Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
48/11.0IDPRT-A.L1-3
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA O PRESIDENTE
DECISÃO INSTRUTÓRIA
RECURSO
SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/12/2015
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA O PRESIDENTE
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A decisão instrutória que aprecie a competência material do tribunal de instrução criminal não admite recurso

II - A decisão do tribunal de instrução relativa à sua própria competência em razão da matéria não faz caso julgado podendo sempre ser impugnada com o recurso a interpor da decisão condenatória, tal como acontece com semelhante decisão do tribunal de julgamento, como a própria reclamante deixa antever ao reportar-se à incompetência em razão da matéria dos “tribunais penais”, englobando nessa designação, por contraposição a “tribunais fiscais”, aquelas duas categorias de tribunais.

III - A incidência do processo penal sobre matérias criminais da área da fiscalidade, como da área administrativa ou outras, encontra-se expressamente prevista no Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Suficiência do processo penal

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I…, arguida nos autos, reclama, nos termos do disposto no art.º 405.º do C. P. Penal, do despacho proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal em 28/4/2015, a fls. 369, verso, a fls. 374, o qual não admitiu, por inadmissibilidade legal, o recurso por ela interposto da decisão instrutória, pedindo que o recurso seja mandado admitir com fundamento, em síntese, em que de acordo com o recente acórdão do Tribunal Constitucional n.º 482/2014, a decisão instrutória que aprecie a competência material do tribunal de instrução criminal admite recurso, sob pena de interpretação inconstitucional do art.º 310.º, n.º 1, do C. P., por violação dos princípios constitucionais consagrados nos art.ºs 20.º, n.º 1, e 5, 32.º, n.ºs 1 e 9 e 212.º, n.º 3, da CRP, uma vez que essa decisão não é sindicável pelo juiz de julgamento e a inadmissibilidade de recurso implica que a decisão recorrida não seja sindicável por nenhuma outra instância.

O despacho reclamado, de 28/4/2015, não recebeu o recurso com fundamento, em síntese, em que a decisão instrutória é irrecorrível, sem prejuízo de não fazer caso julgado sobre as nulidades que podem e devem ser apreciadas pelo tribunal de julgamento, o que também acontece nestes autos em que a decisão instrutória pronunciou o arguido pelos mesmos fatos constantes da acusação.

A reclamante foi pronunciada pela prática, em coautoria, de quatro crimes de fraude fiscal qualificada, sendo dois, p. e p. pelos art.ºs 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1, als. d) e g) e n.º 2, do RGIT e art.º 66.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal e dois, p. e p. pelos art.ºs 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.ºs 1, 2, al. a) e n.º 3, do RGIT, na redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro e art.º 66.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal e de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art.º 368.º-A, n.ºs 1, 2 e 3, do C. Penal (fls. 73, verso, 71 e 70, verso).

No recurso interposto dessa decisão, a fls. 342 a 381, a reclamante pede que sejam conhecidas as inconstitucionalidades e a incompetência material do tribunal central de instrução criminal para apreciar a sua situação tributária, declarando-se nulo o processado de inquérito e suspendendo-se o processo até que estejam realizadas as respetivas liquidações, por entender que os tribunais penais não são competentes para apreciarem as prévias questões tributárias em crime de fraude fiscal qualificada, especificamente, a situação tributária da reclamante e a liquidação dos impostos devidos, as quais são da competência exclusiva dos tribunais fiscais.

Conhecendo.

Analisada a reclamação e o recurso, constatamos que, sob a aparência da arguição da incompetência do Tribunal de Instrução Criminal e da invocação de inconstitucionalidade da interpretação do art.º 310.º, n.º 1, do C. P., por violação dos princípios constitucionais consagrados nos art.ºs 20.º, n.º 1, e 5, 32.º, n.ºs 1 e 9 e 212.º, n.º 3, da CRP, segundo a qual a decisão instrutória que aprecie a competência material do tribunal de instrução criminal não admite recurso, porque essa decisão não é sindicável pelo juiz de julgamento e a inadmissibilidade de recurso implica que a decisão recorrida não seja sindicável por nenhuma outra instância, a presente reclamação incide sobre duas questões chave.

