Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4327/16.1T8LSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
COVOLAÇÃO DA AÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/ALTERADA
Sumário: I. Formulada petição em que a Autora invoca o enriquecimento sem causa do Réu, mas decorrendo dos factos que alegou que o que está em causa é o incumprimento de um negócio jurídico celebrado entre ela e o Réu, nada obsta a que o tribunal, respeitando os concretos factos alegados e contendo-se dentro dos limites do pedido, proceda a uma qualificação jurídica diversa da relação controvertida.

II.Já diferente será a situação em que o julgador, mesmo respeitando os factos alegados, convola a acção em que se invocava o enriquecimento sem causa para uma acção de reivindicação a qual exige, para além do pedido de restituição, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa a restituir, caso em que estaremos perante uma construção jurídica inteiramente nova, que impõe que sejam as partes convidadas a pronunciarem-se sobre a mesma, fazendo respeitar o contraditório.

SUMÁRIO: (da responsabilidade do relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa. 


Relatório:


MB intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra LB.
Pede que se condene o R. a pagar-lhes as quantias que se vier a apurar que constavam das contas bancárias à data em que foi revogada procuração outorgada a favor da A, acrescida de juros de mora desde a data da citação até efectivo pagamento.

Alega:
- que no decurso do ano de 2009 pediu ao R., seu filho, para este passar a ser o titular de duas contas bancárias que estavam seu nome, passando a procuradora;
- que em Maio de 2013 o R. revogou a procuração que havia outorgado a seu favor;
- que à época as contas tinham depositados € 142.833,31;
- que solicitou a devolução do dinheiro, o que foi omitido pelo R., excepto pela quantia de € 140,00.

O R. contestou dizendo:
- que a A deixou de figurar como titular das contas para o compensar por dádivas à filha;
- que passou, então, a ser titular não só de metade, como da totalidade do dinheiro depositado nas contas;
- que efectuava pagamentos a solicitação da A por conta da sociedade "Quinta do Munhoz", tendo, até 2-6-2014, pago € 37.543,00.
Arguiu a excepção de prescrição do direito da A ao dinheiro por enriquecimento sem causa.
Pediu que a acção fosse julgada improcedente, ou, caso assim não se entenda, que fosse condenado no pagamento de metade do valor a apurar, a que haveria que descontar € 37.543, 00.
Pediu a condenação da A. enquanto litigante de má fé.

A A. respondeu pugnando pelo desatendimento da excepção de prescrição do direito ao enriquecimento sem causa. Alega que apenas a partir do conhecimento que teve da revogação da procuração outorgada a seu favor pelo R., em Maio de 2013, é que o prazo se iniciaria.
 
Realizou-se julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção inteiramente procedente por provada, condenando o Réu a pagar à Autora as quantias que se vier a apurar estarem depositadas nas contas bancárias do Banco Millenium com os números XXXX e YYYY à data de 18/032013, acrescidas de juros de mora.

Foram dados como provados os seguintes factos:
1- O contrato de sociedade de "Quinta do Munhoz - Sociedade de Construções, S.A." foi inscrito na Conservatória do Registo Comercial pela ap. 22 de 14-12-1994, sendo presidente do conselho de administração a A.
2- A A. viu instaurados contra si processos de execução fiscal, conforme notificação da Direcção Geral dos Impostos de fls. 74 verso, datada de 4-7-2005.
3- Em 20-4-2010 a A. foi constituída arguida por suspeita de crime de fraude fiscal, consubstanciada na dedução indevida de valores do IVA e da ocultação de rendimentos sujeitos a IRC, nos anos de 1999,2000 e 2001.
4- Em 18-3-2013, o R. revogou notarialmente a procuração outorgada a favor da A.  
5- A pedido da A, o R. passou a figurar como único titular das contas bancárias do Banco Millenium com os números XXXX e YYYY, podendo a A movimentá-las.
6- O pedido da A prendeu-se com a salvaguarda do seu património por força de dívidas.
7- Em 18-3-2013, as contas tinham depositado montante não concretamente apurado.
8- Essa quantia era pertença exclusiva da A.

