Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
375014/09.5YIPRT.L1-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
INCOMPATIBILIDADE ABSOLUTA
CASO JULGADO
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da questão. Mas, se a questão da competência em razão da matéria respeitar apenas a dois tribunais judiciais, só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não tendo este lugar, até ao início da audiência final.
2. Não se forma caso julgado quanto à competência do tribunal em razão da matéria quando a questão se suscitar entre dois tribunais de diferente jurisdição, ainda que no despacho saneador tenha sido decidido tabularmente que o tribunal da causa é competente para o julgamento.
3. Em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 212º, da Constituição da República Portuguesa, os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos que, excepcionalmente, venham a ser atribuídos por lei especial a outra jurisdição.
4. Tendo em consideração que os tribunais administrativos são os competentes para dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, importa essencialmente apurar em cada caso o que se entende por “relação jurídica administrativa”.
5. A relação jurídica administrativo poderá ser entendida com “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”.
6. Assim, no fundo, há que averiguar se a invocada relação jurídica é uma relação de direito privado ou de direito público, pois é essa averiguação que irá determinar qual o tribunal competente para o julgamento da causa.
7. O direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes públicos, mas actuando estes despidos do «ius imperii», pelo que se a relação jurídica controvertida não se apresentar com estas características, estaremos perante uma norma de direito público, onde, pelo menos um dos sujeitos da relação é um ente titular de autoridade e que intervém nessa veste, sendo, pois, detentor do poder de emitir comandos que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários.
8. Consequentemente, se no âmbito de uma relação contratual ambos os contraentes forem entidades particulares, e actuando apenas nessa qualidade, não estará em causa uma relação jurídica tutelada pelo direito público.
9. O facto de o Contrato de Cessão de Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial ter sido celebrado pela autora na qualidade de Concessionária, não significa necessariamente que se trate de um contrato de direito público, até porque o próprio Estado, em certos casos, actua como se de um simples particular se tratasse (despido do ius imperii), pelo que também a cessionária, por maioria de razão, pode celebrar contratos de natureza privada.
10. A causa de pedir nesta acção assenta no alegado incumprimento pelo Réu do “Contrato de Cessão do Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial”, no que diz respeito à falta de pagamento das taxas de manutenção mensalmente facturadas pela autora nos termos acordados, tendo a autora, embora concessionária, actuado desprovida de poderes de autoridade.
11. A obrigação contratual de pagamento mensal de uma determinada quantia, que foi designada de “taxa”, não reveste, ela própria, uma qualquer natureza ou regulamentação administrativa e/ou de direito público.
12. Este vocábulo não está empregue em sentido técnico jurídico (nomeadamente fiscal), ou seja, no sentido de importância cobrada aos utentes de um serviço público como contrapartida pela prestação desse mesmo serviço, tratando-se antes de quantias pagas a título de “manutenção e demais serviços prestados”, designadamente de vigilância, limpeza e promoção global, não estando em causa serviços de ordem e/ou interesse públicos.
(S.Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:  Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa - 7.ª secção
Nos presentes autos de acção ordinária, assim transmutada após a remessa à distribuição na sequência da dedução de oposição, em que é autora “Mar… SA” e réu VA, foi suscitada oficiosamente a incompetência, em razão da matéria, do Tribunal judicial da comarca de C… para a preparação e julgamento da causa.
A autora respondeu dizendo que o tribunal competente é o da jurisdição comum e não os tribunais administrativos, acrescentando, contudo, serem estes os competentes no que diz respeito ao conhecimento do pedido reconvencional.
O tribunal recorrido julgou procedente a excepção de incompetência e declarou o Tribunal de Comarca de … incompetente para o conhecimento da causa, e competentes para o efeito os Tribunais da jurisdição administrativa, e, consequentemente, absolveu A. e R. da instância.
Inconformada apelou a autora, concluindo as alegações como segue:
1. Em primeiro lugar, mal andou o Tribunal ao analisar – e, a final, decidir – a sua incompetência material de forma global e sem qualquer ponderação individualizada face a cada um dos pedidos (inicial e reconvencional) em apreço nestes autos que, no caso, efectivamente justificariam uma análise específica, conducente a uma decisão distinta quanto à identificação do Tribunal materialmente competente para o seu julgamento.
