Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
886/15.4T8SXL.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I. Compete aos tribunais judiciais julgar a impugnação de deliberação de assembleia de proprietários e comproprietários que aprovou um projeto de divisão de prédios integrantes em área urbana de génese ilegal (AUGI).
II. Se o autor formular o petitório requerendo o reconhecimento da totalidade dos fundamentos apresentados para a obtenção da declaração de invalidade da deliberação impugnada, deverá aquele ser alvo de adequada interpretação, ou seja, a consideração de um único pedido (declaração de invalidade da deliberação impugnada), assente em vários fundamentos (entre os quais a invalidade da atuação da Câmara Municipal em que assentou a deliberação impugnada).
III. Se entre os fundamentos alegados para sustentar a invalidade da deliberação impugnada se contar a invalidade de atos praticados por Câmara Municipal, cuja apreciação cabe aos tribunais administrativos, o juiz do tribunal judicial deverá, nos termos do art.º 92.º do CPC, optar ou por sobrestar na decisão, a fim de que essa questão seja julgada pelo tribunal administrativo competente, ou prosseguir a ação, julgando essa questão com efeitos circunscritos ao processo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 23.4.2015 Fernando (…) intentou na Secção Cível da Instância Local do Seixal da Comarca de Lisboa ação declarativa com processo comum contra Administração conjunta da AUGI (…).
O A. alegou, em síntese, ser titular inscrito de um determinado número de avos indivisos de um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal. Por sua vez a R. é a entidade equiparada a pessoa coletiva constituída nos termos e para os efeitos da Lei n.º 91/95, de 02.9 (Lei das AUGI), para realizar a reconversão da AUGI designada por (…), a qual integra no seu perímetro parte do prédio acima referido. No dia 21.3.2015 realizou-se uma assembleia de proprietários e comproprietários no âmbito da administração conjunta, a qual deliberou a aprovação, por maioria, de um alegado projeto de divisão da coisa comum, por acordo de uso dos prédios integrantes da AUGI, entre os quais a parte do prédio acima referida.
Ora, o A. pretende impugnar tal deliberação, nos termos do art.º 12.º n.º 8 da Lei das AUGI. Com efeito:
a) O projeto de divisão assentou no alvará de loteamento n.º 2/2013, de 23.9, da Câmara de Seixal, o qual é inválido porque:
i) Constitui uma operação de loteamento parcial de um prédio (n.º 4135 de Fernão Ferro) que não se circunscreve ao concelho do Seixal mas inclui igualmente uma parcela do concelho de Sesimbra (AUGI 18 de Sesimbra), pelo que é inválida, pois a lei preclude a possibilidade de loteamentos parciais de prédios;
ii) O alvará sujeita a operação de loteamento a condições substantivamente inaceitáveis e legalmente infundamentadas;
iii) O alvará 2/2013 já não detém eficácia, pois as respetivas deliberações foram objeto de pedido de alteração;
iv) Tal pedido de alteração foi votado favoravelmente pela CMS em 15.01.2015, deliberação essa que enferma dos mesmos vícios supra referidos em i) e ii);
b) Os atos prévios da administração conjunta padecem de irregularidades insanáveis, que obstam a que a deliberação impugnada produza efeitos:
i) Na convocatória atribuía-se número de votos aos interessados contrário ao legal;
ii) Não foram postos à disposição dos interessados, para consulta, os documentos legalmente exigidos;
iii) O projeto de divisão não reúne os requisitos legais;
c) Aparentemente, a avaliar pelo extrato da ata publicado no Diário de Notícias, a deliberação não foi aprovada pela maioria legalmente exigida;
d) A titulação prevista para a divisão (documento particular autenticado por advogada) não respeita a forma legal especialmente prevista (escritura pública).
