Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
974/16.0PEOER-A.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: ACUSAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - No nosso sistema processual penal, o juiz de julgamento não pode sindicar a actividade do MP e a posição que este tomou no final do inquérito, a não ser nas situações previstas no art. 311.º, do CPP.      
- Se o MP omitir acusação - seja por esquecimento, seja arquivando - pela prática de um crime público ou semi-público, o juiz de julgamento não pode determinar ao MP que deduza tal acusação, muito menos em que termos o deve fazer. Por um lado, porque se esse for o único crime em causa no processo, este não chega sequer à fase de julgamento. Por outro lado, se houver outro ou outros crimes pelos quais foi deduzida acusação, para além daquele que foi omitido, o juiz de julgamento só pode conhecer da matéria da acusação que lhe foi apresentada, não podendo imiscuir-se nem sindicar a posição do MP em matéria que não foi levada à acusação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:

1. O Ministério Público deduziu acusação, requerendo o julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, contra o arguido F., imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica (art. 152.º, n.ºs 1 al. a), 2, 4 e 5, do CP).
Distribuído o processo ao Juízo Local Criminal de Oeiras (Juiz3), Comarca de Lisboa Oeste, foi a acusação recebida e procedeu-se ao respectivo julgamento, tendo sido designada o dia 21/05/2018 para leitura da correspondente sentença.
Nessa data, reaberta a audiência de julgamento foi proferido despacho que declarou nula a acusação e os termos subsequentes, por falta de promoção do processo, no que concerne a um crime de violação que devia ter sido imputado ao arguido pelo MP e não o foi, determinando-se a «devolução dos autos à fase de inquérito e ao MP, com vista a suprir tal vício».
2. Não se conformando com esta decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso, que motivou, formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso versa sobre o douto despacho proferido em 21 de Maio de 2018, que declarou nula, por falta de promoção do processo, a acusação proferida nos autos e os seus termos subsequentes, e ordenou a devolução dos mesmos à fase de inquérito e ao Ministério Público, com vista a suprir tal vício.
2. Não existe falta de promoção do processo nem se verifica a declarada nulidade.
3. Com efeito, o Ministério Público não deixou de se pronunciar, no despacho de encerramento do inquérito, sobre a totalidade do seu objecto e sobre a responsabilidade penal do arguido.
4. Inclusivamente, descreve na acusação os factos que o Mm.0 Juiz "a quo" entende consubstanciarem a prática de um crime de natureza sexual.
5. Simplesmente, enquadrou-os no crime de violência doméstica que imputou ao arguido.
6. Logo, ao Tribunal competia apenas decidir se aqueles concretos factos foram provados ou não e, na afirmativa, se tal enquadramento era juridicamente correcto.
7. E, em consequência, seguir o regime previsto nos artigos 358.° e 359.°, do Código de Processo Penal.
8. Entendimento diverso importa a conclusão de que a acusação poderá ser sempre reformulada pelo Ministério Público, mesmo sem se verificar nulidade alguma.
Nestes termos, e em consequência, deve anular-se o despacho proferido nos autos em 21.05.2018, e ordenar-se que seja proferida sentença.

3. Admitido o recurso, não houve qualquer resposta.
4. Subidos os autos, neste Tribunal da Relação a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, aderindo à motivação apresentada pela magistrada recorrente, emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, nada foi alegado pela assistente ou pelo arguido.
6. Após exame preliminar foram colhidos os vistos a que se refere o artigo 418.º, n.º 1, do CPP e teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
 
II – FUNDAMENTAÇÃO:
Das conclusões formuladas e que acima reproduzimos - as quais, como tem sido repetidamente dito, delimitam e fixam o objecto do recurso - e do teor da própria decisão recorrida, extrai-se que, o que está em causa é a declaração de nulidade da acusação e a subsequente ordem de remessa dos autos ao MP, para o seu suprimento, solução de que o recorrente discorda, pretendendo que o despacho em causa seja revogado e que o tribunal recorrido lavre sentença.
Vejamos o despacho recorrido, cujo teor passamos a reproduzir:
«Para julgamento em processo comum, o Ministério Público acusou o arguido F. da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152°, n° 1 al. a), n°2, n°4 e n°5 do Código Penal.
Nos termos do disposto no artigo 152°, n° 1 al. a), do Código Penal, "Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".
Os bens jurídicos protegidos pela incriminação da violência doméstica são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.
Conforme entende PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE (in Comentário ao CP à luz da CRP e da CEDH, anots. 2, 10 e 20, págs. 464, 465 e 467, Universidade Católica Editora, 2.a ed.):
«O tipo objectivo inclui as condutas de "violência" física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal. (...)
