Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9849/14.6T8LSB-E.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: ADMINISTRADOR JUDICIAL
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
APLICAÇÃO IMEDIATA DA LEI NOVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR-APRESENTAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: A redação dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, ao art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial, no tocante à forma de cálculo da remuneração variável, é de aplicação imediata nos processos pendentes: sempre que a fixação da remuneração variável ocorra após a data de entrada em vigor do diploma, deve ser calculada nos termos da nova redação do mesmo.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa


1.–Relatório


MR e IP, foram declarados insolventes por sentença de 20/11/2014, na qual foi nomeado como administrador de insolvência, o Sr. Dr. JCC.

Realizou-se assembleia de apreciação do relatório, tendo sido determinado o prosseguimento dos autos para liquidação.

Foram apreendidos e liquidados bens.

Foram reclamados créditos. Foi proferido em 19/06/2021 despacho saneador no apenso de reclamação de créditos, tendo sido julgados verificados créditos não impugnados no montante global de € 673.533,53 e sido decidido obstarem à graduação créditos reclamados e impugnados no valor global de € 118.665,26 (incluindo um crédito parcialmente reconhecido e não impugnado que não foi incluído nos créditos julgados verificados). Não foi proferida sentença final.

Após relegada a respetiva apreciação para o momento em que findasse a liquidação do ativo, foi, por despacho de 10/02/2022, liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores.

Foram prestadas contas da administração da massa insolvente, julgadas validamente prestadas por sentença de 07/03/2022, transitada em julgado.

Por decisão de 01/06/2022, o tribunal fixou a remuneração variável devida ao Sr. Administrador da Insolvência nos seguintes termos:
Tendo em conta que toda a atividade relevante do Sr. Administrador da Insolvência para efeitos de determinação da remuneração variável decorreu antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, em vigor desde 11 de Abril de 2022, as mesmas não são aplicáveis no que concerne à fixação da remuneração variável do Sr. Administrador da Insolvência (art.12ºCC), a qual compete ao juiz. O que se declara. Acresce notar, não existe por parte do Sr. Administrador da Insolvência nenhuma expectativa digna de tutela na fixação da remuneração variável por critério diverso do que decorria da lei em vigor aquando do exercício das suas funções com relevância para a determinação da mesma (liquidação).
***

Isto posto, importa fixar a remuneração variável do Administrador da Insolvência, nos termos do disposto no art.º 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro (sem as alterações decorrente da Lei n.º9/2022) e Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro.
Foi apurado o valor total de receitas de €433.708,21.
A este valor são deduzidas as dívidas da massa insolvente, que no caso concreto ascendem ao montante total de €4.172,00, correspondente às custas prováveis do processo de insolvência e às despesas da massa insolvente e do Administrador da Insolvência (com exclusão da remuneração fixa, face ao teor do art.º 23º, n.º 4, da Lei n.º 22/2013 e da remuneração variável, que apenas neste momento processual se fixa).
O resultado da liquidação é de €429.536,21.
A remuneração é apurada por aplicação da taxa marginal de 3,39% (escalão até € 250.000,00) e da taxa base 2,00% (correspondente ao excedente), conforme a Tabela do Anexo I à Portaria n.º 51/2005, uma vez que o resultado da liquidação é superior a €250.000,00 mas inferior a €500.000,00 (cfr. nota explicativa à mencionada Tabela).
A remuneração é, assim, de €12.065,72.
Passando ao cálculo da majoração prevista no n.º 5, do citado artigo 23º, verificamos que a percentagem de satisfação dos créditos é de 63,77% (créditos verificados no valor total de €673.533,53/resultado da liquidação). Assim, a majoração a aplicar é de 1,40, o que equivale ao montante de €4.826,29.
Assim, fixa-se a remuneração variável do Administrador da Insolvência em €16.892,01, montante a suportar pela massa insolvente.
*
Notifique, sendo o Sr. Administrador da Insolvência para se fazer pagar da quantia ora fixada e para juntar aos autos (apenso de prestação de contas) recibos/faturas das quantias auferidas, incluindo da provisão e da remuneração fixa, caso ainda não o tenha feito.
Para tal fixa-se o prazo de 5 dias.”