O A. terminou formulando o seguinte petitório, que se transcreve:
Termos em que deve a acção ser julgada procedente e provada e, por via dela:
- Serem reconhecidas, para efeito dos presentes, como inválidas as deliberações da CMS de delimitação da AUGI (…), da licença de reconversão da AUGI (…) e o respectivo alvará nº 2/2013 de 27 de Setembro;
- Que, ainda que tudo assim não fosse, não poderia o dito alvará titular a divisão da coisa comum por acordo de uso da AUGI (…), porque não cumpre os requisitos do art. 37º nº 1 da Lei das AUGI;
- Ser declarado que a assembleia de aprovação do projecto de divisão não poderia em qualquer caso ter lugar, porque à data da sua realização não estava ainda titulado o fraccionamento resultante da deliberação de CMS de 15/1/2015,
- a assembleia não podia submeter à divisão os lotes cuja constituição e capacidade construtiva estão dependentes de condição suspensiva ainda não verificada;
- São nulos o método de votação adoptados e a composição da assembleia,
- A proposta de divisão apresentada à assembleia é ininteligível e incompleta, não se podendo dela intuir qual o valor dos lotes, qual o quinhão de cada um e os termos da respectiva aquisição e se há lugar a tornas de parte a parte, pelo que a mesma não pode integrar a escritura de declaração de divisão, posto que a comissão de administração está inibida de completar essas omissões sob pena de excesso de representação;
- Desconhecendo-se embora se os presentes na assembleia, mau grado a sua composição inicial ser nula, poderiam ainda assim cumprir o quorum legal (maioria absoluta do capital), que a votação publicada no extracto da acta de doc. 2 (maioria absoluta dos presentes), não é susceptível de sustentar a aprovação daquela proposta;
- E que a publicação de doc. 2 é inválida porquanto, não podendo a declaração de divisão em AUGI ser outorgada por documento particular autenticado, a mesma não indica o cartório notarial onde vai ter lugar a sua realização, tudo com as legais consequências.
A R. contestou, por exceção e por impugnação.
Por exceção, arguiu a incompetência absoluta do tribunal e a ilegitimidade ativa do A. (por estar desacompanhado da mulher); por impugnação, negou os vícios e irregularidades invocados pelo A.. Mais requereu que o A. fosse condenado em multa e indemnização como litigante de má fé.
O A. respondeu, pugnando pela improcedência das exceções arguidas e concluindo como na petição inicial.
A R. pugnou pela inadmissibilidade da aludida resposta.
Por despacho de 21.9.2015 a dita resposta foi admitida, em nome do princípio do contraditório e da adequação processual.
Em 21.9.2015 foi proferida decisão que julgou procedente a exceção de incompetência do tribunal quanto à matéria e por conseguinte absolveu a R. da instância.
O A. apelou desta decisão, tendo apresentado alegação em que formulou as seguintes conclusões:
A)- A Lei 91/95 de 2 de Setembro (Lei das AUGI) reveste natureza multidisciplinar, estabelecendo normas especiais e excepcionais a nível do direito público e privado, donde resultam diversas competências jurisdicionais em razão da matéria: assim sendo, a competência para as apreciar depende objectivamente do fim que o processo visa atingir.
B)- O A. veio a este autos impugnar a deliberação da Assembleia de Comproprietários da Ré que, para efeitos do art. 38º nº 1 da Lei das AUGI, aprovou o projecto de divisão da coisa comum; tal impugnação é feita nos termos dos arts. 38º nº 2 e 12º nº 8 do citado diploma, ou seja, no âmbito da administração conjunta e na esfera dos particulares.
C)- Para tanto invocou diversos fundamentos (ou “factos e pedidos instrumentais”, como se queira), que obstam a que o projecto de divisão da coisa comum - fosse qual ele fosse – pudesse ser aprovado na dita assembleia: impossibilidade legal do fraccionamento resultante de um alvará que apenas loteia parte do prédio, irregularidades da convocatória, do funcionamento da assembleia e da publicação da deliberação e da forma como a Ré pretende titular o acto de declaração da divisão “por acordo de uso”.