As "ofensas sexuais" incluem a coacção sexual prevista no artigo 163°, n.° 2, a violação prevista nos termos do artigo 164.°, n.° 2, a importunação sexual, o abuso sexual de menores dependentes, previsto no artigo 172°, n.°s 2 e 3. O emprego das formas mais graves de ofender a liberdade e autodeterminação sexual é punível pelas respectivas incriminações" (...)
O crime de violência doméstica está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade expressa) com os crimes (...) contra a autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de 5 anos. Isto é, a punição destes crimes afasta a da violência doméstica (...). »
A acusação imputa ao arguido a prática de ofensas sexuais, ao verter no seu teor que "Em Outubro de 2016 e em Fevereiro de 2017, o arguido por várias vezes forçou a ofendida a manter relações sexuais consigo, agarrando-a com força."
Daí que o arguido tenha alegadamente usado de violência física para constranger a ofendida praticar consigo relações sexuais, o que configura a prática de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.°, n.° 1, al. a) do Código Penal com pena de prisão de 3 a 10 anos de prisão.
Diante a imputação ao arguido da autoria de um crime punível abstractamente com pena superior a 5 (cinco) anos de prisão, é materialmente competente para julgar os presentes autos o Tribunal Colectivo - cf. artigo 14.°, n.° 2, do Código de Processo Penal.
A qualificação jurídica de ofensa sexual compreendida no teor da acusação, não é inteiramente clara, porquanto a mesma sendo inequívoca na imputação ao arguido do uso de violência física com vista a constranger com a ofendida a relação sexual que por essa via se consumou, é conclusiva no que respeita ao tipo de violência física exercida e ao modo de consumação do relacionamento sexual, designadamente se em causa está cópula, coito anal, coito oral.
O crime de violação p. e p. pelo artigo 164.°, n.° 1, do Código Penal, encontra-se em relação de concurso real ou efectivo com o crime de violência doméstica, conforme acima se aludiu pois não se compreende nas ofensas sexuais aí previstas, uma vez que estas se reconduzem exclusivamente à coacção sexual p. e p. pelo disposto no artigo 163.°, n.° 2, e não aplicável uma vez que em causa está a prática de actos de manutenção de relações sexuais que atenta à sua descrição, ainda que sumária, vão além de actos sexuais de relevo, ou ao disposto no artigo 164.°, n.° 2, do Código Penal, dizendo respeito a violação sem uso de violência, o que não é o caso sob apreço dado que a acusação imputa ao arguido o agarrar com força da vítima.
Nos termos do disposto no artigo 119.°, al. b), constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 48.° do Código Penal.
Tal vício respeita à falta de acusação do Ministério Público em relação a crimes públicos e semi-públicos (neste sentido PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, anot. 4, artigo 119.° do CPP, ob. cit. pág. 316). O crime de violação reveste-se de natureza semi-pública, tendo a ofendida deduzido queixa, na base da qual teve origem nos presentes autos, razão pela qual se impunha ao Ministério Público ter promovido o processo pela prática desse crime, nos termos do disposto nos artigos 164.°, n.° 1, 178.°, n.° 1,113.°, n.° 1, do Código Penal e artigo 48.° e 49.° do Código de Processo Penal, mediante a acusação ao arguido da prática de um crime de violação em concurso efectivo com o crime de violência doméstica.
Note-se que a acusação compreende a descrição sumária de um crime de violação, pois alega que o arguido forçou o ofendido a manter relações sexuais com ele mediante o uso da força física, consubstanciada em agarrá-la com força e subjugá-la desse modo violento, mas fá-lo de modo insuficiente, porquanto não descreve cabalmente qual o tipo de relacionamento sexual mantido, designadamente se foi de cópula coito, anal ou oral, pelo que essa imputação não é passível de uma alteração da qualificação jurídica prevista no disposto no artigo 358.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, antes se impondo a declaração de nulidade insanável, por falta de promoção do processo, e dos termos processuais subsequentes, incluindo do julgamento, nos termos do disposto no artigo 119.°, al. b) e 122.° do Código de Processo Penal e a devolução dos autos ao Ministério Público para suprimento desse vício processual.
Termos em que declaro nula, por falta de promoção do processo, a acusação proferida nos autos e os seus termos subsequentes, com excepção do presente despacho, e ordeno a devolução dos autos à fase de inquérito e ao Ministério Público com vista a suprir tal vício.
Notifique-se e consequentemente dá-se sem efeito a realização do presente acto de leitura de sentença.
…»

Podemos desde já adiantar que é manifesta a razão do recorrente, não podendo subsistir a decisão impugnada.
Porquanto, o presente processo não padece da nulidade declarada, ou de qualquer outra com as consequências que foram decretadas.
Em matéria de nulidades, vigora em processo penal o princípio da legalidade (artigo 118.º, do CPP), só sendo reconhecidas as que, como tal, estão expressamente previstas.
