Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1777/19.5YRLSB-2
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO DE FACTO
ESCRITURA PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: INDEFERIMENTO
Sumário: A “Escritura Declaratória de União Estável”, prevista pelo direito brasileiro, não pode ser considerada ou revista nos termos do art.º 978.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, pois que não é “decisão” enquadrável na previsão desse preceito legal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO


FM…, de nacionalidade braso-português e AO…, brasileira, vieram instaurar a presente acção especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo a revisão e confirmação da Escritura Pública de União Estável realizada no 7.º Ofício de Notas da cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
Foram juntas a indicada escritura pública, certidões de nascimento da filha dos requerentes e dos requerentes.
O Senhor Procurador-Geral Adjunto, apresentou as suas alegações, de harmonia com o disposto no artigo 982º, do Código de Processo Civil (NCPC), nada tendo oposto à revisão e confirmação da aludida Escritura Pública.
*

Este tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade.
                                  
II–Fundamentação

1–De facto

Atenta a prova documental junta aos autos, mostra-se comprovado:
1– FM…, nasceu no dia … de Janeiro de 1974, no Rio de Janeiro, Brasil.
2– AO…, nasceu no dia … de Março de 1972, em Campo Grande, Brasil.
3– MA…, nasceu no dia … de Setembro de 2001, no Rio de Janeiro, Brasil.
4– No dia 01 de Dezembro de 2005, os requerentes, referidos nos pontos 1 e 2, outorgaram no Estado do Rio de Janeiro, no Cartório do 7.º Ofício de Notas, “Escritura Declaratória”, cuja certidão consta de fls. 21 e 21 verso destes autos, aqui dada inteiramente por reproduzida.
5– Nessa “Escritura Declaratória” consta, designadamente, que os ora requerentes terão dito perante o “escrevente substituto” LA…:
«(…)
1.º)- Que mantém vida em comum há 05 (cinco) anos, como se casados fossem. Que dessa união, o casal tem uma filha cujo nome é MA…, brasileira, menor impúbere, nascida a … de Setembro de 2001 (…).
2.º)- Eles declarantes, pela presente escritura e nos melhores termos de direito, declaram que são de sua livre e espontânea vontade, e quer sejam atribuídas um ao outro, quaisquer benefícios que venham a ter direito, aonde que com esta apresentar, inclusive INSS e/ou no órgão que for necessário, valendo a presente como prova para que os mesmos venham a se beneficiar como companheiros dependentes, os quais poderão prestar declarações e esclarecimentos, apresentar e produzir provas, assinar petições, requerimentos, papeis e demais documentos, juntar e retirar documentos, cumprir exigências, assinar, requerer e promover tudo o mais que preciso for, e inclusive a inclusão em planos de saúde, seguros e aonde for necessário, e seus totais direitos.
3.º)- Eles declarantes, firmam a presente espontaneamente, e para que produza no presente ou no futuro, seus devidos e legais de direito, junto ao Orgão Competente. A presente declaração é firmada nos termos do artigo 299 do Código Penal, se responsabilizando os declarantes em todo momento, civil e criminalmente por falsas declarações. Sendo dispensadas as testemunhas neste ato. (…).
E de como assim o disseram, do que dou fé, me pediram este instrumento que lavrei, outorgaram e assinam, depois de ser lido em voz alta aos outorgantes e reciprocamente outorgados, que o aceitaram como está redigido. Eu LA… Escrevente Substituto, lavrei, li e encerro o presente acto colhendo as assinaturas, subscrevo e assino (…)»

