Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOSÉ MACHADO | ||
Descritores: | GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO ALEGAÇÃO DO DOLO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | I.– O crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo artigo 199.°, n° 1, al. a), do Código Penal satisfaz-se com o chamado dolo genérico e sendo um crime de mera actividade, não exige a intenção de atingir um determinado resultado, que é estranho ao tipo objectivo. II.– Os factos/elementos que integram o dolo têm de ser descritos na acusação, não sendo uma mera emanação da factualidade objectiva e, consequentemente, têm de estar articulados no requerimento de abertura da instrução, independentemente de saber quais sejam tais factos. III.–O dolo, enquanto conhecimento (elemento cognitivo ou intelectual) e vontade (elemento volitivo) de realização do tipo objectivo é, com muita frequência alegado, pelo próprio Ministério Público, com recurso à utilização de fórmulas tabelares ou “jargões” aplicados genericamente a qualquer crime e a quaisquer circunstâncias, como é, por exemplo o de “O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente” e é, como tal, pacificamente aceite pelos tribunais. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I–Relatório
1.– Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público após o encerramento do inquérito, relativamente a A, veio a assistente B requerer a abertura de instrução, com vista a obter a pronúncia daquela pela prática dos crimes de denúncia caluniosa e de gravações e fotografias ilícitas, previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos. 365.°, n° 1 e 199.°, n° 1, al. a), ambos do Código Penal. 2.– Uma vez realizada a instrução foi proferida decisão instrutória de não pronúncia da arguida. 3.– A assistente recorre dessa decisão, na parte respeitante à não pronúncia do crime de gravações e fotografias ilícitas; nos termos constantes da motivação junta aos autos, da qual extrai as seguintes conclusões: (transcrição) 1º- As questões que a recorrente vem colocar no presente recurso são a de saber 1) se o requerimento de abertura de instrução contém a narração de factos suficientes para o preenchimento dos elementos subjectivos do crime de gravações e fotografias ilícitas; 2) se o despacho recorrido se encontra viciado de irregularidade por falta de fundamentação da decisão sobre os factos considerados não indiciados; 3) se se mostram indiciados os factos constantes dos n°s 50 a 53 e 57 do mesmo requerimento, e, em decorrência, 4) se a arguida A deve ser pronunciada pelo referido ilícito criminal. 2º- A assistente, ora recorrente, no seu RAI, imputou à arguida a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e. p. pelo art. 199°, n° 1, alínea a), do Código Penal, afirmando no n° 57 que a mesma “agiu voluntária, livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei". 3º- O despacho recorrido entendeu que “o requerimento de abertura de instrução não contém a narração dos factos relevantes para a imputação do aludido crime [cujo tipo subjectivo exige a verificação do dolo], designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à atuação do agente, não bastando, para o efeito, referir” o que constava do citado n° 57. 4º- O crime de gravações e fotografias ilícitas apenas é punível a título de dolo, não de negligência, mas o seu tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo, não dependendo de qualquer elemento subjectivo adicional. 5º- O crime de gravações e fotografias ilícitas é um crime de mera actividade, não é um crime de resultado, pelo que a vontade de atingir um resultado não faz parte do dolo do tipo: a consumação do crime verifica-se apenas pela mera execução de um comportamento humano, não se colocando o problema da imputação objectiva do resultado à acção. 6º- O dolo é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como «o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito»: o elemento intelectual (o agente agiu a perceber o que fez), o elemento volitivo (o agente quis fazer o que fez) e o elemento emocional (o agente agiu com a consciência de que praticava um crime). 7º- Estes elementos, que constituem os elementos subjectivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre, voluntária ou deliberadamente, conscientemente e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei. 8º- O requerimento de abertura de instrução contém, portanto a alegação de todos os factos relevantes para o preenchimento do elemento subjectivo (dolo) do crime. 9º- Errou o despacho recorrido ao assim não entender, violando o disposto nos arts. 14° e 199°, n° 1, do Código Penal e nos arts. 308°, n°s 1 e 2, e 283°, n° 2, alínea b), do CPP. 10º- O despacho de não pronúncia considerou ainda não indiciados os factos constantes dos n°s 50 a 53 do requerimento de abertura de instrução, mas não aduziu qualquer razão para considerar não indiciada a referida factualidade, pelo que padece do vício de falta de fundamentação, legalmente exigida pelo n° 5 do art. 97° do CPP. 11°- Este vício constitui irregularidade que influi na decisão da causa, por não permitir conhecer o iter decisório que culminou na conclusão de que aqueles factos não se mostrariam suficientemente indiciados, e, portanto, afecta o valor do acto praticado, irregularidade que pode ser oficiosamente conhecida e sanada, nos termos do art. 123°, n°s 1 e 2, do CPP, declarando-se a invalidade da decisão instrutória recorrida. 12º- Constam dos autos todos os elementos bastantes para o tribunal corrigir o vício da decisão impugnada (os factos indiciários, descritos no RAI, indispensáveis para imputar à arguida a prática do crime e os meios de prova que os sustentam), não se mostrando necessário utilizar o mecanismo do reenvio para a primeira instância (cf. arts. 426°, n° 1, a contrario, e 431°, alínea a), do CPP). 