Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2140/13.7TAPDL.L2-9
Relator: CARLOS BENIDO
Descritores: REGIME GERAL DAS CONTRAORDENAÇÕES
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:       

I - Atento o disposto nos art.ºs 66° do DL 433/82 de 27/10 (RGCO) que estabelece expressamente que na audiência em 1ª instância não há “lugar à redução da prova a escrito”, e no art° 75°, n.º 1 do mesmo Diploma Legal, que dispõe que “a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito”, não há lugar a documentação da prova produzida em audiência nos processos de impugnação judicial de coimas aplicadas pela autoridade administrativa.

II - Reduzido ao seu valor em si, o não registo da prova produzida em audiência, no processo de contra-ordenação, não viola qualquer garantia de defesa do arguido constitucionalmente tutelada. Trata-se, na verdade, de uma opção legítima do legislador ordinário ajustada ao princípio da celeridade e à natureza do ilícito em causa, sem quebra dos direitos de defesa do arguido.

III - É jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. A Constituição não exige a consagração de um sistema de recursos sem limites ou "ad infinitum".

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

No processo de contraordenação nº 2140/13.7TAPDL, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, actual Comarca dos Açores – Ponta Delgada – Instância Local – Secção Criminal – Juiz 2, o arguido JC impugnou judicialmente a decisão da Câmara Municipal de Ponta Delgada que o condenou pela prática de uma contraordenação, p. e p. pelos arts. 4º, nº 4, al. c) e 98º, nºs 1, al. r) e 2, do DL nº 555/99, de 16/12, na redacção conferida pelo DL nº 26/2010, de 30/03 (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), na coima de € 950,00 (novecentos e cinquenta euros).

Tal impugnação judicial foi rejeitada por despacho proferido em 13-01-2014 (cfr. fls. 70/71), com fundamento no facto de «as conclusões apresentadas não obedecerem às exigências formais exigidas por lei, mesmo após ter sido feito convite ao arguido para a sua correcção».

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido com a motivação e conclusões constantes de fls. 83/84.

O Ministério Público não respondeu.

Por acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 17-06-2014, constante de fls. 120/124, foi revogado o despacho recorrido que rejeitou a impugnação judicial, determinando-se o prosseguimento dos autos.

No cumprimento do ordenado por este Tribunal, a Mma. Juiz “a quo” procedeu à realização do julgamento tal como consta das respectivas actas (cfr. fls. 218/221, 227/228 e 246/247).

Após julgamento, foi proferida decisão que:

- Julgando improcedente o recurso, confirmou a decisão da Câmara Municipal de Ponta Delgada que condenou o arguido JC pela prática de uma contraordenação, p. e p. pelos arts. 4º, nº 4, al. c) e 98º, nºs 1, al. r) e 2, do DL nº 555/99, de 16/12, na redacção conferida pelo DL nº 26/2010, de 30/03 (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), na coima de € 950,00 (novecentos e cinquenta euros).

- Condenou o arguido em 4 (quatro) UC a título de taxa sancionatória excepcional, nos termos conjugados dos artigos 10°, do RCP, 531°, do «Código Penal», 521°, nº 1, do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi do artigo 41°, do RGCO.

De novo irresignado recorreu o arguido, concluindo da seguinte forma:

 l- Foi considerado improcedente o recurso, e por conseguinte, foi mantida a decisão administrativa recorrida, que condenou o arguido JC no pagamento da coima de 950€ (novecentos e cinquenta euros), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos artigos 4º, nº 4, alínea c) e 98º, nº 1, alínea r) e nº 2, do RJUE.

2- Foi ainda condenado o arguido, ora recorrente em 4 (quatro) UC a título de taxa sancionatória excepcional, nos termos conjugados dos artigos 10º, do RCP, 531º, do Código Penal, 521º, nº 1, do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artigo 41º, do RGCO.

3- Questão Prévia:

Da nulidade do julgamento

Cfr consta dos Autos, foi requerida cópia da gravação da Audiência de julgamento, a fls. 230.

4- A Mª Juíza, proferiu o despacho de 17/11/2014, indeferindo a pretensão do arguido por todas as razões ali referidas.

5- Salvo o devido respeito, e independentemente, do disposto nos artigos 66 e 75. 1 do RGCO, certo é que o arguido, tem o direito se inteirar na totalidade de todo o declarado na Audiência de julgamento, por todos os intervenientes, independentemente de estar impossibilitado de recorrer da matéria de facto, até mesmo, se assim o entender para responsabilizar o Município de Ponta Delgada noutra sede.

