Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1421/20.8T8CSC.L1-8
Relator: CARLA MARIA OLIVEIRA
Descritores: PARTILHA DE BENS COMUNS
CONTRATO PROMESSA DE PARTILHA
PROCESSO DE INVENTÁRIO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Nos regimes de comunhão de bens, os contratos promessa de partilha de bens comuns são válidos, desde que respeitada a regra imperativa da metade prevista no art.º 1730º, do CC.
II- A celebração de contrato promessa de partilha entre os ex-cônjuges, ainda que válido, não constitui, por si só, obstáculo ao prosseguimento de inventário judicial para partilha dos bens comuns do casal dissolvido, não lhe retirando razão de ser.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. Relatório
L… veio requerer que se proceda a inventário para a partilha dos bens comuns do dissolvido casal, sendo requerido R….
Citado, o requerido veio deduzir oposição ao inventário, invocando que celebrou com a requerente, em 28.02.2018, um contrato promessa de partilha que já se encontra a ser executado, tendo o requerido já pago, por conta das tornas nele previstas, as quantias de €22.000,00, com a celebração do contrato promessa, e €6.900,00, em 31.12.2018; agindo a requerente em abuso de direito.
Notificada da oposição apresentada, a requerente respondeu, alegando que o contrato promessa não é válido, foi incumprido pelo requerido, sendo este quem age em abuso de direito.
Por despacho de 16.04.2021, foi admitida a oposição ao inventário apresentada pelo requerido, bem como a resposta da requerente e os documentos apresentados por ambas as partes e designada data para tomada de declarações de parte ao requerido.
Realizada a prova oferecida, foi proferida decisão a julgar procedente a oposição deduzida pelo requerido e a ordenar o arquivamento do processo de inventário.
Inconformado com a decisão proferida, veio a requerente recorrer, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1. Por sentença datada de 01 de Novembro de 2021, considerou o tribunal “a quo”, procedente a oposição ao inventário deduzida, e determinou o arquivamento do inventário.
2. A requerente não pode concordar com a douta Sentença, nomeadamente quanto aos efeitos do incumprimento do Contrato de promessa de partilhas, e por violação do art.º 1730º n.º 1C.C. – Nulidade do Contrato de promessa
3. A douta sentença recorrida considera provados resumidamente que:
- A requerente e o requerido contraíram casamento civil, sem convecção antenupcial, no dia 13-09/2001;Que no dia 30-10-2018 o referido casamento foi dissolvido, tendo sido elaborada relação de bens; Que do acervo patrimonial, fazem parte do ativo a verba 1 (casa de morada de família) com o valor comercial de 600 mil euros, verba 2 (quota de sociedade) com o valor de 5 mil euros e verba 3 (veículo) com o valor de 16.500€ - Ativo total de 621.500,00€; Como passivo o património conjugal tem como verba 1 – 254.983,49€ - mútuo para aquisição de casa de morada de família, verba 2 - 30.619,64€ - mútuo, verba 350.426,11€ - mútuo, verba 4 – 7 mil euros - mútuo, verba 4 mil euros – honorários, total do passivo – 347.029,24€; Que foi outorgado Contrato de promessa de partilhas Contrato de partilhas e outros convénios, no dia 28/02/2018; Que a verba 2º e 3º do ativo eram atribuídos ao cônjuge marido, no valor de 21.500€; Que a verba 1º do ativo, no valor de 600 mil euros, seria transferida para o cônjuge marido, cumpridos que fossem o pagamento integral do mútuo, verba 1 do passivo e cumprido que fosse o pagamento da obrigação constante da Clausula Quinta n.º 2 – tornas no valor de 56.500€ - 22 mil euros com a assinatura do contrato de promessa, e 5 prestações de 6.900€; A requerente abriga-se ao pagamento integral do mútuo, passivo verba 3, de 50.426,11€; O Requerido não procedeu ao pagamento de qualquer quantia no ano de 2019; A requerente em Janeiro de 2020, considerou o contrato incumprido definitivamente. 4. A Sentença recorrida considera que o contrato foi validamente celebrado, e não atribui relevância ao incumprimento do requerido que aliás é reconhecido pelo próprio em sede de declarações que prestou ao tribunal.
5. Não se trata de uma simples mora, mas sim de uma intenção expressa e assumida de não cumprir com o contrato de promessa, que aliás nem foi contestada pelo requerido, promitente faltoso.
6. Num quadro de incumprimento abrem-se ao promitente fiel, dois caminhos, que são a execução específica e a resolução do contrato-promessa.
7. O art.º 809º do C.C., que refere ser nula a cláusula pela qual o credor renuncia antecipadamente a qualquer direito que lhe seja facultado nos casos de não cumprimento.
8. O recurso à execução específica cai por terra, porquanto contrato-promessa foi resolvido com base no incumprimento definitivo do promitente faltoso.
9. Pelo que, ficou o contrato-promessa destruído por vontade do promitente fiel, que não poderá assim, exigir o cumprimento daquele.
10. Cai também por terra o acordo que existiu, que legitimava uma partilha extrajudicial e precludia o direito da Requerente de avançar com a presente ação de inventário para partilhas.
11. O Requerido assumiu o incumprimento de forma voluntária e livre.
12. O incumprimento por parte do requerido, concede a requerente, a faculdade de resolver o contrato, conforme estipula o art.º 801º e 799º do C.C..