13º- Este Venerando Tribunal pode sanar a irregularidade em causa, substituir-se ao tribunal recorrido e fazer ele próprio o exame crítico e valoração da prova produzida, pronunciando-se sobre a suficiência dos indícios para sujeitar a arguida a julgamento e, consequentemente, proferir decisão de pronúncia. 14º- Quando, porém, assim se não entenda, deve ser determinada ao tribunal recorrido a substituição da decisão impugnada por outra que proceda à reparação da irregularidade consistente na falta de fundamentação da decisão sobre os factos que foram considerados indiciados e não indiciados, por referência ao RAI, e na falta de análise das provas produzidas. 15º- A factualidade narrada nos n°s 50 a 56 do RAI - que preenche o tipo objectivo do crime de gravações ilícitas - encontra suporte claro nos elementos probatórios recolhidos no inquérito, nomeadamente nas declarações da própria arguida A, a fls. 9-10 e 23, da ora recorrente a fls. 32 e 34 e da testemunha MSA... a fls. 91 e, por fim, na documentada entrega nos autos pela arguida da pen drive que contém a gravação e no respectivo teor. 16º- O facto alegado no n° 57 do RAI, que preenche o elemento subjectivo (dolo) do tipo, enquanto facto interno do agente, a nível probatório pode ser deduzido, por presunção natural, dos factos externos, objectivos, narrados nos n°s 50 a 56, conjugada com o princípio da normalidade e as chamadas máximas da vida e regras da experiência. 17º- “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, devendo o juiz pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 286°, n° 1, e 308°, n° 1, do CPP). 18º- Os indícios existentes nos autos são suficientes para se considerar muito provável a condenação da arguida A pela prática do crime de gravações ilícitas, certamente mais provável do que a sua absolvição, pelo que, sendo dado provimento ao presente recurso, a identificada arguida deve ser pronunciada pelo crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e. p. pelo art. 199°, n° 1, alínea a), do Código Penal.
4.–O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, nos termos constantes de fls. 401 a 405, finalizando a sua resposta com as seguintes conclusões: 1.-A assistente interpôs recurso da decisão proferida nos presentes autos em 30- 09-2022 na parte em não pronunciou a arguida A pela prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas, previsto e punido pelo art. 199.s, n.2l, alínea a) do Código Penal. 2.-Analisado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, ora recorrente, constata-se que tal requerimento não cumpre cabalmente os requisitos exigidos pelo art. 287.º, n.º2 do Código de Processo Penal, na justa medida em que não contém, na sua descrição, todos os elementos do tipo subjectivo do crime de gravações ilícitas imputado pela recorrente à arguida. 3.- No requerimento de abertura de instrução constante dos autos, relativamente ao elemento subjectivo do crime de gravações ilícitos, refere-se, no ponto 57., apenas que A arguida agiu voluntária, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei. 4.- Tal expressão é manifestamente insuficiente para considerar devidamente descrito o elemento subjectivo do crime de gravações ilícitas, ainda que cumprido numa visão minimalista, pelo que outra solução não tinha a Sra. Juiz de Instrução que não a de não pronunciar a arguida pela prática de tal ilícito. 5.- No que tange aos factos descritos nos pontos 50 a 53 e 57 do RAI, efectivamente a decisão recorrida limita-se a afirmar que, atenta a ausência de prova suficiente os considerou como não indiciados, sem que tenham sido explicitadas as razões que levaram a tal conclusão. 6.-Tal falta de fundamentação, nesta parte, da decisão recorrida, consubstancia uma irregularidade, pelo que a sua arguição teria de ocorrer no prazo previsto para no art. 123.º do Código de Processo Penal, o que não ocorreu, pelo que a invocada irregularidade se encontra sanada. 7.- Sem prejuízo do supra exposto, importa dizer que não nos parece que a apontada irregularidade possa afectar o valor do acto praticado na justa medida em que, mesmo estando devidamente fundamentada a decisão recorrida na parte em que se considerou como não suficientemente indiciados os factos narrados nos pontos 50 a 53 e 57 do RAI, sempre a decisão a proferir, relativamente ao imputado crime de gravações ilícitas, seria a de não pronúncia, atenta a falta de narração no RAI de elementos suficientes para preenchimento do tipo subjectivo do ilícito.
5.–A arguida respondeu ao recurso pedindo a sua improcedência. 6.–Neste tribunal, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado procedente. 7.–Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado C.P.P.), procedeu-se a exame preliminar, no qual se determinou a remessa dos autos à conferência, após vistos legais, a fim de o recurso aí ser julgado, nos termos do art.º 419º, nº3, al. b) do CPP, cumprindo agora decidir.
II–Fundamentação 1.- Das questões a decidir: Nos termos do nº 1 do art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P. a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. - se a arguida deve ser pronunciada pela prática de tal crime.
2.–Apreciação 2.1.- Da alegada irregularidade da decisão instrutória. O requerimento para abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente, com a finalidade de obter uma decisão instrutória, que pronuncie o arguido pelos factos pelos quais o Ministério Público não acusou, tem de constituir uma verdadeira acusação, devendo conter os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos (típicos) objectivos e subjectivos do tipo criminal que se considere ter sido preenchido. (artigo 283.º do C.P. P.).
III–Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido na parte em que não pronunciou a arguida A, pelo crime de gravações e fotografias ilícitas, o qual deverá ser substituído por outro que pronuncie a arguida pelos factos e qualificação jurídica constantes do requerimento de abertura da instrução. |