D)- A douta decisão considerou – erradamente – tais fundamentos como “cumulação de pedidos”, declarando-se incompetente e em termos absolutos para os apreciar em razão da matéria, sendo que, para tal, considerou competentes os tribunais administrativos.
E)- Tal douta avaliação improcede de todo, quer se evidencie o pedido do A., quer os seus fundamentos, o que se passa a explicitar:
F)- O único pedido instrumental que poderia alguma dúvida suscitar quanto à competência em razão da matéria seria o de que fossem reconhecidas como inválidas as deliberações da CMS de delimitação da AUGI, da licença de reconversão e do alvará.
Contudo, para além do facto de qualquer tribunal poder declarar a nulidade dos actos administrativos (art. 134º nº 2 do CPA), é patente que o A. pede que tais actos sejam apreciados à luz dos seus efeitos para a divisão da coisa comum, sem questionar a sua validade formal ao nível do direito administrativo:
- O alvará abrange apenas parte do prédio (…) de Fernão Ferro, pelo que seria pré-requisito da sua validade que essa parte fosse desanexada da restante em sede de registo predial;
- O alvará constitui condicionadamente 24 lotes em Reserva Ecológica Nacional (REN) e 33 lotes em zona “non aedificandi”, pelo que não poderiam ir à divisão sem que essas condicionantes fossem previamente levantadas.
G)- Mais se alegou que o alvará não pode titular a divisão realizada pelo procedimento do “acordo de uso”, porque não cumpre o requisito do art. 37º nº 1 da Lei das AUGI, ou seja, porque não declara a existência de um “acordo de uso” ou, de forma ainda mais simples, não declara que a solução da reconversão corresponde na sua essência ao loteamento ilegal.
Perpassando da douta decisão que a mesma considera tal norma como administrativa, trata-se efectivamente de um fundamento de impugnação no âmbito do direito privado, porquanto, não fossem outras insuficiências imputadas, o alvará poderia titular a divisão pela via notarial ou judicial.
H)- Mais se invocou que a assembleia impugnada não poderia ter tido lugar para o fim pretendido porque, à data da sua realização, o alvará apresentado já havia caducado, por força de um pedido de alteração substancial, deferido em 15 de Janeiro de 2015, cujo prazo de reclamação administrativa não estava ainda concluído e que o novo alvará não tinha ainda sido emitido.
Mais um caso só na aparência de direito administrativo em se dirime uma questão de direito privado: sem licença administrativa válida o prédio rústico não pode ser fraccionado abaixo da unidade mínima de cultura: art. 1376º nº 1 do Código Civil.
I)- Outro fundamento invocado, simétrico do primeiro, foi que, não podendo ser autorizada a constituição condicionada de lotes em REN e em zona “non aedificandi”, também a Comissão de Administração não poderia incluir os mesmos no projecto, como se já tivessem existência legal: mais uma questão de direito privado.
J)- Os restantes fundamentos invocados não são susceptíveis de beliscar directa ou indirectamente o direito público, pelo que se dão como reproduzidos.
K)- Mas, mesmo que diverso se entendesse, nunca deixaria o tribunal recorrido de ser a instância competente para apreciar o pedido de impugnação da assembleia, por força da regra da extensão da competência prevista no art. 91º nº 1 do NCPC, que a douta decisão recorrida recusa aplicar.
L)- O A. desconhece se a questão aqui suscitada já terá sido objecto de apreciação das instâncias, o que se duvida, atenta a sua particularidade.
Contudo, é unânime a jurisprudência numa questão paralela, nomeadamente sobre a possibilidade de a validade das licenças municipais poder ser apreciada no âmbito do processo de expropriação, inquestionavelmente da competência do tribunal comum. (ver acs. citados).
M)- Aliás, a douta decisão recorrida sustenta-se numa jurisprudência simétrica em que, sendo a matéria principal da competência do tribunal administrativo, declara que é este o tribunal competente para apreciar duas questões incidentais cíveis; logo, “mutatis mutandis”…
N)- Foi por isso, ao fim ao cabo e sem sucesso, que o A. declarou expressamente que a invalidade das decisões administrativas em causa tivesse efeito apenas neste processo, constituindo nele e apenas nele caso julgado formal.