Inconformado apelou o Sr. Administrador da Insolvência pedindo a revogação do despacho recorrido, substituindo-o por outro que aplique as novas regras de cálculo constantes do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial e determine o pagamento da remuneração ao Apelante nos termos por si requeridos, e formulando as seguintes conclusões:
A)–No dia 11 de Janeiro de 2022 foi publicada na 1.ª Série do Diário da República a Lei n.º 9/2022, a qual, entre outras e nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 1.º, introduziu alterações ao Estatuto do Administrador Judicial.
B)–Para o que releva o presente recurso, aquela Lei introduziu alterações à redacção do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, onde se prevê alteração à forma de cálculo da remuneração variável dos Administradores Judiciais, quando os mesmos tenham sido nomeados pelo Juiz, como foi o caso nos presentes autos.
C)–Nos termos do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 9/2022, sob a epígrafe de “Regime transitório”, previu-se que aquela Lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor, não tendo sido ressalvada nenhuma excepção que esteja relacionada com a situação do presente recurso.
D)–As alterações ao artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial entraram em vigor em 11.04.2022.
E)–Em 09.05.2022, ou seja, quase depois de 1 mês após a entrada em vigor da referida Lei, o AI apresentou nos autos um requerimento requerendo o pagamento da sua remuneração variável, indicando a forma de cálculo da mesma com base nas novas regras previstas no artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, introduzidas pela Lei n.º 9/2022.
F)–O Apelante não poderia ter apresentado tal requerimento em data muito anterior àquela, dado que estava a aguardar que o Tribunal emitisse a conta de custas, o que só sucedeu em 06.09.2022.
G)–Ao considerar que, uma vez que a “actividade relevante do Sr. Administrador de Insolvência para efeitos da determinação da remuneração variável decorreu antes das alterações introduzidas pela Lei n.º9/2022, em vigor desde 11 de Abril de 2022, as mesmas não são aplicáveis no que concerne à fixação da remuneração variável do Sr. Administrador da Insolvência.” o Tribunal a quo ignorou o disposto no n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 9/2022, que dispõe que aquela Lei, e as alterações aí previstas, são imediatamente aplicáveis aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor, sendo que, daquele normativo não resulta qualquer quadro de excepção para a situação em apreço.
H)–Como resulta do requerimento apresentado pelo Apelante em 09.05.2022, o qual espelha as regras de cálculo da remuneração variável previstas no artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial em vigor a essa data, a remuneração do AI seria de €41.871,23 e não de €16.892,01, conforme fixado pelo Tribunal a quo.
I)–A justificação dada pelo Tribunal a quo de que, “não existe por parte do Sr. Administrador da Insolvência nenhuma expectativa digna de tutela na fixação da remuneração variável por critério diverso do que decorria da lei em vigor aquando do exercício das suas funções com relevância para a determinação da mesma (liquidação)”, é completamente desprovida de sentido, pois à data da apresentação do requerimento do Apelante já estavam em vigor as novas regras de cálculo da remuneração variável.
J)–Acresce que, o recurso ora em apreço não tem como propósito serem “tuteladas as expectativas” do Apelante quanto à sua remuneração, mas sim, única e exclusivamente que o Tribunal a quo cumpra a lei e dê provimento ao requerimento apresentado pelo AI em 09.05.2022, no qual o mesmo peticiona o pagamento da sua remuneração variável de acordo com os cálculos efectuados em conformidade com o novo quadro legal.
K)–A interpretação que o Tribunal a quo faz ao artigo 12.º do Código Civil para justificar a sua decisão é errónea pois, apesar de o desenvolvimento dos actos de liquidação do activo efectuados pelo Apelante terem tido lugar, maioritariamente, no domínio da “lei antiga”, tal não significa que não se possa aplicar ao caso dos autos a “lei nova”.
L)–Nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, dispõe-se que a lei só dispõe para o futuro, o que significa que a lei nova se aplica a quaisquer factos para o futuro e não apenas a factos futuros.
M)–Certo é que, na data da apresentação do requerimento do Apelante – 09.05.2022 – já estavam em vigor as alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022 ao artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial e, sendo essa Lei de aplicação imediata aos processos pendentes após a sua entrada em vigor, tal significa que a mesma tem logo aplicação para o futuro, ou seja, “após a sua entrada em vigor”, como bem determina o artigo 12.º do CC.
N)–Assim, o que há que considerar não é o momento em que ocorrerem a maior parte dos actos de liquidação, mas se, no momento em que o Apelante efectua o pedido da remuneração variável já de acordo com as novas regras, se encontra preenchido o pressuposto do qual a lei nova faz depender a constituição desse direito.
O)–A decisão do Tribunal a quopadece de erro de julgamento, tendo aquele Tribunal interpretando erroneamente o disposto no artigo 12.º do Código Civil e aplicado uma disposição legal que já não estava em vigor à data da prolação do despacho, fazendo ainda tábua rasa do disposto no n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 9/2022, devendo, por isso, ser esse despacho substituído por outro que aplique as novas regras de cálculo constantes do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial e determine o pagamento da remuneração ao Apelante nos termos por si requeridos.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho de 14/07/2022 (ref.ª 417581302).