Inconformado recorre o Réu, concluindo que:
- Vem o Recorrente interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal a quo, versando, o mesmo, sobre matéria de facto (incorretamente julgada) e sobre matéria de direito (incorretamente aplicada);
- Quanto à impugnação da matéria de facto, a consagração legislativa dos artigos 640º e 662º do CPC, visou dotar os tribunais de segunda instância dos meios indispensáveis à formação e expressão da sua convicção em matéria fáctica, com total autonomia;
- Nos presentes autos procedeu-se à gravação da prova oralmente produzida;
- A aplicação dos princípios da livre apreciação e da aquisição processual permitem ao Tribunal da Relação de Lisboa reponderar as questões de facto em discussão e expressar o seu resultado, confirmando a decisão ou alterando-a;   
-  Este poder de reapreciação (artigo 662º do CPC) pode ser utilizado quando todos os elementos de prova de que o Tribunal recorrido fez uso constem do processo;
- Constam do processo os elementos que serviram de base à formação da convicção do julgador, podendo a mesma ser, nesses termos e em conformidade com o disposto nos artigos supra mencionados, sindicável;
- A Recorrida peticionou nestes autos que o Recorrente fosse condenado no pagamento da quantia que se viesse a apurar que constasse nas contas bancárias à data em que foi revogada a procuração outorgada a seu favor, acrescida dos respetivos juros de mora vencidos, para além das custas e procuradoria condigna, sustentando tal pedido no facto de o Recorrente lhe ter solicitado que este figurasse como único titular das contas bancárias (do Banco Millenium) que se encontravam em seu nome, passando a mesma a ser procuradora, tendo este, depois de revogar a procuração que lhe havia sido conferida, e ilicitamente, feito suas as quantias que, à data da revogação, lá estariam depositadas;
- Acontece que, da prova produzida nos autos, outra decisão não podia ser tomada que não fosse a absolvição total do Recorrente dos pedidos;
- O que se discute nestes autos é a titularidade dos valores depositados nas contas do Banco Millennium: se da Recorrida ou se do Recorrente;
- No que toca à matéria de facto (que se impugna), o Tribunal a quo considerou como provado que  "o pedido da A. (para que o R. passasse a ser o único titular das contas bancárias dos autos) prendeu-se com a salvaguarda do seu património por força de dívidas" (facto provado nº 6) e que "Essa quantia era pertença exclusiva da A" (facto provado nº 8); considerou ainda o Tribunal a quo como não provado "que a A tenha deixado de figurar como titular das contas bancárias do Banco Millenium com os números 45305467185 e 1380233617 para compensar o R pelas dádivas à filha" (terceiro ponto do elenco de factos não provados);
- Sucede que, das transcrições feitas na motivação do presente recurso, os ditos factos provados 6 e 8 deviam ter sido julgados como não provados e o ponto assinalado (terceiro dos factos não provados) como provado, precisamente o inverso do julgamento feito pelo Tribunal a quo;
- O facto provado nº 6 deveria ter tido resposta diversa: para isso contribui, de forma decisiva, as declarações de parte (todas, note-se) da Recorrida, onde a mesma é altamente contraditória, até se se comparar a versão do seu depoimento com os documentos pela mesma juntos com a PI  (docs. nºs 6 e 7 juntos à PI);
- Do depoimento da Recorrida resulta que a mesma era detentora de património que, pelos vistos, não procurou salvaguardar dos seus credores, que, assim, o poderiam atingir, ou seja, precisamente o inverso daquilo que a mesma alega;
   
- Concretamente, veja-se, naquele depoimento, as seguintes passagens:

