teste pudesse ser efectuado.
(Ac. TRL de 8 de Julho de 2020, relatado por Filomena Sebastião e Silva, no proc. n.° 86/20.1PBCSC, em recurso de sentença deste Juízo Local de Pequena Criminalidadesublinhados nossos).

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Mas, ainda que a título de mera hipótese académica concebamos que, a partir do momento em que são atribuídas funções de fiscalização do trânsito rodoviário às POLMUN, se possa entender que estas são “autoridades” para os efeitos do disposto no CE, no entanto, o limite da sua actuação terá de estabelecer-se, precisamente, quando no decorrer de tal fiscalização se verifique a prática de crime.
Aliás, este entendimento sustenta-se na clareza meridiana com que a Lei n.° 19/2004 impõe a insusceptibilidade dos agentes da POLMUN praticarem actos próprios dos OPC (designadamente recolha e produção de prova), conferindo-lhes somente, e face à verificação do flagrante delito, a detenção com entrega imediata (leia-se, no mais curto espaço de tempo possível – cerca de uma hora, num trajecto que demora menos de cinco minutos a empreender, somos de questionar) às forças de segurança ou ao órgão judicial competente (para a instauração de inquérito crime, acrescentamos nós).
Permite-se, é certo, que a POLMUN acautele no local do facto típico as medidas cautelares necessárias e adequadas, mas a lei em lugar algum permite que a POLMUN detenha (ou retenha, de qualquer forma suprimindo claramente a liberdade nas suas múltiplas e constitucionais vertentes), suspeitos identificados e;
Em detrimento de os conduzir ao OPC competente;
Decida levá-los para o próprio Departamento de Polícia, proceda às diligências de (recolha de) prova que tem por necessárias à instrução do caso;
Elabore todo o expediente substancial processual penal atinente e, terminado este, então;
Contacte o OPC - já não o competente em razão do lugar que reputam da prática do facto (onde realizaram o teste qualitativo de alcoolemia (?) em cuja área de jurisdição se integra o Departamento de Polícia e Fiscalização Municipal), mas aquele da primeira intercepção – com vista a que, posteriormente a este transporte do cidadão daqui para acolá e vice-versa; Os agentes da força de segurança elaborem o expediente meramente formal que está vedado ao órgão administrativo (já que a factualidade substantiva foi previamente recolhida e em auto transcrita pela POLMUN, conforme se evidencia da factualidade acima fixada).
(diga-se, a latere, numa óbvia instrumentalização das funções do OPC face à actuação do agente administrativo, conferindo-lhe a aparência da tutela da legalidade, quando, na verdade, o cidadão foi detido noutro local, cuja jurisdição pode (ou não) estar cometida àquela força policial onde é entregue ulteriormente, mas que, em todo o caso, nada apurou nem participou na recolha de prova (nomeadamente pericial), nem fiscalizou do cumprimento dos direitos básicos do cidadão diante de uma actuação de polícia judiciária (atribuição excluída às POLMUN), penalmente absolutamente relevante, como se opinará adiante).
Observe-se que no caso de acidente de viação se discrimina que, podendo tomar conta das ocorrências, se se estiver diante de acidente com relevância jurídico penal, não pode a POLMUN intervir (art. 4.°, n.° 1 al. b) da Lei n.° 19/2004, na redacção vigente).
Ora, se a lei habilitante da actuação da POLMUN não lhe permite acudir a qualquer circunstância que possa ter inerente a prática de crime, poderá aquela entidade administrativa (fora dos casos em que a lei expressamente o permite, como no âmbito das funções desenvolvidas e prescritas no art. 3.°, n.° 1 do diploma mencionado) diante da verificação do flagrante delito de crime de condução em estado de embriaguez, deter o agente e continuar activamente a recolha de prova e a instrução do caso e apenas contactar a Força de Segurança quando todo o expediente necessário à sua apresentação judicial já estiver completo?
(com excepção dos autos de constituição formal de arguido e de tomada de TIR)
Não nos parece que no âmbito do CE (ou no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas – Lei n.° 18/20017 de 17 de Maio) se pretenda conferir uma maior amplitude de funções à POLMUN do que aquelas que lhe estão constitucionalmente cometidas e concretizadas pela lei própria habilitante.
Nem tão pouco se julga legítimo que se considere que, neste enquadramento do CE, que o mesmo se operacionaliza atribuindo mais poderes à POLMUN do que aqueles que lhe são deferidos em estatuto próprio e que a distingue claramente dos OPC.
A interpretação nesse sentido, que é empreendida pela forma como estão redigidos os preceitos do CE (porque ali apenas se refere autoridade ou agente de autoridade) poderia levar ao absurdo de, em certos casos, termos de considerar, a ASAE, a AT ou outra qualquer “autoridade” administrativa legítimas para estes efeitos (por serem autoridades e agentes de autoridade administrativa e, nestes casos, até OPC) a fiscalizar a condução sob o efeito do álcool, ou melhor esclarecendo, a prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, já que naquele diploma (Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio) efectivamente, não distingue qualquer entidade competente para a fiscalização de condução sob o efeito de álcool ou substâncias psicotrópicas, apenas referenciando a “entidade fiscalizadora”.
Somos, pois, de crer que, embora a POLMUN detenha expressamente competência para a fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal, quando os condutores (ou os peões) possam com a sua conduta perpectrar crimes (que os agentes presenciem em flagrante delito) as suas competências cingem-se ao previsto na Lei .º 19/2004, não abrangendo quaisquer outras e não sendo, por isso, passível a interpretação extensiva (ou mesmo analógica) do CE, em moldes que importem o conferir à POLMUN competências que, por natureza e finalidades, são exclusivas de forças de segurança pública/OPC (vide o citado acórdão do TRL de 23.03.2021)
Na realidade, inexiste qualquer conformação constitucional nesta matéria nem a previsão de tais medidas de polícia como estando atribuídas à POLMUN e, nessa circunstância:
A discricionariedade pode, nomeadamente, respeitar à escolha do procedimento, dos meios a utilizar, do momento de actuar; mas, não tolera, nunca, comportamentos ilegais ou desviantes face aos interesses públicos que a polícia visa prosseguir, do mesmo modo que não coloca na disponibilidade desta a escolha entre o exercício dos seus poderes ou a renúncia a tal exercício (João Raposo Autoridade e Discricionaridade a Conciliação Impossível? Lição Inaugural do Ano Lectivo 2005/2006, Publicações do Instituto de Ciências Policiais e Segurança Interna, p. 2 e 3)
Sublinhe-se que não choca que a POLMUN possa empreender a fiscalização dos condutores, podendo mesmo lavrar os competentes autos, através da identificação do sujeito e de cominação respectiva, mas tal não pode, em caso algum, implicar a detenção ou a deslocação do agente para onde a POLMUN pretenda levá-lo (sob pena de actuação abusiva e ilegítima, quiçá usurpando funções das forças de segurança, ou pelo menos exercendo-a em concorrência e não em cooperação – vide Ac. TRC de 28.05.2008, já citado).
(impõe-se considerar, nos termos do art. 1.º do regulamento supra citado (lei n.º 18/2007) que o teste de álcool se empreende necessariamente a dois tempos – um primeiro teste indiciário, qualitativo – e, sendo o caso, de no mesmo resultar taxa superior ao permitido legalmente, passa ulteriormente à realização do teste quantitativo, cujo resultado consubstancia exame pericial).
Em bom rigor, observe-se que o regulamento citado afirma ipsis verbis que o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, e em lugar algum prescreve que tal importa a retenção ou detenção de cidadãos para realização de tal teste, ou sequer prevê a cominação de crime de desobediência se o cidadão se recusar a acompanhar a “entidade fiscalizadora” para realização de tal teste quantitativo noutro local.
Parece-nos, pois, que inexiste no âmbito contra-ordenacional a injunção (em sentido próprio) de ser transportado para outro local para realização do teste quantitativo.
Se o cidadão, porventura, preferir deslocar-se de mottu proprio ao local em causa para realização do teste quantitativo, se entender que não deve deslocar-se voluntariamente na viatura da entidade fiscalizadora, a conduta em causa, de per se, não configura (em nosso entendimento) a prática de crime de desobediência, porquanto, refere precisamente o CE que somente a recusa em realizar o teste quantitativo é que consubstancia a prático do ilícito típico criminal (na prática, e neste caso, terá o referido teste de ser disponibilizado no local da intercepção), sob pena de estarmos a impor, ainda que de forma indirecta, uma deslocação de um cidadão, em privação de liberdade, e a coberto de eventual prática de infracção administrativa (ou de nada e) muito dificilmente compatível com o preceituado no art. 27.° da CRP (Direito à Liberdade e à Segurança e respectivas restrições, n.° 3, todas do âmbito criminal ou de saúde mental).
Clarifique-se que a tónica, da nossa perspectiva, se acentua no exercício do “poder de retenção e deslocação (contra vontade) do suspeito”, seja para recolha de prova pericial, ou para elaboração de expediente ou para qualquer outra finalidade, que não está tutelada legalmente, e que, somos de parecer, por brigar com a liberdade do cidadão e com o direito a que os agentes administrativos exerçam tão-só as funções para que são competentes, não poder suscitar-se no caso de contraordenação e que, em caso de notícia de crime, tem de orientar-se e cingir-se ao legalmente prescrito: para condução ao OPC ou à autoridade judicial.
Tudo quanto não esteja a coberto desta finalidade imediata será ilegítimo e contra-legem, ultrapassando as funções conferidas a tal polícia administrativa, legalmente.
E não se diga que o arguido, por ter colaborado com os agentes policiais e que não ofereceu qualquer resistência e cumpriu todas as suas determinações, de livre vontade o tenha feito propriamente ciente de que estava no seu direito resistir a uma actuação desconforme com os seus direitos, liberdades e garantias, pelo contrário, dizem-nos claramente as regras da experiência comum, máximas do quotidiano num padrão de normalidade e na esfera paralela do leigo, cidadão medianamente informado que:
Ao ser confrontado com uma fiscalização rodoviária;
Determinando-se-lhe a realização de um teste (qualitativo, de despistagem) de álcool;
Acusando naquele “taxa crime”;
Quando lhe é determinado que acompanhe os agentes devidamente uniformizados, armados, transportados num veículo com os dizeres “Polícia Municipal de Cascais”; O cidadão “obedece, sujeita-se, crê” (e deve crer fundadamente) que os agentes públicos, que se apresentam como tal, estão a agir no quadro de competências constitucionais e legalmente atribuídas, no uso do monopólio da força pública, cometida precisamente às polícias;
Convicto de que a falta de anuência e obediência há-de trazer-lhe consequências nefastas, precisamente por corporizar, na prática “uma desobediência ao poder público”, na verdade, consoante espontaneamente referenciou o arguido, na convicção de que ia detido, até em virtude do aparato policial e medidas de marcha de urgência adoptadas aquando de tal transporte até ao Departamento Camarário.
Ou alguém crê verdadeiramente que se um qualquer cidadão comum abordasse outro e lhe pedisse os documentos pessoais e os da viatura, no seguimento lhe apontasse a realização do teste de despiste de álcool através do ar expirado, acto contínuo referenciasse a necessidade de o acompanhar no veículo do terceiro, alguém acredita que este acompanharia aquele “de livre vontade”? – obviamos a resposta, já porque o arguido a deu claramente quando questionado para o efeito, já por nos parecer evidente.