O)- Acresce que, mesmo que fosse outro o entendimento, ou seja, que esse fundamento concreto de declaração de incompetência devesse proceder – no que se não concede – sempre restariam os restantes fundamentos invocados de natureza exclusivamente privada, não podendo nunca o tribunal declarar-se absolutamente incompetente para julgar a causa.
Pelo que, seja qual for o entendimento, seria sempre o tribunal cível o competente para apreciar o pedido do A., ainda que, neste caso, com base apenas nos restantes fundamentos.
P)- Ao decidir em contrário, a douta decisão recorrida, para além de outras normas acima citadas, viola expressamente o disposto no art. 134º nº 2 do CPA e 91º nº 1 do NCPC, devendo como tal ser revogada.
O apelante terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente e, por via dele, o tribunal comum fosse declarado competente para julgar a demanda, remetendo-se os autos à 1.ª instância para prossecução dos seus termos.
O apelado contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O Recorrente intentou a presente acção, alegadamente nos termos do artº 12º nº 8 da Lei 91/95 de 2 de Setembro, onde supostamente pretendia impugnar as deliberações aprovadas em assembleia geral de comproprietários de 21 de Março de 2015 da AUGI FF-71.
2. Porém a referida acção apenas serviu para o Recorrente colocar em crise matéria que não é da competência da presente instância judicial apurar.
3. A Lei 91/95 de 2 de Setembro, é uma lei especial, contudo não se substitui a normas de natureza pública, nem é a mesma aplicável na resolução de questões iminentemente administrativas.
4. Independentemente da multidisciplinariedade que a Lei das AUGI possa ter, nada disso releva, quando as questões que são suscitadas foram praticadas pela Autarquia, neste sentido só teria que se apresentar junto dos tribunais administrativos dentro dos prazos legais e pôr em causa esses actos administrativos praticados pela edilidade.
5. O Recorrente não pretende apenas impugnar uma deliberação tomada pela assembleia de proprietários e comproprietários da AUGI, mas sim cumular vários pedidos, sendo que tal como se identificou, como primeiros, pretende que o Tribunal a quo invalide três actos de natureza administrativa: a) invalidade de deliberação camarária de delimitação da AUGI, b) invalidade de licença de reconversão e ainda, c) do alvará de loteamento.
6. Do articulado do Recorrente constam argumentos, factos, clausulado e normas de cariz administrativo, sendo pois, a entidade que os emanou uma entidade administrativa – Câmara Municipal.
7. O Recorrente aproveita-se da Lei das AUGI e de uma prorrogativa por esta concedida para colocar o Tribunal a quo a apreciar matéria para a qual não tem competência.
8. O Recorrente cumula efectivamente vários pedidos, pois todos eles constam da sua causa de pedir e do seu pedido, não são apenas fundamentos como invoca.
9. O Recorrente coloca em crise o alvará de loteamento emitido pela CMS, porquanto no seu entendimento o loteamento apenas abrangerá a parte do prédio que pertence ao município do Seixal, sendo que na sua óptica o loteamento parcial não é exequível.
10. Aponta cláusulas e condições apostas no texto do alvará que alegadamente discorda.
11. Não é de todo matéria de direito privado por um lado, nem estes actos foram praticados pela Recorrida.
12. Quanto à alegada repartição entre concelhos o Recorrente não diz é que a delimitação da AUGI e o loteamento aprovado e consequente emissão do alvará de loteamento, respeita a linha delimitadora do território entre o concelho do Seixal e de Sesimbra, discutida e definida previamente entre as duas autarquias, desde 1980, e que só veio a ser publicada em Diário da República de 8 de Agosto de 2014.