2. A “MAR SA” é uma sociedade de direito privado. É também a entidade Concessionária da MARINA..., muito embora tenha actuado, na sua relação contratual com o Réu Recorrido VA, desprovida de poderes de autoridade e sem que as partes tenham expressa ou implicitamente remetido a regulação da sua relação a um regime substantivo de direito administrativo, não sendo, de resto, objecto dos presentes actos a fiscalização da legalidade de um qualquer acto jurídico praticado pela Recorrente na qualidade de Concessionária da MARINA....
3. A causa de pedir do pedido formulado nos autos pela Autora Recorrente assenta no alegado incumprimento, pelo Réu Recorrido, do Contrato de Cessão do Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial, no que se reporta à sua obrigação de pagamento das taxas de manutenção mensalmente facturadas. Trata-se de um contrato de natureza e objecto exclusivamente de direito privado, no âmbito ou por referência ao qual as partes não remeteram a subordinação da sua disciplina jurídica para o direito substantivo administrativo.
4. O Contrato de Cessão do Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial que constitui causa de pedir do aludido pedido condenatório (i) não reveste objecto susceptível de acto administrativo, (ii) não se mostrando por qualquer modo regulado por normas de direito público, nem (iii) foi sido objecto de uma expressa remissão, das partes, para aplicação de um regime substantivo de direito público,
5. E a obrigação contratual em cujo incumprimento a Recorrente alega incorrer o Réu Recorrido – a obrigação contratual de pagamento das ditas taxas de manutenção mensais – não reveste, ela própria, uma qualquer natureza ou regulamentação administrativa e/ou de direito público,
6. Não tendo a Autora Recorrente, por referência às sobreditas obrigações contratuais que constituem causa petendi do seu pedido ou, mais genericamente, por referência à esquemática contratual e às obrigações contratuais que impendem sobre as partes em resultado do contrato celebrado, actuado no exercício de poderes de ius imperii, tal como exigem as alíneas d) e f) do artigo 4.º, n.º 1, do ETAF.
7. A circunstância de a Recorrente ser a entidade Concessionária da MARINA... todavia não desvirtua o óbvio, ou seja, o objecto e a natureza daquele contrato e a relação jurídica em seu resultado estabelecida entre as partes: trata-se de uma relação de cariz unicamente privado, no âmbito da qual nenhuns poderes de autoridade são exercidos pela Recorrente.
8. As partes acordaram a cessão de um direito de utilização de estabelecimento comercial contra o pagamento das quantias facturadas mensalmente em valor proporcional ao das despesas suportadas pela Recorrente com respeito à consecução do empreendimento da MARINA... e à promoção dos serviços necessários para esse efeito, contratados pela Autora Recorrente com empresas de natureza também privada.
9. Nada, nesta esquemática contratual, indicia uma qualquer qualificação da aludida relação jurídica como uma relação jurídico-administrativa, portanto susceptível de determinar a aplicação do mencionado artigo 4.º do ETAF; nem o pedido formulado pela Recorrente assenta numa sua actuação e/ou inter relação com o Recorrido VA sob a veste de autoridade pública,
10. Donde resulta não estar também em consideração nos autos – pelo menos no que se reporta ao pedido formulado pela Recorrente - assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e/ou dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, missão que está legalmente consignada à esfera de competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
11. Da mera transmissão de poderes de concessão da MARINA... a uma parte destes autos (a Recorrente) não resultará mister concluir, sem mais, pela aplicabilidade das mencionadas alíneas d) e/ou f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF,
12. Concluindo-se ao invés da letra e da ratio daquela disposição que, para além disso, necessária será uma actuação da entidade concessionária no comprovado “exercício de poderes administrativos”, que no caso, não só não surge alegada ou por qualquer forma demonstrada, como efectivamente não ocorreu e resulta infirmada em face da esquemática contratual e dos demais factos considerados indiciariamente provados pelo Tribunal a quo com respeito à relação contratual estabelecida entre a Recorrente e o Recorrido VA,
13. Pelo menos quanto ao pedido formulado pela Recorrente não está directa ou indirectamente em causa o seu cumprimento do Contrato de Concessão ou o cumprimento de quaisquer obrigações contratuais ou o exercício de quaisquer direitos contratuais daquele exclusivamente resultantes e de natureza administrativa.
