Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3056/2008-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: LITISCONSÓRCIO
DEPOIMENTO DE PARTE
CONTRATO-PROMESSA
MORA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.Em situação de litisconsórcio necessário, a confissão resultante de depoimento de parte de duas das três Rés não pode produzir efeitos, na medida em que a outra Ré impugna a matéria objecto da confissão.
2.Fixado prazo para a outorga da escritura definitiva, em sede de contrato promessa de compra e venda, e não tendo a escritura sido outorgada sem que seja possível apurar-se a quem se deverá atribuir a respectiva culpa, nada impede que, posteriormente, a promitente-compradora interpele as promitentes-vendedoras mediante notificação judicial avulsa, para a celebração do contrato definitivo, indicando o local e a hora respectivos.
3.Inviabilizada tal outorga pela não comparência de uma das Rés, verifica-se uma situação de mora, nos termos do artº 805º nº 1 do Cód. Civil, que permite à promitente-compradora lançar mão da execução específica prevista no artº 830º nº 1 do mesmo diploma.
(AV)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


Vem M… propôr a presente acção contra A…, Ma…, Mar… e seu marido J…, pedindo que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial faltosa dos RR, referente à venda da fracção autónoma designada designada pela letra C, correspondente ao 1º andar direito do prédio urbano sito na Rua…, freguesia de…, concelho de….
Alega para tal e em síntese que, enquanto promitente-compradora, celebrou um contrato promessa com a primeira Ré e Ar…, ambos na qualidade de promitentes vendedores, tendo por objecto a referida fracção. A Aª entregou uma quantia a título de sinal ficando acordado que o remanescente do preço seria pago no acto de outorga da escritura de compra e venda, a ter lugar até ao dia 30/1/90.
Por motivo de doença o Ar…. não pôde comparecer à escritura, tendo sido então acordado que a compra e venda teria lugar assim que ele se encontrasse restabelecido. Contudo, o Ar… veio a falecer.
Todos os RR, com excepção da Ré M…., têm manifestado interesse em concretizar o negócio. Devidamente interpelada para o efeito a 2ª Ré não compareceu no local e data marcados para a celebração do contrato prometido, inviabilizando a outorga da escritura.

Apenas a 2ª Ré contestou, impugnando os factos alegados pela Aª.

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O processo seguiu os seus termos, realizando-se o julgamento e vindo a ser proferida sentença que julgou a acção não provada e improcedente.

Inconformada recorre a Aª, concluindo que:
– Nos seus depoimentos de parte, as 1ª e 3ª Rés confessaram a matéria do artº 5º da petição inicial, pelo que, nos termos dos arts. 352º e 358º nº 1 do CC, a mesma deveria ter sido dada como provada.
– Estando assim reunidos os requisitos de que depende a execução específica do contrato promessa.
– Revelando-se o não cumprimento quer na recusa em outorgar, em termos que integram a previsão do artº 808º do CC, quer na mora, subsequente à interpelação.

A 2ª Ré defendeu a bondade da sentença recorrida.

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Foi dado como provado que:
1. Por escrito particular de 8/5/89, a a 1ª Ré e Ar… declararam prometer vender à Aª que, por seu turno, declarou prometer comprar a fracção autónoma designada pela letra C, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano sito na Rua …nº …, freguesia de…, concelho de….
2. Tendo sido acordado que a ora Aª pagaria 100.000$00 a título de sinal na assinatura do contrato e mais 100.000$00 em Dezembro de 1989. A parte restante do preço, no montante de 1.750.000$00 seria paga no acto de celebração da escritura definitiva de compra e venda, a qual teria lugar até 30 de Janeiro de 1990.
3. Tendo a Aª entregue 100.000$00 aquando da assinatura do contrato e outros 100.000$00 em Dezembro de 1989.
4. Em finais do ano de 1989, Ar… adoeceu.
5.Vindo a falecer em data anterior a 22 de Fevereiro de 1991.                                                                                                                              
6. A Aª, as 1ª Ré e os 3ºs RR sempre manifestaram, mútua e reciprocamente, interesse na compra e venda da fracção.
7. A fracção referida encontra inscrita a favor das RR.
8. Após o falecimento de Ar…, a Aª entrou em contacto com as RR, por diversas vezes, com vista à celebração do negócio prometido.
9. A 1ª Ré e os 30s RR pediram à Aª que aguardasse que fossem resolvidos problemas entre aquelas e a 2ª Ré, inerentes à partilha de bens.
10. Em 18/10/2004 e 19/10/2004 a Mar… e o marido foram notificados do documento de fls. 19/20.
11. A 1ª Ré foi notificada em 24/9/2004 do teor do documento de fls. 23/24.
12. A 2ª Ré foi notificada do documento de fls. 26.
13. Em 2/11/2004 encontrava-se marcada a escritura de compra e venda da fracção mencionada, tendo comparecido no respectivo Cartório Notarial a Aª, a 1ª Ré e os 3ºs RR, não tendo a 2ª Ré comparecido nem justificado a sua ausência, pelo que tal escritura não foi outorgada.