Assim, as nulidades insanáveis são apenas as mencionadas no artigo 119.º, do mesmo Código, bem como as que assim «forem consideradas em outras disposições legais».
O tribunal recorrido declarou a nulidade prevista na alínea b) do mesmo normativo, assumindo o entendimento de que há «falta de promoção do processo pelo Ministério Público», no que concerne a um pretenso crime de violação que devia ter sido imputado ao arguido, em concurso real com o de violência doméstica, tendo a acusação omitido a imputação daquele crime, punível com uma pena que ultrapassa a competência do tribunal singular, sendo o respectivo julgamento da competência do colectivo.
Todavia, não há, no presente caso, falta de promoção do processo por parte do Ministério Público, nem a eventual omissão da imputação do crime de violação poderia ser resolvida pela via pela qual enveredou o tribunal a quo.
Por um lado, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, promovendo o seu julgamento pelo crime de violência doméstica, tendo a acusação sido recebida nesses termos. O arguido foi julgado pelo crime de violência doméstica, pelo que, quanto a esse objecto do processo, jamais poderá dizer-se que há «falta de promoção do processo pelo Ministério Público».
Consequentemente, o tribunal não tem razão alguma para deixar de conhecer da responsabilidade do arguido pelo aludido crime, de que foi acusado.
Todavia, o facto de o Ministério Público ter alegado na acusação determinada factualidade que, objectivamente, poderá, do ponto de vista do tribunal recorrido, integrar-se na prática de crime de violação - impondo-se, na sua perspectiva, esclarecer se se está perante alguma das acções previstas no art. 164.º, n.º 1 alíneas a) e b), do CP, o que se traduziria na existência de um concurso real entre este crime e o de violência doméstica -, implica uma outra abordagem do problema.
Nessa maneira de ver as coisas teríamos, então, dois crimes em concurso: - o de violência doméstica, exercendo o MP, quanto ao mesmo, o respectivo procedimento; - o de violação, relativamente ao qual o Ministério Público não formulou acusação, devendo tê-lo feito.
Todavia, essa omissão do MP em acusar por determinado crime, quando existe, não pode ser resolvida pela via seguida pelo despacho recorrido.
No nosso processo penal, o juiz de julgamento não pode sindicar a actividade do MP e a posição que este tomou no final do inquérito, a não ser nas situações previstas no art. 311.º, do CPP.      
Se o MP omitir acusação - seja por esquecimento, seja arquivando - pela prática de um crime público ou semi-público, o juiz de julgamento não pode determinar ao MP que deduza tal acusação, muito menos em que termos o deve fazer. Por um lado, porque se esse for o único crime em causa no processo, este não chega sequer à fase de julgamento. Por outro lado, se houver outro ou outros crimes pelos quais foi deduzida acusação, para além daquele que foi omitido, o juiz de julgamento só pode conhecer da matéria da acusação que lhe foi apresentada, não podendo imiscuir-se nem sindicar a posição do MP em matéria que não foi levada à acusação.
Consequentemente, no caso dos autos, se o entendimento for no sentido de que havia fortes indícios da prática, pelo arguido, dos crimes de violência doméstica e de violação, a acusação apenas pelo primeiro crime permite que o juiz de julgamento conheça dessa acusação, estando-lhe, porém, vedado pronunciar-se sobre o crime de violação. Em tais circunstâncias, face ao objecto do processo que é submetido a julgamento, não há falta de promoção do MP. Esta só faltaria no caso de o arguido ser submetido a julgamento, por determinado crime público ou semi-público, sem ter havido, quanto ao mesmo crime, qualquer acusação do MP, nulidade que também se verificaria no caso de ter havido acusação deduzida pelo particular/ofendido, constituído assistente, acompanhada a posteriori pelo MP, conforme tem sido decidido pela nossa jurisprudência. Ou seja, a nulidade em causa só pode ser declarada pelo juiz de julgamento relativamente a crime pelo qual o processo prosseguiu, porquanto, se, relativamente a determinado crime, ele não prosseguiu - o arguido não está dele acusado, nem por ele foi submetido a julgamento -, a nulidade nunca se poderá verificar.
Nesta última situação verificar-se-ia omissão de pronúncia, cometida pelo MP, no momento do encerramento do inquérito, caso não se tivesse pronunciado por algum dos crimes denunciados e investigados, nulidade que, obviamente, tem um regime completamente diferente da nulidade do art. 119.º, alínea b), do CPP, tendo aquela de ser arguida perante o titular do inquérito e a ele cabendo decidi-la.
Sendo certo que a tal omissão - assim como, à decisão expressa de arquivamento -, poderá o ofendido reagir por outras vias, seja pela intervenção hierárquica do artigo 278.º - que também pode ser activada oficiosamente, pelo superior hierárquico do titular do inquérito -, seja pela via da abertura de instrução, quanto aos factos e crimes pelos quais não foi deduzida acusação.
O que a lei não prevê, seguramente, é a sindicância do aludido despacho, proferido pelo MP ao encerrar o inquérito, pelo juiz de julgamento, fora das situações do supra mencionado art. 311.º, n.ºs 2 e 3, do referido CPP. As nulidades a que se refere o n.º 1 do mesmo artigo, são aquelas que possam ser então conhecidas e que «obstem à apreciação do mérito da causa», estando esta delimitada pelo conteúdo da acusação formulada, independentemente de haver, ou não, outros crimes que possam ter-se como indiciados no inquérito, para além do que consta da acusação.
Consequentemente, perante os factos narrados na acusação que foi submetida a julgamento - naquela se dizendo que «o arguido forçou por várias vezes a ofendida a manter relações sexuais consigo, agarrando-a com força» -, o juiz que procedeu à audiência só tinha, no final desta, uma de duas alternativas:
a)- Se, após o encerramento da discussão da causa e ao decidir quanto à matéria de facto, considerasse, face às provas produzidas, que, do seu ponto de vista, os factos provados eram insuficientes para imputar o crime de violação, limitar-se-ia a condenar pelo crime de violência doméstica, agravado (se provados os respectivos factos), pelo qual o arguido estava acusado;
b)- Se, naquele mesmo momento processual, considerasse que estavam provados factos suficientes ao preenchimento do crime de violação - aditando os que, para tal, faltam na acusação, no seguimento do entendimento manifestado na decisão recorrida -, para além do de violência doméstica, poderia optar por dois caminhos diversos.
O primeiro, tendo em conta a posição assumida no despacho recorrido, no sentido de que há concurso real entre os dois crimes em causa - posição que tem sido seguida em alguma jurisprudência dos nossos tribunais -, teria na sua base uma autonomização de ambos os ilícitos, com a imputação de um novo crime (o de violação) que não constava da acusação (por sinal, mais grave do que o imputado) e que decorria de uma alteração fáctica, necessariamente de caracter substancial, o que nos reconduziria, indubitavelmente, ao cumprimento do art. 359.º, n.º 2, do CPP, com a respectiva denúncia ao MP dos novos factos atinentes à violação, atenta a incompetência do tribunal singular para conhecer de tal crime
O outro caminho seria optar por uma diferente interpretação do último segmento do n.º 1 do artigo 152.º n.º 1 do CP, onde se refere a pena correspondente - prisão de um a cinco anos -, «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
Na verdade, o entendimento de que há um concurso aparente (subsidiariedade expressa) entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensas corporais graves, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual (entre os quais o de violação) que sejam puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, fazendo com que a punição por algum destes crimes afaste a punição pela violência doméstica, também é defensável, quer na doutrina, quer na nossa jurisprudência (vejam-se, nesta, os acórdãos da Relação de Guimarães de 17/05/2010 e de 21/10/2010, nos processos 1379/07.9PBGMR.G1 e 353/11.5GDGMR.G1, respectivamente, desta Relação de Lisboa de 13/12/2016, no processo n.º 1152/15.0PBAMD.L1 e da Relação do Porto, de 27/9/2017, no processo n.º 1342/16.9JAPRT.P1, todos em www.dgsi.pt; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal …”, 2008, pagina 407, onde podem ser encontradas referências a outras posições, no mesmo e em diferente sentido, na doutrina).
Neste caso, havendo um só crime, de violência doméstica que englobava o(s) crime(s) de violação, sendo a respectiva pena aplicável superior a cinco anos de prisão (pena da violação), o tribunal singular seria incompetente, devendo remeter o processo ao tribunal colectivo, para o respectivo julgamento.
Todavia, também neste caso, tal como nas hipóteses anteriores, tal decisão só seria possível após fixação da matéria de facto provada, mediante a valoração das provas produzidas em julgamento, justificando o tribunal a posição assumida ao nível da aplicação do direito.
Ou seja, em qualquer das hipóteses acima colocadas, o tribunal de primeira instância nunca poderia furtar-se a decidir de facto e de proceder ao subsequente enquadramento jurídico-criminal dos factos que considerasse provados.
Só depois disso é que estaria habilitado a tomar uma das atitudes possíveis, consoante a decisão proferida naquelas matérias: absolver, condenar, cumprir o art. 359.º, n.º 2, do CPP, ou declarar-se incompetente para decidir da causa.
Conclui-se, pois, que o recurso é procedente.

III – DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso do MP, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que permita o prosseguimento do processo no mesmo tribunal de primeira instância, onde deverá ser proferida nova decisão que tenha em consideração o acima mencionado.
Não há lugar a custas.
Notifique.
Lisboa,      /      /
(Texto elaborado em computador e revisto pelo relator, o primeiro signatário – art. 94.º, n.º 2, do CPP).