14. Necessário será, pois, distinguir entre i. a fixação dos valores exigidos pela Recorrente e a composição dos custos que para os mesmos concorrem (que não está, como se disse, por qualquer forma em causa nestes autos, pelo menos no que se reporta ao pedido condenatório formulado pela ora Recorrente) e, por outro lado, ii. a actividade da sua cobrança, esta meramente privada (esta sim em causa no pedido formulado pela ora Recorrente). Esta distinção não foi, no entanto, tomada em consideração pelo Tribunal a quo, que concluiu de forma indistinta e portanto, e como demonstrado, errada, pela sua incompetência material para o julgamento dos pedidos, inicial e reconvencional, formulados nos autos.
15. O pedido de pagamento formulado nos autos pela Recorrente prende-se directa e exclusivamente com o Contrato celebrado livre e autonomamente entre as partes, de objecto unicamente privado, e, em especial, com o pedido de cobrança das quantias que o Recorrido contratualmente se obrigou a liquidar, cobrança que a Recorrente pretende por esta via efectuar, e sem qualquer dominus de autoridade sobre o Recorrido (que o referido contrato, de resto, não lhe reconhece, nem a este nem a qualquer outro título ou a propósito de qualquer outra actuação contratual). Tal pedido coaduna-se com a aplicação que deverá ser feita do disposto nas alíneas do artigo 4.º do ETAF acima enunciadas.
16. Não havendo um qualquer “factor legal de ligação” do Contrato em apreço nestes autos ao “Direito Administrativo”, e não havendo também, como vimos já, qualquer ligação destes dispositivos contratuais à esfera de competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais por via da alínea f) do aludido artigo 4.º do ETAF, por inexistência de qualquer remissão expressa ou tácita para a aplicação do regime substantivo de direito administrativo ou sequer directa ligação ao exercício da actividade concessionada à Recorrente e aos poderes de autoridade que por esta via lhe foram concedidos, resultará pois necessário concluir pela reversão do entendimento pugnado a este respeito pelo Tribunal a quo.
17. No sentido supra exposto aponta a doutrina e a jurisprudência acima citadas, entre a qual se encontram dois Acórdãos proferidos em processos em que é também parte a sociedade Autora nestes autos.
18. Acresce referir que a natureza da argumentação invocada pelo Réu a título de defesa face ao pedido formulado pela Autora, ainda que fazendo referência ao contrato de Concessão e ao alegado cumprimento, por esta última, das obrigações aí assumidas (a título de excepção peremptória de não cumprimento e de fundamento reconvencional) e, como tal, por hipótese apelando, se exclusivamente considerada, à competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais, naturalmente que de per si não reverteria a competência material do Tribunal Cível para o julgamento do dito pedido inicial formulado pela Autora,
19. O que resulta manifesto do disposto no artigo 91.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil, que precisamente prevê a irrelevância da natureza das questões invocadas a título de defesa – e da competência material para o seu conhecimento – para a fixação do Tribunal materialmente competente para o julgamento do pedido,
20. Ademais, a possível incompetência material para o julgamento do pedido reconvencional formulado pelo Recorrido apenas coloca inerentemente em crise a própria admissibilidade do referido pedido (designadamente nos termos previstos no artigo 93.º, n.º 1, do Código de Processo Civil23), todavia naturalmente não colocando em causa a competência material do Tribunal Cível de C… para julgar o pedido inicial formulado pela Autora e tal como configurado pela Autora.
21. Acresce que a Sentença recorrida consubstancia uma violação da eficácia do caso julgado formal reconhecida à decisão proferida em sede de Despacho Saneador, no sentido da competência material do Tribunal a quo. Nesse sentido, veja-se o julgado por este Venerando Tribunal, em Acórdão datado de 26.05.201124, a propósito de questão idêntica à problemática sub judice, que confirmou o reconhecimento de eficácia caso julgado formal à decisão consignada em sede de Despacho Saneador no sentido da competência material do Tribunal (não antecedida, como no caso, pela invocação por qualquer uma das partes de uma excepção dilatória de incompetência do Tribunal), para o efeito fazendo apelo à relevância e superior dignidade da ratio do instituto do caso julgado.