Ora. AA- "o montante destas duas contas, era os únicos bens que tinha? Valores, dinheiro? Era o único dinheiro que tinha?": MM- "sim, era esse sim, era o único valor";  MM- "o que me valeu foi que eu tinha uma outra conta, só minha, noutro lado  e tive de fazer face a esse dinheiro que tinha noutro lado para pagamento da empresa"; MM- "não, não era o único dinheiro que tinha, foi o que me valeu. Não eu nunca disse isto. Desculpe, se eu não tivesse outra conta, como e que eu podia depois a seguir, quando ele me cortou completamente o dinheiro, como e que eu podia fazer face à empresa. Tinha uma outra conta, até na Caixa Geral de Depósitos que era a minha conta reforma",  passagens que determinam o julgamento da matéria de facto como aqui se defende;
- O facto provado nº 8 do decidido e o terceiro facto não provado (terceiro ponto dos factos não provados) inscrito na sentença de que se recorre deveriam ter, tal como o facto provado nº 6, resposta também diversa; para isso ter-se-à que atender ao depoimento da testemunha SP a que referência nem se faz, curiosamente, na sentença, citando-se as seguintes passagens por exemplares:
SP- "sabia tanto da parte do Sr. Luis como da parte da mãe que tinham uma conta";  SP- "disse-me que tinha a conta, que iria sair dela, disse-me inclusive que não dava dinheiro  a filha, (. . .) que ajudava o neto sim, admitia muitas vezes isso, e que nunca iria deixar mal o filho. "; SP- "que (a Recorrente) iria beneficiar o filho, que ele nunca iria sair mal.  "; SP- "ajudava o neto e que iria beneficiar o filho por isso"; SP- "já tinha havido, quando entrei, até a pessoa que lá estava que me passou essa informação e depois tive conhecimento que tinha havido uma dívida muito grande às finanças que foi o Sr. Luis que resolveu a mesma. "; SP- "sempre ouvi dizer que sim, que tinha sido  a filha a causar, um grande rombo";  SP- "ela nunca disse especificamente o que se referia, mas dava a entender e várias vezes disse que sabia que o filho tinha razão, que a filha por vezes não era correta, que ela tinha conhecimento de tudo o que a filha tinha feito e que também sabia valorizar que o filho é que mantinha as contas em dia e levava as coisas para  a frente, que tinha plena consciência disso"; de tais passagens resulta a razão de ser de o dinheiro das contas dos autos ser do Recorrente, por lhe ter sido doado pela Recorrida, que o pretendeu compensar;   

-  Para além do erro no que toca ao julgamento da matéria de facto, a sentença enferma de vícios graves na aplicação do direito que não podem deixar de ser invocados, a saber: (i) o Tribunal a quo, ao ter convolado juridicamente a ação para uma ação de reivindicação, deveria, antes de assim ter decidido, ter notificado o Recorrente para se pronunciar sobre essa alteração de qualificação jurídica, determinando, essa falta, por estarmos perante uma decisão surpresa, a nulidade da sentença; (ii) a isso acresce que a Recorrida, em parte alguma dos autos, faz prova dos requisitos de que depende a procedência de uma ação de reivindicação, pelo que não logrou cumprir com o ónus da prova que, quanto a tal tipo de ação, sobre si recaía; (iii) por último a Recorrida lançou mão, de forma indevida e ilegítima, do pedido genérico e o tribunal jamais poderia ter condenado o Recorrente nos termos em que condenou, remetendo a Recorrida para liquidação, porque não estamos perante nenhuma situação prevista no artigo 556º do CPC e porque, uma vez mais, podendo e devendo a Recorrida fazer prova dos valores depositados nas ditas contas, optou por deixar esse labor probatório para outros ...
- Por todas as apontadas razões deveria o Recorrente ter sido absolvido dos pedidos contra si deduzidos;
- É manifesta a existência de erro quanto à apreciação da matéria de facto e quanto à aplicação da matéria de direito,
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, a título principal, alterando-se a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, indicada nos termos impostos pelo artigo 640º do CPC, revogar-se a decisão proferida e absolver-se o Recorrente dos pedidos contra si deduzidos pela Recorrida;
- Caso assim não se entenda, deverá, pelas apontadas razões, ser declarada a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo, devendo, em consequência, ser o Recorrente absolvido dos pedidos deduzidos;
- Caso ainda assim não se entenda, deverá a sentença proferida ser revogada porquanto, em virtude do não cumprimento, pela Recorrida, do ónus da prova que sobre si recaía e em virtude da dedução indevida de pedido genérico, tem o Recorrido que ser absolvido dos pedidos contra si deduzidos.

