Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2223/16.1T9ALM-B.L1-3
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO MIRANDA
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
QUEBRA
CONTABILISTA
PRINCIPIO DA PREVALÊNCIA DO INTERESSE PREPONDERANTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Decisão: DETERMINADA A QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL
Sumário: I – Os contabilistas certificados estão obrigados a segredo profissional;
II – Este só pode ser quebrado quando o contabilista for do mesmo dispensado pelas entidades a que prestam serviços, por decisão judicial ou ainda quando previamente autorizados pelo conselho directivo da respectiva Ordem.
III – Na decisão a tomar sobre a quebra do sigilo deverão os Tribunais atender ao princípio da prevalência do interesse preponderante;
IV – Devendo os Tribunais ponderarem se o interesse no depoimento prevalece sobre o interesse de manter segredo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - Relatório
Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, os arguidos estão acusados de factos suscetíveis de integrar a prática, em coautoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107 n° 1, com referencia ao artigo 105 n° 4 e 7, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06 e artigos 30 n° 2 e 79, do Código Penal.
No despacho de acusação o Magistrado do Ministério Público, entre outra demais prova, indicou como testemunha PM, contabilista certificada.
No decurso da audiência de discussão e julgamento a testemunha PM, chamada a prestar depoimento, veio, através de requerimento junto aos autos, invocar o dever de sigilo profissional e solicitar o levantamento do sigilo profissional quanto ao seu depoimento.
Mais, juntou informação prestada pelo organismo representativo da profissão, no sentido de que a testemunha, cujo depoimento se pretende, está sujeito a guardar sigilo profissional.
Foi proferido despacho que concluiu pela legitimidade da escusa da prestação de depoimento suscitada, a que se seguiu a remessa dos autos para esta instância, a fim de a mencionada testemunha ser dispensada do segredo profissional, mediante o seu levantamento.
O Exm° Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de dever ser quebrado o sigilo profissional em apreço.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II— Fundamentação
Delimitação do objeto do incidente. 
 A questão a apreciar consiste em saber se, no confronto e valoração dos interesses a sopesar, deve a testemunha, contabilista certificada, prestar depoimento não obstante os factos que se pretendem esclarecer serem sujeitos ao dever de sigilo profissional.
III Despacho
A Senhora Juíza, titular do processo, pronunciou-se sobre a questão a decidir, nos seguintes termos:
“Levantamento do sigilo profissional.
A testemunha PM, contabilista certificada, veio solicitar o levantamento do sigilo profissional a que se encontra obrigada por força do Código Deontológico da Ordem dos Contabilistas Certificados dado não ser possível obter tal levantamento por parte do órgão de gestão da entidade a quem prestou serviços e tendo requerido junto da Ordem esse levantamento mereceu da mesma a resposta que consta dos autos afi.s 1053 a 1054 .
Notificados os sujeitos processuais pronunciarem-se no sentido do levantamento do sigilo profissional, designadamente o arguido D.
Cumpre decidir.
Resulta do disposto no artigo 72.° n.° 1 alínea d) do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados sob a epigrafe ‘Deveres para com as entidades a que prestem serviços” que:
1 - Nas suas relações com as entidades a que prestem serviços, constituem factos e documentos de que tomem conhecimento no exercido das suas funções, dele só podendo ser dispensados por tais entidades, por decisão judicial ou pelo conselho directivo da Ordem (...)
Por sua vez o artigo 10.° - Confidencialidade -do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, estatui:
1 - Os contabilistas certificados e os seus colaboradores estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda.
2 - O sigilo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
3 - A obrigação de sigilo profissional não está limitada no tempo, mantendo-se mesmo após a cessação de funções.
4 - Cessa a obrigação de sigilo profissional quando os contabilistas certificados tenham sido de tal dispensados pelas entidades a que, prestam serviços, por decisão judicial ou ainda quando previamente autorizados pelo conselho directivo, em casos devidamente justificados.
5 - (...) (negrito nosso).