***

Estas considerações levam-nos, pois, à temática subsequente, relevantíssima pelo cariz potencialmente danoso da limitação (efectiva) de liberdade na esfera jurídica do cidadão, à ordem “e responsabilidade” deste órgão municipal administrativo que, em detrimento de conduzir o sujeito ao OPC competente, decide deslocá-lo, impondo-lhe o transporte para área territorial que pode (ou não) ser da competência do OPC originariamente competente (em razão do local de verificação do ilícito) para “tomar nota da ocorrência” e empreender as mais diversas actividades de recolha de prova e instrução processual.
Sublinhe-se uma vez mais a sensibilidade muito especial com que devem abordar-se situações iminentemente relacionadas com o coarctar da liberdade (e segurança) dos cidadãos considerando tratar-se de um direito fundamental ou de civilidade, sujeito ao regime especialmente protegido dos direitos, liberdades e garantias (art. 37.' conjugado com o art. 18.', n.' 1 e 2 da CRP) e ainda que se trate de situação de detenção em flagrante delito (o que coloca, evidentemente o cidadão numa especial posição de debilidade face ao agente da autoridade, e em razão da circunstância de ser no imediato detido e sujeito a medidas policiais).
A tudo isto acresce que, não só inexiste no enquadramento constitucional qualquer cláusula geral para a ordem e segurança pública (muito menos cometida aos serviços municipais de polícia) como a adopção de “medidas de polícia fora do catálogo” estrito atribuído à competência das POLMUN coloca necessariamente questões de conformação da actuação policial ao respeito pelos direitos fundamentais análogos e interesses legalmente tutelados dos cidadãos, desviando-se pelo menos, ou ultrapassando ademais, barreiras inultrapassáveis que subjazem à actuação administrativa, sujeita a princípios de legalidade e na estrita medida da necessidade e da urgência que o caso suscite.

Mas vejamos em particular.

***

d)-Da detenção em flagrante delito e as obrigações imediatas e inerentes à mesma por banda da POLMUN
No quadro vigente a detenção tem de subsumir-se no disposto no art. 254.º e seg. do CPP.

Ali se dispõe, para o que releva:

Artigo 254.º
Finalidades
1- A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada:
a)- Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção (...)

Artigo 255.º
Detenção em flagrante delito
1- Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão:
a)-  Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção;
b)- Qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas na alínea a), a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 259.º(...)

Artigo 256.º
Flagrante delito
1- É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.
2- Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar. (...)

***

Conjugam-se aqui, como aliás no edifício erigido constitucionalmente para salvaguarda máxima dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, dois conceitos égide da nossa comunidade jurídica: o flagrante delito da prática de crime e a detenção, sendo aquele que legitima esta, no intuito da investigação futura da acção criminosa, com vista a levar os seus agentes à justiça.
No caso da detenção empreendida pela POLMUN impõe-se que se trate de flagrante delito de crime punível com pena de prisão e que, imediatamente após a detenção a pessoa suspeita, seja conduzida a OPC (art. 3.°, n.° 4 e 5 e 4.° al. e) e f) da Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio).
A detenção consubstancia, pois, um ato de imposição a alguém, suspeito da prática de crime, de um estado de privação provisória da liberdade, com o fim de o submeter a decisão de uma autoridade judiciária” (LOBO, Fernando Gama (2015) Código de Processo Penal Anotado, Almedina, Coimbra, p. 470), nas palavras de Germano Marques da Silva (2008, Curso de Processo Penal II, 4ª edição, Verbo, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, p. 262) a detenção é sempre precária, pelo menos nos casos, como o presente, que originada pelo flagrante delito da prática de crime e em ordem a submeter o detido a julgamento num processo em forma sumária, ou ser submetido ao primeiro interrogatório judicial, ou a ser aplicada ou executada uma medida de coação.

Em rigor, conjugando o disposto no CPP com a lei habilitante da actuação da POLMUN, não podemos deixar de concluir que a acção desta se aproxima do caso prescrito na al. b), do n.° 1 do art. 255.°, aliás, aquele normativo parafraseia parcialmente a expressão utilizada no CPP quando ali se refere a sua imediata condução/entrega à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente estabelecendo tão-só a nuanceda possibilidade da identificação e revista (de segurança) dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como da adopção das medidas cautelares necessárias e urgentes para assegurar os meios de prova.

A Polícia Municipal, a nosso ver, e contrariamente ao propugnado no Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 26-02-2008, a Polícia Municipal age no âmbito da al. b) do nº 1 do artº 255º do Código Penal, pois que se se enquadrasse na al. a) do nº 1 de tal preceito não faria qualquer sentido o disposto no nº 4 do artº 3º da Lei nº 19/2004 de 20-05.
Como não faria sentido o que também se diz no referido Parecer (e que, a nosso ver revela uma contradição interna do mesmo) que “o preceito estabelece que a entrega à autoridade judiciária ou à autoridade policial da pessoa detida seja «imediata». No domínio da detenção em flagrante delito, no condicionalismo legal, os órgãos de polícia municipal não podem prevalecer-se do prazo de 48 horas previsto no artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do CPP. (Ac. TRL, proc. 86/20.0PDCSC, já citado).

***

Esclarecidos os conceitos básicos atinentes, importa que se proceda à sua subsunção ao caso em apreço, respondendo-se claramente às questões que passam a elencar-se:
1.-Episódio do flagrante delito (?)
2.-Momento da detenção (?)
3.-O que deve fazer a POLMUN ao detido, após ser detido (?)
(1)-Temos para nós, do que foi possível apurar-se na audiência pública de julgamento, que o flagrante delito se evidenciou quando, interceptado o cidadão condutor e empreendido o teste de despiste de álcool no sangue, aquele apresentou uma taxa de alcoolemia em muito superior a 1,2 g/l de sangue.
Neste circunstancialismo, conclui (e bem) a POLMUN que está diante de sujeito em flagrante delito da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
É precisamente esta verificação, por natureza imediata, evidente e ostensiva (em face do resultado do primeiro exame de despiste de álcool pelo ar expirado) que consubstancia o flagrante delito (expressado na condução contemporânea, acto em que o cidadão foi abordado pela polícia administrativa, e com uma taxa indiciária de cerca de 2,00 g/l de álcool).
É a abordagem, aquando da condução de veículo pelo cidadão, da sua intercepção pela POLMUN, da submissão ao teste de despiste de álcool (admitindo-o como lícito, mas que ao caso não releva mais extensa análise) e do resultado imediato que legitima e tutela, acto contínuo, a detenção deste sujeito pela POLMUN, na referência de que abandone a sua viatura e os acompanhe no carro policial está, em nosso entendimento, e salvo o devido respeito por opinião diversa, acertado e parametrizado com o prescrito legalmente.
(referencie-se colateralmente que não se concebe que a detenção apenas ocorra aquando da sua formalização em auto, ou consignação no mesmo de que tão-só apenas ocorreu após a realização do teste pericial – aliás, até lá, e desde pelo menos a deslocação da pessoa na viatura policial ao Departamento Municipal, já a pessoa vai toldada da sua liberdade de decisão, determinação e movimentos – a detenção configura, em nosso entendimento (vide art. 255.º, n.º 1 al. a) e b) do CPP), um acto material consequente e entendível como tal pelo cidadão comum na esfera paralela do leigo não jurista, não se exigindo a “voz de detenção” que é circunstância não prevista legalmente, e não se confunde com a formalização da mesma que se transpõe para um determinado auto que a narra de forma mais ou menos especificada, bastando-se o acto concludente que faça entender ao aludido suspeito que a partir daquele momento já não está livre de fazer o que entender, devendo, pelo contrário, submeter-se e sujeitar-se ao que lhe for determinado pela autoridade.
(2)- O cidadão, tendo por referência o que se logrou provar, ao entrar no carro patrulha da POLMUN por ordem dos agentes e dirigindo-se para onde entenderam levá-lo consubstancia um transporte de detido, por estar já coarctada a sua liberdade de decisão e movimentos.
Referir-se artificialmente que a detenção apenas ocorre após a realização (cerca de uma hora mais tarde) do teste de álcool no alcoolímetro quantitativo e no Departamento de POLMUN e fiscalização da Câmara Municipal de Cascais só pode configurar uma ficção de Direito (relativamente à actualidade/ contemporaneidade da acção e ao local da ocorrência) até por referência óbvia, que não podemos perder, ao desenho do tipo de ilícito sub judice.