13. Na parte do concelho de Sesimbra, na área inicial do prédio (…), existe a AUGI 18 já delimitada pela Câmara Municipal de Sesimbra, para uma realidade semelhante à da AUGI (…), para a qual foi já emitido pela Câmara de Sesimbra o alvará de loteamento nº 16/2002.
14. O perímetro da área correspondente à Augi (…), já vinha sendo tratado, ao nível do Plano de Pormenor como uma única realidade, e respeitando a linha divisória do Concelho que veio a ser formalmente publicada em 2014, foi constituída uma única Augi (…), que desde a sua constituição abrange mais de 100 prédios, conforme se pode verificar no próprio alvará de loteamento.
15. A deliberação da delimitação da Augi é válida, eficaz, e foi objecto da assembleia constitutiva da Augi (…) a 26 de Fevereiro de 2012, data em que foi eleita também a actual comissão de administração; assembleia que não foi impugnada por ninguém, e para a qual o A. foi devidamente convocado;
16. O facto é que se o Recorrente não concordava com a delimitação da Augi (…), ou eventualmente com a delimitação da Augi 18 dispôs da oportunidade, após as respectivas assembleias constitutivas para eventualmente as impugnar e sugerir outro perímetro, e não o fez, bem sabendo da complexidade, a que também ele, votou este processo de reconversão, quando, bem sabia ao que estava a conduzir os milhares de comproprietários a quem vendeu parcelas ilegais;
17. Os municípios competentes ultrapassaram estas questões invocadas pelo Recorrente, não interessando as alterações legislativas invocadas que até foram publicadas após a deliberação que supostamente pretendia impugnar e até mesmo após apresentação da impugnação.
18. O Recorrente se não concordou com a forma como foi emitido o alvará de loteamento só tinha de dispor dos meios próprios e em sede administrativa para mostrar a sua discordância, e não o fez, apesar da publicidade dada à emissão do mesmo, quer pelos meios administrativos, quer pelos meios usados pela AUGI, na apresentação pública do mesmo.
19. A administração conjunta tem ainda poderes para, até à sua extinção, solicitar todas as rectificações ao alvará de loteamento, que se venham a revelar necessárias, e sendo esta entidade a titular do alvará de loteamento, em nenhum momento, poderia deixar de dar resposta às condicionantes impostas no alvará de loteamento, no interesse de todos os comproprietários,
20. O que está na base da posição do Recorrente é o alvará em si, no sentido de que para si, o alvará não pode titular a divisão de coisa comum, pelo que efectivamente contém matéria administrativa.
21. O Tribunal a quo não pode declarar inválidas deliberações da Câmara Municipal do Seixal, que são manifestos actos administrativos e é isso mesmo que o Recorrente pretende.
22. Não é o tribunal comum competente para a sua apreciação, não é este tribunal que se pode substituir declarando como inválidas as deliberações.
23. O Recorrente fez cumulação de pedidos, eles constam do pedido e da causa de pedir, não são conjuntos de fundamentos como alega.
24. Não é assim verdade que o único pedido do Recorrente seja: invalidar a assembleia da R. que pretendeu aprovar o pedido de divisão por acordo de uso.
25. O artº 91º nº 1 do CPC não tem aplicação quanto à decisão sindicada pois a matéria administrativa não foi incluída aos autos como questão incidental.
26. As questões de índole administrativa têm caracter principal na acção proposta pelo A. sendo mesmo o primeiro pedido formulado por este.
27. A douta decisão recorrida interpreta única e exclusivamente aquilo que foi o pedido do Recorrente, formula na sua causa de pedir e peticiona que o Tribunal declare inválidos actos de natureza administrativa, quando naturalmente não pode fazê-lo.
28. O douto Tribunal a quo deu assim cumprimento ao disposto no artº 96º do CPC, considerando o tribunal absolutamente incompetente, verificada assim a excepção dilatória de incompetência absoluta, absolvendo a Recorrida da instância, respeitando igualmente os artºs 99º, 278º, nº 1, alínea a), 577º, alínea a) e 578º do CPC.