2.2. Resulta, pois, do exposto que os contabilistas certificados estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adoptar as medidas adequadas para a sua salvaguarda, obrigação essa que apenas cessa: (i) quando tenham sido de tal dispensados pelas entidades às quais prestem serviços; (ii) quando, previamente, autorizados pelo conselho directivo da respectiva entidade, em casos devidamente justificados; (iii) por decisão judicial, em incidente processual deduzido para o efeito.
Do exposto, decorre que o sigilo profissional dos contabilistas certificados não reveste uma obrigação de natureza absoluta.
No caso dos autos, a testemunha recusa-se a depor, invocando sigilo profissional e solicita o seu levantamento porque estando em causa nos autos, conforme resulta da acusação o depoimento sobre factos e o confronto com documentos que foram obtidos junto da contabilidade e que a testemunha deles teve conhecimento apenas e por força do exercício das suas funções, recusa que se mostra na perspectiva do Tribunal legitima, pois que a esmagadora maioria dos factos sobre os quais será questionada, deles tomou conhecimento no exercido das funções de contabilista certificada, como a própria admite, e, como tal, sujeitos a sigilo profissional.
Aliás ninguém nos autos põe em causa que tais factos estejam sujeitos a sigilo profissional.
Pese embora se conclua pela legitimidade da recusa de depoimento, certo é que se mostra muito importante o depoimento desta testemunha atendendo desde logo ao crime em apreço nos autos, à sua gravidade e à necessidade de protecção dos bens jurídicos por tais crimes visados e à boa prossecução da justiça.
Pelo que se entende suscitar o incidente de quebra do sigilo profissional junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa nos termos do disposto nos artigos 135.", n.° 1 e 3 do C.P.P. (...) ”
IV . Do mérito do recurso
No âmbito dos autos principais estão os arguidos acusados da prática, em coautoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107 n° 1, com referência ao artigo 105 n° 4 e 7, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06 e artigos 30 n° 2 e 79, do Código Penal.
No decurso da audiência de julgamento a testemunha PM, chamada a prestar depoimento, invocou a sua qualidade de contabilista certificada e, para tanto, o dever de sigilo profissional.
Não há dúvida que o contabilista certificado está obrigado ao dever de confidencialidade, previsto no Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e no Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, relativamente a factos, informações e documentos de que tenha tomado conhecimento, no exercício da sua profissão.
Determina o artigo 72.º, nº 1, alínea d), do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, que “nas suas relações com as entidades a que prestem serviços, constituem deveres dos contabilistas certificados: (...); d) Guardar segredo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, dele só podendo ser dispensados por tais entidades, por decisão judicial ou pelo conselho diretivo da Ordem; (…)
Por seu turno, o artigo 10.° do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, reportando-se à confidencialidade, prescreve :
“1 - Os contabilistas certificados e os seus colaboradores estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda.
2- O sigilo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
3 - A obrigação de sigilo profissional não está limitada no tempo, mantendo-se mesmo após a cessação de funções.
4 - Cessa a obrigação de sigilo profissional quando os contabilistas certificados tenham sido de tal dispensados pelas entidades a que, prestam serviços, por decisão judicial ou ainda quando previamente autorizados pelo conselho diretivo, em casos devidamente justificados.”
Como é sabido o sigilo profissional mostra-se inerente ao exercício de determinadas profissões -(ex. médicos, advogados, contabilistas, jornalistas)- a cujos profissionais foram revelados factos da esfera íntima da personalidade em razão e no exercício dessa atividade profissional e, bem ainda, na confiança que tais segredos não seriam revelados.
Tal dever de sigilo profissional visa proteger os direitos pessoais ao bom nome, reputação, reserva da vida privada ou reserva da atividade empresarial das empresas clientes de tais profissionais - artigo 26.°, n° 1 in fine, e n° 2 da Constituição da República Portuguesa) e, por outro lado, salvaguardar a relação de confiança que deve rodear o exercício profissional de determinadas profissões.