6- Além do mais, entende o arguido que, o disposto nos artigos 66 e 75. 1 do RGCO , é inconstitucional, visto que limita a defesa do arguido, impedindo a sindicância da matéria de facto, por um Tribunal Superior, violando o nº 1 do art° 32 da C.R.P, nomeadamente o direito á ampla defesa do arguido inconstitucionalidade, que desde já se invoca, concedendo um poder quase absoluto ao julgador na 1ª instância, que fica com as mãos livres, para fazer o que quiser já que para além de beneficiar do principio da imediação, e da interpretação e análise da prova sujeita á sua livre convicção, que por si só, tem associado uma enorme carga de subjectivismo, deixa ainda o recorrente arguido, impossibilitado de recorrer da matéria de facto e até mesmo mitigado para recorrer da matéria de direito, já que as gravações são essenciais, também para o enquadramento legal, da questão a decidir.

7- Não tendo sido entregue a gravação da Audiência de julgamento ao recorrente, que requereu a mesma, pelo facto de não existir, salvo o devido respeito, deverá ser declarado nulo o julgamento e ser ordenado a sua repetição na totalidade.

Por tudo o que vai acima exposto, deverá proceder na totalidade o presente recurso e consequentemente:

1- Ser declarado nulo o julgamento e ser ordenado a sua repetição na totalidade, como é de Justiça.

Respondeu o Município de Ponta Delgada, concluindo:

1. O único fundamento do presente recurso é o da suposta violação do artigo 32, nº 1 da CRP.

2. Esta disposição não é aplicável directamente ao processo de contraordenação, cujo regime resulta de outras disposições constitucionais e do RGCO por opção do próprio legislador constitucional.

Nestes termos, e deve ser negado provimento ao presente recurso, e ainda aplicada ao recorrente de uma taxa sancionatória excepcional, ao abrigo do disposto nos artigos 10º do RCP, 531º do CP, 521º nº 1 do CPP, aplicáveis ex vi artigo 41º do RGCO, com todas as consequências legais.

Porque só assim se aplicará todo o Direito e se fará Justiça!

Respondeu o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso.

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do CPP, não houve qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Recordemos a realidade factológica certificada pelo Tribunal Recorrido

1. Factos provados:

1 - Iniciada em data não apurada mas concluídas no dia 8.11.2012, o recorrente JC levou a efeito obras de construção civil consistentes na construção de anexos, que por amostra apresentam 8 metros de comprimento e 2,50 metros de largura, 5 metros de comprimento e 3,5 metros de largura e na construção de uma escada com 0,90 metros de largura que dá acesso ao balcão, na moradia sita na Rua X, freguesia de S. Sebastião, concelho de Ponta Delgada.

2 - O recorrente executou as obras descritas em 1) sem proceder à respectiva comunicação prévia sem o que a lei não consente que se levem a efeito obras com tais características, e fê-lo representando a necessidade de tal comunicação prévia e querendo assim levar a efeito aquelas obras.

3 - A 31.01.2013 requereu ao Município de Ponta Delgada uma alteração ao alvará de loteamento (Proc. 2/2013), processo ainda não concluído pelo recorrente.

4 - O recorrente tem antecedentes contra-ordenacionais em matéria de direito urbanístico, tendo corrido contra si os seguintes processos:

• Processo 48/2012-COOBPA, condenado na coima de 600€ por inexistência de licença de utilização do imóvel sito na Rua X, que afecta a habitação, sem o devido licenciamento municipal, situação ocorrida em 15.02.2012, e que integra a prática da contraordenação p. e p. pelos artigos 4°, nº 5, e 98°, nº 1, alínea d), do RJUE - a coima encontra-se paga e o processo arquivado;

• Processo 37/2012 COOBPA, condenado na coima de 1.000€, por ter efectuado obras no imóvel sito na Rua X, sem ter licença para o efeito, situação detectada em 23.02.2012, e que integra a prática da contraordenação p. e p. pelos artigos 4°, nº 2, alínea c) e 98°, nº 2, do RJUE - a coima encontra-se paga e o processo arquivado.

2. Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a boa decisão da causa, designadamente:

1 - O recorrente estava convencido que as obras dispensavam a respectiva licença municipal.