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Trata-se, da nossa perspectiva de uma confusão na aplicação dos conceitos jurídicos, pretendendo estender elasticamente o conceito (até) de quase flagrante delito e desligar o acto formal de detenção, exteriorizado pelo comando emitido pelos agentes da POLMUN (logo após o teste de despiste de álcool) da materialidade subjacente claramente provada nos autos.
Posto isto, importa então responder à última das questões (3), nos termos da lei aplicável e de acordo com sobejamente explanado acima, a POLMUN ao deter o cidadão em flagrante delito da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez deveria tê-lo conduzido, no imediato, ao Posto da GNR ou à Esquadra da PSP com jurisdição na área de detecção do ilícito ou, em alternativa, contactar aquela força de segurança para que pudesse entregá-lo no imediato, dando conta, precisamente, da verificação de flagrante delito da prática de condução em estado de embriaguez.
Na verdade, o flagrante delito constitui precisamente uma situação em que, por natureza e de forma evidente, directamente (de acordo com o vocábulo utilizado no art. 3.°, n.° 4 da Lei n.° 19/2004) se observa a existência de crime, não carecendo da prova científica/pericial para o efeito (sob pena de perder a sua actualidade, a menos que esta esteja ali mesmo, pronta a realizar-se no local da intercepção), nem sequer da instrução de qualquer acto, maxime, que implique o abandono do local de verificação do crime para produção de outra prova, contra-prova, notificações conformes e venha mais o que o órgão administrativo entender por estar na disponibilidade do sujeito suspeito, ali literalmente tratado como o “objecto da situação criminal” pela POLMUN.
Sublinhe-se uma vez mais o preceituado no art. 3.°, n.° 4 da Lei n.° 19/2004: Sem prejuízo do disposto nos n.º anteriores (identificação e revista) é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.

***

Assim, salvo devido respeito por entendimento diverso, que é muito, levar um cidadão detido ao Departamento da POLMUN e, posteriormente, após toda a instrução (afinal processual, pois foi com base nela que se procedeu a este julgamento), contactar a Divisão da PSP para tornar com ele (em bolandas de cá para lá e de lá para cá), apenas para aí se preencher o expediente administrativo e libertá-lo, parece-nos claramente ultrapassar, e em muito, as competências conferidas à POLMUN neste âmbito.
(no fundo, quem procede à detenção, empreende a diligência de prova pericial, comina a possibilidade e termos da contra-prova, é a POLMUN (a substituir-se ao OPC) e, cerca de duas horas depois da intercepção e verificação do flagrante delito, contacta uma força de segurança, apenas para que sejam apresentados ao detido os documentos formais do que anteriormente já executou (veja-se a tautologia da existência de dois autos de detenção) e aquele OPC o liberte).
Aliás, na cooperação esperada com as forças de segurança (e legalmente determinada no n.º 2 do art. 3.º do diploma citado) no exercício destas funções de “regulação e fiscalização do trânsito” havia uma alternativa clara e que permitiria a custódia da prova, sem perigar a liberdade e os direitos fundamentais do suspeito, que configuraria o contacto com o Posto da GNR ou a Esquadra da PSP do local de verificação do ilícito, isto é, da intercepção e, se necessário, a condução do suspeito,  aqui arguido, ao local onde, no município, a PSP/GNR empreende o teste de álcool (quantitativo) por recurso ao ar expirado (precisamente em Cascais e em localização “paredes meias” com o Departamento Municipal de Polícia e fiscalização). As instalações são literalmente uma defronte da outra.
Não demoraria mais tempo (do que o utilizado) e não implicaria a execução de funções de investigação criminal, ultrapassando os limites do poder que é legalmente conferido à POLMUN e em substituição clara do OPC competente.
No mais, é também a este propósito que se discutem as chamadas “medidas de dupla função”, cuja doutrina, por obviamente aplicável, aqui elencamos:
Uma medida policial diz-se de dupla função quando através dela a polícia prossegue simultaneamente uma função de prevenção do perigo e uma função de perseguição criminal
(...)Por exemplo uma medida que começou por ser de prevenção do perigo pode, de um momento para o outro transformar-se numa medida de perseguição penal, ou adquirir simultaneamente essa finalidade (...)
(António Francisco de Sousa, Prevenção e Repressão como função da polícia e do Ministério Púbico, Revista do Ministério Público, n.º 94, Lisboa, Abril-Junho 2003), p.67).
O critério que tem sido avançado no sentido de sujeição ao regime jurídico preponderante de tais medidas policiais de dupla função tem sido o do fim da/s mesma/s medida/s, cuja determinação, de per se, coloca por vezes questões complexas, mas que neste caso concreto não se nos afigura de difícil destrinça: faz-se através do elemento determinante, o critério finalístico objectivo.
Parafraseando o autor citado quem aprecia deverá colocar-se na posição objectiva do agente policial antes do início da conduta, diante da situação concreta deverá indagar-se como apreciará a medida um cidadão médio na situação do atingido.
No caso presente, talvez não no momento da intercepção, mas certamente após a realização do teste qualitativo, será proporcionado e adequado concluir-se, como cidadão médio colocado na posição do agente administrativo, que se está diante de um flagrante delito de prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Se tal se concretiza ou não na efectiva conclusão pela prática do ilícito é questão diversa, como o é sempre que ulteriormente a investigação criminal concluir pela (in)existência de indícios bastantes para submissão do cidadão a inquérito e julgamento criminal, mas tal já não é, de todo em todo, função cometida a este serviço municipal de polícia.

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A centralidade coloca-se na exigência de uma polícia que actue de acordo com a parametrização constitucional a que está vinculada, cujo substracto é um direito fundamental de civilidade, análogo aos direitos, liberdades e garantias e, por isso, sujeito ao mesmo e preciso regime jurídico e respectiva concretização na lei ordinária (e que, aqui, consoante podemos já avançar, foi ultrapassada no exercício de funções que (não) estão atribuídas às POLMUN).
Lateralmente refira-se apenas que os direitos, liberdades e garantias constitucionais, cujo regime de restrição de exercício se encontra taxativa e minuciosamente regulado na Constituição da República (art. 18.' e 19.' do CRP) e onde se inclui o Direito à liberdade e à segurança (art. 27.' da CRP) impõe que toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos, acrescentando nós, previamente à execução de qualquer acto de recolha de prova, designadamente pericial.
É que tais direitos e garantias constitucionais não podem servir apenas para a sua declaração formal e solene, devendo ser operacionalizadas através da actuação de todos os órgãos públicos, sejam administrativos ou de segurança, e são susceptíveis de fiscalização e controlo formal, designadamente judicial, revelando aqui uma actualidade e acuidade bastantes para que nos refiramos à sua disciplina em razão do caso concreto, e mais deles não nos possamos desligar aquando do julgamento dos factos acima arrolados. (ademais quando as POLMUN (que não as de Lisboa e Porto) dependem apenas do Presidente da Câmara, não estando, sequer sujeitas à IGAI – vide art. 2.º, n.º 1 do DL n.º 58/2012).
Mas vejamos, ainda e em concreto, que funções estão cometidas à POLMUN no quadro da recolha e preservação de prova, para que dúvidas se não suscitem quanto ao feito.