A autora contra-alegou sustentando a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar.

Uma vez que o presente recurso integra a impugnação da decisão factual, impõe-se a reapreciação da prova produzida.

A impugnação versa os nºs 6 e 8 da matéria dada como provada e o 3º da dada como não provada.

Pretende assim o recorrente que se julguem não provados os factos mencionados em 6 e 8 da decisão.

O facto nº 6 afirma que a Autora pediu ao Réu que passasse a figurar como único titular das contas bancárias no Millenium, para salvaguardar o seu património por força de dívidas.

O facto nº 8 afirma que as quantias depositadas nessas contas eram pertença exclusiva da Autora.

Do facto nº 3 da matéria não provada – e que agora o recorrente pretender ver provada – consta que a Autora deixou de figurar como titular nessas contas para compensar o Réu pelas dádivas à filha.

Ambos os depoimentos de parte se mostram confusos e em aspectos fulcrais não suportados por qualquer documentação.

Assim, o Réu LB diz não se lembrar quem era o titular da conta quando esta foi criada, se era só da mãe ou se era de ambos ou se ambos nela figuravam como titulares. Mais tarde, passaram ambos a ser titulares da conta. A partir de determinado momento o Réu, que desempenhava funções executivas na empresa de que a mãe era administradora, comunicou-lhe que se ia embora e que a mãe lhe propôs que ela passasse a ser o único titular da conta, passando uma procuração à mãe – ora Autora – para que esta pudesse movimentar a conta. Ao verificar que a mãe movimentara a conta para dar dinheiro à irmã, o Réu cancelou a procuração que passara a favor da mãe, passando a ser a única pessoa a poder movimentar a conta.

No âmbito de uma relação familiar bastante conturbada, o Réu afirmou que a sua irmã fora causadora de um processo contra a empresa, que o levou a pretender instaurar uma acção de indemnização contra a irmã. Mas a advogada, que era também advogada da empresa, acabou por não instaurar a acção por pressão da Autora.

Quando lhe foi perguntado se nessa acção de indemnização o autor seria a empresa ou o Réu LB, este não conseguiu responder. A questão era essencial, para saber se o Réu pretendia pretendia reaver dinheiro que ele tivesse disponibilizado e que lhe pertencesse ou se tal dinheiro era da empresa.

Aliás, questionado sobre o facto de tendo ele 47% das acçõs da empresa e a mãe apenas 6% - como afirma na contestação – porque é que não forçou uma deliberação no sentido da instauração de tal acção de indemnização contra a irmã, o Réu respondeu que sendo a irmã sócia com igualmente 47% das acções, bloquearia juntamente com a mãe essa possibilidade.

Contudo, isso só faz sentido se a acção fosse instaurada pela empresa com vista a ser ressarcida pela irmã do Réu. Mas se este pusesse a acção em nome pessoal, a questão das acções já não seria relevante.

Contrariamente ao afirmado pela Mª juiz a quo não se nos afigura que o Réu tenha admitido que, num primeiro momento, o dinheiro dessa conta era pertença exclusiva da sua mãe, aqui Autora. Como dissemos, o Réu disse não se lembrar quem eram os titulares da conta quando esta foi criada.

Quanto ao depoimento da Autora  MB, a versão é que o dinheiro da conta era seu, que fez com que o filho, ora Réu fosse igualmente titular da mesma e mais tarde, para impedir penhoras em acções executivas que incidissem nessa conta fez com que o filho passasse a ser o único titular da conta embora ela, mediante procuração passada pelo filho, pudesse movimentar tal conta.

Esclareceu que o filho levantava dinheiro dessa conta para pagar despesas da empresa.

Quanto às testemunhas, o contabilista LV, que efectuava a contabilidade da empresa, não tem conhecimento pessoal relativamente à questão de saber a quem pertencia o dinheiro da conta. A Autora disse-lhe que esse dinheiro era dela.

MG, gestora da conta no Millenium, só sabe, por a Autora lho dizer, que o dinheiro da conta pertencia a esta. 