Foram colhidos os vistos.

Cumpre apreciar.
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2.–Objeto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas a única questão a decidir é a da aplicação no tempo das regras de cálculo da remuneração do administrador da insolvência alteradas pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro.
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3.–Fundamentos de facto
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os constantes do relatório.
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4.–Fundamentos do recurso
O processo de insolvência é um processo especial, regido pelas normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil, nos termos dos arts. 17º nº1 do CIRE[1] e 549º do CPC.

Nos termos do art. 60º do CIRE:
«1-O administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.
2-Quando eleito pela assembleia de credores, a remuneração do administrador da insolvência é a que for prevista na deliberação respectiva.
3-O administrador da insolvência que não tenha dado previamente o seu acordo à remuneração fixada pela assembleia de credores pela actividade de elaboração de um plano de insolvência, de gestão da empresa após a assembleia de apreciação do relatório ou de fiscalização do plano de insolvência aprovado, pode renunciar ao exercício do cargo, desde que o faça na própria assembleia em que a deliberação seja tomada.»

As regras relativas ao montante da remuneração do administrador da insolvência e à sua forma de cálculo constam do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei nº 22/2013 de 26 de fevereiro, mais precisamente do seu artigo 23º, o qual foi alterado pela Lei nº 9/2022, de 11/01 e que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2022.

No caso concreto está em causa a fixação do valor da remuneração variável do administrador da insolvência, nomeado em processo em que ocorreu liquidação do ativo.

O art. 23º do EAJ, na sua versão original prescrevia, quanto a esta matéria:
1–O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, de acordo com o montante estabelecido em portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da justiça e da economia.
2–O administrador judicial provisório ou o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz aufere ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado nas tabelas constantes da portaria referida no número anterior.
3–Para efeito do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização ou em processo de insolvência que envolva a apresentação de um plano de recuperação que venha a ser aprovado, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano, conforme tabela específica constante da portaria referida no n.º 1.
4–Para efeitos do n.º 2, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
5–O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.os 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1.
6–Se, por aplicação do disposto nos números anteriores, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue no exercício das funções.

A norma foi alterada em 2019[2] mas sem qualquer alteração do nº4, assinalando-se que a portaria prevista relativa à forma de cálculo das remunerações nunca veio a ser publicada.
Havia, porém, sido publicada na vigência da Lei nº 32/2004 de 22 de julho, o estatuto do administrador da insolvência revogado pela Lei nº 22/2013, a Portaria 51/2005, de 20 de janeiro, que estabelecia, no seu nº3 e tabelas anexas, a forma de cálculo da remuneração variável do administrador da insolvência em processos de liquidação que, para este tipo de processos, continuou a ser utilizada, por ser a única forma de cálculo legalmente prevista e cuja formulação se adequava aos critérios previstos na lei nº 22/2013.

O artigo 23º do EAJ vem a ser alterado pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, cujo art. 5º deu ao preceito a seguinte redação:
«1– O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro).
2– Caso o processo seja tramitado ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração referida no número anterior é reduzida para um quarto.
3– Sem prejuízo do direito à remuneração variável, calculada nos termos dos números seguintes, no caso de o administrador judicial exercer as suas funções por menos de seis meses devido à sua substituição por outro administrador judicial, aquele apenas aufere a primeira das prestações mencionadas no n.º 2 do artigo 29.º

4– Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a)- 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b)- 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.

5– Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
6– Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7– O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
8– Se, por aplicação do disposto nos números anteriores, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue no exercício das funções.
9– À remuneração devida ao administrador judicial comum para os devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo, nomeado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplica-se o limite referido no número anterior acrescido de (euro) 10 000 por cada um dos devedores do mesmo grupo.
10– A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).
11– No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.»

Já Antunes Varela[3] ensinava que, em primeiro lugar, a solução dos problemas de aplicação da lei processual no tempo “…vem a cada passo formulada na nova lei através de disposições transitórias especiais destinadas a definir o seu campo temporal de aplicação.”, e que existem ainda regras transitória setoriais ou parcelares e, finalmente, o regime geral “aplicável ao comum das leis processuais sempre que não haja disposição transitória, especial ou sectorial em contrário.”