13. A Sentença recorrida, diz que “relativamente ao incumprimento alegado pela requerente e que foi reconhecido pelo requerido... o que a requerente poderá fazer, acaso assim o entenda, é proceder a Execução específica do Contrato de promessa...” esquartejando o direito da requerente em resolver o contrato, reconhecidamente incumprido pelo requerido.
14. Os contratos são uma fonte de obrigações, mas essa fonte de obrigações extingue-se nos casos admitidos por lei, como bem estipula do art.º 406º n.º 1 do C.C.
15. O que a douta sentença faz, é obrigar a requerente a cumprir o que foi incumprido pela parte contrária, como se desse incumprimento não existem consequências, nomeadamente e o direito da requerente fiel, resolver o contrato.
16. A Douta Sentença, não se pronuncia, sob o facto de, se por ter ocorrido incumprimento por parte do requerido, legitima a requerente a prosseguir com a presente ação.
17. A douta sentença não fundamenta, os motivos pelos quais não considera a resolução invocada pela Requerente, nada dizendo sobre a mesma.
18. A sentença enferma de nulidade, por não especificar os fundamentos de facto e direito que justificam a decisão, e porque não se pronuncia sobre questões que se devia pronunciar, nomeadamente, relativamente ao direito de a Requerente considerar o contrato resolvido por incumprimento do requerido. (art.º 615º n.º 1 al. a) e b) do C.P.C.
19. Acresce que o referido contrato viola de forma flagrante o art.º 1730º n.º 1C.C., o que foi levado ao conhecimento do Tribunal “a quo” e que fica também claro, pela simples analise aritmética dos valores apresentados e levados pela Sentença como facto provados.;
20. Ao requerido marido seria atribuído a totalidade do ativo – 100‰, no valor global de 621.500,00€ e assume o pagamento do passivo no valor de 281.293,33.
21. A requerente mulher assume o pagamento de 65.735,93€ e recebe 56.500€, a pagar em prestações.
22. De um acervo patrimonial líquido de 274.470,76€ (diferença entre o passivo e o ativo) à requerente cabe um saldo negativo de -9.235,93€.
23. Ao requerido marido é atribuído o valor líquido de 340.206,67€. 24. “As atribuições patrimoniais vertidas no contrato-promessa celebrado entre as partes são ostensivamente desproporcionais em cristalino prejuízo da requerente mulher, violando o preceituado no primeiro segmento do art.º 1730.º/1, do Código Civil, pelo que o predito contrato é linearmente nulo” Acórdão do STJ de 22.2.2007, proc. n.º 07B312.
25. É por demais evidente que é violada de forma monstruosa, desmedida, extravagante a “regra da metade” prevista pelo 1730º n.º 1 do C.C., sendo atribuído à requerente um saldo negativo de mais de nove mil euros.
26. O referido contrato é nulo, nulidade do conhecimento oficioso do tribunal.
27. Veja-se o que decidiu o STJ, no Proc. 991/10.3TBESP.P1.S1., de onde se conclui que, por maioria de razão, se numa situação em que os formalismos todos foram cumpridos, ainda assim se entende que, a escritura de “partilha extrajudicial” é nula, por violação da regra do 1730º do C.C., no caso dos presentes autos, em que não existe uma ato formal de partilha, mas sim uma promessa da mesma, terá de se entender de igual forma.”.
Pugna, assim, a recorrente pela integral procedência do recurso e consequentemente pela substituição da decisão recorrida por outra que julgue improcedente a oposição ao inventário e que determine o prosseguimento dos autos de inventário com vista à partilha.
Foram apresentadas contra-alegações, que não foram admitidas por intempestivas.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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No caso vertente, as questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes:
- da nulidade da decisão recorrida, por não especificar os fundamentos de facto e direito que justificam a decisão, e porque não se pronuncia sobre questões que se devia pronunciar, nomeadamente, relativamente ao direito de a Requerente considerar o contrato resolvido por incumprimento do requerido; e
- da invalidade (ou incumprimento) do contrato promessa de partilha e suas consequências, nomeadamente, quanto ao prosseguimento do processo de inventário.
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III. Fundamentação
3.1. Fundamentos de facto
Factos considerados provados em Primeira Instância:
1. Requerente e requerido contraíram casamento civil, sem convenção antenupcial, em 13 de Setembro de 2001, tendo o mesmo sido lavrado sob o n.º 294/2001 atualmente com o n.º 1113/2018 ambos da Conservatória do Registo Civil de Mafra.
2. Em 30 de Outubro de 2018 foi o casamento dissolvido por divórcio, o qual correu termos na Conservatória do Registo Civil de Lisboa sob o n.º 11949/2018.
3. Foi junta ao requerimento de divórcio a relação especificada dos bens comuns do casal.
4. São bens comuns da Requerente e do Requerido:
Activo:
Verba UM – Fracção autónoma designada pela letra “L” destinada a habitação, sita na R. Dr. …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o número …, da União de Freguesias de Algés, Linda a Velha, e Cruz Quebrada – Dafundo e inscrita na matriz predial urbana da União de freguesias de Algés, Linda a Velha, e Cruz Quebrada – Dafundo sob o artigo …, com o valor patrimonial de €269.191,25 (duzentos e sessenta e cinco mil duzentos e treze euros e cinco cêntimos) e com valor comercial estimado em € 600.000,00 (seiscentos mil euros).