SP, que foi secretária da empresa de que a Autora era administradora, esclareceu que eram pagas contas da empresa com dinheiro provindo da conta no Millenium. Acrescentou ter-lhe sido dito pela Autora que nunca daria dinheiro à filha, só ao neto, e que não deixaria o filho ficar mal.

A única certeza que podemos retirar da prova – incluindo a documental – é que o conta tinha como titulares a Autora e o Réu, que posteriormente o Réu passou a ser o único titular mas conferiu uma procuração à Autora que lhe permitia movimentar a conta e que, finalmente, o Réu cancelou tal procuração e, consequentemente o acesso à conta por parte da Autora.

A matéria dada como provada nos nºs 6 e 8 assenta exclusivamente no depoimento de parte da Autora, corroborando a sua versão dos factos. Não vemos contudo motivo para privilegiar tais declarações de parte relativamente às do Réu, tanto mais que não estão devidamente suportadas por outro meio probatório, como de resto resulta da fundamentação da decisão factual.

Assim, entendemos alterar a decisão factual, considerando os nºs 6 e 8 da matéria de facto como não provados.

Pelas mesmas razões já aduzidas, terá de ser igualmente dado como não provado o nº 3 da matéria julgada não provada na primeira instância.

Passando agora à apreciação jurídica, verifica-se que a Autora deduziu uma acção assente no enriquecimento sem causa.

O tribunal a quo entendeu que, face ao pedido formulado, não se trata de um enriquecimento sem causa mas sim de uma acção de reivindicação nos termos do art. 1311º do Código Civil.

Acrescenta estarmos perante um contrato de depósito irregular nos termos do qual uma pessoa entrega à outra uma coisa móvel ou imóvel, para que a guarde e restitua quando for exigida, art. 1185º do Código Civil.

Em apoio da sua tese, afirma a Mª juiz que tendo ocorrido um depósito irregular nunca a situação se poderia subsumir à figura do enriquecimento sem causa, dada a natureza subsidiária desta.

Na verdade, dispõe o art. 474º do Código Civil:
“Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

O pedido formulado pela Autora nesta acção é o da condenação do Réu no pagamento da quantia existente nas contas bancárias à data em que o Réu revogou a procuração outorgada a favor da Autora.

A causa de pedir consiste na alegação de que embora o dinheiro existente na conta pertencesse à Autora, esta era titular de tal conta tal como o seu filho, ora Réu. Em dada altura, e temendo a penhora da conta por motivo de dívidas e uma acção executiva, a Autora deixou de ser titular da conta, passando o Réu a único titular, mas outorgando procuração que autorizava a Autora a movimentar a conta. Mais tarde, o Réu revogou tal procuração, impedindo assim a Autora de aceder à conta.
 
A Mª juiz a quo sem alterar em nada a factualidade alegada pelas partes, ou seja, mantendo-se dentro da relação material controvertida como Autora e Ré a configuraram.

Nos termos do art. 5º nº 3 do CPC, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.

Do mesmo modo que o juiz não está vinculado à qualificação de um negócio jurídico que as partes celebraram, podendo qualificá-lo diversamente – por exemplo, um contrato promessa que, face aos elementos levados pelas partes aos autos, se verifica ser o contrato definitivo – também não é por a parte dizer que a figura jurídica que tutela o seu direito é a do enriquecimento sem causa que o juiz fica adstrito a tal qualificação. O que importa é que se mantenha sempre dentro das balizas que facticamente delimitam a relação controvertida.

Nesta medida, não vemos qualquer irregularidade no facto de a Mª juiz ter decidido que o que estava em causa nos autos não era um enriquecimento sem causa mas antes, tanto quanto se percebe, uma acção composta pela reivindicação de propriedade e restituição no quadro de um depósito irregular (depósito de coisa fungível).

O facto de não existir óbice à convolação para uma integração diferente do litígio assente nos mesmos factos jurídicos invocados pelas partes, não significa contudo que a caracterização operada na sentença recorrida conduza necessariamente ao resultado nela expresso.