2–De Direito
 
Os requerentes, como foi salientado supra, pedem a revisão e confirmação da Escritura Pública de União Estável realizada no 7.º Ofício de Notas da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Acrescentaram ainda que tal pedido de revisão e confirmação é feito “para produzir seus efeitos em Portugal”, sendo que a indicada Escritura Declaratória de União Estável “declarou e reconheceu juridicamente a união dos requerentes”.  
Em matéria de reconhecimento e revisão de sentença estrangeira, o regime geral interno do sistema português é objecto do processo especial regulado nos art.ºs 978.º a 985.º do Código de Processo Civil, de que os requerentes lançaram mão.
O art.º 978.º, n.º 1 do CPC estabelece que “… nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”[1]
No caso em apreço, verifica-se que os requerentes pretendem que seja revista e confirmada uma “Escritura Declaratória de União Estável”, a qual, na óptica dos requerentes, declarou e reconheceu a união de facto existente entre ambos.
É entendimento hoje assente que a lei quando fala em decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, não pretende circunscrever o raio de acção das decisões a rever exclusivamente às decisões proferidas pelos tribunais estrangeiros. Com efeito, é generalizadamente aceite que certas decisões proferidas por entidades administrativas, poderão enquadrar-se nesse conceito amplo de decisões passíveis de serem reconhecidas por via deste processo de revisão[2] 
Certo é porém que haverá que aquilatar se o que está em causa é uma verdadeira decisão ou um mero “enunciado assertivo ou constativo”.
Como é cristalinamente referido no ac. do STJ de 09 de Maio de 2019[3], «(…) embora haja uma diferença entre o sentido de uma declaração contendo um enunciado assertivo ou constativo[4] e o sentido de uma declaração contendo um enunciado performativo[5] — entre uma declaração, designadamente sob compromisso de honra, de que um facto é verdadeiro e uma declaração de que se quer que um efeito se produza, ou não se produza —, o sentido do termo decisão dos arts. 978.º e 980.º deve interpretar-se em termos de abranger, p. ex., as decisões que reconhecem uma determinada circunstância ou uma determinada qualidade[6].
(…).»
Na realidade, nos casos em que se entendeu que poderia ser aceite a decisão administrativa, estavam em causa dissoluções de vínculos conjugais que não compreendiam apenas as declarações dos respectivos requerentes da dissolução, antes exigiam a decisão do tabelião (notário), o qual não se limitava a atestar as mesmas, pois que declarava (decidia) a dissolução, depois de verificar se se mostravam preenchidos os respectivos requisitos legais[7].
Ora, nas situações inversas, isto é, naquelas em que se regista a mera declaração assertiva ou de constatação, é nosso entendimento que não estamos perante verdadeiras e reais decisões passíveis de serem englobadas na previsão do n.º 1 do art.º 978.º.
O já citado ac. do STJ de 09/05/2019, refere, a tal propósito: «(…). Excluídas ficam contudo as decisões judiciais ou administrativas invocadas pelos Requerentes como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal (art. 978.º, n.º 2, do Código do Processo Civil)[8].
A situação sob apreciação situa-se precisamente no seio dessa classificação, pois que «(…) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira não faz com que o acto composto pelas declarações dos Requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” – com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada/revista. (…).» 
Do que se deixa dito há pois que concluir que o documento que os Requerentes pretendiam ver revisto e reconhecido como decisão enquadrável na previsão do n.º 1 do art.º 978.º do CPC – “Escritura Declaratória de União Estável” – o não poderá ser, pois que tratando-se de mera declaração assertiva ou de constatação, mais não será do que documento que poderá constituir meio de prova, mas que não valerá como decisão passível de ser reconhecida, como tal, pelos tribunais portugueses.
Neste mesmo sentido, vejam-se, para além do citado ac. do STJ de 09/05/2019, os acórdãos, igualmente do STJ, de 28 de Fevereiro de 2019[9] e de 21 de Março de 2019[10] e ainda do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Dezembro de 2018[11], todos disponíveis em www.dgsi.pt .

III–Decisão   

Por tudo o que se deixa dito, os juízes desembargadores que integram este colectivo acordam em indeferir o pedido de revisão e confirmação da “Escritura Declaratória de União Estável”, formulado pelos Requerentes, por incompatível com os pressupostos legais de revisão previstos no art.º 978.º, n.º 1 do CPC.
Fixa-se à causa o valor processual de €30 000,01.
Custas pelos requerentes.



Lisboa, 26 de Setembro de 2019



(José Maria Sousa Pinto)
(Jorge Vilaça Nunes)
(João Vaz Gomes)



[1]Salvo as excepções também estabelecidas em tal preceito – “tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais”.                                                                                                               
[2]Veja-se o acórdão do STJ de 25/06/2013, proferido no proc.º 623/12.5YRLSB.S1: “III - A decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do art.º 1094.º, n.º 1, do CPC [hoje, art.º 978.º, n.º 1 do NCPC], carecendo de revisão para produzir efeito sem Portugal.” ( Disponível em www.dgsi.pt )

[3]Proc.º 828/18.5YRLSB.S1, em que foi relator o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Nuno Pinto Oliveira

[4]Sobre a noção de enunciados assertivos ou constativos, vide Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, vol. I, Livraria Almedina, Coimbra, 1992, pág. 122.

[5]Sobre a noção de enunciados performativos, vide Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, vol. I, cit., págs. 121-126.

[6]Em termos em tudo semelhantes, José Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. II, cit., pág. 156.

[7]Veja-se o Referido acórdão do STJ de 25/06/2013, proferido no proc.º 623/12.5YRLSB.S1.

[8]Cf. José Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. II, cit., pág. 156.
[9]No processo n.º 106/18.0YRCBR.S1, em que foi igualmente relator o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Nuno Pinto Oliveira.
[10]Nos processos n.º 559/18.6YRLSB.S1 e 925/18.7YRLSB-A.S1, relatados pelos Exmos. Senhores Juízes Conselheiros Ilídio Sacarrão Martins e Hélder Almeida, respectivamente.
[11]No proc.º 184/18.1YRPRT, em que foi relatora a Exma. Juíza
Desembargadora, Ana Paula Amorim.