A violação de tal obrigação a que ficam adstritos esses profissionais de não revelarem factos confidenciais conhecidos através da sua atividade é punível não só disciplinarmente, mas também criminalmente, artigo 195°. do Código Penal.
Estabelece o artigo 135° do Código de Processo Penal que:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, (...), pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.”
Reconhecido o dever de sigilo imposto aos contabilistas certificados relativamente a factos, informações e documentos de que tenham tomado conhecimento no âmbito do exercício da sua profissão encontramo-nos perante um conflito de deveres, a saber: de um lado, o dever de colaborar na descoberta da verdade e o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro lado, a reserva da vida privada dos particulares e a tutela da relação de confiança do contabilista com o seu cliente imposto pela natureza da atividade desenvolvida.
O sigilo profissional dos contabilistas certificados não reveste uma obrigação de natureza absoluta, mas relativa e, assim, poderá , em certas circunstâncias, ser arredado esse dever através da quebra do dever de sigilo.
O regime processual da quebra de sigilo , nos termos consignados no artigo 135.° n°s 2 e 3 do Código de Processo Penal, faz apelo ao critério do princípio da prevalência do interesse preponderante a fim de ajuizar qual deles deverá sobrepor-se ao outro, sendo que, nessa ponderação a realizar para esse fim, importa ter em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
Daí que, no caso vertente, ante os factos descritos na acusação pública, importa considerar que os arguidos estão acusados de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, puníveis com moldura penal abstrata de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, não podendo o mesmo incluir-se na categoria das chamadas bagatelas penais, sendo ainda de atentar na frequência com que se vêm registando este tipo de ilícito e, por isso, a carecer de reforço pelo interesse público do Estado em exercer o jus puniendi.
Em concreto, consta da acusação que os arguidos, no exercício da sua atividade e em nome e representação da sociedade arguida, processaram, declararam e pagaram salários a trabalhadores, nos quais procederam aos descontos para Segurança Social, pelos valores de 39.145,33€, contudo, não procederam ao pagamento das contribuição retidas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias posteriores, nem tão pouco nos 30 dias após notificação para o efeito, integrando-as no património da sociedade.
Quanto à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade está em causa a realização de prova com vista ao esclarecimento dos factos, dos seus contornos e se os arguidos praticaram ou não o crime imputado, ou seja, assegurar a administração da justiça e o interesse público do Estado em exercer o jus puniendi.
Logo, estando em causa crimes fiscais, o testemunho de PM, contabilista certificada, que, no exercício dessa profissão, procedeu à organização e execução da contabilidade da sociedade e ao tratamento de todos os documentos de suporte dos registos de fluxos financeiros a ela relativos, apresenta-se essencial para o esclarecimento do circunstancialismo fáctico em discussão nos autos.
A legitimidade da escusa relativamente a todas as informações de que tenha tomado conhecimento no exercício da sua profissão foi reconhecida pelo despacho judicial, face ao dever de sigilo imposto aos contabilistas certificados Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e Código Deontológico dos Contabilistas Certificados.
Perante a ponderação concreta dos interesses em confronto e tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida, a gravidade do crime em questão e a necessidade de proteção de bens jurídicos, apresenta-se claramente superior o interesse público na boa administração da justiça, que exige uma descoberta da verdade material subjacente à produção de prova, com vista ao apuramento dos factos em discussão na audiência de julgamento, devendo, pois, o mesmo prevalecer perante o interesse que se visa tutelar com o sigilo imposto ao contabilista certificado.
Em face disto, a quebra de sigilo profissional solicitada mostra-se legalmente justificada.

IV. — Decisão
Tendo em conta as considerações expendidas, acordam os Juízes na 3a. Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em determinar que, com quebra do sigilo profissional, a Sra. Contabilista Certificada PM, preste depoimento, como testemunha, na audiência de discussão e julgamento.
Sem custas.
Notifique.
*
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2023
Maria da Conceição Miranda
Rui Gonçalves
Isabel Ferreira de Castro