Na verdade, face ao disposto no art. 1311º do Código Civil - “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence” - a acção de reivindicação compreende dois pedidos concomitantes, o reconhecimento de determinado direito e a entrega da coisa objecto desse direito. Como observa Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, pág. 848, “a causa de pedir é o facto de que derive o direito real alegado”.

Sendo verdade que a Autora  pede a restituição pelo Réu do “valor que indevidamente se apoderou“ - art. 44º da p.i.- também é verdade que a Autora não formula qualquer pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade nem invoca factos que fundamentem a constituição de tal direito.

Limita-se a afirmar que era dona das quantias depositadas nas contas do Millenium e que, para subtrair tal dinheiro a eventuais penhoras em execuções movidas pelas seus credores, deixou o Réu, seu filho, como único titular dessas contas, tendo este contudo passado uma procuração que permitia à Autora movimentar as mesmas contas. E é só quando o Réu revoga a procuração e impede a Autora de aceder às contas que ocorre o apossamento indevido que conduz ao seu pedido.

Contudo, antes de o Réu passar a único titular das contas bancárias, estas estavam em nome da Autora e do Réu, e segundo o que este afirma, tal ocorria desde a abertura de tais contas – art. 8ª da contestação.

De resto, o mesmo Réu afirma no art. 18º da contestação (e que confirmou nas suas declarações de parte):
Para além do dinheiro que era e sempre foi seu, o Réu passou a ser o legítimo proprietário da totalidade do dinheiro existente nas aludidas contas”.

Daí que o Réu insista que, mesmo a procederem as pretensões da Autora, nunca poderia ser condenado na restituição da totalidade do dinheiro existente nas contas mas apenas de metade, pois antes de ser titular único e passar a aludida procuração, já era cotitular das contas juntamente com a Autora.

Enquanto acção de reivindicação, a mesma omite o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e os factos que conduziram à constituição de tal direito.

Mas mesmo que se aceite, como parece fazer a sentença recorrida, que tal pedido de reconhecimento do direito está implícito na pretensão formulada e resulta do que foi sendo alegado na petição inicial, a Autora não provou qual a origem do dinheiro com que abriu as contas do Millenium e nem sequer provou – na reapreciação factual que atrás fizemos – que tal dinheiro lhe pertencesse. O que se pode afirmar é que as contas bancárias tinham dois titulares, a Autora e o Réu.

Depois, também não aceita este Tribunal da Relação como provado que o acordo feito com o Réu para que este passasse a ser o único titular das contas mas com procuração a favor da Autora permitindo-lhe movimentar as mesmas, resultasse de uma intenção da Autora de salvaguardar o seu património por força de dívidas.

De resto, o próprio tribunal a quo julgou como não provado que tal salvaguarda do seu património resultasse das execuções “com origem em dívidas de LB ou com dívidas da própria ou da sociedade Quinta do Munhoz, por força das quais o seu património pudesse ser afectado”. 

Diga-se de passagem que, perante isto, podemos questionar quais seriam então as dívidas de que a Autora pretendia proteger o seu património, uma vez que não se prova que fossem dívidas do ex-marido, da sociedade ou da própria Autora. Aliás e quanto a dívidas da sociedade é bom lembrar que o Réu e a filha da Autora detinham cada um cerca de 46% das acções, e a Autora apenas 8%.

Acresce que a própria Autora afirmou ter uma outra conta bancária, avultada, resultante da venda de um prédio, e que a sociedade era proprietária de vários imóveis.

No âmbito do depósito irregular – no caso depósito bancário – há que chamar a atenção para o facto de o depositário (e obrigado a restituir a coisa depositada e seus frutos, art. 1187º c) do Código Civil) não ser o Réu, igualmente depositante, mas o Banco Millenium que não é parte na acção nem figura na relação material controvertida. Não estamos perante um dever de restituir a coisa depositada.

Na sentença recorrida (ver fls. 138), entendeu-se que, subjacente ao depósito bancário, existia um outro depósito irregular – depósito de coisa fungível - “nos termos do qual uma parte entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde e restitua quando for exigida. Tratando-se de coisa fungível, como é o caso do dinheiro, estamos perante um contrato de depósito irregular (é certo que correlativo a um outro contrato de depósito, este de natureza bancária, mas cujo regime não oferece virtualidade específica para o desenlace da acção)”.