Verba DOIS – Quota na sociedade Comercial por quotas R… – Sociedade Unipessoal, Lda., com o número único de matrícula e pessoa colectiva …, com o capital social de 5.000,00 (cinco mil euros) e sede na R. Dr. A… Algés, à qual se atribui o valor contabilístico de €5.000,00 (cinco mil euros).
Verba TRÊS – veículo ligeiro de passageiros, marca LEXUS, modelo IS300H, com a matrícula …, ao qual se atribui o valor de €16.500 (dezasseis mil e quinhentos euros)
Passivo:
Verba UM - €254.983,49 (duzentos e cinquenta e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e quarenta e nove cêntimos), relativa ao capital mutuado junto do Banco Caixa Geral de Depósitos, no âmbito da celebração de contrato de mútuo para aquisição do prédio urbano identificado na verba UM do ativo.
Verba DOIS - €30.619,64 (trinta mil seiscentos e dezanove euros e sessenta e quatro cêntimos) devidos ao Bankinter, relativos ao capital mutuado no âmbito de contrato de Mútuo celebrado por ambos, cujo pagamento foi garantido pela constituição e hipoteca voluntária sobre a fração autónoma para habitação, designada pela letra “C” e que corresponde ao R/C, letra B, com uma arrecadação no piso menos um, um parqueamento no piso menos dois, ambos designados pelo n.º 8, do prédio sito na R. C…, freguesia de Linda a Velha, descrita na segunda Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o número … e inscrita no artigo matricial urbano n.º … da União de freguesias de Algés, Linda a velha, Cruz Quebrada – Dafundo, bem próprio da requerente.
Verba TRÊS - €50.426,11 (cinquenta mil quatrocentos e vinte e seis euros e onze cêntimos), Banco Bankinter relativa ao capital mutuado no âmbito do contrato de Mútuo celebrado por ambos, cujo pagamento foi garantido pela constituição de hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma para habitação, designada pela letra “C” e que corresponde ao R/C, letra B, com uma arrecadação no piso menos um, um parqueamento no piso menos dois, ambos designados pelo n.º 8, do prédio sito na R. …, freguesia de Linda a Velha, descrita na segunda Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o número … e inscrita no artigo matricial urbano n.º … da União de freguesias de Algés, Linda a velha, Cruz Quebrada – Dafundo, bem próprio da requerente.
Verba QUATRO - €7.000,00 (sete mil euros), mutuados ao casal pela Exma. Sra. A…, mãe do requerido.
Verba CINCO - €4.000,00 (quatro mil euros) a título de honorários devidos a mandatária judicial, a Advogada Exma. Sr.ª Dr.ª M...
5. Em 30/10/2018, data em que foi decretado o divórcio por mútuo consentimento, Requerente Cabeça-de-Casal e o Requerido Interessado, procederam à regulação das responsabilidades parentais da sua filha e acordaram no destino da casa de morada de família, tendo a mesma sido atribuída ao Requerido Interessado.
6. Nessa mesma data, estipularam a relação dos bens comuns.
7. Em 28 de Fevereiro de 2018, Requerente e Requerido assinaram, perante advogada, que lhes reconheceu as assinaturas, um documento onde se pode ler, no cabeçalho:
“Contrato de promessa de partilha
Contrato de Partilha
E
Outros Convénios”
8. Na Cláusula 1.ª do referido documento são identificadas as verbas correspondentes ao activo a partilhar.
9. Na Cláusula 2.ª do referido documento são identificadas as verbas correspondentes ao passivo a partilhar.
10. Na Cláusula 3.ª Requerente e Requerido acordaram que as verbas n.º 2 e 3 do activo (quota da sociedade e veículo automóvel) eram atribuídos ao cônjuge marido.
11. Na cláusula 4.ª, relativa à fracção autónoma, acordaram:
Um - Os promitentes outorgantes acordam que a propriedade da fracção autónoma, bem comum do casal, descrita na verba um do Activo será transferida para o Primeiro Outorgante, no prazo e cumpridas as condições seguintes:
a) O Primeiro Promitente Outorgante (cônjuge marido) obriga-se ao pagamento integral do reembolso do mútuo descrito na verba um do Passivo, assumindo deste modo, e nos termos do disposto no artigo 595.º do Código Civil a obrigação que caberia à Segunda Promitente Outorgante desse mesmo pagamento.
b) A propriedade da fração autónoma descrita na verba um do Ativo só será transferida, por efeito da partilha subsequente à dissolução do casamento, desde que cumprida pelo Primeiro Outorgante, integralmente, a obrigação constante na Cláusula Quinta, n.º 2 deste contrato.
c) O Primeiro Promitente Outorgante obriga-se ainda ao pagamento mensal de 50% da prestação, para reembolso do Mútuo descrito na verba dois do Passivo, para o que fará uma transferência mensal no valor que corresponder a metade da prestação, a cada momento, sendo que atualmente tal prestação ascende a €125,15 e será efetuada até ao dia 5, para a conta bancária com o IBAN PT50 …
d) O Segundo Promitente Outorgante (cônjuge esposa) obriga-se ao pagamento integral do reembolso do mútuo descrito na verba três do Passivo, assumindo deste modo, e nos termos do disposto no artigo 595.º do Código Civil a obrigação que caberia ao Primeiro Promitente Outorgante nesse mesmo pagamento.