A primeira tem a ver com a recorribilidade da decisão instrutória porque, substancialmente, o recurso e a reclamação se apresentam como uma discordância com a acusação e a decisão instrutória e como uma contestação às imputações que nelas são feitas à reclamante.

A segunda prende-se com o instituto processual penal relativo às questões prejudiciais à decisão penal propriamente dita e de que a reclamante se alheia em ordem a sustentar a incompetência material, não só do tribunal de instrução, mas dos tribunais judiciais com competência na área criminal, e a concluir, sem premissas que sustentem a conclusão, que a decisão do tribunal de instrução sobre a sua própria competência, não sendo sindicável pelo tribunal de julgamento, tem de ser recorrível em si mesma, com o que lograria abrir uma porta para a recorribilidade da decisão instrutória propriamente dita.

I. Quanto à primeira questão, da recorribilidade da decisão instrutória, o atual processo penal consagra um regime especial de recurso, em face do princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais estabelecido no art.º 399.º do C. P. Penal e que, numa perspetiva ampla, consiste, precisamente, na afirmação do princípio contrário, a saber, o de que o despacho de pronúncia não é suscetível de recurso.

Este princípio especial de irrecorribilidade é consagrado pelo art.º 310.º, n.º 1, do C. P. Penal ao estabelecer que a decisão instrutória que pronunciar o arguido não é recorrível, mesmo na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais, quando pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, e comporta apenas a exceção estabelecida pelo n.º 2, desse mesmo art.º 310.º, por referência à nulidade da própria decisão instrutória, cominada pelo art.º 309.º, n.º 1, do C. P. Penal e consistente em “…pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”.

É certo que a reclamante não recorre diretamente da decisão de pronúncia, antes se reportando à incompetência material do tribunal de instrução e à inconstitucionalidade da interpretação que lhe não admita o recurso, mas esta é a questão aparente porque a substância do recurso é uma autêntica contestação à acusação recebida pela pronúncia para julgamento.

Acontece, todavia, que também nesta matéria existe um regime especial de arguição de nulidade, com repercussões recursórias, e este é que essa decisão instrutória só é nula “…na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial…” (art.º 309.º, n.º 1), devendo esta nulidade ser arguida no prazo de oito dias (n.º 2) e sendo recorrível o despacho que sobre ela incidir (art.º 310.º, n.º 3).

Todas as outras nulidades terão de ser relegadas para a contestação, prevista no art.º 315.º do C. P. Penal e, se deduzidas por requerimento avulso em data anterior, poderão ser conhecidas pelo tribunal, mas de julgamento, no despacho de recebimento da pronúncia, designado pelo art.º 311.º do C. P. Penal, como de “saneamento do processo”.

Em face deste regime processual penal não vislumbramos fundamento para a admissibilidade de recurso que, pura e simplesmente, impugna a decisão instrutória. De fato, como já referimos, a insindicância pelo tribunal de julgamento da decisão do tribunal de instrução que julgou improcedente a exceção da incompetência em razão da matéria é uma questão que se encontra impropriamente colocada, como passamos a demonstrar.

II. Quanto à segunda questão, instituto processual penal relativo às questões prejudiciais à decisão penal propriamente dita.

A decisão do tribunal de instrução relativa à sua própria competência em razão da matéria não faz caso julgado podendo sempre ser impugnada com o recurso a interpor da decisão condenatória, tal como acontece com semelhante decisão do tribunal de julgamento, como a própria reclamante deixa antever ao reportar-se à incompetência em razão da matéria dos “tribunais penais”, englobando nessa designação, por contraposição a “tribunais fiscais”, aquelas duas categorias de tribunais judiciais.

Ora, como já referimos, esta é uma falsa questão porque a competência dos “tribunais fiscais” se limita à apreciação dos litígios “emergentes das relações jurídicas … fiscais” (art.º 212.º, n.º 3, da Constituição da Republica Portuguesa), pertencendo o julgamento em matéria criminal à esfera de competência dos tribunais judiciais (art.º 211.º, n.º 1, da CRP).