Afirmando-se ainda que:
“Prevêem ainda, com interesse específico para a acção, o art. 1187º c) do CC que o depositário é obrigado a restituir a coisa com os seus frutos e o art. 1192º nº 1 do mesmo Código que o depositário não pode recusar a restituição ao depositante com o fundamento de que este não é proprietário da coisa nem tem sobre ela outro direito” (...) Do ponto de vista jurídico a questão mostra-se pois resolvida”.

Salvo o devido respeito, não podemos sufragar este entendimento, que seria aplicável se o depositário fosse o Réu. Mas o depositário é o Banco Millenium.

O que a Autora alega não é que o filho, ora Réu, fosse depositário, mas sim que fez um acordo com ele – quaisquer que tenham sido os motivos subjacentes – pelo qual o Réu ficava como único titular das contas e passava uma procuração à Autora para que esta pudesse movimentar tais contas. Tendo o Réu incumprido tal acordo quando, mais tarde, revogou a procuração impedindo a Autora de aceder à conta.

O que está pois em causa é o incumprimento de um negócio jurídico entre Autora e Réu.

O nº 5 da matéria de facto dada como provada mostra os termos de tal acordo:
A pedido da Autora o Réu passou a figurar como único titular das contas bancárias do Banco Millenium, podendo a Autora movimentá-las”.

E isto é tudo o que se pode dizer a respeito desse acordo, que configura um negócio jurídico, mas que não constitui um contrato de depósito nem uma doação. A cópia da procuração encontra-se a fls. 111.

Nos termos do art. 265º nº 2 do Código Civil, “a procuração é livremente revogável pelo representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação”.
Porém, nos termos do nº 3 do mesmo artigo, “mas, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem o acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”.  

Não se tendo provado qualquer factualidade que pudesse integrar o conceito de justa causa, estaria vedado ao Réu revogar a procuração.

No âmbito do negócio jurídico que resultou provado em 5), existem dois elementos:
- Passar o Réu a ser o único titular das contas bancárias;
- Ter a Autora acesso a tais contas, podendo por exemplo, levantar dinheiro das mesmas, o que foi assegurado mediante a aludida procuração.

Ao revogar a procuração é manifesto que o Réu incumpriu o negócio jurídico que celebrara com a Autora, uma vez que impediu esta de aceder à conta.
Antes de celebrarem tal acordo, quer Autora quer o Réu eram titulares das contas em causa.
Tendo este tribunal a quem julgado não provada a matéria dos nºs 6 e 8 da decisão factual e mantendo como não provado o nº 3 da matéria dada como não provada na 1ª instância, o pedido da Autora deverá proceder mas apenas em parte. Como resulta dos artigos 516º do Código Civil e 780º nº 5 do CPC, na ausência de demonstração da quota-parte de cada depositante na mesma, presume-se que tais quotas são iguais.
A Autora terá assim direito a ser ressarcida pelo Réu de metade das quantias existentes nas contas referidas à data da revogação da procuração.

Note-se que a solução que aqui advogamos, se contém inteiramente dentro dos limites da relação material controvertida tal como configurada por ambas as partes. Não se trata de decisão que contenha questão nova ou que desloque o foco da decisão para parâmetros não equacionados pelas partes no modo como expuseram o litígio.

No tocante à nulidade invocada pelo recorrente, atinente à sentença recorrida, que entende conter uma “decisão surpresa” sobre a qual as partes não se puderam pronunciar, há que reconhecer que a questão é mais duvidosa.
Como já referimos, o julgador não está sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
 
Como se observa no acórdão do STJ de 27/09/2011, “o juiz tem o dever de participar na decisão do litígio, participando na indagação do direito (...) sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. Porém, a indagação do direito sofre constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendem conferir ao processo. Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adequa a uma correcta e atinada decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adoptada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos”.