3. Em sede de fundamentação da decisão de facto consta da sentença o seguinte:

«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida nos autos.

Os factos dados como provados resultam da análise conjugada da prova documental junta aos autos, designadamente o auto de notícia de fls. 3-4, certidão positiva de fls. 5; fotografias de fls. 11-12, alvarás de fls. 22-27; certidão extraída dos processos de contraordenação levantados ao recorrente por infracções ao RJUE, e que consta de fls. m145-210; com as declarações prestadas pelo recorrente JC e o depoimento das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento: A e B, agentes da Polícia Municipal, que fiscalizaram a obra em 2011 e 8.11.2012, respectivamente; Eng.  C e Arqtº D.

E começaremos por dizer que a realização das obras nos termos descritos na decisão administrativa é pacífica, tendo sido omanimente reconhecido por todas as testemunhas inquiridas bem como pelo próprio recorrente, e decorre igualmente das fotografias de fls. 11-12, que os anexos foram construídos. Que o recorrente não comunicou previamente a realização de tais obras também é pacífico. O único ponto controvertido prende-se com o elemento subjectivo do tipo, isto é, no conhecimento - ou não - por parte do recorrente da necessidade de proceder a essa comunicação prévia.

E desde já diremos que não ficou o Tribunal com qualquer dúvida em como o recorrente sabia dessa necessidade, o que, aliás, foi expressamente reconhecido pelo próprio, que com simplicidade referiu que sabia que era preciso a licença mas queria despachar as obras, pelo que fez as mesmas sem licença. É certo que o recorrente teve recentemente um AVC, como o próprio referiu, e ficou com algumas limitações, designadamente de locomoção, como foi dado percepcionar ao Tribunal, contudo, o seu discurso foi sempre coerente, demonstrando manter incólumes as suas capacidades cognitivas, pelo que a sua afirmação e explicação para a realização das obras não mereceu qualquer reserva por parte do Tribunal.

Mas mesmo que o recorrente não tivesse admitido expressamente saber da necessidade de obter uma licença de construção para a realização das obras que efectuou, sempre o Tribunal chegaria a essa mesma conclusão pela análise conjugada da prova documental junta aos autos com o depoimento das testemunhas. Concretizando. O recorrente iniciou as obras de construção do anexo, se não antes, pelo menos no inicio de 2011, pois em Maio desse ano R deslocou-se ao local e viu que estavam a ser realizadas obras de construção do anexo. Na altura falou com o recorrente e avisou-o da necessidade de pedir licença para a realização daquelas obras, de tudo ficando o recorrente ciente. Mas não só o recorrente não pediu a licença, como continuou a efectuar as obras, as quais se encontravam concluídas em 8.11.2012, quando o agente F compareceu no local, tendo esclarecido o recorrente que era necessário legalizar a situação, tendo-o esclarecido quanto aos locais onde tinha de se dirigir.

Ora, da conjugação do depoimento das supra referidas testemunhas, mesmo que se admitisse que num primeiro momento - isto é, no início de 2011 - o recorrente não estava consciente da necessidade de obter uma licença de construção, essa necessidade tornou-se do seu conhecimento em Maio de 2011. Contudo, ao invés de suspender a obra e ir obter a necessária licença, não só não pediu a licença, como continuou a obra até à sua finalização. Ou seja, se não antes, pelo menos desde 17.05.2011 que o recorrente sabia que não podia fazer as obras sem mais; sabia que havia trâmites legais a cumprir, desde logo comunicar à Câmara a realização das obras.

Se o recorrente sabia da necessidade de proceder a tal comunicação para levar a cabo a construção dos anexos, e se ainda assim prosseguiu com a edificação até à conclusão das obras sem ter iniciado junto da entidade competente o necessário processo, é manifesto que sabia que a sua conduta era violadora de regras definidas por lei e que incorria na prática de uma contraordenação.

Em suma, fase à prova produzida em audiência de julgamento, dúvidas não teve o Tribunal quanto ao acerto da factualidade dada como provada na decisão administrativa, designadamente quando se imputa ao recorrente o conhecimento da necessidade de obter licença de construção. E se assim é, foi dado como não provado que o recorrente estivesse convencido que as obras se encontravam dispensadas de licenciamento.

Os antecedentes contra-ordenacionais foram dados como provados com base na certidão junta a fls. 145-210.