DOIS - O Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) relativo à fração autónoma será liquidado integralmente pelo Primeiro Promitente Outorgante, bem como todas as restantes despesas decorrentes da propriedade da fração autónoma descrita na verba UM do Ativo, designada mente, e sem excluir, a quotização do condomínio.”
12. No referido documento, pode ler-se na Cláusula 5.ª:
“(Pagamento de Tornas)
UM - Conforme decorre dos parágrafos segundo e terceiro da cláusula terceira e do disposto globalmente na cláusula quarta, as verbas um, dois e três do Ativo são adjudicadas ao Primeiro Promitente Outorgante que assume o pagamento integral das verbas um, quatro e cinco constantes do Passivo e o pagamento na proporção de 50% da verba dois do Passivo.
DOIS - A título de tornas, o Primeiro Promitente Outorgante pagará à Segunda Promitente Outorgante a quantia de € 56.500,00 (cinquenta e seis mil e quinhentos euros), nos seguintes termos e condições:
a) Com a assinatura do presente documento, a quantia de €22.000,00 (vinte e dois mil euros), através de cheque bancário emitido à ordem da Segunda Outorgante.
b) O remanescente, no valor de €34.500,00 (trinta e quatro mil e quinhentos euros), será pago em 5 anos sucessivos, isto é, em 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022, em prestações iguais no valor cada uma de €6.900,00 (seis mil e novecentos euros), com vencimento até 31 de Dezembro do ano a que respeita.
c) o vencimento de uma prestação, sem que o Primeiro Promitente Outorgante proceda ao seu pagamento, determina, sem necessidade de qualquer interpelação admonitória, o vencimento das restantes prestações vincendas.”
13. O Requerido não procedeu ao pagamento de qualquer quantia à Requerente no ano de 2019.
14. No dia 20 de Janeiro de 2020, a Ilustre Mandatária da Requerente enviou carta registada com aviso de recepção ao Requerido com o seguinte teor:
“Exmo. Sr. R…,
Ass.: Contrato de promessa de partilhas
Exmo. Sr.,
Desde já apresento os mais sinceros cumprimentos.
Foi este escritório encarregue de, em nome e representar da Exma. Sr.ª L…, informar V. Ex.ª, que considera incumprido o contrato de promessa de partilhas assinado no dia 28 de Fevereiro de 2018, por falta de cumprimento do estabelecido pela Cláusula Quinta, n.º 2, al. B), do referido contrato.
Assim, cabe-me informar que a nossa cliente não tem interesse na manutenção do contrato nos mesmos moldes em que foi assinado, considerando-se o mesmo incumprido de forma definitiva.
Caso seja sua intenção, proceder à partilha extrajudicialmente, agradeço contacto utilizando os elementos no cabeçalho, no prazo máximo de 5 dias após o recebimento da presente missiva. Sem um contacto de V. Ex.ª, será apresentada a competente acção de inventário para partilhas do património conjugal.
Ao dispor para qualquer esclarecimento adicional.”
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3.2. Apreciação do mérito do recurso
3.2.1. Da nulidade da decisão recorrida
Conforme decorre do acima exposto, a recorrente veio arguir a nulidade da decisão recorrida com fundamento nas als. a) e b) do nº 1 do art.º 615º do NCPC.
O tribunal a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, nº 1 e 617º, nº 1 do NCPC.
A omissão de despacho do tribunal a quo sobre as nulidades arguidas não determina necessariamente a remessa dos autos à 1ª instância para tal efeito (cfr. nº 5, do referido art.º 617º), cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cfr., neste sentido Abrantes Geraldes, in Recursos no Processo Civil, p. 149.
Tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
Dispõe o art.º 615º, nº 1 do NCPC o seguinte:
“1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”.
Estas invalidades são aplicáveis, com as necessárias adaptações, aos despachos – cfr. art.º 613º, nº 3 do NCPC.
Importa salientar que as decisões judiciais se podem encontrar viciadas por causas distintas, sendo a respectiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respectiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido art.º 615º.
As causas de nulidade taxativamente enumeradas no art.º 615º não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, sendo coisas distintas, mas muitas vezes confundidas pelas partes, a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
Não deve por isso confundir-se o erro de julgamento e muito menos o inconformismo quanto ao teor da decisão com os vícios que determinam as nulidades em causa.
Com efeito, as causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), conforme se escreve no ac. do STJ de 17.10.2017 (relator Alexandre Reis, disponível em www.dgsi.pt) “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei”.
Segundo o invocado pela recorrente a decisão recorrida é nula por não especificar os fundamentos de facto e direito que justificam a decisão e por não se pronunciar sobre questões que se devia pronunciar. Deste modo, estão em causa as nulidades previstas nas als. b) e d) do referido preceito (e não a da al. a), como - certamente por lapso – a recorrente indica nas suas conclusões).
A nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art.º 615º do NCPC é reconduzida à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito ou a sua ininteligibilidade, o que tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência como abrangendo apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente ou o desacerto da decisão.
«As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º […] ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)). O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento ou fundamentos […] Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 668º citado, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 670/672), ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Só a total omissão dos fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada.» – cfr. ac. do STJ de 2.06.2016, relatora Fernanda Isabel Pereira, in www.dgsi.pt.