A incidência do processo penal sobre matérias criminais da área da fiscalidade, como da área administrativa ou outras, encontra-se expressamente prevista no Código de Processo Penal.

Sobre a conexão/interferência de todas as questões prejudiciais com o processo-crime, incluindo as fiscais, sob a epígrafe “Suficiência do processo penal”, dispõe o art.º 7.º do C. P. Penal que:

1 - O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.

2 - Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.

3 - A suspensão pode ser requerida, após a acusação ou o requerimento para abertura da instrução, pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, ou ser ordenada oficiosamente pelo tribunal. A suspensão não pode, porém, prejudicar a realização de diligências urgentes de prova.

4 - O tribunal marca o prazo da suspensão, que pode ser prorrogado até um ano se a demora na decisão não for imputável ao assistente ou ao arguido. O Ministério Público pode sempre intervir no processo não penal para promover o seu rápido andamento e informar o tribunal penal. Esgotado o prazo sem que a questão prejudicial tenha sido resolvida, ou se a ação não tiver sido proposta no prazo máximo de um mês, a questão é decidida no processo penal”.

Como resulta do disposto no n.º 1 deste preceito, (1) o princípio geral nesta matéria é o da suficiência do processo penal, (2) constituindo a suspensão do processo para decisão de questão prejudicial uma exceção (n.º 2) e uma exceção apertada, exigente nos seus pressupostos, como desde logo resulta do poder/dever de fixação de prazo para paragem do processo, tendo em vista a decisão da questão prejudicial (n.º 4, 1.ª parte) e, mais do que isso, (3) o retorno ao principio geral da suficiência se o prazo fixado não for cumprido (n.º 4, 2.ª parte).

Em face deste regime legal dúvidas não há de que o tribunal de instrução, como o tribunal de julgamento, são competentes para apreciar todas as questões suscitadas nos autos, ainda que da área fiscal, e de que a reclamante pode impugnar as suas decisões, mas nos termos gerais, e de que até poderá requerer a suspensão do processo-crime para decisão de qualquer questão fiscal que repute prejudicial, mas o que não pode é prejudicar e muito menos inutilizar os fins prosseguidos pelo processo penal.

III. O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 482/2014, de 28 de julho, proferido no Processo n.º 663 2013 e publicado no Diário da Republica - 2.ª serie, n.º 143, de 28.07.2014, pág. 19242.

No que concerne à matéria desta reclamação decidiu este acórdão “…julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do art.º 310.º, do CPP no sentido de ser irrecorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente à decisão instrutória, que aprecie a [arguição de] nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência material do Tribunal de Instrução Criminal”.

Pretende o arguido que a orientação firmada em tal aresto determina a admissibilidade do recurso a que respeita esta reclamação, mas não lhe assiste razão, por três ordens de razões.

A primeira é que no processo a que respeita o acórdão estava em causa uma decisão subsequente à decisão instrutória e não esta qua tal.

A segunda, e essencial, é que nesse processo estava em causa uma verdadeira questão de “nulidade processual insanável, prevista no artigo 119.º, alínea e), do CPP, decorrente da violação das regras atributivas da competência material, invocando a incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) para proceder à instrução do presente processo-crime”, ou seja, uma verdadeira questão de incompetência em razão da matéria e não abrangida por qualquer outro instituto e não uma questão lateral, de prejudicialidade, como acontece no caso sub judice.

E a terceira é que não se aplicam ao caso em análise os mesmos fundamentos aduzidos pelo Tribunal Constitucional para a sua decisão de inconstitucionalidade, uma vez que, aí sim, mas aqui não, o tribunal de julgamento, sendo um tribunal de idêntico grau de hierarquia, não aprecia a competência do tribunal de instrução, enquanto no caso sub judice sempre poderá apreciar a prejudicialidade da questão fiscal e a eventual suspensão do processo.

Improcede, pois, a reclamação, que indeferimos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 405.º, n.º 4, do C. P. Penal.

Custas do incidente pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em ½ UC.

Notifique.

Baixem os autos.

Lisboa, 12 de junho de 2015.

Orlando Nascimento – Vice-presidente