22. De resto, e ainda que assim não fosse (ou seja, que a decisão encerrada em sede de Despacho Saneador não revestisse eficácia de caso julgado formal), não poderia ainda ignorar-se que um qualquer revés decisório face ao ali decidido consubstanciaria uma inadmissível frustração do direito e da expectativa das partes a uma célere e adequada composição do litígio.
23. A Sentença a quo, ao determinar a absolvição do Réu Recorrido da instância, violou, portanto, o disposto no n.º 3 do artigo 212.º e no n.º 1 do artigo 221.º da Constituição da República Portuguesa, nas alíneas d) e f) do artigo 4.º, n.º 1, do ETAF, no artigo 26.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judicial e nos artigos 64.º e 93.º, n.º 1, do Código de Processo Civil25.
E termina dizendo que deve ser revogada a Sentença recorrida na parte respeitante à absolvição do Réu Reconvinte da instância e que se determine o prosseguimento dos autos de modo a ser proferida sentença sobre o mérito do pedido formulado pela Recorrente.
II
Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
Para a apreciação e decisão sobre a competência do tribunal em razão da matéria foram dados como provados os seguintes factos:
1. Através de concurso público internacional, a ET – Empresa Nacional de Turismo, S.A., em representação do Estado Português, adjudicou à R. a concessão para a construção e exploração de um porto desportivo na Vila de C…(complexo denominado MARINA...), na sequência do que foi celebrado com a ET, em 21-9-1995, o respectivo contrato de concessão, celebrado pelo prazo de 75 anos, pelo qual a R. ficou titular do direito de construção e exploração, em regime de serviço público regular e contínuo, da referida MARINA..., para apoio à navegação, abrigo portuário de embarcações de recreio, bem como de instalações e serviços de natureza comercial e industrial, operacionais, complementares e acessórias da mesma, do qual constam, no que ora releva, as seguintes cláusulas:
20ª
“1. Compete à ET elaborar por sua iniciativa, ouvida a MAR  SA ou por proposta da MAR  SA, o REGULAMENTO de Exploração e Utilização da MARINA... e submetê-lo à aprovação dos Ministros do Mar e do Comércio e Turismo.
(…)
5. O REGULAMENTO a que se refere esta Cláusula pode em qualquer altura ser objecto de propostas de alteração, por iniciativa da ET, ouvida a MAR SA, ou desta última, dirigida à ET, que ajuizará da respectiva bondade, e as submeterá à aprovação dos Ministros do Mar e do Comércio e Turismo.”.
21ª
“1. A MAR SA terá direito de cobrar taxas pelos serviços que prestar no âmbito da CONCESSÃO e pela utilização das instalações e equipamentos da MARINA....
2. O valor das referidas taxas, bem como as respectivas regras gerais de aplicação, será fixado na tabela de tarifas.
3. A tabela de tarifas referida no número anterior, bem como as suas revisões, será livremente fixada pela MAR SA, que dela dará conhecimento à ET até 30 (trinta) dias antes da sua entrada em vigor.
4. A MAR SA não pode cobrar quaisquer taxas que não constem da tabela de tarifas então em vigor nem aplicá-las por forma diferente daquela que dela constar ou onerar, por qualquer outra forma, o preço dos serviços ou da utilização das instalações.
5. Após autorização do início de exploração da MARINA..., a MAR SA poderá cobrar as taxas e tarifas devidas pelos utentes das instalações e serviços vistoriados, nos termos estabelecidos no seu REGULAMENTO.”.
28ª
1. A MAR SA poderá ceder a terceiros que disponham de idoneidade pessoal, técnica e financeira adequada para o efeito, os direitos de exploração de instalações e serviços de natureza comercial ou industrial (…).
2. A verificação da compatibilidade dos Contratos de cessão a que se refere o número anterior com o presente CONTRATO dependem de prévia apreciação da ET, devendo a MAR SA enviar-lhe, 15 (quinze) dias antes da respectiva assinatura, um exemplar definitivo dos mesmos, com a identificação completa do cessionário e dos elementos comprovativos da respectiva idoneidade, considerando-se tais Contratos tacitamente aprovados se a ENTIDADE CONCEDENTE não se pronunciar no prazo de sete dias após a sua recepção.