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e)-Das medidas cautelares e dos meios de (obtenção da) prova
A iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal define-se pela atuação em substituição precária da autoridade judiciária, baseada nos pressupostos de necessidade e de urgência, perante circunstâncias que exigem uma resposta pronta da entidade policial, pautada pelo princípio de eficácia, balizada por pressupostos legais, vinculada ao dever de ser transmitida imediata notícia à autoridade judiciária. (Mesquita, Paulo Dá (2003) Direcção do Inquérito e Garantia Judiciária, Coimbra Ed., 2003, pp. 120-143)
Trata-se da caracterização e exigências a que se sujeitam as medidas de polícia de índole judiciária.
Previstas no artigo 249.° do CPP, que as elenca de forma exemplificativa, no que concerne à preservação (mormente), e recolha (mais limitada legalmente) dos meios de prova.
Da competência da POLMUN, a Lei n.° 19/2004 enumera a identificação de suspeitos, a revista aos mesmos e nos casos em que a fiscalização lhes está directamente cometida (para instrução de processos administrativos de natureza contraordenacional), a apreensão de objectos que serviram ou estivessem destinados a servir à prática da infracção.
Releva perguntar se a submissão ao teste do alcoolímetro quantitativo se  insere ainda no âmbito das medidas cautelares urgentes e necessárias para  preservação ou obtenção da prova, no caso concreto que aqui apreciamos.
Não podemos desligar a resposta do entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores que vêem entendendo que os exames de pesquisa de álcool no sangue, realizados no mesmo analisador quantitativo, ordenados (...), constituem prova pericial pré-constituída, por irrepetível em julgamento. (Ac. STJ, de 11.07.2017, proc. n.° 3397/14.1T8LLE.E1.S1).
E mais, do cotejo dos artigos 153.° e 156.° do Código da Estrada com a Lei n° 18/2007 resulta que a taxa de alcoolemia se pode demonstrar por teste ao ar expirado (em equipamento qualitativo, a despistagem, e em equipamento quantitativo, a prova ou a contraprova), por análise ao sangue (a prova ou contraprova) e por exame médico (a prova ou contraprova), e que existe uma obrigatoriedade de notificação do condutor após teste de alcoolemia, por escrito ou verbalmente, do resultado, das sanções legalmente decorrentes daquele resultado e de que pode, de imediato, requerer contraprova e que, caso positivo, deve suportar todas as despesas originadas por essa contraprova. Acordão do TRE de 05.07.2016 (Processo n.º 265/15.3PAVRS.E1)
Será possível entender que o iter de procedimentos que envolve a recolha de prova (pericial) bastante para submissão de arguido a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e que implica a advertência da possibilidade de se sujeitar a contraprova (bem como a sua realização) e a explicação das finalidades e consequências inerentes aos resultados apurados não importa o exercício de funções de polícia criminal, ou pelo menos de força de segurança pública, questionamos.
É que, não sendo a POLMUN um OPC nem sequer uma força de segurança que legitimidade tem para os empreender? (tal qual, surgem espelhados no auto aludido a facto 6).
A nosso ver, nenhuma, legalmente, tudo salvo melhor entendimento.
Haveria aqui necessidade efectiva e urgência ponderosa que pudesse justificar a actuação da POLMUN tal qual apurada?
Numa circunstância em que, verificado o flagrante delito pela submissão do arguido ao teste qualitativo, havia a possibilidade prática e efectiva de cumprir a lei e conduzi-lo ao OPC competente, onde poderia igualmente sujeitar-se a tal exame (quantitativo), num tempo razoavelmente idêntico?
A conclusão é óbvia: ao deslocar o arguido, detido, para o Departamento Municipal, sujeitá-lo a recolha de prova pericial, não contactar o OPC competente no local da prática dos factos, agiu a POLMUN num desvio ao quadro constitucional e legal a que está vinculada, transbordando da autoridade conferida para fiscalizar o trânsito e ultrapassando as competências que lhe estão deferidas por lei, substituindo-se ao OPC competente na instrução material do processado.
Senão vejamos em lugar comum: a lei limita expressa e claramente a sua competência no âmbito da investigação criminal – seja excluindo-a tout cour no caso de acidentes de viação, seja atribuindo-a limitadamente para identificação de suspeitos e revistas de suspeitos no local do cometimento do ilícito – equaciona-se porventura que a permitisse neste caso concreto?
Fará sentido conceder que não tenham competência para intervir numa situação clara de acidente de viação (que implique procedimento criminal) mas, em alternativa, permitir a sua instrução quanto à realização e obtenção de meios de obtenção de prova? (necessariamente enquadrados também eles num procedimento criminal)
Estamos em crer pela resposta negativa, até pela sensibilidade e necessário cuidado com a limitação de liberdade e actuação no quadro de uma fiscalização que, após sujeição a exame qualitativo de despiste de álcool no sangue com resultado positivo, igual ou superior a 1,2 g/l, se impõe, necessariamente, ulterior investigação criminal.
E não se diga que estas são práticas policiais consolidadas no município há vários anos que [por isso] não violam a constituição ou a lei.
Na verdade, somos do entendimento que o costume não é fonte de direito penal, substantivo ou processual, do mesmo modo que (felizmente, consideramos nós), os preceitos legais e as práticas policial e judiciária se vêem aperfeiçoando na devida conformação constitucional, que aqui não se nos afigura de tal modo estratosférica ou inexequível que uma efectiva cooperação da polícia municipal de Cascais com as forças de segurança do concelho (em detrimento da concorrência com as mesmas) não possa, com alguma lisura, operacionalizar-se, até em razão da localização dos aparelhos quantitativos de verificação de álcool no sangue por recurso ao ar expirado daqueles OPC.

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e)-Das consequências legais da actuação da POLMUN.
Tudo compulsado, importa, pois, que se analisem das consequências jurídicas da forma como foi instruído o processo, recolhida a prova pericial e em que moldes, com efeitos óbvios para o julgamento subjacente.
Melhor concretizando: que efeitos se extraem dos exames periciais de alcoolemia na sequência de uma detenção ilegal (em razão das finalidades da mesma), e empreendida por órgão incompetente para instruir a prova nos moldes em que a mesma foi obtida?
Citamos, por todos, o aresto subsequente, que nos parece lapidar e relativo a matéria coincidente com o que aqui tratamos:
Com efeito, o art. 126º do Código de Processo Penal disciplina nos nºs 1 e 2 as provas absolutamente proibidas e no nº 3 as provas relativamente proibidas. As primeiras não podem ser utilizadas nunca, as segundas podem ser utilizadas nos casos previstos na lei, ou seja, desde que respeitadas as regras estabelecidas na lei para a intromissão nos direitos tutelados. As proibições de prova estabelecem limites à actividade de investigação e constituem fundamentalmente um meio ou instrumento de tutela dos direitos individuais dos cidadãos que visam impedir ou dissuadir intromissões abusivas e desnecessárias das autoridades judiciais e policiais. Sendo este um campo onde se afirma com particular relevo o princípio da ponderação de interesses, impõe-se estabelecer níveis de concordância prática entre os direitos individuais que poderão ser atingidos ou sacrificados e a prevenção e repressão da criminalidade: “entre o interesse público na perseguição penal e o interesse público também da tutela de determinados interesses, a ordem jurídica opta por uns ou outros, conforme considere que devem predominar. Com efeito, a perseguição penal não é, necessariamente, o interesse preponderante da vida em sociedade.
Por isso, os meios utilizados em ordem à repressão penal têm de acomodar-se aos princípios jurídicos que predominam num dado momento e aos valores fundamentais da nossa civilização(Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, II, 1993, pag. 103).
(...)
Nestes termos, a utilização, seja por mero lapso ou não, de uma notificação meramente verbal ao condutor examinando sobre a possibilidade de realização da contraprova, numa situação em que seria possível a realização dessa mesma notificação por escrito, constitui a infracção de uma regra de procedimento, desde que, como no caso destes autos aconteceu, essa notificação, ainda assim, tenha permitido o exercício de modo eficaz desse meio de defesa. (Ac. TRG proc. n.º 2541/14.3PBBRG.G1 – sublinhados nossos)
Observe-se que o caso em apreço, a conclusão terá se distinguir-se nitidamente do preceituado na Veneranda decisão citada.
Aqui não se tratou de obviar a forma regulamentar devida de um acto processual, mas antes de restringir a liberdade pessoal de um cidadão, através de uma detenção que se revelou ilegal (porque orientada não propriamente à entrega imediata ao OPC competente, consoante a lei impunha, mas antes à instrução processual de cariz manifestamente criminal, para o que o órgão detentor é incompetente) e retomando o raciocínio do Ac. TRC de 28.05.2008, já citado:
O dever de identificação do responsável da infracção estradal (...) tem como pressuposto a verificação imediata pelo funcionário autuante de quem foi o autor da conduta ilícita.
Iniciado o procedimento (...) esgotou-se esse dever funcional.
Os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança.
Estamos em crer que, ilegítima que foi a manutenção da detenção, nos termos em que aquela se manteve (durante o transporte para e todas as diligências no Departamento Municipal de Polícia e Fiscalização – por órgão administrativo incompetente) e que só por via da sua manutenção se produziu a prova pericial em causa (que poderia e devia ter sido empreendida peplo OPC) e em que funda fulcralmente o presente processo, obtida mediante constrangimento físico (limitação da liberdade e perturbação da vontade e decisão) com o recurso à força (não propriamente física, mas inerente à autoridade ostentada enquanto órgão de polícia devidamente uniformizado e armado), como o próprio auto citado a facto 5 explicita, tudo nitidamente fora do que a lei permite à POLMUN e em ultrapassagem dos limites claros e acima melhor densificados, terá de ter uma consequência jurídica compatível com a Constituição da República e a Lei.