29. Fundamenta ainda e bem o douto Tribunal a quo que os outros pedidos que eventualmente fossem da competência do tribunal comum ficaram prejudicados, na medida em que a cumulação não é admissível quando ofende as regras de competência em razão da matéria.
30. Assim, por tudo quanto se aduziu a MM Juiz a quo fez a correcta aplicação do Direito ao caso aplicável.
O apelado terminou pedindo que o recurso fosse julgado improcedente e consequentemente se mantivesse a decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão a apreciar neste recurso é se os tribunais judiciais são competentes para apreciarem o litígio trazido a juízo pelo A..
O factualismo a levar em consideração é o que consta no Relatório supra.
O Direito
A Lei n.º 91/95, de 2/9 (LAUGI), com as alterações publicitadas, estabelece o regime excecional para a reconversão urbanística das áreas urbanas de génese ilegal (AUGI).
Consideram-se AUGI os “prédios ou conjuntos de prédios contíguos que, sem a competente licença de loteamento, quando legalmente exigida, tenham sido objeto de operações físicas de parcelamento destinadas à construção até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro, e que, nos respetivos planos municipais de ordenamento do território (PMOT), estejam classificadas como espaço urbano ou urbanizável (…)” (vide n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 91/95).
São ainda considerados AUGI “os prédios ou conjuntos de prédios parcelados anteriormente à entrada em vigor do Decreto - Lei n.º 46 673, de 29/11/1965, quando predominantemente ocupados por construções não licenciadas” (vide n.º 3 do art. 1º da citada Lei).
Compete às Câmaras Municipais, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer interessado, delimitar o perímetro e fixar a modalidade de reconversão das AUGI existentes na área do município (n.º 4 do art.º 1º da Lei 91/95).
A reconversão urbanística do solo e a legalização das construções integradas em AUGI constituem dever dos respetivos proprietários ou comproprietários (n.º 1 do art.º 3.º da LAUGI).
O dever de reconversão inclui o dever de conformar os prédios que integram a AUGI com o alvará de loteamento ou com o plano de pormenor de reconversão, nos termos e prazos a estabelecer pela Câmara Municipal (vide n.º 2 do artigo 3º da LAUGI).
A fim de dar cumprimento a esse dever de reconversão, a LAUGI estabelece o regime da administração dos prédios integrados na AUGI.
Segundo o n.º 1 do art.º 8.º, o prédio ou prédios integrados na mesma AUGI ficam sujeitos a administração conjunta, assegurada pelos respetivos proprietários ou comproprietários, através da assembleia de proprietários ou comproprietários e da comissão de administração, às quais incumbe organizar e dirigir os trâmites do processo de reconversão urbanística (vide artigos 8.º, n.º 2, 10.º e 15.º).
Com efeito, é da competência da assembleia de proprietários ou comproprietários, designadamente, “aprovar o projecto de reconversão a apresentar à câmara municipal, na modalidade de pedido de loteamento” (alínea d) do n.º 2 do art.º 10.º), “aprovar os mapas e os respectivos métodos e fórmulas de cálculo e as datas para a entrega das comparticipações referidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º” (alínea f) do n.º 2 do art.º 10.º), “aprovar, após parecer da comissão de fiscalização, os orçamentos apresentados pela comissão de administração para a execução das obras de urbanização” (alínea g) do n.º 2 do art.º 10.º) e “aprovar o projecto de acordo de divisão da coisa comum” (alínea h) do n.º 2 do art.º 10.º).
A assembleia de proprietários ou comproprietários delibera nos termos previstos no Código Civil para a assembleia de condóminos dos prédios em propriedade horizontal, com algumas especialidades (vide art.º 12º da LAUGI).
As deliberações da assembleia podem ser judicialmente impugnadas por qualquer interessado que as não tenha aprovado, no prazo de 60 dias a contar da data da assembleia ou da publicação das deliberações produzidas nessa assembleia, consoante aquele haja ou não estado presente na reunião (vide n.º 8 do art.º 12.º, com a redação da Lei n.º 10/2008, de 20.02).