A figura da nulidade da sentença por falta de fundamentação constitui, assim, uma figura de muito difícil verificação, dado que a doutrina e a jurisprudência têm salientado que tal só se verifica em situações de falta absoluta de indicação das razões de facto e de direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência ou laconismo, se deve considerar a fundamentação deficiente.
Já Alberto dos Reis esclarecia que “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.” - cfr. Código de Processo Civil Anotado, V Volume, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 140.
Significa isto que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final – cfr. ac. do STJ de 15.12.2011, relator Pereira Rodrigues, também acessível in www.dgsi.pt.
O dever de fundamentação insere-se no dever constitucional e infraconstitucional de fundamentação de decisões judiciais – cfr. art.º 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e art.º 154º do NCPC -, sendo apenas dispensável no caso de decisões de mero expediente, de modo que, ainda que a questão não suscite especiais dúvidas, a respectiva decisão deve ser fundamentada nos termos que se apresentem ajustados ao caso.
O grau máximo da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais é representado pela sentença em acção contestada (cfr. art.º 607º, nºs 3 e 4 do NCPC), sendo a lei processual menos exigente, por exemplo, no caso das acções não contestadas (cf. art.º 567º, nº 3 do NCPC), nas decisões relativas aos incidentes da instância e procedimentos cautelares (art.ºs 295º e 365º, nº 2 do NCPC), e nos despachos interlocutórios em que não tenha sido deduzida oposição e a questão a proferir seja manifestamente simples (art.º 154º, nº 2 do NCPC).
A qualidade da fundamentação há-de ser aferida em função do seu conteúdo substancial e não por via da sua extensão.
No presente caso, torna-se evidente que a decisão recorrida não padece do vício apontado, tendo aliás a mesma abordado expressamente a questão do incumprimento do contrato promessa celebrado entre as partes, quer ao nível dos fundamentos de facto, quer ao nível dos fundamentos de direito.
Por outro lado, como vício de limites, a nulidade de sentença/despacho enunciada na al. d) do nº 1 do art.º 615º do NCPC divide-se em dois segmentos, sendo o primeiro atinente à omissão de pronúncia e o segundo relativo ao excesso de pronúncia ou de pronúncia indevida. O juiz conhece de menos na primeira hipótese e conhece de mais do que lhe era permitido na segunda.
Esta nulidade decorre da exigência prescrita no nº 2 do art.º 608º do NCPC, nos termos do qual o “juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Verifica-se a omissão de pronúncia quando o juiz deixe de conhecer, sem prejudicialidade, de todas as questões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada (cfr. ac. do STJ de 28.02.2013, relator João Bernardo, in www.dgsi.pt).
Doutrinária e jurisprudencialmente tem sido entendido de que só há nulidade quando o juiz não se pronuncia sobre verdadeiras questões não prejudicadas invocadas pelas partes, e não perante a argumentação invocada pelas partes (cfr., entre outros, António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, p. 364 e ac. do STJ de 8.11.2016, relator Nuno Cameira, disponível in www.dgsi.pt). Por questões não se devem considerar as razões ou argumentos apresentados pelas partes, mas sim as pretensões (pedidos), causa de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer. O que “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido (…)” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume I, p. 713).
O juiz não tem, por isso, que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (vide, ac. do STJ de 30.04.2014, relator Mário Belo Morgado, acessível in www.dgsi.pt). De igual modo, o juiz não deverá conhecer questões cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução já dada a outras.
Voltando novamente ao caso concreto, na decisão recorrida foi decidido julgar procedente a oposição ao inventário deduzida pelo recorrido por se ter considerado que o contrato promessa de partilha é válido e que o incumprimento do mesmo pelo requerido não obstava à execução específica do contrato, sendo este o meio próprio para a requerente fazer valer a sua pretensão, tendo-se considerado ainda que nenhuma das partes agia em abuso de direito.
Ora, como já explanamos, a nulidade de decisão por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista.
Tendo-se pronunciado a decisão recorrida sobre a concreta questão da validade e incumprimento do contrato promessa de partilha e os seus efeitos no prosseguimento do processo de inventário, - embora possa padecer de erro de subsunção, como veremos infra -, não padece aquela de omissão de pronúncia.
Improcede, pois, desde já e nesta parte, o recurso.
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3.2.2. Da (in)validade e incumprimento do contrato promessa e sua repercussão no prosseguimento dos autos de inventário.
Veio a recorrente invocar ainda que o contrato promessa de partilha dos bens comuns em causa nos autos não obedece à regra prevista no art.º 1730º, do CC, sendo nulo. Nulidade esta que é oficiosamente cognoscível (art.ºs 280º e 286º do CC).
Estando, assim, em causa a validade do contrato promessa celebrado entre as partes, importa começar por ter presente o estatuído no art.º 410º, do CC:
“À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, excetuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato - promessa.”.
Daqui ressalta que o contrato-promessa se rege pelas normas jurídicas atinentes aos contratos em geral e, para além delas, pelas normas relativas ao contrato prometido com as duas excepções mencionadas na parte final do citado nº 1 (normas respeitantes à forma do contrato e normas alusivas ao contrato prometido que pela sua razão de ser se revelem incompatíveis com a natureza do contrato – promessa).
Por seu turno prevê o art.º 405º, nº 1, do CC, que “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.”.
Ora, nos regimes de comunhão, a partilha dos bens comuns, em consequência da extinção, pelo divórcio ou pela separação judicial de pessoas e bens, da comunhão de bens entre os cônjuges, só pode ocorrer depois de terem cessado, por qualquer daqueles motivos, as relações patrimoniais entre os cônjuges (art.ºs 1688º e 1689º, nº 1 do CC).
A proibição de partilha do património conjugal antes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges é directamente imposta pelas regras da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei e da livre revogabilidade das doações entre casados que, por sua vez, se fundam no princípio da equidade das relações patrimoniais entre os cônjuges (art.ºs 1714º nºs 1 e 2 e 1765º nº 1 do CC).
Tornaram-se, porém, vulgares, os contratos acessórios - embora não necessariamente - de processos de divórcio por mútuo consentimento ou de separação judicial de pessoas e bens, cujo escopo é a fixação antecipada das regras a que deve obedecer a liquidação do regime matrimonial após a extinção ou a modificação da relação jurídica matrimonial.
A estes contratos são atribuídos, pelos cônjuges, eficácia diferida para um momento posterior ao do trânsito em julgado da sentença que decreta o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens.
Há, neste domínio, contudo, que separar duas figuras distintas: de um lado, o contrato promessa de partilha; do outro o contrato de partilha sob condição suspensiva (cfr. Vaz Serra, Contrato-Promessa, BMJ nº 76, p. 35).
Discutia-se, abundantemente, na jurisprudência, a validade do contrato promessa de partilha, celebrado na constância do casamento, regra geral, na pendência da acção de divórcio, para produzir efeitos depois do trânsito em julgado da sentença que o decrete, portanto, depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges.
No sentido da validade de tal contrato, cfr., v.g., os acs. da RL de 30.06.88, CJ, III, p. 170, da RC de 19.10.93, BMJ nº 430, p. 525, da RP de 14.01.94, CJ, I, 237, da RE de 21.1.88, CJ, I, p. 260, da RC de 28.11.95, RLJ, ano 129, p. 274 e do STJ de 23.03.99, CJ, II, p. 30; em sentido inverso, v.g. acs. RL de 24.02.87, CJ, I, p. 143, da RL de 21.3.96, CJ, II, p. 89, da RC de 11.01.94, BMJ nº 433, p. 627, da RL de 09.12.93, CJ, V, p. 141, da RL de 09.12.93, BMJ nº 432, p. 417, do STJ de 26.05.93, CJ, II, p. 143, do STJ de 02.02.93, CJ, I, p. 113, do STJ de 27.04.89, BMJ nº 386, p. 463, da RL de 09.12.93, BMJ nº 432, p. 417, da RL de 05.03.98, CJ, II, p. 83, da RC de 11.01.94, BMJ nº 433, p. 627, da RL de 21.03.96, CJ, II, p. 89, e da RC de 28.11.95, CJ, V, p. 49.
Questionava-se se a imutabilidade e a livre revogabilidade das doações entre casados impunham a proibição da partilha dos bens comuns antes da cessação das relações patrimoniais dos cônjuges se estende - por força do princípio do regime do definitivo ou da equiparação - ao contrato promessa de partilha (art.º 410º nº 1 do CC).
Uma das justificações nas quais se faz assentar o princípio da imutabilidade é a da protecção dos direitos de terceiros.
A modificação, quer do regime de bens quer da situação concreta de certo bem pode prejudicar gravemente as expectativas de terceiros. É, de facto, possível que a modificação constitua um meio usado pelos cônjuges para transferir determinados bens do casal para a titularidade de um deles, evitando, desse modo, a agressão dos credores do outro (cfr. Antunes Varela, Direito da Família, p. 432 e 433).
Um tal perigo não existe, porém, no caso de simples contrato promessa de partilha, dado que a alteração da situação dos bens só tem lugar depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, momento em que os credores já não terão quaisquer expectativas e em que àqueles é lícito convencionar a partilha como bem entenderem. Só assim não será se os cônjuges, mesmo antes da sentença que decretar o divórcio ou a separação e da celebração do contrato definitivo prometido, derem cumprimento às respectivas prestações, v.g. começando a pagar as tornas acordadas.
O princípio da imutabilidade - tal como o da livre revogabilidade das doações entre casados - funda-se no princípio da equidade das relações patrimoniais entre os cônjuges que impede a ocorrência de enriquecimento injustificado e definitivo de um deles à custa do outro.
Porém, uma vez extinta ou modificada a relação patrimonial, a lei é menos sensível à possibilidade de ocorrência de enriquecimentos injustificados entre os cônjuges. Isto explica, por exemplo, que o princípio da imutabilidade só abranja os contratos de compra e venda e os contratos de sociedade entre os cônjuges se estes não se encontrarem separados de pessoas e bens (art.º 1714º nº 2 do CC).
A ratio de a proibição não atingir as vendas efectuadas entre cônjuges separados de pessoas e bens reside no facto de, uma vez cessadas as relações de convívio conjugal, se desvanecer a justificação que serve de fundamento à nulidade (vide, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume IV, 2ª edição, p. 400).
A solução deveria valer, dada a razão que a sustenta, não apenas para a cessação formal das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, mas também sempre que tenha cessado, de facto, a comunhão de vida entre os cônjuges, nomeadamente quando já tiverem proposto a acção de divórcio.
Aliás, a lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da acção de divórcio ou mesmo à data da cessação da coabitação entre ambos, embora neste último caso, apenas a requerimento de qualquer dos cônjuges (art.º 1789º, nº 1 do CC), o que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da proposição da acção e não no dia do trânsito em julgado da decisão e que a partilha dever ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da acção ou na data em que cessou a coabitação, como o que se quer evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos actos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a propositura da acção sobre valores do património comum.
Neste contexto, deixam de ter relevo as normas assentes na pressuposição de uma comunhão de vida, pessoal e patrimonial entre os cônjuges e, portanto, não deve ter-se por fundado o receio de através do contrato promessa de partilha, um cônjuge pretender propiciar ao outro uma vantagem patrimonial.
O princípio da imutabilidade proíbe qualquer alteração ao regime de bens fixado no momento da celebração do casamento ou à situação concreta dos bens relativamente às diversas massas patrimoniais dos cônjuges.
Porém, do contrato promessa - que apenas obriga as partes a celebrar novo contrato, o contrato definitivo prometido - resultam apenas simples prestações de facto jurídico positivo: a obrigação de, no futuro, emitir as declarações de vontade integrantes do negócio jurídico modificativo em que a partilha se resolve e de proceder à imputação, na meação de cada um dos promitentes, nos termos acordados, dos bens comuns.
O contrato promessa de partilha origina apenas prestações de facto jurídico - a celebração do contrato definitivo. São-lhe, por isso, inaplicáveis todas as proposições, que a nível do contrato definitivo, regulamentam prestações de facto material ou prestações de coisa.
Deste modo, a simples celebração do contrato promessa não importa qualquer alteração das regras aplicáveis quer á comunhão quer à titularidade dos bens nem a modificação do estatuto de qualquer bem específico: nem a massa dos bens comuns nem a dos bens próprios de qualquer dos cônjuges sofrem a mínima alteração (art.º 1714º nºs 1 e 2 do CC).
A promessa conjugal de partilha deixa, portanto, incólume o princípio da imutabilidade.
Assim como há qualquer dano para os cônjuges, também não há qualquer prejuízo para terceiros. Dado que as diversas massas patrimoniais - representadas pelos bens comuns e pelos bens próprios de qualquer dos cônjuges - continuam intactas, os credores pessoais dos cônjuges mantêm, por inteiro, a garantia representada pelo património conjugal comum e o credor de apenas um deles conserva tal garantia, dado que encontrará na esfera jurídico-patrimonial do devedor o valor da quota deste naquele património.
Objectava-se, porém, que o ascendente de um dos cônjuges sobre o outro poderá levar este a aceitar o preenchimento da sua quota com bens que não lhe interessam, com prejuízo, quer para este cônjuge quer para os seus credores, como sucederá no caso de o seu quinhão ser integrado por bens de execução mais difícil.
Neste caso, contudo, não há motivo para que a protecção do cônjuge seja diversa da estabelecida para os contraentes e para os negócios jurídicos em geral.
O único limite colocado à validade do contrato promessa é o representado pelo princípio estruturante da participação dos cônjuges no património comum: a regra da metade, prevista no art.º 1730º nº 1 do CC.
Com efeito, a lei proíbe as estipulações ou cláusulas contrárias à dita “regra da metade” imperativamente imposta pelo art.º 1730º, proibição extensiva aos casos em que do contrato não constem os elementos necessários que permitam ajuizar sobre a observância dessa regra.
É, assim, nulo, por violação do nº 1 do art.º 1730º, o contrato promessa de partilha que não contemple a totalidade das situações jurídicas activas e passivas que compõem o património comum do casal, nem contenha a indicação do valor integral do conjunto dessas situações (cfr. ac. da RP de 11.04.2019, relator Miguel Baldaia de Morais, disponível in www.dgsi.pt).
Sendo estes acordos nulos, o cônjuge prejudicado tem o direito de invocar a nulidade a todo o tempo e apenas tem o ónus de provar, nos termos gerais, que o contrato promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade (vide, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 3ª ed., p. 489).
Por outro lado, a citada regra da metade não se encontra sujeita a um juízo de apreciação que permita averiguar se essa igualdade numérica realiza, no caso, uma distribuição igual das vantagens e das desvantagens, causalmente associadas à relação matrimonial. A igualdade aritmética assim imposta pode atraiçoar o objecto de concretização de uma igualdade material entre os sujeitos da relação matrimonial (cfr. Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, 2ª Edição Revista e Actualizada, volume II, p. 645).
Quando a lei prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista - dada a natureza que deve assinalar-se ao património conjugal comum - não a definição do objecto do direito de cada cônjuge aquela massa patrimonial de afectação especial, mas fixar a quota-parte a que cada um tem direito no momento da dissolução e partilha do património comum.
Dada a natureza claramente imperativa da regra - através da qual o legislador pretende, precisamente, evitar uma partilha desigual, obtida através do ascendente psicológico de um dos cônjuges sobre o outro - será nulo o contrato promessa de partilha, através do qual um cônjuge se vincula a partilhar o património comum, recebendo menos de metade do valor dele (art.º 294º do CC).
Esta solução vale, por inteiro, para a partilha subordinada à condição suspensiva do decretamento entre os cônjuges do divórcio. Também neste caso não ocorre qualquer modificação do regime de bens nem, muito menos, a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges. De igual modo, a partilha será nula se violar a regra da metade.
Neste sentido, Albino de Matos, Partilha, Divórcio e Condição, Temas de Direito Notarial, I, p. 467 a 475, Inocêncio Galvão Teles, p. 157 a 160 e Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 2ª Edição, vol. I, p. 444 a 447. Em sentido contrário, podemos ver Rita Lobo Xavier, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os cônjuges, p. 285 a 287.
Há, portanto, que concluir pela validade do contrato promessa de partilha, celebrado depois da instauração da acção de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, mas anterior ao trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens (cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 2ª Edição, vol. I, p. 444 a 447 e Rita Lobo Xavier, Contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal celebrado na pendência da acção de divórcio. Comentário ao Ac. do STJ de 26 de Maio de 1963, RDES, 1994, p. 137 e 172 e Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, p. 264 a 276 e Guilherme de Oliveira, Temas de Direito da Família, p. 226 a 244.
Nem, de resto, está excluída, na falta de convenção contrária, a possibilidade da obtenção da sua execução específica, dado que a isso não se opõe a natureza da obrigação assumida (art.º 830º nº 1 do CC) – cfr. Rita Lobo Xavier, Limites, cit., p. 282 a 284.
Actualmente, a conclusão de que são válidos, nos regimes de comunhão, os contratos promessas de partilha – desde que respeitada a regra imperativa da metade – já não oferece dúvida séria e corresponde mesmo a jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça (cfr., entre outros, os acs. do STJ de 22.02.07, de 15.12.11 e de 7.10.2020, todos acessíveis in www.dgsi.pt).
Vejamos, então, se o contrato promessa concluído entre a recorrente e o recorrido acata a regra da metade.
Temos que concluir necessariamente que não.
Como decorre do documento que corporiza as declarações de vontade dos interessados e dos factos dados como provados (note-se que se apurou que o valor real do bem imóvel é superior ao valor tributário, ascendendo ao montante estimado de €600.000,00), o respectivo património é constituído por uma participação social, por um veículo automóvel e por um imóvel, que seriam repartidos, entre ambos, do modo seguinte: ao requerido marido seria atribuída a totalidade do activo, no valor global de €621.500,00 e assumia o pagamento do passivo no valor de €281.293,33 e a requerente mulher assumia o pagamento de €65.735,93 e recebia de tornas a quantia de €56.500, a pagar em prestações.
As quotas dos cônjuges têm, imperativamente, que ser iguais. E, no caso, é inegável que não o são.
Consequentemente, ao afrontar a mencionada regra, o ajuizado contrato padece de vício de nulidade que o inquina no seu todo, nos termos dos art.ºs 280º, 410º, nº 1 e 1730º, nº 1 do CC, sujeito ao regime geral do art.º 286º do mesmo diploma legal.
E, por força dessa nulidade – que, como vimos é de conhecimento oficioso -, aquele contrato nenhuma eficácia produz no tocante à instância pendente do inventário e, portanto, não tem a virtualidade de impedir o seu normal prosseguimento.
Aliás, somos do entendimento que a celebração do contrato promessa de partilha - independentemente da sua validade - não constitui obstáculo ao prosseguimento do inventário judicial, dado que, por si só, não lhe retira razão de ser.
Como lapidarmente se diz no ac. da RG de 14.02.2013, relator Amílcar Andrade, disponível in www.dgsi.pt: “É certo que o contrato promessa impõe às partes a celebração do contrato prometido, ou seja, neste caso, a formalização da partilha nos termos acordados. Dele resulta a prestação de facto positivo: a obrigação de, no futuro, proceder à partilha nos termos acordados.
Pelo contrato promessa de partilha foi prometido realizar a partilha dos bens comuns do casal, que é o acto adequado a pôr termo à universalidade de direito que constitui a comunhão de bens do casal. Mas, um contrato promessa de partilha não pode titular e legitimar uma partilha - não passa de uma simples promessa que pode ou não ser cumprida (cfr. Acórdão nº 99B978 de Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Janeiro de 2000, acessível em www.dgsi.pt).
Assim sendo, só a escritura prometida realizar poderia pôr termo definitivo à comunhão dos bens do casal. Porém, essa escritura de partilha não foi feita. Daí que o contrato promessa de partilha não constitua obstáculo ao prosseguimento do inventário judicial, não lhe retirando razão de ser.”.
Neste mesmo sentido, veja-se ainda o ac. da RE de 18.10.2007, relator Manuel Marques e os acs. da RP, de 11.10.2016, relatora Maria Cecília Agante e de 12.10.2021, relator José Carvalho, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Ante todo o exposto, importa julgar procedente o recurso e determinar o prosseguimento do processo de inventário, ficando, assim, por força do disposto no nº 2 do art.º 608º, do NCPC, prejudicado o conhecimento do incumprimento do contrato promessa.
As custas do recurso são integralmente da responsabilidade do recorrente atento o seu decaimento (art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
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SUMÁRIO (art.º 663º, n º7 do NCPC)
I- Nos regimes de comunhão de bens, os contratos promessa de partilha de bens comuns são válidos, desde que respeitada a regra imperativa da metade prevista no art.º 1730º, do CC.
II- A celebração de contrato promessa de partilha entre os ex-cônjuges, ainda que válido, não constitui, por si só, obstáculo ao prosseguimento de inventário judicial para partilha dos bens comuns do casal dissolvido, não lhe retirando razão de ser.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento do processo de inventário.
Custas pelo recorrido.
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Lisboa, 12.01.2023
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Rui Manuel Pinheiro Oliveira