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Já referenciava Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Consitituição Portuguesa de 1976 (2001) Almedina, Coimbra, p. 337-348):
O princípio da legalidade significa desde logo, que a actividade administrativa, seja de autoridade, seja de execução de prestações (...) seja concreta, seja normativa, não pode ser ilegal, não vale contra a lei – Princípio do “primado da lei” ou da “preferência da lei”.
No nosso sistema porém, este princípio aparece complementado pelo princípio da constitucionalidade: em primeiro lugar, admite-se a fiscalização dos actos normativos da Administração (regulamentos) quando violem directamente a Constituição, em especial, os preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias sendo, enão, nulo, por inconstitucionalidade; em segundo lugar, a aplicabilidade imediata dos preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias pode levar em alguns casos, à desaplicação, pelos órgãos administrativos, das normas legais anticonstitucionais. (...)
Isso significa, em primeiro lugar, que toda a intervenção administrativa no campo dos direitos, liberdades e garantias tem de ser a actuação de uma vontade (anterior) da lei, que constitui, deste modo “prius normativo” em relação a ela (...).
Em segundo lugar, a conformidade à lei implica que ao legislador não é permitido deixar à discricionariedade administrativa a determinação do conteúdo e dos limites dos direitos, liberdades e garantias nos casos concretos. (...)
Ainda que não exista um regime especial de direito substantivo e procedimental aplicável aos actos administrativos em matéria de direitos, liberdades e garantias, o Código do Procedimento Administrativo declara nulos, e não meramente anuláveis, os actos administrativos que “ofendam o conteúdo essencial de um direto fundamental. (...) [actual art. 161.°, n.° 1 e 2 conjugado com o art. 162.° do CPA)
Concretizando em aplicação aos casos penais:
I- Em matéria de invalidade da prova há que distinguir entre regras de produção de prova, proibição de produção de prova e proibição de valoração de prova.
II- A prova obtida através de método proibido é insusceptível de valoração pelo tribunal.
III- A prova obtida contra legem, mas através de método não proibido, pode ser valorada sempre que susceptível de se obter através de meio ou procedimento conforme à lei, suposto, evidentemente, que a irregularidade do acto de produção de prova não haja sido arguida.
(Ac. TRC de 19.12.2001 proc. n.° 2721/2001sublinhados nossos)
O CPP consagra agora a possibilidade de medidas cautelares visando a obtenção de prova que, de outra forma, poderia perder-se, provocando danos irreparáveis nas finalidades do processo. É exactamente esse o campo de aplicação do art. 249.º do CPP ao atribuir aos órgãos de policia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, competência para praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova. (...)
Por outro lado, sendo estas medidas actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal (...) aqueles actos perdem qualquer significado autónomo, na medida em que, integrando-se na posterior tramitação processual concreta, serão, por isso, sujeitos a uma avaliação ex post dos titulares das competências, e, por outro, serão também pressupostos das decisões finais a tomar pelos órgãos coadjuvados.
Sendo actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal, são ainda praticados na dependência funcional das autoridades judiciárias. Isto é, falte embora um comando das autoridades judiciárias, ainda assim os órgãos de polícia criminal devem actuar com a específica intencionalidade que os torna órgãos auxiliares da administração de justiça (...)
São pressuposto de aplicação do art. 249.° do CPP a necessidade e a urgência, o que se reconduz à possibilidade de contaminação da prova ou de deterioração do meio de prova, bem como à impossibilidade da sua reprodução noutro momento que não aquele em que efectivamente é produzida.
É inequívoca a conclusão de que o conteúdo normativo do direito fundamental previsto no art.  32.°, n.° 8, da CRP inclui no seu âmbito o efeito remoto da utilização de métodos proibidos de  prova. (...)
Nada obsta a que as provas mediatas possam ser valoradas quando provenham de um processo de conhecimento independente e efectivo, uma vez que não há nestas situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida. Pode afirmar-se que o efeito metastizante da violação das regras de proibição de prova apenas  tem razão de ser em relação à prova que se situa numa relação de conexão de ilicitude. (...)
Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do  crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos,  se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova. (...)
O efeito à distância da prova proibida como um factor que reforça a ideia da autonomia total  entre o instituto das nulidades processuais e o das proibições de prova e, ainda, que tal efeito tem génese na própria norma. (...)
É inequívoca a conclusão de que o conteúdo normativo do direito fundamental previsto no  artigo 32.° n° 8 da Constituição da República Portuguesa inclui no seu âmbito o efeito remoto  da utilização de métodos proibidos de prova.
Um primeiro argumento que se pode invocar neste sentido encontra-se no teor literal da própria norma constitucional citada, uma vez que esta declara nulas "todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações", sem introduzir qualquer diferenciação ao nível do grau imediato ou mediato da sua obtenção. Para além deste argumento literal, é ainda possível encontrar um argumento, retirado da hermenêutica jurídico-constitucional proveniente da teoria da interpretação das normas constitucionais que aponta também para a ideia de que o efeito á distância das proibições de prova se encontra dentro do âmbito normativo do artigo 32.° n.° 8 da Constituição.
Desde logo, (...) tal conclusão é, também, imposta pelo principio de interpretação constitucional que se consubstancia no princípio da máxima efectividade ou seja quando o teor de uma norma da Lei Fundamental possibilitar mais do que uma interpretação, o intérprete deve considerar as consequências a que conduz cada interpretação e escolher aquela que melhor realize os fins que a Constituição tem em vista ao prever tal norma.
Considerando por tal forma é liminar a conclusão de que a interpretação que assume um papel mais abrangente na finalidade protectora dos direitos elencados no artigo 32.° n.° 8 da Constituição é aquela que não conduz à destrinça entre prova directa e indirectamente obtida através de métodos proibidos, uma vez que quanto menor for a possibilidade de aproveitamento do material probatório obtido na sequência de um meio ilícito, maior será,  inequivocamente, a eficácia dissuasora da norma relativamente a comportamentos contrários à sua lógica de protecção.
Conclui-se pois, (...) que o efeito-à-distância se encontra abrangido pela esfera normativa do artigo 32.°/8 da Constituição.
(Ac. STJ de 12.03.2009, proc. 09P0395)
Os sublinhados são nossos e serve a longa citação (e do nosso ponto de vista inteiramente impressiva) por propugnar, de um lado, a boa doutrina que acolhemos, no sentido da autonomia perfeita das proibições de prova relativamente ao regime das nulidades em processo penal (sujeitas por sua vez a critérios de taxatividade e de efeito em cascata), o que impõe uma consideração diversa do regime de estatuição (efeito à distância) aquando da verificação de uma proibição de prova e por outro lado, que, como tão bem se explana do Acordão do Colendo STJ possui desde logo  um verdadeiro cariz dissuasor (da actuação dos OPC, aqui órgão administrativo)  aquando da produção de prova e impositivo aquando da sua (não) valoração judicial.

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Ora, no caso presente, outra forma não há de obter/repetir aquela prova pericial extraída no Departamento Municipal, já que a POLMUN, em detrimento da legalmente estabelecida coordenação com a GNR e a PSP em ordem a proceder à entrega imediata do cidadão detido ao OPC, permitindo que esta/s força/s de segurança, como é da sua competência, instruísse/m o processo, decidiu antes deslocar o cidadão para as instalações camarárias, para recolher a prova pericial, tornou a deslocá-lo posteriormente para a Divisão Policial de Cascais, já com a tramitação processual substancial organizada e, então, entregou-o para que, mais de duas horas após a intercepção, finalmente, uma força de segurança assumisse apenas o expediente administrativo (ou seja, já depois de recolhida a prova pericial e depois de feita (?) a advertência e realizada a contra-prova) então a PSP lhe explicasse devidamente o sucedido (?), o constituísse arguido e o sujeitasse à prestação de TIR.
Pelo que, não estando a actuação da POLMUN a coberto da competência constitucional e legal que lhe é conferida nem sujeita a sua actuação a princípios de urgência e necessidade (poderia sem perigar a custódia da prova ter sido o arguido apresentado desde logo ao OPC onde, no mesmíssimo tempo, realizaria o exame, extraído por órgão competente) e sem violação dos seu direitos pessoais e da sua liberdade (ou sendo-o no quadro da limitações possíveis se e através da actuação do OPC competente), pelo que se configura tal situação uma proibição de (valoração da prova) assim obtida, uma vez que esta não é susceptível de se desligar dos moldes em que foi produzida.
Em suma, integra o disposto conjugadamente no art. 126.°, n.° 1 e 2 al. a) e c) do CPP, o que impõe ao Tribunal um óbice à consideração dessa mesma prova, em abono na doutrina perfilhada do(s) Fernwirkung des Beweisverbots (fruto da árvore envenenada) uma vez que consideração diversa imporia sacrificar o princípio da liberdade e segurança do cidadão (constitucionalmente consagrado e ampla e legalmente densificado, nos termos acima desenvolvidos) e o direito constitucional análogo a uma polícia que actue no quadro constitucional e legal vigentes, com o argumento, tantas vezes vilipendiado, da constatação da verdade material (de outra forma não realizável no processo), e em nosso entendimento não justificável na ponderação dos interesses no caso concreto, neste processo em contraposição.