Compete, pois, aos tribunais judiciais, que não aos tribunais administrativos, apreciar a impugnação das deliberações aprovadas pelas referidas estruturas, que são de direito privado, cuja atuação visa regular interesses de direito privado (a conformação de direitos reais de génese desconforme à lei), embora tendo em vista a sua compatibilização com normas e interesses de direito público.
É sabido que a competência dos tribunais se afere pela conformação dada ao litígio na petição inicial.
Ora, nesta ação o A. visa impugnar uma deliberação aprovada por uma determinada assembleia de proprietários e comproprietários referente a uma AUGI, que teve por objeto um projeto de divisão da coisa comum.
Trata-se, assim, de um litígio que cabe na competência dos tribunais judiciais.
É certo que o A., no petitório, não se limita a pedir que seja declarada a invalidade da referida deliberação. Ou seja, o A. enumera, como se de pedidos se tratasse, as várias razões ou argumentos apontados para sustentarem a invalidade da aludida deliberação, pedindo que o tribunal os reconheça e declare. É assim que o A. pede que sejam reconhecidas como inválidas, “para efeito dos presentes”, as deliberações da Câmara Municipal de Seixal, de delimitação da AUGI (…), assim como da licença de reconversão dessa AUGI, emitida pela CMS, e o alvará 2/2013, pede que o tribunal declare que “não poderia o dito alvará titular a divisão da coisa comum por acordo de uso da AUGI (…), porque não cumpre os requisitos do art.º 37º nº 1 da Lei das AUGI”, pede que seja declarado que a assembleia de aprovação do projecto de divisão não poderia em qualquer caso ter lugar, porque à data da sua realização não estava ainda titulado o fraccionamento resultante da deliberação de CMS de 15/1/2015”, pede que seja declarado que “a assembleia não podia submeter à divisão os lotes cuja constituição e capacidade construtiva estão dependentes de condição suspensiva ainda não verificada”, pede que seja declarado que “são nulos o método de votação adoptados e a composição da assembleia”, pede que seja declarado que “a proposta de divisão apresentada à assembleia é ininteligível e incompleta, não se podendo dela intuir qual o valor dos lotes, qual o quinhão de cada um e os termos da respectiva aquisição e se há lugar a tornas de parte a parte, pelo que a mesma não pode integrar a escritura de declaração de divisão, posto que a comissão de administração está inibida de completar essas omissões sob pena de excesso de representação”, pede que seja declarado que “desconhecendo-se embora se os presentes na assembleia, mau grado a sua composição inicial ser nula, poderiam ainda assim cumprir o quorum legal (maioria absoluta do capital), que a votação publicada no extracto da acta de doc. 2 (maioria absoluta dos presentes), não é susceptível de sustentar a aprovação daquela proposta”, pede que seja declarado que “a publicação de doc. 2 é inválida porquanto, não podendo a declaração de divisão em AUGI ser outorgada por documento particular autenticado, a mesma não indica o cartório notarial onde vai ter lugar a sua realização, tudo com as legais consequências.” Em suma, no petitório o A. reitera os fundamentos que apresentara para lograr a invalidação da dita deliberação, apresentando como múltiplo aquilo que é, afinal, um único pedido: a anulação de uma deliberação, embora com múltiplos fundamentos. O petitório deve ser adequadamente interpretado, não devendo lobrigar-se cumulação de pedidos onde há, como se viu, um único pedido, assente numa multiplicidade de razões ou fundamentos.