3. A MAR SA é responsável, perante os utentes e a ET, pela eficiência do funcionamento e a qualidade dos serviços desempenhados por terceiros.” (doc junto a fls. 192 e ss)
2. Nessa qualidade de concessionária celebrou um acordo intitulado “Contrato Promessa de Cessão e Utilização de Estabelecimento Comercial na MARINA...” junto aos autos como doc 1 a fls. 31 e ss relativo à L 37, cuja posição contratual da promitente cessionária cedeu a sua posição contratual ao ora R.
3. No regulamento da MARINA... de 6-8-1999 junto a fls. 180 e ss, consta, ao que ora releva, o artigo 26º, com o seguinte teor:
“1. As taxas devidas pelos serviços prestados no âmbito da concessão e pela utilização das instalações e equipamentos serão fixadas livremente pela Concessionária com a antecedência de 30 (trinta) dias relativamente à data da sua aplicação e afixadas, em local bem visível e de fácil acesso público.
2. O Valor das referidas taxas, o elenco dos serviços prestados, bem como as respectivas regras gerais de aplicação, serão fixados na Tabela de Tarifas.
3. A tabela de tarifas referida no número anterior, as suas revisões, bem como o elenco dos serviços prestados serão livremente fixados pela Concessionária, que deles dará conhecimento à ET até 30 (trinta) dias antes da sua entrada em vigor.
4. A Concessionária não poderá cobrar quaisquer taxas que não constem da tabela de tarifas então em vigor nem aplicá-las por forma diferente daquela que dela constar.”.
2. É pelas conclusões que se determinam o âmbito e os limites do recurso (art. 639.º do CPC).
Assim, há que apreciar e decidir:
a)Se existe caso julgado quanto à competência do tribunal em razão da matéria;
b) Se assim não for entendido, qual o tribunal competente: o tribunal judicial de Cascais ou os tribunais administrativos.
III
Vejamos antes de mais se se formou caso julgado formal quanto á competência do tribunal em razão da matéria.
A Exma. Juiz defende que não existe caso julgado quanto à questão de incompetência absoluta, pois que o despacho saneador nessa parte foi meramente tabular, sendo despacho interlocutório, genérico e abstracto, citando nesse sentido o ac. TRL. de 13.10.2011 (proc. 9567/08-8), in www.dgsi.pt, o qual, por seu turno, citou o ac. TRC de 26.04.94 (CJ Ano 1994, II, 38), segundo o qual não constitui caso julgado a declaração genérica no despacho saneador sobre a inexistência de excepções.
A recorrida cita em sentido contrário o ac. TRL de 36.05.2011 - 8 (Internet) o qual decidiu que o despacho que conhecer de determinada questão relativa à competência em razão da matéria, não sendo objecto de recurso, constitui caso julgado formal em relação à questão concreta de competência que nele tenha sido decidida.
Verifica-se assim que a questão não é pacífica.
Vejamos.
Como estabelece o n.º 1 do artigo 97.º do NCPC, a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e, fora dos casos aí referidos, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da questão.
E determina o n.º 2: “a violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final”.
No essencial mantém-se a doutrina do artigo 102.º do CPC na versão anterior.
Portanto, se estiver em causa a incompetência absoluta pode esta ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da questão. Mas, como resulta do n.º 2 do mesmo artigo, existe uma importante restrição: se a questão da competência em razão da matéria respeitar apenas a dois tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final. O que significa que se estiver em causa a competência de dois tribunais de diferente jurisdição, aquela excepção pode ser arguida ou suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da questão[1].
É o caso.
E se é assim, parece não haver dúvidas de que não se forma caso julgado quanto à competência do tribunal em razão da matéria quando a questão se suscitar entre dois tribunais de diferente jurisdição, ainda que no despacho saneador tenha sido decidido tabularmente que o tribunal da causa é competente.
IV
Vejamos agora a 2ª questão.
1. Conforme preceituado no artigo 211º, nº 1, da CRP, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
O artigo 66º, do CPC[2], dispõe que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
O artigo 26º, nº 1, da LOFTJ, estabelece também a respeito da competência em razão da matéria que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”.
A competência residual é, pois, dos tribunais judiciais. Estes só não serão competentes se a lei atribuir competência a outros tribunais.