Na verdade, a Mª juiz a quo respeitando embora a factualidade aportada pelas partes, não se limitou a uma diferente qualificação jurídica da mesma. De certo modo, deslocou o objecto do processo, afastando o invocado enriquecimento sem causa para uma figura jurídica que, inclusive, exigiria uma diferente formulação do pedido. No caso, o do reconhecimento do direito de propriedade como pressuposto da restituição.

Perante isto, entendemos assistir razão ao recorrente. As partes teriam todo o interesse – talvez até mais a Autora – em poder pronunciar-se sobre a nova perspectiva desenvolvida pelo tribunal.
E tal não foi feito.

Contudo essa irregularidade, a ter existido, como é nosso entendimento, encontra-se sanada com o presente acórdão, na medida em que não seguimos o caminho por que enveredou a sentença recorrida. Ao invés, contivemo-nos dentro dos limites estritos invocados pelas partes – depósito bancário com dois titulares da conta, acordo entre ambos para que só um passasse a figurar como titular mas passando procuração ao outro para que pudesse também movimentar a conta, revogação de tal procuração.

É claro que não qualificámos este circunstancialismo dentro do enriquecimento sem causa invocado pela Autora. Mas, curiosamente, o Réu já observara, na sua contestação, que não estava em causa verdadeiramente um enriquecimento sem causa mas antes a invalidade do negócio jurídico que lhe atribuiu a qualidade de único titular da conta – ver art. 72º da contestação.
Embora não entendamos que esteja em causa tal validade mas antes o incumprimento do negócio, centrámos de novo o litígio no âmbito fáctico e circunstancial em que as partes o delinearam, pelo que aqui inexiste qualquer decisão-surpresa.

Alega ainda o Réu que a Autora lançou mão, de forma indevida, de um pedido genérico.

Embora o pedido da Autora tenha as características de um pedido genérico, nos termos do art. 556º do CPC, a própria Autora, na indicação dos meios de prova solicita a notificação do Millenium para esclarecer qual a data em que foi revogada a procuração e qual o montante existente nas contas bancárias nesse momento.

Vindo a provar-se que a revogação da procuração ocorreu em 18/03/2013 não se apurando o valor do montante das contas existentes nesse momento. 
Ora, de acordo com a factualidade invocada pela Autora e mesmo de acordo com a ora dada como provada, é certo que a Autora acordou com o filho, ora Réu, passar este a figurar como único titular das contas bancárias no Millenium, passando o Réu uma procuração a favor da Autora para que esta pudesse movimentar tais contas. Posteriormente, o Réu revogou a procuração, pelo que a Autora deixou de ter acesso às aludidas contas.
Isto parece esclarecer a razão do pedido genérico, na medida em que a impossibilidade de acesso às contas implica obviamente a impossibilidade do respectivo controlo.
Aliás, poderia o Réu ter vindo ao autos indicar o montante exacto da conta em 18/03/2013, enquanto titular único da mesma, nos termos do art. 556º nº 1 c) do CPC.

Conclui-se assim que:
– Formulada petição em que a Autora invoca o enriquecimento sem causa do Réu, mas decorrendo dos factos que alegou que o que está em causa é o incumprimento de um negócio jurídico celebrado entre ela e o Réu, nada obsta a que o tribunal, respeitando os concretos factos alegados e contendo-se dentro dos limites do pedido, proceda a uma qualificação jurídica diversa da relação controvertida.
– Já diferente será a situação em que o julgador, mesmo respeitando os factos alegados, convola a acção em que se invocava o enriquecimento sem causa para uma acção de reivindicação a qual exige, para além do pedido de restituição, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa a restituir, caso em que estaremos perante uma construção jurídica inteiramente nova, que impõe que sejam as partes convidadas a pronunciarem-se sobre a mesma, fazendo respeitar o contraditório.

Termos em que procede parcialmente a apelação, condenando-se o Réu a pagar à Autora metade das quantias que se vier a apurar estarem depositadas, à data de 18/03/2013, nas contas bancárias do Banco Millenium com os números XXXX e YYYY, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos desde data da citação e até efectivo pagamento.
Custas pelo recorrente e pela recorrida em partes iguais.



LISBOA, 19/4/2018



António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais