Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3088/16.9T8SNT-F.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
NÃO RECONHECIMENTO
ENTREGA DE IMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Por regra, não há lugar a providências cautelares no processo de insolvência.
II. Pretendendo o Administrador da Insolvência a restituição de um imóvel arrendado por não reconhecer o arrendamento assiste ao arrendatário o direito de requerer ao juiz da insolvência que aprecie a legalidade da pretensão do Administrador da Insolvência.
III. Deve ser convolada em requerimento para essa apreciação a providência cautelar intentada com vista ao reconhecimento da validade do contrato de arrendamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM
NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – Relatório

Por sentença de 16FEV2016, transitada a 21MAR2016, foi decretada a insolvência da Requerida.
Em 08NOV2016 o Administrador da Insolvência lavrou auto de apreensão e arrolamento nele inscrevendo, a título de bens imóveis, o direito à aquisição (por contrato de locação financeira integralmente cumprido), do U-…-B/Algueirão e o direito de propriedade sobre o U-../Queluz-Belas (verbas 1 e 2), e a título de direitos, contrato de arrendamento daqueles imóveis, celebrados em 2012 com a Requerente, enquanto arrendatária (verbas 14 e 15).
Por sentença de 06ABR2018 (ainda não transitada) foi a insolvência qualificada como culposa e declarados afectados por essa qualificação os gerentes da insolvente.
Nessa sentença, apesar de aqueles contratos de arrendamento serem considerados como particularmente desfavoráveis para a insolvente e terem sido realizados com o propósito de beneficiar a sociedade requerente, cujos administradores são filhos dos gerentes da insolvente, não foi tal facto considerado relevante por os contratos terem sido celebrados mais de três anos antes da insolvência. Já, pelo contrário, foi considerado como um dos fundamentos da qualificação o facto de não terem sido cobradas as rendas de 2013 a 2015.
Por missiva de 11ABR2018 o Administrador da Insolvência fez saber à Requerente que em consequência do apurado em sede do incidente de qualificação não reconhecia a existência dos contratos de arrendamento sobre os imóveis supra identificados exigindo a entrega dos mesmos até 30ABR, após o que procederia a tomada de posse dos imóveis com recurso à força pública.
Em 17ABR2018 a Requerente instaurou procedimento cautelar comum requerendo se reconheça a validade dos contratos de arrendamento.
Procedimento esse que foi liminarmente indeferido por se entender não verificados os requisitos do procedimento cautelar especificado para defesa da posse e que o meio adequado para impedir a entrega ao Administrador da Insolvência era o da restituição e separação de bens previsto nos artigos 141º a 148º do CIRE.
Inconformada, apelou a Requerente concluindo, em síntese, por nulidade da decisão recorrida e erro de julgamento.
Não houve contra-alegação.

II – Questões a Resolver

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da nulidade;
- do erro de julgamento.

III – Fundamentos de Facto

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

IV – Fundamentos de Direito

O diverso entendimento/qualificação do fundamento da pretensão requerida (no caso, ter sido entendida a pretensão de reconhecimento da validade de um contrato como um pedido de defesa da posse) não consubstancia uma nulidade por falta de fundamentação. Nessa circunstância não deixa de ser apresentada uma razão de decidir, só que tal razão poderá não ser ajustável à pretensão deduzida por erróneo entendimento da mesma; ou seja, não falta a fundamentação ocorrendo antes um erro de julgamento.
Improcede, pois, a invocação de nulidade.

Afigura-se-nos ser a providência cautelar manifestamente inadmissível pela singela razão de que, por regra, não há lugar a providências cautelares no processo de insolvência.
A função essencial dos procedimentos cautelares é a prevenção do dano causado pela demora processual – o periculum in mora. Daí que que a esse procedimento se atribua carácter urgente (art.º 363º do CPC). Essa função, no entanto, deixa de ter razão de ser, deixando por consequência de ser aplicável esse meio processual, nos casos em que o processo de que o procedimento cautelar é dependente se reveste ele próprio de carácter urgente, como é o caso do processo de insolvência (art.º 9º do CIRE).
Por outro lado, o processo de insolvência é um processo de execução universal com grande potência atractiva de modo que, tendencialmente, chama a si a resolução de todas as questões de âmbito patrimonial relacionadas com a insolvência, a massa insolvente e sua liquidação e regulando exaustiva e exclusivamente os meios processuais que para isso podem ser movimentados, não deixando margem para aplicação supletiva de outros meios processuais, designadamente providência cautelares previstas no CPC (cf. artigos 85º, 88º, 90º e 149º do CIRE).

Mas da inadmissibilidade desse meio processual não resulta que a pretensão da Requerente fique destituída de apreciação jurisdicional, mas antes, que o seu procedimento deve ser convolado para o meio processual adequado (cf. art.º 193º do CPC) – no caso, questão inserida no âmbito dos efeitos sobre os negócios do insolvente e da apreensão de bens a ser deduzida por mero requerimento.
Confrontada com a posição do Administrador da Insolvência de não reconhecimento dos contratos de arrendamento e a consequente entrega do locado a Requerente pretende fazer valer aquele contrato, solicitando a tutela judicial da sua posição; ou seja, pretende que o tribunal aprecie se os invocados contratos de arrendamento são válidos (como defende) ou se, pelo contrário (e como defende o Administrador da Insolvência), há fundamento legal para que esses contratos não sejam reconhecidos devendo ocorrer a entrega do locado. Dito de outra forma, ainda, a Requerente pretende a apreciação da legalidade da pretensão do Administrador da Insolvência em que lhe seja entregue o locado.

Essa pretensão é legítima, foi adequadamente deduzida e merece pronúncia judicial substantiva.

V – Decisão

Termos em que, na procedência da apelação, se revoga a decisão recorrida e se determina que o tribunal a quo, aprecie a supra identificada pretensão da Requerente.

Sem custas (devolvendo-se o eventualmente já pago) dado que a Massa não deu causa, não aderiu, nem acompanhou a decisão recorrida.

Lisboa, 26FEV2019

Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Vouga