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Cumpre apreciar.
Na base do recurso encontra-se o entendimento expresso na sentença de que não existiu incumprimento contratual por parte das RR, nem sequer qualquer atraso no cumprimento da prestação, uma vez que não se provaram as razões que levaram a que a escritura não tenha sido celebrada até 30/1/90.
Curiosamente, a Ré A…, em sede de depoimento de parte, confirmou que a escritura não se realizou na data aprazada por entretanto o seu marido, Ar… ter adoecido vindo posteriormente a falecer.
Também a Ré Mar…, igualmente depondo como parte, confirmou que a escritura não se efectuou na data marcada devido à doença do seu pai, Ar…..
Tendo sido o marido da Aª, Mário …., quem, na qualidade de testemunha, afirmou que a escritura se não realizou devido a dificuldade na concessão do empréstimo, o qual ainda não havia sido concedido em 30/1/90, só se concretizando em data posterior ao falecimento do A….

Não deixa de ser curioso que as 1ª e 3ª RR confirmem a versão da Aª e o marido desta, que reside com ela na fracção objecto do litígio, apresente uma versão totalmente diversa e que acaba por pôr em causa a pretensão da Aª.

O tribunal recorrido deu preferência à versão da referida testemunha em detrimento dos dois depoimentos de parte.

Assim, a presente apelação assenta, por um lado, no argumento de que o tribunal recorrido deveria ter dado como assente o que resulta dos depoimentos de parte, por constituir confissão e, por outro lado, de que, seja como for, existe incumprimento das RR face à atitude assumida pela 2ª Ré.

Quanto à primeira questão, é certo que o Mº juiz a quo entendeu que, na parte aludida, existia confissão das depoentes, como resulta expressamente do teor da acta de audiência.
Optou contudo por preterir tais confissões em favor do depoimento de uma testemunha.
Afirmando, em sede de fundamentação da decisão factual, que existindo dúvidas sobre a matéria em apreço – e constante do artº 5º da petição inicial – se impõe que “a dúvida seja desfeita em desfavor da parte onerada, isto é, contra a parte a que a invocação do facto aproveita”.
Concordamos com esta última parte da decisão, uma vez que corresponde à previsão do artº 346º do CC.

Nos termos do artº 358º nº 1 do CC, “a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente”.
Acresce que a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (artº 347º).
Finalmente, dispõe o artº 393º nº 2 do CC que “não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por um outro meio com força probatória plena”.
A própria possibilidade de contraprova, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, “só é de admitir quando seja oposta a uma prova livre ou a uma prova legal não plena” - “Código Civil Anotado”, I, p. 226.
  
No mesmo sentido, observa Lebre de Freitas – Código de Processo Civil Anotado, 2º, p. 487 - que, quando a confissão tem o valor de prova plena, como é o caso da confissão resultante de depoimento de parte e reduzida a escrito, é inadmissível uma nova declaração de ciência sobre o mesmo facto que possa pôr em causa os efeitos legais resultantes de tal confissão.
Assim, e atento o já mencionado artº 393º nº 2 do CC,, não seria em nosso entender admissível contrapor à confissão das RR um depoimento testemunhal.
Ainda sobre isto, cite-se o Acórdão do STJ de 3/6/99, in CJ STJ, 1999, II, p. 136: “o vendedor é admitido a destruir a força da confissão de haver recebido o preço, mediante a prova da realidade do facto contrário àquele que a confissão estabeleceu, mas não pode usar da prova testemunhal, desde que não seja arguida a falsidade da escritura pública ou a nulidade ou anulabilidade da confissão, por falta ou vícios da vontade”.