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Não omitimos a existência de Acordão tirado no Venerando TRL em 29.07.2020 (proc. n.° 34/20.9PBCSC), embora ainda não transitado em julgado, onde se expõe:
Pretender como se argumenta na sentença que a polícia municipal deveria ter chamado ao local a PSP, é uma solução possível e até, eventualmente, a ideal, mas a verdade é que, mesmo sendo a PSP, na sua qualidade de órgão de polícia criminal, a formalizar a detenção, tal não neutraliza a consideração de que depois de despistada a existência de álcool, o condutor fica legalmente impedido de conduzir, durante as 12 horas seguintes, conforme previsão contida no art. 154º do CE, o teste quantitativo do álcool é obrigatório e ainda está no âmbito das competências da polícia municipal realizá-lo, pelo que mesmo que depois do despiste qualitativo, sendo o teste quantitativo obrigatório porque só ele providencia a concreta TAS e só depois desse exame sendo possível a elaboração do auto de notícia (...)
Acresce que, neste quadro normativo, não há qualquer razão juridicamente válida para distinguir, como parece ter sido o caso da sentença recorrida, nas competências de fiscalização da circulação rodoviária e de detenção em situações de flagrante delito, relativas a crimes puníveis com penas de prisão atribuídas à polícia municipal, entre o teste qualitativo e o teste quantitativo do álcool.
Ela não tem sustentação no texto da lei (e onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir, além de ter de se levar em consideração o princípio de que o legislador optou pelas melhores soluções de direito e soube exprimir correctamente o seu pensamento no texto da lei – art. 9º do CC), nem razão de ser, sob pena, de se converter em letra morta, uma opção legislativa clara no sentido de conferir às polícias municipais um papel coadjuvante dos OPC e das autoridades judiciárias, é certo que em termos muito limitados, às situações de flagrante delito e apenas por crimes puníveis com penas de prisão, mas que não pode ser desligada do intuito de tornar mais eficaz o combate ao crime, embora mantendo a natureza administrativa desta força policial.
Ora, no caso vertente, estando ou não detido, estando detido de forma lícita ou ilícita, o arguido sempre teria de ser submetido ao teste quantitativo do álcool e este teste sempre acusaria a taxa de 1,24 gr/litro, deduzido o erro máximo admissível, dada a natureza obrigatória do exame e em face dos critérios estritamente técnicos e científicos em que assenta este tipo de prova.
Não se trata, em rigor, de obter uma prova à custa da privação da liberdade do arguido de forma abusiva e fora das condições legais em que sãos admissíveis restrições à sua liberdade individual. É um exame objectivo, realizado por um dispositivo que sempre teria de ser levado a cabo, não tendo a detenção qualquer influência no resultado.
(sublinhado nosso).
Todavia e em razão do que se observou relativamente à doutrina constitucional e à análise da disciplina legal vigente, não podemos acompanhar o erudito entendimento expendido naquele aresto.
Por um lado, um “auto de notícia” evidencia isso mesmo: qualquer notícia, novidade ou ocorrência e não está sujeito a formalidades especiais: visa apenas dar nota do que foi observado directamente – e até pode ser adiantado verbalmente à força de segurança (que de resto elabora o próprio auto com base no auto da POLMUN, e pode igualmente fazê-lo com base nas declarações dos agentes da POLMUN).
Tal circunstância em nada briga com a inibição de condução, mormente se o OPC se deslocar ao local do cometimento do ilícito para acautelar os direitos do cidadão ou, se a POLMUN o entregar no imediato, ou no mais curto espaço de tempo, isto é, no período de tempo que leve o trânsito entre o local da ocorrência e a Esquadra ou Posto Policial mais próximo, ao OPC competente.
Por outro, somos de considerar que o teste qualitativo se distingue por natureza e finalidades do teste quantitativo: na realidade, a submissão ao teste qualitativo, enquanto medida de polícia, tem legal e praticamente uma função. É o resultado verificado pelo agente policial que legitima (ou não e em que termos) a realização do teste quantitativo.
(vg. Se o primeiro teste acusar 0,00 g/l ou 0,40 g/l não há legitimidade para a realização de qualquer outro exame, se o mesmo apresentar desde logo resultado superior a 1,2 g/l, sabem os Srs. Agentes que estão diante de um flagrante delito da prática de um crime, e está legitimada uma detenção, o que poderá, confirmado que seja o resultado através do teste quantitativo (exame de índole pericial), determinar a constituição de arguido, sujeitar o cidadão a TIR e implicar a sua manutenção (da detenção, em certas condições) até ao dia seguinte, quando deverá o arguido apresentado em Juízo).
É assim, em dois passos diversos e distintos, que está prescrita a pesquisa de álcool no sangue no regulamento legal aplicável e já citado e não temos motivos para desconsiderar a interpretação literal que nos parece inequívoca.
Donde, por considerarmos, por princípio ético-jurídico basilar que nem todos os fins são aptos a justificar os meios, não nos parece tal aresto exteriorizar a melhor interpretação dos diplomas legais citados.
Aliás, faz-se uma análise do “fruto maduro da árvore envenenada” a que, no quadro de uma constituição que impõe aos agentes do Estado o respeito rigoroso pelo cumprimento da própria constituição e da lei, que exerçam as funções de polícia cometidas na justa medida e sujeitas a um princípio de legalidade estrita e um enquadramento processual penal que salvaguarda efectivas e amplas garantias de defesa do arguido, não nos parece apropriado negar o doutrinária e jurisprudencialmente desenvolvido “efeito à distância” (vide a respeito, por todos, Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 2006) porquanto não nos parece que, no caso concreto, possa considerar-se estar-se diante de qualquer uma das suas limitações possíveis:
A prova não provém de fonte independente: advém, pura e simplesmente, da manutenção da detenção no Departamento Municipal, e só por causa dela é realizado o exame pericial (por entidade incompetente) havendo um nexo causal evidente entre uma (detenção) e outro (realização do teste quantitativo) – para o que se remete para o acima desenvolvido;
O da descoberta inevitável: atenta a natureza, características e finalidades daquele exame é absolutamente impossível, consideremos as regras da experiência comum em casos análogos, prever que (não fora aquela actuação) o resultado de um exame realizado com respeito pelos direitos do detido seria precisamente o mesmo que consta do talão do alcoolímetro junto pela POLMUN ao processo (vg. os resultados dos exames periciais são condicionados por diversos factores físicos e emocionais); e
O da mácula dissipada: observe-se que não há neste caso qualquer prova principal e prova secundária, com autonomia entre si, há um e apenas um exame pericial com um dado resultado, é este que funda a apresentação do arguido a julgamento e é precisamente com base no teor do mesmo (se validamente obtido) que o juiz apreciará do cometimento do ilícito penal com todas as decorrências (incluindo na escolha e dosimetria da pena).
Reiteramos, pois, o já expendido no Acordão do Venerando TRL que vimos acompanhando de perto (proc. 86/20.1PBCSC):
Além de que o teste quantitativo faz prova plena em Tribunal, pelo que a sua recolha deve respeitar os direitos do arguido. (...)
Ao levar o arguido do local onde o mesmo fora detido em flagrante delito, para lugar diverso do da autoridade policial competente, ao proceder à obtenção de uma prova cuja recolha não lhe competia e que excedia as suas competências legais – pois que tal segunda prova não era necessária para se constatar a existência de indícios de crime – e ao continuar a restringir a liberdade constitucionalmente consagrada do arguido para efectuar um segundo teste que não competia à Polícia Municipal efectuar, dúvidas não temos de que a respectiva prova daí resultante – a leitura da TAS proveniente do teste quantitativo – é nula nos termos do disposto no art° 126° n°s 1 e 2 al.s. a) e c) do Código de Processo Penal.
Resulta, assim, claro que sendo o teste quantitativo nulo por a Polícia Municipal não ter qualquer legitimidade para ter procedido à sua extracção e sendo esse teste a única prova que pudesse permitir concluir que no dia em questão o arguido conduzia com uma TAS de 2,50 g/l e de que o fazia com consciência e vontade, não existem os elementos objectivos nem subjectivos do tipo legal em referência. (...)

Parece-nos sobejamente clara a asserção:
Impõe-se, pois, ao juiz que tome posição no sentido de apurar, nesta justaposição de interesses, o equilíbrio sempre precário e o valor que deva prevalecer em concreto, face à verificação simples e literal da verdade material ou à sua compaginação com a forma como, violando direitos fundamentais ou de civilidade análogos a direitos, liberdades e garantias, com o é o de uma polícia administrativa que actue subordinando-se à Constituição e à Lei, ultrapassando as medidas de polícia que lhe estão atribuídas e restringido a liberdade de movimentos, a decisão e a formação da vontade do cidadão, aqui arguido, em (ab)uso da autoridade (para além do permitido legalmente e, desta forma, em detrimento de se acautelar a custódia da prova, se atropela/m garantias consititucionais, protegidas e densificadas na Lei Habilitante).
Recordamos que uma actuação fora do catálogo de medidas de polícia atribuídas, sujeitas constitucionalmente a um princípio de tipicidade e de poibição do excesso  não faz presumir a existência de urgência e necessidade de actuação, quando a adopção e cumprimento dos ditames legais permitiria a recolha análoga de prova, pelo OPC competente, e no mesmíssimo período de tempo, em nada perigando a custódia da prova.
A uma actuação inconstitucional importará o remédio radical da sua intolerabilidade na ordem jurídica, arredando-o de qualquer valoração porquanto obtida em violação do regime directamente aplicável dos Direitos, Liberdades e Garantias Constitucionais, cominando-lhe, de um lado, o regime da nulidade do acto material e, do outro, o regime das proibições de prova em matéria de processo penal.
Somos, pois, de acolher o entendimento da insusceptibilidade de valoração de uma prova obtida nestes termos, ademais, quando, repetimos e sublinhamos, havia forma de, em tempo e regularmente, aquela ter sido produzida no respeito por tais direitos civilizacionais.
A acção da POLMUN não pode, pois, merecer a tutela do Direito, num circunstancialismo em que se impunha, até por configurar legalmente uma autoridade administrativa, que esta polícia, em detrimento de tal atropelo, agisse em cooperação com as forças de segurança.
Assim julgamos no caso concreto, em abono da reintegração do direito a uma polícia que actue no quadro constitucional e legal vigentes, e no respeito pela liberdade e segurança de todos os cidadãos, impondo a adopção de mecanismos aqui materializados na pessoa do arguido, tendentes ao respeito pela vinculação funcional (art. 237.°, n.° 3 e 272.°, n.° 2, 32.°, n.° 1 e 8 da CRP) que simultaneamente comporta o princípio da tipicidade das medidas de polícia e, por outro, proíbe o excesso, aqui verificado e, através do qual foi obtida prova ilícita que, por motivos de ordem e aplicação do regime constitucional do Estado de Direito e das proibições de prova em processo penal, tem de ser desconsiderada, e não podendo ser utilizada (art. 161.°, n.° 1 e 2 al. d) do CPA e art. 126.°, n.° 1 e 2 do CPP).