Como sintetizado no Ac. STJ de 20/03/2022 (Jorge Arcanjo)[4], “Na sucessão de leis no tempo, o problema terá que ser resolvido, em primeiro lugar, através de normas de direito transitório especial (ou seja, normas da própria lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo), depois pelas normas de direito transitório sectorial (ou seja, que regulem na aplicação no tempo das leis sobre certa matéria), e finalmente por normas de direito transitório geral (ou seja, que definam o modo de aplicação no tempo da generalidade das leis, independentemente da matéria sobre que versam).
Só na ausência de qualquer regime especial é que se deve indagar, sucessivamente, da existência de normas de direito transitório sectorial ou de direito transitório geral - como é o regime fixado no art.12 do CC - para, na sua falta, recorrer aos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência.”

Teremos, assim que, em primeiro lugar, recorrer ao texto da Lei nº 9/2022, onde encontramos a seguinte regra de direito transitório:

Artigo 10.º
Regime transitório
«1- Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a presente lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor.
2- O disposto nos artigos 17.º-C a 17.º-F, 17.º-I e 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com a redação introduzida pela presente lei, apenas se aplica aos processos especiais de revitalização instaurados após a sua entrada em vigor.
3- Nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data de entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data de entrada em vigor da presente lei, considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei.
4- O disposto no número anterior não prejudica a tramitação e o julgamento, na primeira instância ou em fase de recurso, de quaisquer questões pendentes relativas ao incidente de exoneração do passivo restante, tais como as referentes ao valor do rendimento indisponível, termos de afetação dos rendimentos do devedor ou pedidos de cessação antecipada do procedimento de exoneração.»

Como se verifica da leitura do preceito, o legislador tomou posição expressa sobre a aplicação das regras da presente lei aos processos em vigor, replicando a regra geral de aplicação da lei processual no tempo estabelecida entre nós: a aplicação imediata da lei nova[5][6] nos casos não previstos nos nºs 2 a 4.

A norma transitória em causa não resolveu todos os problemas de aplicação da lei no tempo de forma imediata. Para concluir pela sua aplicabilidade sem qualquer outra indagação teremos que começar por determinar se a regra do art. 5º (a alteração do art. 23º EAJ quanto à forma de cálculo da remuneração variável) é uma regra processual, atenta a circunscrição que a lei efetuou à aplicabilidade nos processos pendentes.

As normas em questão são, claramente, normas adjetivas ou processuais. A lei manteve o direito à remuneração dos administradores e os respetivos critérios apenas tendo alterado a forma de cálculo. Pese embora conduza a resultados diferentes (conforme uma ou outra forma de cálculo), respeita à mesma atividade e remunera as mesmas funções, tenham elas sido exercidas ao abrigo da lei nova ou velha.

Seguidamente há que analisar a questão da aplicação aos processos pendentes e alcance da expressão.

Toda a doutrina processual mais abalizada distingue entre a aplicabilidade da lei no tempo aos atos processuais e aos efeitos dos atos processuais.

Quanto aos atos processuais, a regra é da aplicação imediata da lei nova (art. 12º nº1, 1ª parte do CC), “o que implica a observância do princípio tempus regit actum na sua dupla vertente: a de que os actos processuais são regidos pela lei vigente no momento da sua realização e a de que os actos praticados no domínio da lei antiga permanecem admissíveis e válidos.”[7]

No tocante aos efeitos dos atos processuais aplicam-se as regras do art. 12º do CC – o respeito pelos atos processuais já praticados pode exigir que se pratiquem atos ou se sigam trâmites previstos na lei antiga.

No caso, a fixação da remuneração variável é, claramente, um ato processual e não o efeito de um (ou mais) atos processuais.

Remunera-se o administrador da insolvência pelas funções exercidas, compreendendo todos os atos praticados no exercício das suas funções. O direito à remuneração variável não nasce com a prática de atos processuais concretos, mas sim com a nomeação e exercício de funções, ao longo de todo o processo. Logo, não pode considerar-se a fixação da remuneração variável como um efeito de atos processuais anteriores, constituindo, antes, um ato processual, necessário para chegar ao apuro do montante final a distribuir pelos credores e ao fim do processo, quer em sentido de cumprimento das finalidades do processo, quer em sentido estrito como ato a praticar necessariamente antes do rateio final.

Assim, sem qualquer dúvida, a regra do art. 10º nº1 da Lei nº 9/2022 é aplicável a esta previsão concreta e, desde que o ato de fixação da remuneração seja praticado após a entrada em vigor da lei – 11 de abril de 2022, nos termos do seu artigo 12º -, como o presente o foi, deve ser efetuado o cálculo segundo as regras em vigor ao tempo.