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O problema colocado nos presentes é contudo mais complexo do que a mera aferição da contraprova admissível relativamente à prova plena.
É o próprio estatuto de prova plena que está aqui em causa.
Sem dúvida que duas das Rés confessaram o facto alegado pela Aª no artº 5º da petição inicial. Tal facto, tendo em atenção o modo como se articula a relação material controvertida, é desfavorável aos Réus.
Contudo, são três as Rés na presente acção. Poderá a confissão de duas delas e só dessas duas produzir os efeitos reservados à prova plena?
Parece-nos evidente que não.
Nos termos do artº 353º nº 2 do CC, “a confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confitente; mas não o é se o litisconsórcio for necessário”.
Do mesmo modo, o artº 298º nº 2 do CPC estabelece que, em caso de litisconsórcio necessário, a confissão de algum dos litisconsortes só produz efeitos quanto a custas.

Na presente acção, deparamos com uma situação de litisconsórcio necessário, na qual as 2ª e 3ª Rés intervêm como sucessoras de Ar…, estando a fracção objecto dos autos inscrita em seu nome e no da sua mãe, a 1ª Ré.   
                                                                                                                                          
Daí que, apesar da presença da Aª e das 1ª e 3ª Rés no respectivo Cartório Notarial, não tenha sido viável a outorga da escritura de compra e venda, na ausência da 2ª Ré.

Sendo assim, a confissão resultante dos depoimentos de parte das 1ª e 3ª Rés não pode produzir qualquer efeito útil, do mesmo modo que a circunstância de nenhuma delas ter contestado a acção não produziu quaisquer efeitos cominatórios.
                                                                   
A matéria de facto dada como provada pela primeira instância não merece, assim, qualquer reparo.

                                                                       *

Põe-se ainda a questão de, independentemente de não ter a Aª logrado provar a matéria que alegou no artº 5º da petição inicial, o incumprimento se verifica quer pela posição assumida pela 2ª Ré na contestação quer porque, na sequência da notificação judicial avulsa levada a cabo pela Aª, marcando a data da escritura, a 2ª Ré não compareceu.
Quanto à contestação, a 2ª Ré limita-se a imputar à Aª a responsabilidade pela não outorga da escritura até 30/1/90 e a negar a sua própria responsabilidade.
Logo, nada na contestação da 2ª Ré permite concluir que a mesma reconheça ou assuma a mora no cumprimento da obrigação, isto para os efeitos do artº 830º nº 1 do CC, ou a intenção de incumprir definitivamente o contrato, situação a que, de resto, não é aplicável o regime da execução específica.

Não se tendo provado que a não outorga da escritura até 30/1/90 se ficasse a dever às RR, e não se provando que haja sido acordado qualquer outro prazo posterior, dificilmente se poderá falar de mora das RR, condição indispensável para aplicação do artº 830º.
A Aª alega, contudo, que existe mora das RR já que as interpelou mediante notificação judicial avulsa, marcando a data da escritura para o dia 2/11/2004 pelas 14h, no 22º Cartório Notarial de Lisboa.
A escritura não foi outorgada já que, como vimos, a 2ª Ré não compareceu. Daí o fundamento da mora alegada pela Aª.