O n.º 3 do artigo 212º, da Constituição atribui aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Assim, com base nesta norma constitucional, pode afirmar-se que os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos que, excepcionalmente, venham a ser atribuídos por lei especial a outra jurisdição.
Em concretização daquela norma constitucional dispõem os art.s 1º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, na parte que ora releva:
“Artigo 1º
Jurisdição administrativa e fiscal
1 - Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
2 - Nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados (…).
Artigo 4º
Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir”.
2. Aqui apenas poderão estar em causa as alíneas f) e g).
Mas, o que essencialmente importa averiguar, como resulta do artigo 212.º da CRP, é saber o que se entende por “relação jurídica administrativa”, uma vez que os tribunais administrativos são os competentes para dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.
3. Segundo J.J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,[3] «[e]sta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal».
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE[4] defende que a questão sobre o que se entende por «relação jurídica administrativa» devia ser resolvida expressamente pelo legislador, considerando mais prudente, na falta de uma clarificação legislativa, partir-se do entendimento do conceito constitucional no sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo», com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração. O que significa, segundo aquele autor, que a determinação do domínio material da justiça administrativa continua a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, tendo de considerar-se relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido. O que pressupõe, prossegue o mesmo autor, um conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público. E conclui: «é por isso que se justifica um sistema de regras e de princípios diferentes das normas de direito privado, que formam uma ordem jurídica administrativa; será aí que se justificará a existência de uma ordem judicial diferente da ordem dos «tribunais judiciais».
Por sua vez interrogam-se Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira: “o que é que define uma relação jurídica como sendo de natureza administrativa, quais são os factores e critérios a que deve recorrer-se de modo a poder aplicar-se, em função disso, a cláusula material de jurisdição dos tribunais administrativos que se encontra consagrada no art. 212º/3 da CRP?
E respondem: Diremos, sem grandes preocupações de rigor, que são relações jurídico-administrativas:
i) em princípio, aquelas que se estabelecem entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos (relações intersubjectivas públicas e relações inter-orgânicas), desde que não haja nas mesmas indícios claros da sua pertinência ao direito privado;
ii) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado), actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (v. Acórdão do TC nº 746/96 de 29 de Maio, e Vieira de Andrade, A Justiça …, cit, p.55 e 56);
iii) aquelas em que esse sujeito actua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2002, p. 137)”.
Segundo DIOGO FREITAS DO AMARAL[5], relação jurídica administrativo é “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”
Assim, no fundo, há que averiguar se a invocada relação jurídica é uma relação de direito privado ou de direito público, pois é essa averiguação que irá determinar qual o tribunal competente para o julgamento da causa.
Segundo MOTA PINTO[6], o critério mais adequado para distinguir o direito público do direito privado é o designado por teoria dos sujeitos, nos termos do qual, o direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes público, mas intervindo estes despidos de «imperium» ou poder soberano. Se a relação jurídica disciplinada pela norma não se apresenta com estas características, estamos perante uma norma de direito público, onde, pelo menos um dos sujeitos da relação disciplinada é um ente titular de autoridade e que intervém nessa veste, sendo, pois, detentor do poder de emitir comandos que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários.
No caso dos autos, quer a autora, quer o réu, são entidades particulares, pelo que, desde logo, e em princípio, não estaria em causa uma relação jurídica tutelada pelo direito público.
No entanto foi referido na sentença recorrida:
«No caso dos autos, dos factos acima elencados resulta que os contratos invocados pelas partes, que integram a causa de pedir pedidos da A. têm subjacente um contrato administrativo de concessão.
Com efeito, está provado que a A. é concessionária da construção e exploração da MARINA..., em regime de serviço público regular e contínuo, consubstanciado no apoio à navegação, abrigo portuário de embarcações de recreio, bem como de instalações e serviços de natureza comercial e industrial, operacionais, complementares e acessórias da mesma.
Sendo certo que a concessão de serviço público traduz-se na transferência, temporária ou resolúvel, por uma pessoa colectiva de direito público de poderes que lhe competem para outra pessoa, singular ou colectiva, a fim de esta os exercer por sua conta e risco, mas no interesse geral, sendo indubitável que o contrato de concessão consubstancia um acto administrativo no qual a concedente, aqui A. surge investida de determinados poderes de autoridade, necessários à prossecução do interesse público.