Que se encontra pendente um processo com vista à legalização dos anexos é facto pacífico, e que decorre não só das declarações do recorrente, como da prova documental existente nos autos, designadamente o requerimento de fls. 18, notificação do Município de Ponta Delgada a fls. 19, e do depoimento de O, arquitecto que ajudou o recorrente a iniciar e instruir o processo de legalização entrado nos competentes serviços em 31.01.2013, e que ainda não se encontra finalizado.».

4. Como é sabido o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação [artº 412º, nº 1, do CPP, ex vi do disposto no artº 74º, nº 4, do DL nº 433/82, de 27/10, doravante designado por RGCO] e que os poderes de cognição deste Tribunal ad quem se confinam à matéria de direito [artº 75º, nº 1, do RGCO].

E de acordo com as conclusões as questões a decidir são as seguintes:

- A nulidade resultante da não documentação da prova produzida em audiência de julgamento;

- A inconstitucionalidade das normas contidas nos arts. 66º e 75º, nº 1, do RGCO.

Vejamos, então, as questões elencadas pelo recorrente.

4.1. A nulidade resultante da não documentação da prova produzida em audiência de julgamento.

Insurge-se o recorrente contra a não documentação da prova produzida em audiência de julgamento, arguindo, em consequência, a nulidade do mesmo, não indicando, todavia, qual a norma que sanciona a não documentação com nulidade do julgamento.

Vejamos.

Dispõem os arts. 66º e 75º, nº 1, do RGCO, respectivamente, que «Salvo disposição em contrário, a audiência em 1.ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito» e «Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões».

A propósito do artº 66º escrevem António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral que «O presente normativo remete para o artigo 13º do Decreto-Lei 17/91 de 10 de Janeiro, que regula a audiência de julgamento das transgressões e contravenções.

Perfilhamos o entendimento de que a aplicabilidade dos nº 1, 2, 3 e 4 daquele artigo 13 é colocada em causa pelo disposto nos artigos 62º, nº 1, 69º e parte final do presente artigo 66º.

(…)

Da expressão “não havendo lugar à redução da prova a escrito” utilizada na norma anotada resulta que não se aplicam os nº 3 e nº 4 do citado artigo 13º, nem o artigo 363º do Código de Processo Penal, o que, aliás, está de acordo com o disposto no artigo 75º.

Conclui-se por esta forma que, do artigo 13º do Decreto-Lei 17/91, aplicam-se, apenas, os nºs 5 a 7…» [in “Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, 2003, pág. 177].

No mesmo sentido pronuncia-se António Beça Pereira, acrescentando que «A expressão não havendo lugar à redução da prova a escrito deve ser (actualmente) entendida como também não permitindo a gravação da audiência. A proibição de gravar a audiência ou de reduzir a escrito a prova está conforme o disposto no artigo 75º, que estabelece que, em sede de recurso, a 2ª instância apenas conhece da matéria de direito» [in “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, 7ª ed., Almedina, págs. 142/143].

No sentido de que não se verifica a nulidade do julgamento por falta da gravação da audiência pronunciou-se o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 13-02-2013, Proc. nº 786/12.0TBSJM.P1, acessível em www.dgsi.pt, assim sumariado:

«I – A gravação da prova produzida em audiência visa, por um lado, o refrescar da memória para efeitos probatórios do próprio tribunal; e, por outro, “assegurar a correspondência entre a prova que é produzida e a que resulta do julgamento” (G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2009, 3ª ed. pág. 264), como condição essencial para, em sede de recurso, se reapreciar a matéria de facto em caso de impugnação desta.

II - O meio de documentação consiste na gravação da prova por meios de gravação magnetofónica ou audiovisual e/ou outros que visem a reprodução integral e substituiu o anterior sistema de redução a escrito das declarações prestadas.

III – Atento o disposto nos art.ºs 66° do DL 433/82 de 27/10 (RGCO) que estabelece expressamente que na audiência em 1ª instância não há “lugar à redução da prova a escrito”, e no art° 75°, n.º 1 do mesmo Diploma Legal, que dispõe que “a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito”, não há lugar a documentação da prova produzida em audiência nos processos de impugnação judicial de coimas aplicadas pela autoridade administrativa.».

Face às disposições normativas supra enunciadas, das quais resulta, sem margem para dúvida, não haver lugar à redução a escrito da prova e, logo, à gravação dos actos da audiência, impõe-se concluir no sentido de não se verificar a arguida nulidade.

4.2. A inconstitucionalidade das normas contidas nos arts. 66º e 75º, nº 1, do RGCO.

Suscita, ainda, o recorrente a inconstitucionalidade das normas dos arts. 66º e 75º, nº 1, do RGCO, na medida em que limitam a defesa do arguido, impedindo a sindicância da matéria de facto, por um tribunal superior, violando o nº 1, do artº 32º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Antes de mais, e como bem refere o recorrido, diga-se que o nº 1, do artº 32º, da CRP não trata do regime processual da impugnação das contraordenações, pois contém outra disposição expressa que trata dessa matéria, que é o seu nº 10.

«A propósito do nº 10 do citado artº 32º, da CRP escrevem Jorge Miranda e Rui Medeiros “O nº 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas” [in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 363].

É claro que o recorrente não põe em causa que tenha sido ouvido no decurso do processo, fazendo, antes, entroncar as ditas inconstitucionalidades na circunstância de, em processo de natureza contraordenacional, o legislador vedar, em princípio – e na vertente da impugnação “alargada” - o recurso da matéria de facto.

Nisto residiria, pois, o assinalado vício.

Ora, sobre a inconstitucionalidade agora suscitada já por diversas vezes se pronunciou o Tribunal Constitucional.

Assim, no acórdão do TC nº 50/99, a propósito, ficou consignado: “…o registo da prova produzida em audiência, vedado pelo artigo 66º do DL 433/82, não releva em si, mas enquanto meio que permite ou facilita o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso; mas, não impugnada a constitucionalidade da norma que apenas confere ao tribunal de 2ª instância poderes de revista, o juízo de constitucionalidade relativo ao artigo 66º do DL nº. 433/82 terá que cingir-se à norma em causa em confronto com as regras constitucionais apontadas pelo recorrente, sem qualquer relacionamento valorativo com a inerente limitação que o seu conteúdo perceptivo implica em matéria de reapreciação da matéria de facto.

É que se eventualmente o tribunal entendesse que a proibição de registo da prova infringia as garantias de defesa do arguido isso só teria utilidade se viesse a declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 75º nº. 1 do DL nº. 433/82, o que lhe é vedado pelo princípio do pedido.

Admite-se que o recorrente pretendesse impugnar a constitucionalidade da norma em tal perspectiva; simplesmente teria que integrar essa norma num complexo que abrangesse, expressamente, o artigo 75º nº. 1 do DL nº. 433/82, o que não fez.

Na dimensão que, por força da limitação do pedido, o tribunal terá que considerar, a norma ínsita no artigo 66º (parte final) do DL nº. 433/82 não viola o artigo 32º nºs. 1 e 8 da CRP, na versão de 89, ou do mesmo artigo nºs. 1 e 10, na redacção de 97.

Reduzida ao seu valor em si, não se vê como o não registo da prova produzida em audiência, no processo de contra-ordenação, viole qualquer garantia de defesa do arguido constitucionalmente tutelada…

Trata-se, na verdade, de uma opção legítima do legislador ordinário ajustada ao princípio da celeridade e à natureza do ilícito em causa, sem quebra dos direitos de defesa do arguido.

Registar ou não a prova produzida é, em si mesmo e no confronto com os direitos de defesa do arguido em audiência, irrelevante; o juízo que o julgador de 1ª instância faça, em matéria de facto, sobre essa prova não se determina por princípios diversos consoante a prova é ou não registada.

Daí que o próprio recorrente só aponte para uma suposta inconstitucionalidade da norma enquanto esta impede o controle da prova por outro grau de jurisdição, o que - vimos já – é vedado por outra norma (a do artigo 75º nº. 1 do DL nº. 433/82) cuja (des)conformidade constitucional não poderá ser apreciada por este Tribunal.

Em suma, pois, a norma ínsita na parte final do artigo 66º do DL nº. 433/82 não viola o artigo 32º nºs. 1 e 8 da CRP, na versão de 89, ou do mesmo artigo nºs. 1 e 10, na redacção de 97”.

Isto dito, não se vendo no artº 66º, do RGCO, de per si, qualquer afronta quer ao direito de defesa quer ao direito a um processo equitativo, vejamos, então, a problemática no confronto com o nº 1, do artº 75º.

Também a tal respeito o acórdão do Tribunal Constitucional nº 73/2007 não deixa margem para dúvida enquanto refere: “Pelo que tange à norma que se extrairá dos artigos 66º e 75º (recte, do nº 1 do artº 75º) do aludido Regime Geral (que prescrevem, respectivamente, que salvo disposição em contrário, a audiência em 1.ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito e que se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões), …., a acoimada intentou suscitar uma questão de enfermidade constitucional da norma que se retira da conjugação daqueles preceitos, norma essa segundo a qual a prova produzida em audiência no recurso de impugnação da decisão administrativa impositora de coima não é reduzida a escrito e que, salvas as excepções previstas naquele Regime Geral, os tribunais das relações, nos recursos interpostos das sentenças exaradas no recurso das citadas decisões administrativas, só conhece da matéria de direito.

Sendo este o problema que é colocado ao Tribunal no recurso em presença, apresenta-se o mesmo como manifestamente infundado.

Na realidade, não esquecendo a jurisprudência deste Tribunal que, a respeito da garantia do asseguramento de um segundo grau de jurisdição em matéria criminal, tem sido seguida, e que é espelhada exemplificativamente no aresto ora recorrido …, o que se não pode escamotear é que a sentença a proferir pelo tribunal de 1ª instância em processos do jaez do presente é de considerar como uma decisão a proferir já em grau de reapreciação – justamente porque se trata de um recurso que incidiu sobre a decisão que aplicou a coima -, representando, assim, o recurso dessa sentença para o tribunal da relação uma segunda reapreciação da matéria.

Ora, é destituída de razão a argumentação de que, em casos como o presente - em que já houve recurso para o tribunal comum da decisão administrativa impositora de coima -, a Constituição impõe que a prova a produzir em audiência perante esse tribunal tenha de ser reduzida a escrito, com vista a que a matéria de facto seja, uma vez mais, reapreciada, desta feita pelo tribunal da relação.

Um tal entendimento conduziria a que se considerasse que o Diploma Básico exige um segundo grau de apreciação, por via recursiva, da matéria de facto o que, como se disse, nunca foi – antes pelo contrário – sustentado por este Tribunal”.

Em idêntico sentido pronunciam-se Jorge Miranda e Rui de Medeiros ao deixar consignado: “É jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos “patamares” de recurso (Acórdãos n.ºs 72/99 e 431/02). Por maioria de razão, a Constituição não exige a consagração de um sistema de recursos sem limites ou ad infinitum(Acórdão nº 125/98) [in. ob. cit., pág. 200].

Resulta, assim, do que se deixou consignado, assegurado que se mostra em processo contraordenacional um duplo grau de jurisdição, com o tribunal da 1.ª instância a funcionar como instância recursiva, que a intervenção, em princípio, da 2.ª instância como tribunal de revista, não colide quer com o direito de defesa quer com o direito a um processo equitativo, ambos com assento constitucional» [Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-01-2012, Proc. nº 1511/10.5TBTNV.C1, acessível em www.dgsi.pt].

Ainda neste sentido, veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 3-05-2011, Proc. nº 6146/10.0TBBRG.G1, acessível em www.dgsi.pt, assim sumariado: “I - As normas contidas nos artigos 66º e 75º, n.º 1 do RGCO, as quais impedem o recurso da matéria de facto, não violam os direitos de audiência e defesa constantes do artigo 32º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa, por neste último preceito se não incluir o direito a um duplo grau de jurisdição”.

Nos termos expostos, não se verificam as invocadas inconstitucionalidades.

5. Do confronto da fundamentação de direito com o dispositivo da sentença recorrida, verificamos que neste existe um lapso material que urge corrigir, por força do disposto no artº 380º, nºs 1, al. b) e 2, do CPP.

Assim, onde consta:

«condeno o recorrente em 4 (quatro) UC a título de taxa sancionatória excepcional, nos termos conjugados dos artigos 10°, do RCP, 531°, do Código Penal, 521°, nº 1, do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artigo 41°, do RGCO»;

passará a constar:

«condeno o recorrente em 4 (quatro) UC a título de taxa sancionatória excepcional, nos termos conjugados dos artigos 10°, do RCP, 531°, do Código de Processo Civil, 521°, nº 1, do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artigo 41°, do RGCO».

III – DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juizes da 9ª Secção deste Tribunal da Relação em:

1. Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido JC, confirmando a sentença recorrida.

2. Determinar a correcção, na sentença recorrida, do individualizado lapso material, nos precisos termos expostos em II-5..

3. Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5UC.

Lisboa, 28 de Maio de 2015

Carlos Benido

Francisco Caramelo