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Em suma e daquilo que anteriormente se densificou, a nossa análise, pode sumariar-se da seguinte forma:
a)-A Constituição contempla a existência das polícias municipais e disciplina directa e vinculadamente o exercício das funções de polícia (art. 237.°, n.° 3 e 272.° da CRP), em títulos autónomos e não totalmente sobreponíveis.
b)-As polícias municipais são serviços administrativos do município respectivo, com eminentes funções em áreas específicas de actuação, no quadro do cumprimento de normativos administrativos emanados pela edilidade, ou cujo cumprimento e fiscalização a lei defira aos municípios.
c)-Não são forças de segurança e muito menos órgãos de polícia criminal (art. 25.° da Lei n.° 53/2008, de 29 de Agosto e art. 3.°, n.° 1 e 5 da Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio).
d)-A investigação e recolha de prova judiciária está sujeita a regras substantivas e ao iter procedimental tal qual prescrito na CRP e melhor densificado, designadamente no CPP, na Lei de segurança interna (Lei n.° 53/2008) e na Lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.° 49/2008, de 27 de Agosto).
e)-A lei não defere aos municípios a fiscalização da condução sob efeito de álcool ou substâncias psicotrópicas e muito menos a investigação e recolha de prova, enquanto actos materiais tendentes ao inquérito e investigação destes tipos criminais.
f)-A detenção pelo serviço municipal de polícia depende da verificação do flagrante delito (da prática de crime punível com pena de prisão) e tem de orientar-se à entrega, no prazo mais curto possível, do suspeito ao OPC ou força de segurança (art. 3.°, n.° 4 da Lei 19/2004 e art. 255.°, n.° 1 al. b) do CPP).
g)-A constatação do flagrante delito dá-se com a realização do teste de despiste de álcool materializado no resultado igual ou superior a 1,2 g/l de sangue, acto contínuo ao da intercepção do suspeito na condução do veículo rodoviário (é precisamente o preenchimento destes pressupostos que integra a componente objectiva do tipo de ilícito: condução de veículo a motor com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l). Nas circunstâncias de tempo e lugar em que se verificar (art. 256.° do CPP).
h)-Apenas se autoriza a adopção de medidas de polícia “fora do catálogo”, por referência ao disposto no art. 3.°, n.° 4 da Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio, em circunstâncias de comprovada urgência e necessidade, como bem visto, inexistentes, a entrega ao OPC competente para confirmação do indiciado em flagrante delito implicaria ou entrega directa ou intermediada pela entrega na Esquadra mais próxima do acontecido, mas a deslocação e a sujeição do suspeito a exame pericial na Divisão Policial de Cascais, no mesmíssimo período de tempo que demorou a sujeição ao referido teste no Departamento Municipal.
i)-O exame quantitativo que regularmente se seguirá a um teste qualitativo de resultado igual ou superior a 1,2 g de álcool por l de sangue tem a natureza e finalidades de uma perícia, com vista à averiguação (efectiva) da existência de crime e à recolha de prova materialmente processual, em ordem à submissão do agente a julgamento penal (art. 1.° e 2.° da Lei n.° 18/2007, de 17 de Maio e art. 151.° e art. 163.° do CPP).
j)-Consubstanciando acto específico de “confirmação” do flagrante delito anteriormente constatado, e de comprovação do indiciado na intercepção do suspeito, com a virtualidade de consubstanciar prova pericial subtraída à cognição do Tribunal, tem de respeitar os direitos fundamentais e de civilidade dos cidadãos.
k)-As medidas de polícia estão sujeitas a um princípio de tipicidade e de proibição do excesso (art. 3.°, n.° 4 da Lei n.° 19/2004 e art. 29.° da Lei n.° 53/2008). Não são susceptíveis de analogia (entre a polícia administrativa e a polícia judiciária tal como por referência as actos conferidos a forças de segurança ou a órgãos de polícia criminal propriamente ditos) nem de interpretação extensiva (aplicando à polícia administrativa normas insertas em outras leis habilitantes que não a que disciplina o corpo de polícia em causa) – art. 272.°, n.° 2 da CRP.
l)-A lei não confere à polícia municipal competência para a realização de quaisquer perícias ou exames específicos, mormente no que à investigação de crimes de delito comum diz respeito.
m)-Num direito penal e processual penal que respeita os direitos, liberdades e garantias e os direitos de civilidade análogos, tem o cidadão o direito a que a polícia actue estritamente vinculada a padrões de constitucionalidade e legalidade, no âmbito das competências que lhe são conferidas (sem as extrapolar) e a garantia de que a recolha de prova criminal se empreende no respeito pelos direitos pessoais e sem perturbação da capacidade de avaliação, nem da utilização da força.
n)-Um órgão incompetente para a recolha de prova criminal, que procede à realização de perícia através da manutenção de uma detenção ilegal (porque fora das condições e limites estabelecidos expressamente para a mesma) mediante o recurso à sua força (se não física pelo menos persuasiva (e coactiva), pela ostentação de distintivos e de material estritamente policial: fardamento, cinturão, algemas e arma regulamentar, evidenciador, tudo, do monopólio da força estadual efectiva sobre o cidadão), pratica um acto administrativo nulo, violador de direitos, liberdades e garantias e de nenhum efeito e o resultado do acto configura, pois, e do que se disse, prova proibida em processo penal (art. 161.°, n.° 1 e 2 al. a), d), f), g) e l) e 162.°, n.° 1 do CPA e art. 126.°, n.° 1, 2 al. b) e c) do CPP).
o)-A prova criminal obtida por esta via, aliás, a “prova rainha” única e principal, para comprovação do elemento essencial da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, não tem a virtualidade de “desligar-se” da forma e modo como foi obtida, a sua fonte é a do órgão incompetente e nenhuma outra, não se autonomiza substancialmente nem é susceptível de julgar-se validada a posteriori, recorrendo a um raciocínio analógico no sentido que, se tivesse sido obtida pelo órgão competente, no respeito pelo iter procedimental legalmente previsto e de acordo com padrões de civilidade comummente aceites: “o resultado seria sempre o mesmo”.
p)-Tal asserção inevitavelmente conduziria a permitir um julgamento de facto baseado em presunções e em demasiadas premissas conjuntivas, que não se coaduna com o grau de certeza prática e possível a que está sujeita a formação da convicção judicial, motivável por recurso a elementos objectiváveis e demonstráveis, e que não se admite, por assente em situações puramente hipotéticas e não comprováveis através da realidade dada a observar directamente em juízo (art. 25.° a 27.°, 266.°, n.° 1 e 2 e 272.°, n.° 2 e 4 conjugados com o regime dos art. 17.°, 18.° e seg., 32.° e 202.°, n.° 1 e 2, todos da CRP, tal como os art. 125.° a 127.°, 151.° e 163.°, todos do CPP).
q)-Se houvesse de facto a possibilidade, ainda que remota, de obtenção de um meio de prova secundário, (...) respeitando, portanto, os direitos fundamentais do arguido, então as autoridades formais de controlo, podiam e deviam ter utilizado esse meio alternativo. Não podemos aceitar a violação dos mais elementares direitos fundamentais (...), para, em busca de uma a pretensa verdade material, aniquilar tudo aquilo que demorou décadas a construir. É a própria CRP que confere uma unidade de sentido, de valor e concordância prática ao sistema de direitos fundamentais (...) A concordância prática do sistema (...) só poderá funcionar plenamente se (...) o próprio Estado der esse mesmo exemplo, não violando, portanto, os direitos fundamentais, e não encontrando subterfúgios para alcançar uma verdade material que não é a verdade processualmente válida (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, Coimbra Ed., 2008 p. 194-197).
r)-Concluímos, pois, que o instituto das proibições de prova, como verdadeiro mecanismo de protecção dos direitos fundamentais e, coincidentemente, dotado de protecção equivalente só pode restringir-se de acordo com as regras próprias da CRP, pelo que, conjugando o disposto no art. 32.°, n.° 1, com o n.° 8 do mesmo preceito da Constituição, somos de acolher a reacção em cadeia de eventuais lesões das normas consagradoras de proibições de prova, tal o sentido literal e hermenêutico da clara asserção: “São nulas todas as provas (...)” (vide com maiores desenvolvimentos J. J. Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. p. 388).

***

No caso em apreço, não obstante a confissão do consumo de bebidas alcoólicas, a factualidade apurada, não permite que se conclua pelo preenchimento do tipo objectivo do ilícito:
É que o arguido jamais pode confessar a taxa de alcoolemia, por carecer de razão de ciência para tal, tendo na realidade admitido a realização dos testes de álcool que lhe foram determinados pelo serviço de polícia, designadamente o teste quantitativo, cujo resultado não se valorou em virtude da desconformidade a padrões constitucionais que vinculam directamente todas as entidades públicas e privadas e, por isso, os Tribunais, e face à declaração de nulidade (do meio de obtenção) de tal prova:
A confissão feita pelo arguido só tem valor probatório relativamente a factos dos quais ele tenha ou possa ter conhecimento (nesse sentido, Ac. TRP de 26.11.2008, proc. n.º 0812537)
Sendo a taxa de alcoolémia determinável pelo alcoolímetro ou por meio de análise ao sangue, a confissão do arguido, feita na audiência de julgamento, não pode abranger tal taxa, pois falta-lhe, para o efeito, razão de ciência. (Ac. RC de 04.05.2011, Proc. 332/10.0 GCPBL.C1).
Em consequência, e por apelo à necessidade de conjugação dos elementos objectivos do facto típico ilícito com circunstâncias do foro interno, mental e emocional do cidadão visado, que apenas se aferem a partir da conjugação da verificação objectiva com as máximas da experiência comum aplicadas ao caso concreto, o qual admite o consumo de bebidas alcoólicas, mas cujo grau (como sucede paradigmaticamente com os demais crimes de perigo abstracto) não lhe é perceptível e que, tão-só relevaria se o fosse em medida superior ao previsto legalmente, para a prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez (no que aqui nos diz respeito) e só nessa medida e conjugado com a condução se poderia valorar, o que com o que se explanou, não é o caso, teremos de dar por não verificado, igualmente, o elemento subjectivo, nos moldes e com a relevância e coloração criminal que pretendia conferir-se-lhe na acusação pública apresentada.
Para além do mais, a confissão (efectivamente) não abrande a qualificação jurídica, já que a aceitação dos factos não importa a aceitação da incriminação imputada (...) faz[endo] sentido que o Tribunal possa absolver o arguido por razões de natureza processual (pressupostos processuais ou nulidades) ou de natureza substantiva (relativas à qualificação jurídica dos factos) (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª Ed., 2009, pag.863-867).
Aliás, o preceituado no art. 344.º, n.º 1 al. b) do CPP prevê precisamente a susceptibilidade de o arguido ser absolvido por outros motivos, que nada tenham que ver com a admissão dos factos em julgamento: foi exactamente o sucedido.
Finalmente, consigna-se que o Tribunal não se congratula, de todo em todo, pela conclusão a que se chega por via da forma de actuação da POLMUN e das legais consequências da mesma. Pelo contrário. No entanto, não pode é acolher como boas, porque válidas e eficazes, provas eivadas de nulidade, cuja cognição está obstaculizada, em nosso entendimento, por preceitos constitucionais e de proibição de prova, numa circunstância em que a mera alteração do procedimento policial (perfeitamente exequível e sem consequências ao nível da custódia da prova) poderia e deveria conduzir a resultados legal e constitucionalmente admissíveis. O que o Tribunal não pode, consoante acima se fundamentou, é julgar com base em probabilidades, nem em convicções, que não sejam objectivamente fundadas nem explanadas e criticamente conjugadas, devidamente.
Foi o que, por aqui, tentámos explicar.

***

Enquadramento Jurídico
Apurados os factos, cabe, agora, proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.

O arguido vem acusado da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.°, n.° 1 do Código Penal:
Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O bem jurídico protegido pela norma penal é a segurança da circulação rodoviária, embora, indirectamente, se protejam outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito dos veículos, já que a segurança no tráfego evita riscos e lesões para a vida ou integridade física.
Trata-se de um crime de perigo abstracto já que dos elementos do seu tipo legal não faz parte qualquer resultado de perigo concreto para o bem jurídico protegido; o legislador, conhecendo a perigosidade daqueles comportamentos, antecipou a tutela do bem jurídico, não esperando pela verificação de uma situação de perigo concreto ou de lesão (direito penal de prevenção).
Como se escreve no preâmbulo do Código Penal são “condutas de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social”, criando-se assim uma área avançada de tutela e colocando-se o acento tónico no desvalor da acção (trata-se de um crime de mera actividade).
Nestes crimes de perigo abstracto, o perigo é presumido pelo legislador: ao juiz fica vedada qualquer averiguação sobre a falta de perigosidade do facto.
Existe uma presunção inilidível de perigo, já que o legislador, partindo do princípio de que certos factos constituem normalmente um perigo de lesão, pune-os como crime consumado, independentemente da averiguação de um perigo efectivo no caso concreto.
Sendo assim, como escreve Germano Marques da Silva (Crimes Rodoviários, Universidade Católica Editora, pág. 14), no plano processual, basta a prova da acção típica.
A nível objectivo, este tipo legal de crime, exige uma acção de conduzir um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.
Por sua, vez, o tipo subjectivo exige o dolo, enquanto conhecimento de vontade orientada ao resultado proibido, em qualquer uma das suas modalidades (artigo 14.° do Código Penal) ou uma actuação negligente, expressa a omissão voluntária do dever de cuidado imposto pelas concretas circunstâncias. (artigo 15.° do Código Penal).
Em consonância, por falta de apuramento da conduta tipicamente ilícita (na modalidade da imputação objectiva), obviam-se ulteriores considerações, nada mais se acrescentando ao já supra exposto.
(…)”.

***

IV–FUNDAMENTAÇÃO:
Apreciando os fundamentos do recurso, diremos desde já que, face ao conteúdo da decisão proferida e aos argumentos do recorrente, aquela é de manter, sendo improcedente o recurso, o que, ao abrigo do disposto no art. 425.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, nos permite, simplesmente, remeter para os fundamentos da decisão impugnada, sem necessidade de maiores explanações.

Estabelece o citado nº 5 do art. 425º do CPP:
5.- Os acórdãos absolutórios enunciados na al. d) do nº 1 do art. 400º, que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto, podem limitar-se a negar provimento ao recurso remetendo para os fundamentos da decisão impugnada”.
Permite tal preceito que, havendo lugar a confirmação de sentença absolutória, a Relação deixe de proceder a uma fundamentação própria da sua decisão, remetendo pura e simplesmente para a da 1ª instância, sendo evidente o propósito de simplificação processual que animou o legislador ao introduzir tal norma.
A fundamentação vertida na sentença recorrida merece a integral concordância deste Tribunal da Relação. Nela estão, exaustiva e correctamente, apreciadas todas as vertentes da questão que constitui objecto do recurso, sendo que o entendimento ali perfilhado é o único compatível com os ditames da lei e da Constituição.
Subscrevemos inteiramente os fundamentos da decisão recorrida, aos quais aderimos, nos termos permitidos pelo disposto no artigo 425º, nº 5, do CPP.
Tal como decidido na sentença impugnada, também para nós constitui ponto essencial a circunstância de, por força da lei, estar vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal. Não podendo duvidar-se que a recolha de prova pericial em ordem à perseguição criminal de pessoa que conduz sob influência do álcool está incluída no exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, faltava competência para determinar ao arguido a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue.
As consequências que daí derivam não podem deixar de ser as que foram retiradas pela decisão recorrida.
Acrescentamos apenas que, para além das mencionadas na decisão recorrida e depois dela, foram já proferidas por este Tribunal da Relação de Lisboa outras decisões no mesmo sentido.
Assim se decidiu no Acórdão de 9 de Setembro de 2021[1], aresto em que igualmente se secundou a fundamentação do Tribunal de primeira instância (idêntica à que consta dos presentes autos), escrevendo-se a propósito dela:
Contém esta explanação - um relato, absolutamente fiel ao que se retira da prova, dos factos relativos às circunstâncias em que a arguida foi abordada e submetida aos exames de pesquisa de álcool (as quais aliás foram - e bem - levados à factualidade provada por, ao contrário do pretendido pelo recorrente, constituir matéria relevante e necessária à questão relativa à legalidade de prova vinculada de acordo com o direito aplicável, questão que foi aliás suscitada pela defesa, que arguiu a nulidade de prova obtida mediante sujeição a exame quantitativo - vd. acta de fs. 42.) e uma análise das questões por elas convocadas na perspectiva do direito penal que esgota, expondo-o de forma clara e inexcedivelmente detalhada, tudo quanto há a dizer a respeito de acordo com o entendimento que perfilhamos (único, com o devido respeito, conforme aos princípios e disciplina legais, maxime constitucionais), e as conclusões que em vista de tal quadro legal se impõe retirar, que na sua integralidade, subscrevemos, para tal explanação remetendo como fundamentação da decisão que proferimos ao abrigo do disposto no artº 425º nº 5 do CPP que, dado estar-se perante decisão absolutória, o legitima, sendo que, em vista do que na mesma se expõe e conclui a impugnação do recorrente em todas as suas vertentes claudica, por contrariada - no que concerne à contestação do entendimento assumido quanto à actuação da Polícia Municipal, circunstâncias da abordagem da arguida e da realização do teste quantitativo e sua validade e de toda a prova, opondo-lhe o seu diferente entendimento sobre o momento de cosumação do crime e a sua repercussão para efeitos de flagrante delito e competências da Polícia Municipal - e por prejudicada no que concerne à impugnação da decisão de facto assumida quanto a factos não provados e pretensão à sua reversão, questão cujo conhecimento, em vista do assumido quanto a legalidade e validade da prova e suas consequências, que se subscreve e em vista do qual se impõe a absolvição da arguida, se torna ínútil.”

No mesmo sentido se decidiu no Acórdão de 7 de outubro de 2021[2], em cujo sumário se pode ler:
I- Por referência ao exarado na Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, com as devidas actualizações legais, a POLMUN ( policia Municipal) não integra as forças nem os serviços de segurança (vide art. 25.º do diploma) não sendo, por isso, passível de considerar-se que as medidas gerais e especiais de polícia (art. 28.º e seg.) integradas nesta Lei de Segurança Interna constituam, no que à POLMUN diz respeito, normas atributivas de competências;
II- Mesmo sendo atribuídas funções de fiscalização do trânsito rodoviário às POLMUN, nunca se poderá entender que estas são “autoridades” para os efeitos do disposto no CE, no entanto, o limite da sua actuação terá de estabelecer-se, precisamente, quando no decorrer de tal fiscalização se verifique a prática de crime;
III- Tal entendimento estriba-se na Lei n.º 19/2004, a qual impõe a insusceptibilidade dos agentes da POLMUN praticarem actos próprios dos OPC (designadamente recolha e produção de prova), conferindo-lhes somente, e face à verificação do flagrante delito, a detenção com entrega imediata (leia-se, no mais curto espaço de tempo possível) às forças de segurança ou ao órgão judicial competente (para a instauração de inquérito crime).
IV- Só é legalmente permitido que a POLMUN acautele no local do facto típico as medidas cautelares necessárias e adequadas, mas a lei, em lugar algum permite que a POLMUN detenha (ou retenha, de qualquer forma suprimindo claramente a liberdade nas suas múltiplas e constitucionais vertentes), suspeitos identificados e proceda ao teste quantitativo e só depois entregue o/a arguido/a à PSP ou a qualquer outra entidade policial;
V-Não tendo sido tal “iter” legal cumprido pela policia municipal, tendo esta se substituído à entidade policial competente (efetuando o teste quantitativo nas suas instalações) a arguida terá de ser absolvida, pois na verdade, o teste quantitativo realizado pela Polícia Municipal, constitui uma prova proibida em processo penal (art. 161.º, n.º 1 e 2 al. a), d), f), g) e l) e 162.º, n.º 1 do CPA e art. 126.º, n.º 1, 2 al. b) e c) do CPP.”.

Por fim, o mesmo entendimento foi perfilhado no Acórdão de 14 de outubro de 2021[3]. Na fundamentação desta última decisão pode ler-se:
(…) como resulta do art.º 4.º, alínea b), da aludida Lei n.º 19/2004, a Polícia Municipal tem competência para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, mas está excluída a participação de acidentes de viação que envolvam procedimento criminal.
Ora, se a Lei não permite que a Polícia Municipal participe acidentes de viação que envolvam procedimento criminal (por, manifestamente, tal competência ser das forças de segurança com que estão em coordenação), como se pode sustentar a admissão de recolha de prova em ordem à perseguição criminal de pessoa que conduz sob influencia do álcool?
Porque assim é, estando vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, não podemos deixar de concluir que lhe faltava competência para determinar ao arguido a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no art.º 153.º, do Código da Estrada.”.

***

V.–DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em jugar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em confirmar a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
*
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
D.N.
*


O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).



Lisboa, 18 de janeiro de 2022



Juiz Desembargador Relator: Jorge Antunes  
Juíza Desembargadora Adjunta: Sandra Oliveira Pinto



[1]Ac Rel Lisboa 9 de Setembro de 2021 – Relatora Maria da Luz Batista -
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c0abf145a115524980258774004b6408?OpenDocument

[2]Ac Rel Lisboa 07.10.2021 – Relatora: Maria do Rosário da Silva Martins – acessível em
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/9b54e34edebcceeb8025877d00475685?OpenDocument

[3]Ac Rel Lisboa 14 de outubro de 2021 – Relatora: Maria José Cortes Caçador – acessível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/41f913cfdfc3af4b8025878b004e66e0?OpenDocument