Ora, tendo o contrato promessa estabelecido um prazo para a outorga da escritura definitiva e não tendo aquele sido cumprido, embora se ignore por qual das partes, deixou de existir um prazo para celebração do contrato definitivo.
Estabelece o artº 777º nº 1 do CC que “na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela”.
Por outro lado, nada nos factos provados, nos permite afirmar estarmos perante a situação prevista no nº 2 do mesmo preceito. Com efeito, não se provou a existência de qualquer discordância em relação à fixação do prazo. A própria 2ª Ré nada afirma que possa levar a crer que se oponha ao prazo concreto escolhido pela Aª e que lhe foi comunicado mediante notificação judicial avulsa.
O facto de não ter comparecido na referida data nem ter justificado a falta, significam apenas que não quis outorgar a escritura naquele momento, sem invocar quaisquer razões que ponham em causa o prazo escolhido pela Aª.
A partir de 30/1/90, não tendo sido outorgada a escritura, sem que saibamos a quem incumbe a responsabilidade, e deixando de existir um prazo acordado, verifica-se, de acordo com a factualidade provada, que a Aª por diversas vezes insistiu com as RR com vista à celebração do contrato definitivo. A 1ª e 3ª RR solicitaram à Aª que aguardasse que fossem resolvidas alguns problemas inerentes à partilha de bens.
A fracção em causa encontra-se inscrita a favor das RR desde 22/2/1991.
Sendo assim, nem a natureza da prestação nem as circunstâncias que a determinaram, levam a que o prazo haja de ser fixado pelo tribunal nos termos do artº 777º nº 2 do CPC.
Nada impede que a Aª interpele as RR para a celebração da escritura definitiva, indicando a data e local.
Feita a interpelação e não tendo ocorrido a outorga da escritura por não comparência da 2ª Ré, constituíram-se as RR em mora, nos termos dos arts. 804º nº 2 e 805º nº 1 do CC.

Na verdade, entendemos que o facto de ter sido estabelecido inicialmente um prazo que não foi respeitado, ignorando-se opor qual das partes, não obriga a promitente-compradora a aguardar indefinidamente que todas as RR se mostrem disponíveis para acordar num prazo.

 Não existindo discordância quanto ao prazo em si, inexistindo qualquer condição ou circunstância que, integrante da obrigação principal, exija a intervenção to tribunal para fixar o prazo em acção própria, basta a interpelação para fazer desencadear o mecanismo da mora.

Neste sentido, vejam-se os Acórdãos desta Relação de Lisboa de 26/2/82, in CJ 1982, I, p. 209, e de 28/5/87, in CJ 1987, 3º, p. 97/99.

Não tendo sido outorgada a escritura por não comparência da 2ª Ré e existindo assim mora das promitentes-vendedoras, nada impede o recurso ao instituto da execução específica do artº 830º. 
Saliente-se que no seguimento do despacho proferido a fls. 94, veio a Aª juntar aos autos o documento comprovativo do depósito autónomo de € 7.731.37, relativo à parte restante do preço (fls. 105).

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Podemos assim concluir que:
– Em situação de litisconsórcio necessário, a confissão resultante de depoimento de parte de duas das três Rés não pode produzir efeitos, na medida em que a outra Ré impugna a matéria objecto da confissão.
– Fixado prazo para a outorga da escritura definitiva, em sede de contrato promessa de compra e venda, e não tendo a escritura sido outorgada sem que seja possível apurar-se a quem se deverá atribuir a respectiva culpa, nada impede que, posteriormente, a promitente-compradora interpele as promitentes-vendedoras mediante notificação judicial avulsa, para a celebração do contrato definitivo, indicando o local e a hora respectivos.
– Inviabilizada tal outorga pela não comparência de uma das Rés, verifica-se uma situação de mora, nos termos do artº 805º nº 1 do Cód. Civil, que permite à promitente-compradora lançar mão da execução específica prevista no artº 830º nº 1 do mesmo diploma.

Julga-se assim procedente a presente apelação, revogando-se a sentença recorrida e declarando-se transmitida para a Aª  M…, pelos Réus A…, Ma… e Mar… e marido J…, pelo preço de 1.750.000$00 (€ 8.728,96), a propriedade da fracção autónoma individualizada pela letra “C” que corresponde ao primeiro andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal designado pelo número cinco, situado na Rua…, em…, …s, descrito na .. Conservatória do Registo Predial de …sob o número ….(anteriormente descrito sob o nº …do Livro B-…) e inscrito na matriz sob o artigo …da freguesia de….
Tendo as Rés a haver a parte do preço ainda não pago, no montante de € 7.731,37, o qual foi objecto de depósito autónomo nos termos do documento de fls. 105 dos autos.

Custas pela 2ª Ré, Ma….


LISBOA, 29/5/2008

António Valente

Ilídio Sacarrão Martins

Teresa Pais