Ora, foi precisamente investida de tais poderes que a A. contratou com o requerido, manifestando a sua autoridade desde logo na escolha dos cessionários e na fixação unilateral das cláusulas dos respectivos contratos, cuja minuta tinha de ser submetida à autoridade estatal para aprovação.
Com efeito, aquando da celebração dos contratos promessa de cessão de direito de utilização de estabelecimento comercial na MARINA..., cujo incumprimento é invocado como fundamento das pretensões da A., não estavam os contratantes entre si em situação de paridade, estando a A. em tal ocasião munida do ius imperii que lhe advinha da titularidade da concessão de serviço público que lhe fora concedida…»
Mas a autora contrapõe que não está em causa qualquer relação jurídico-administrativa (cfr. as conclusões supra transcritas nomeadamente as n.ºs 2 a 9)
3. Vejamos.
A autora, “MAR SA – Sociedade Concessionária da MARINA..., S.A.”, pede que o R seja condenado no pagar-lhe a quantia de €30.994,74 (acrescida de juros), relativa a taxas de manutenção de serviços prestados na qualidade de concessionária da MARINA... e constantes das facturas descriminadas no requerimento injuntivo.
Para tanto alegou em síntese:
Por escrito particular intitulado de "Contrato Promessa de Cessão de Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial na MARINA...", datada de 17 de Dezembro de 1997,  a MAR SA e “EC, Lda”, como promitente cessionário, acordaram nos considerandos e nas cláusulas dele constantes.
Por escrito particular intitulado "Cessão de posição contratual", datado de 2 de Junho de 1999, MAR SA, representada pelo seu administrador PM, na qualidade de terceira contraente, Ex… Lda. como CEDENTE e VA, como CESSIONÁRIO, acordaram nos considerandos e nas cláusulas constantes do Contrato de "Cessão de posição contratual", tendo o aqui Requerido assumido a posição da sociedade ET no Contrato Promessa de Cessão de Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial na MARINA....
Nos termos da Cláusula 9.ª desse contrato, o Requerido obrigou-se ainda a pagar na proporção que lhe correspondesse, as taxas de manutenção e demais serviços prestados no âmbito da exploração da MARINA..., tais como vigilância, limpeza ou promoção geral, de acordo com o disposto no Regulamento de Exploração da MARINA..., “nos tarifários aplicáveis e outras normas ou regulamentos que venham a ser aprovados pela ET, e dos demais acordos a que fica vinculado o cessionário ao direito de utilização do estabelecimento comercial” (cfr. Cláusula 9.ª do mencionado contrato).
O R contestou e arguiu a excepção de cumprimento defeituoso bem como a não obrigação do pagamento das taxas, face ao disposto na Base XVII do DL 335/91, de 07-09, atenta a deficiente prestação dos serviços por parte da A., deduzindo ainda reconvenção no sentido de ser declarado que ele não está obrigado ao pagamento das taxas até que a requerente cumpra as obrigações que assumiu com o requerido.
Assim, o pedido de pagamento formulado pela recorrente prende-se directa e exclusivamente com o contrato celebrado entre as partes. Não é pelo facto de a recorrente ter escolhido os concessionários e ter fixado unilateralmente as cláusulas dos respectivos contratos, cuja minuta tinha de ser submetida à autoridade estatal para aprovação, que se pode concluir que actuou revestida do ius imperii e que o contrato é de direito público, pois, por um lado, é normal que uma qualquer entidade possa escolher com quem quer contratar (art. 405.º do CC) e, por outro, as taxas são fixadas em conformidade com o contrato livremente outorgado (se a autora não cumprir o acordo, pode o réu deixar de pagar as quantias facturadas, tal como sucede em qualquer contrato celebrado entre particulares).
A Autora é uma sociedade de direito privado. Mas é também a entidade Concessionária da MARINA.... Todavia, em relação ao R actuou desprovida de poderes de autoridade e as partes não remeteram expressa ou implicitamente a regulação da sua relação a um regime substantivo de direito administrativo. Não está em causa o aludido contrato de concessão celebrado entre a autora e a ET.
A causa de pedir assenta no alegado incumprimento pelo Réu do “Contrato de Cessão do Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial”, no que diz respeito à sua falta de pagamento das taxas de manutenção mensalmente facturadas pela autora nos termos acordados, o que resulta desde logo dos factos alegados no requerimento injuntivo supra descritos.