Mesmo que aplicássemos ao caso o disposto no art. 12º do CC, ignorando a existência de uma regra transitória especial, como parece ter sido a solução dada pelo tribunal recorrido, chegaríamos à mesma conclusão:
o ato foi praticado depois da entrada em vigor da lei, não afetando quaisquer efeitos já produzidos. Note-se que sendo a remuneração variável, o direito existe desde o exercício de funções, mas só se constitui após fixada e vencida (nos termos do art. 29º nº5 do Estatuto, sem prejuízo do nº7 do art. 23º)cfr. nº1 do art. 12º do CC;
não se trata de lei que disponha sobre condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos (nos termos já explicitados) – 12º nº2, 1ª parte do CC;
não existe dúvida na aplicabilidade imediata dada a existência de norma especial transitória, uma vez que, como refere Maria João Matias Fernandes[8] “Existirá dúvida sempre que o legislador não edite uma solução particular de direito transitório.” – art. 12º nº1, 1ª parte, do CC;
finalmente, ainda que assim se considerasse, incide sobre uma relação já constituída, abstraindo dos factos que lhe deram origem como é o caso das relações duradouras, exemplo referido por António Menezes Cordeiro[9] - art. 12º nº2, 2ª parte do CC.
A conclusão a retirar é, sem qualquer dúvida, pela aplicabilidade imediata da lei nova, pelo que a remuneração variável do administrador da insolvência deveria ter sido fixada à luz da redação dada pela Lei nº9/2022 ao art. 23º do EAJ, e não nos termos do art. 23º na versão alterada por aquela lei, impondo-se, assim, a revogação da decisão recorrida.
Aqui chegados, atento o disposto no art. 665º nº1 do CPC, e face ao pedido expresso do recorrente, em sede de recurso, importa, em juízo de substituição, fixar a remuneração do Sr. Administrador da Insolvência nos termos da nova redação do art. 23º do EAJ, caso estejam disponíveis todos os elementos necessários para o efeito.

Assim, e recorrendo aos elementos dos autos, nomeadamente o apenso de prestação de contas, de reclamação de créditos e o processo principal:
Foi apurado o valor total de receitas de € 436.175,47.
Deste valor deduzem-se as dívidas da massa insolvente, tal como validadas em sede de prestação de contas que no caso concreto somam € 4.179,26, correspondentes a custas do processo de insolvência de € 4.172,00 (conta de 06/05/2022 e art. 51º, nº1, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e despesas da massa insolvente de € 7,26;
O resultado da liquidação é de € 431.996,21.
A remuneração corresponde a 5% deste valor, ou seja, € 21.599,81.
Passando ao cálculo da majoração prevista no nº7 do art. 23º, deduzem-se do resultado da liquidação a remuneração fixa e a remuneração variável achada - € 431.996,21 – (2.460,00 + 21.599,81+IVA de € 4.967,95) – achando-se o montante a distribuir pelos credores, ou seja o que vai constituir o valor dos créditos satisfeitos, que é de € 402.968,45. 5% deste montante corresponde a € 20.148,42.
Assim, fixa-se em € 41.748,23 a remuneração variável do Sr. Administrador da Insolvência.

A presente apelação procede, assim, integralmente.
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Não são devidas custas na presente instância recursiva, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso, este não envolveu diligências geradoras de despesas e não há lugar a custas de parte por não ter sido apresentada resposta às alegações de recurso – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[10].
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5.–Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em, julgando integralmente procedente a apelação:
a)-Revogar a decisão recorrida;
b)-Fixar a remuneração variável do Sr. Administrador da Insolvência em € 41.748,23.
Sem custas na presente instância recursiva.
Notifique.



Lisboa, 20 de setembro de 2022



Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes



[1]Diploma ao qual respeitarão todas as normas doravante citadas sem outra indicação.
[2]Decreto Lei nº 52/2019, de 17 de abril.
[3]Em Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora,1985, pgs. 46 e 47.
[4]Disponível, como os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt.
[5]Cfr. Castro Mendes e Teixeira de Sousa em Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, pg. 74, Antunes Varela e Sampaio e Nora, local citado, pg. 47, Manuel Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pgs. 41 e 42, entre outros.
[6]Como explicam, por exemplo Antunes Varela e Manuel de Andrade, locais citados, a opção legislativa entre nós, desde o Código de 1939, foi de não fixar na lei doutrina geral sobre a aplicação das leis processuais no tempo.
[7]Castro Mendes e Teixeira de Sousa em Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, pg. 75.
[8]Em Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pg. 61.
[9]Em Código Civil Comentado – I - Parte Geral, CIDP/FDUL, Almedina, 2020, Coordenação de António Menezes Cordeiro, pg. 115.
[10]Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.