De entre os fundamentos apresentados para sustentar a anulação da dita deliberação, alguns, os iniciais, abordam matéria que é da competência dos tribunais administrativos: a invalidade das deliberações da Câmara Municipal do Seixal que aprovaram a operação de loteamento, e bem assim o alvará de loteamento, em que se baseou a deliberação ora impugnada. Com efeito, compete aos tribunais administrativos apreciar a validade de atuações de entidades públicas (como as autarquias locais) ocorridas no exercício das suas atribuições de natureza pública e praticadas à luz de normas de direito público (art.º 212.º n.º 3 da CRP, art.º 1.º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – ETAF – aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, com as alterações publicitadas, excluindo-se as introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, que não vigorava à data da instauração desta ação, art.º 4.º do ETAF, máxime alíneas a), b) e c); art.º 2.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos). Tais vícios da atuação da CMS não são apresentados pela A. como questões acessórias, de natureza marginal face ao objeto do litígio. Ou seja, não assumem natureza meramente incidental, pelo que, contrariamente ao sustentado pelo apelante, não se enquadram no art.º 91.º do CPC. Com efeito, sob a epígrafe “competência do tribunal em relação às questões incidentais”, nesse artigo estipula-se, no seu n.º 1, o seguinte:
O tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.”
Sendo certo que essas questões serão apreciadas pelo tribunal judicial, ainda que sejam do foro administrativo, circunscrevendo-se os efeitos do assim decidido ao âmbito do processo (n.º 2 do art.º 91.º).
A invalidade da aludida atuação da CMS, mais do que questão eventual, acessória ou incidental do litígio, faz parte do objeto principal da causa, pois é um dos fundamentos enunciados pelo A. para impugnar a dita deliberação da assembleia de proprietários e comproprietários da AUGI.
Assim, o conhecimento do objeto da ação depende, parcialmente, de questão que é da competência dos tribunais administrativos. Existe aqui um nexo de prejudicialidade a que é aplicável o disposto no art.º 92.º do CPC.
Com efeito, sob a epígrafe “questões prejudiciais”, no art.º 92.º do CPC estipula-se o seguinte:
1 - Se o conhecimento do objeto da ação depender da decisão de uma questão que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie.
2 - A suspensão fica sem efeito se a ação penal ou a ação administrativa não for exercida dentro de um mês ou se o respetivo processo estiver parado, por negligência das partes, durante o mesmo prazo; neste caso, o juiz da ação decidirá a questão prejudicial, mas a sua decisão não produz efeitos fora do processo em que for proferida.
Ou seja, uma situação como a retratada nos autos não fundamenta uma decisão de absolvição da instância por incompetência do tribunal quanto à matéria, mas, quando muito, a suspensão da instância a fim de que a questão cuja apreciação caiba noutra ordem jurisdicional aí seja resolvida. Em alternativa, a competência do tribunal judicial estender-se-á à aludida questão prejudicial, sendo resolvida no processo com efeitos que se circunscreverão ao mesmo.
Foi com esse âmbito que o A. requereu que se apreciasse a invalidade das deliberações e do alvará emitidos pela CMS (veja-se a referência à “limitação do julgado”, no art.º 21.º da petição inicial, e o inciso “para efeito dos presentes”, no primeiro parágrafo do petitório).
Conclui-se, assim, que a decisão recorrida deve ser revogada, cabendo ao juiz da primeira instância fazer a opção prevista no art.º 92.º n.º 1 do CPC.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e consequentemente:
a) Revoga-se a decisão recorrida, por se ajuizar que o tribunal recorrido tem competência, quanto à matéria, para julgar o litígio;
b) Decide-se que caberá ao tribunal recorrido, quanto à questão enunciada pelo A. no primeiro parágrafo do petitório (“serem reconhecidas, para efeito dos presentes, como inválidas as deliberações da CMS de delimitação da AUGI (…), da licença de reconversão da AUGI (…) e o respectivo alvará nº 2/2013 de 27 de Setembro”), optar, nos termos do art.º 92.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ou por sobrestar na decisão até que o tribunal administrativo competente sobre ela se pronuncie, ou desde já prosseguir a ação, julgando a aludida questão com efeitos circunscritos ao processo.
As custas da apelação são a cargo da apelada, que nela decaiu.
Lisboa, 21.4.2016

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Lúcia Sousa