Mas, como defende a recorrente, trata-se de “um contrato de natureza e objecto exclusivamente de direito privado, no âmbito ou por referência ao qual as partes não remeteram a subordinação da sua disciplina jurídica para o direito substantivo administrativo”. Diz mais concretamente a apelante que o Contrato de Cessão do Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial que constitui causa de pedir (i) não reveste objecto susceptível de acto administrativo, (ii) não se mostrando por qualquer modo regulado por normas de direito público, nem (iii) foi objecto de uma expressa remissão, das partes, para aplicação de um regime substantivo de direito público.
A obrigação contratual de pagamento das ditas taxas de manutenção mensais não reveste, ela própria, uma qualquer natureza ou regulamentação administrativa e/ou de direito público.
O referido Contrato de Cessão de Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial foi celebrado pela autora na qualidade de Concessionária da MARINA.... Mas, o próprio Estado, em certos casos, actua como se de um simples particular se tratasse (despido do ius imperii), pelo que também a cessionária, por maioria de razão, pode celebrar contratos de natureza privada. É o caso, salvo melhor opinião.
As relações entre as partes são de natureza estritamente privada: a ora recorrente cedeu ao recorrido os direitos de exploração de instalações e serviços de
natureza comercial ou industrial mediante o pagamento mensal de uma determinada quantia, que denominaram de “taxa”. Mas esta palavra não está empregue em sentido técnico jurídico (nomeadamente fiscal), ou seja, no sentido de importâncias cobradas aos utentes de um serviço público como contrapartida pela prestação desse mesmo serviço. Trata-se antes de quantias pagas a título de “manutenção e demais serviços prestados”, designadamente de vigilância, limpeza e promoção global, sendo apodítico que não estão em causa serviços de ordem e/ou interesse públicos.
E embora estas quantias sejam determinadas pela ora recorrente, não o são no âmbito do exercício de poderes de autoridade. As partes acordaram a cessão de um direito de utilização de estabelecimento comercial contra o pagamento das quantias facturadas mensalmente em valor proporcional ao das despesas suportadas pela Recorrente com respeito à consecução do empreendimento da MARINA... e à promoção dos serviços necessários para esse efeito, contratados pela Autora Recorrente com empresas de natureza também privada. As denominadas taxas são devidas pelos serviços prestados, e estes são facturados tal como sucede num vulgar contrato de prestação de serviços regido pelo direito privado. E, como vimos, dizem respeito a serviços de limpeza, vigilância e promoção geral.
Não se vislumbra, pois, a existência de uma qualquer qualificação da aludida relação jurídica como uma relação jurídico-administrativa, portanto susceptível de determinar a aplicação do mencionado artigo 4.º do ETAF.
Os pedidos formulados pela ora Recorrente não se mostram, pois, enquadráveis na esfera de competência material reservada dos Tribunais Administrativos, porquanto a sua actuação, no âmbito da relação contratual estabelecida com o Recorrido, não se mostra revestida de quaisquer poderes de autoridade ou são impostos por motivos de interesse público, não sendo a relação estabelecida entre as partes de natureza jurídica administrativa.
O tribunal competente em razão da matéria é, pois, o tribunal comum, in casu, os juízos cíveis da comarca de Cascais (agora comarca de Lisboa Oeste- Cascais – instância local- secção cível).
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Por todo o exposto acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, e julgando-se competente, em razão da matéria, para o conhecimento da causa, o tribunal judicial da comarca de Cascais (agora comarca de Lisboa Oeste- Cascais – instância local- secção cível).
Custas pela parte vencida a final.
Lisboa, 20.01.2015.
José David Pimentel Marcos
Maria do Rosário Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho.
[1] Sobre a questão da oportunidade de dedução da defesa veja-se o artigo 573.º do NCPC.
[2] Na redacção anterior à Lei 41/2013, de 26 de Junho
[3] Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Vol. 2, pág. 567.
[4]  A Justiça Administrativa, Lições, 8ª edição, pgs. 57 e 58
[5] Direito Administrativo, vol. III Pág. 439/440.
[6]  Teoria Geral do Direito Civil, pág. 16