Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
100/19.3PFCSC.L1-5
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ALEGAÇÃO DO DOLO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo artigo 199.°, n° 1, al. a), do Código Penal satisfaz-se com o chamado dolo genérico e sendo um crime de mera actividade, não exige a intenção de atingir um determinado resultado, que é estranho ao tipo objectivo.

II. Os factos/elementos que integram o dolo têm de ser descritos na acusação, não sendo uma mera emanação da factualidade objectiva e, consequentemente, têm de estar articulados no requerimento de abertura da instrução, independentemente de saber quais sejam tais factos.

III.O dolo, enquanto conhecimento (elemento cognitivo ou intelectual) e vontade (elemento volitivo) de realização do tipo objectivo é, com muita frequência alegado, pelo próprio Ministério Público, com recurso à utilização de fórmulas tabelares ou “jargões” aplicados genericamente a qualquer crime e a quaisquer circunstâncias, como é, por exemplo o de “O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente” e é, como tal, pacificamente aceite pelos tribunais.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório

1. Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público após o encerramento do inquérito, relativamente a A, veio a assistente B requerer a abertura de instrução, com vista a obter a pronúncia daquela pela prática dos crimes de denúncia caluniosa e de gravações e fotografias ilícitas, previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos. 365.°, n° 1 e 199.°, n° 1, al. a), ambos do Código Penal.

2. Uma vez realizada a instrução foi proferida decisão instrutória de não pronúncia da arguida.

3. A assistente recorre dessa decisão, na parte respeitante à não pronúncia do crime de gravações e fotografias ilícitas; nos termos constantes da motivação junta aos autos, da qual extrai as seguintes conclusões: (transcrição)

1º- As questões que a recorrente vem colocar no presente recurso são a de saber 1) se o requerimento de abertura de instrução contém a narração de factos suficientes para o preenchimento dos elementos subjectivos do crime de gravações e fotografias ilícitas; 2) se o despacho recorrido se encontra viciado de irregularidade por falta de fundamentação da decisão sobre os factos considerados não indiciados; 3) se se mostram indiciados os factos constantes dos n°s 50 a 53 e 57 do mesmo requerimento, e, em decorrência, 4) se a arguida A deve ser pronunciada pelo referido ilícito criminal.

2º- A assistente, ora recorrente, no seu RAI, imputou à arguida a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e. p. pelo art. 199°, n° 1, alínea a), do Código Penal, afirmando no n° 57 que a mesma “agiu voluntária, livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei".

3º- O despacho recorrido entendeu que “o requerimento de abertura de instrução não contém a narração dos factos relevantes para a imputação do aludido crime [cujo tipo subjectivo exige a verificação do dolo], designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à atuação do agente, não bastando, para o efeito, referir” o que constava do citado n° 57.

4º- O crime de gravações e fotografias ilícitas apenas é punível a título de dolo, não de negligência, mas o seu tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo, não dependendo de qualquer elemento subjectivo adicional.

5º- O crime de gravações e fotografias ilícitas é um crime de mera actividade, não é um crime de resultado, pelo que a vontade de atingir um resultado não faz parte do dolo do tipo: a consumação do crime verifica-se apenas pela mera execução de um comportamento humano, não se colocando o problema da imputação objectiva do resultado à acção.

6º- O dolo é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como «o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito»: o elemento intelectual (o agente agiu a perceber o que fez), o elemento volitivo (o agente quis fazer o que fez) e o elemento emocional (o agente agiu com a consciência de que praticava um crime).

7º- Estes elementos, que constituem os elementos subjectivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre, voluntária ou deliberadamente, conscientemente e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

8º- O requerimento de abertura de instrução contém, portanto a alegação de todos os factos relevantes para o preenchimento do elemento subjectivo (dolo) do crime.

9º- Errou o despacho recorrido ao assim não entender, violando o disposto nos arts. 14° e 199°, n° 1, do Código Penal e nos arts. 308°, n°s 1 e 2, e 283°, n° 2, alínea b), do CPP.

10º- O despacho de não pronúncia considerou ainda não indiciados os factos constantes dos n°s 50 a 53 do requerimento de abertura de instrução, mas não aduziu qualquer razão para considerar não indiciada a referida factualidade, pelo que padece do vício de falta de fundamentação, legalmente exigida pelo n° 5 do art. 97° do CPP.

11°- Este vício constitui irregularidade que influi na decisão da causa, por não permitir conhecer o iter decisório que culminou na conclusão de que aqueles factos não se mostrariam suficientemente indiciados, e, portanto, afecta o valor do acto praticado, irregularidade que pode ser oficiosamente conhecida e sanada, nos termos do art. 123°, n°s 1 e 2, do CPP, declarando-se a invalidade da decisão instrutória recorrida.

12º- Constam dos autos todos os elementos bastantes para o tribunal corrigir o vício da decisão impugnada (os factos indiciários, descritos no RAI, indispensáveis para imputar à arguida a prática do crime e os meios de prova que os sustentam), não se mostrando necessário utilizar o mecanismo do reenvio para a primeira instância (cf. arts. 426°, n° 1, a contrario, e 431°, alínea a), do CPP).

13º- Este Venerando Tribunal pode sanar a irregularidade em causa, substituir-se ao tribunal recorrido e fazer ele próprio o exame crítico e valoração da prova produzida, pronunciando-se sobre a suficiência dos indícios para sujeitar a arguida a julgamento e, consequentemente, proferir decisão de pronúncia.

14º- Quando, porém, assim se não entenda, deve ser determinada ao tribunal recorrido a substituição da decisão impugnada por outra que proceda à reparação da irregularidade consistente na falta de fundamentação da decisão sobre os factos que foram considerados indiciados e não indiciados, por referência ao RAI, e na falta de análise das provas produzidas.

15º- A factualidade narrada nos n°s 50 a 56 do RAI - que preenche o tipo objectivo do crime de gravações ilícitas - encontra suporte claro nos elementos probatórios recolhidos no inquérito, nomeadamente nas declarações da própria arguida A, a fls. 9-10 e 23, da ora recorrente a fls. 32 e 34 e da testemunha MSA... a fls. 91 e, por fim, na documentada entrega nos autos pela arguida da pen drive que contém a gravação e no respectivo teor.

16º- O facto alegado no n° 57 do RAI, que preenche o elemento subjectivo (dolo) do tipo, enquanto facto interno do agente, a nível probatório pode ser deduzido, por presunção natural, dos factos externos, objectivos, narrados nos n°s 50 a 56, conjugada com o princípio da normalidade e as chamadas máximas da vida e regras da experiência.

17º- “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, devendo o juiz pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 286°, n° 1, e 308°, n° 1, do CPP).

18º- Os indícios existentes nos autos são suficientes para se considerar muito provável a condenação da arguida A pela prática do crime de gravações ilícitas, certamente mais provável do que a sua absolvição, pelo que, sendo dado provimento ao presente recurso, a identificada arguida deve ser pronunciada pelo crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e. p. pelo art. 199°, n° 1, alínea a), do Código Penal.

4.O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, nos termos constantes de fls. 401 a 405, finalizando a sua resposta com as seguintes conclusões:

1.-A assistente interpôs recurso da decisão proferida nos presentes autos em 30- 09-2022 na parte em não pronunciou a arguida A pela prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas, previsto e punido pelo art. 199.s, n.2l, alínea a) do Código Penal.

2.-Analisado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, ora recorrente, constata-se que tal requerimento não cumpre cabalmente os requisitos exigidos pelo art. 287.º, n.º2 do Código de Processo Penal, na justa medida em que não contém, na sua descrição, todos os elementos do tipo subjectivo do crime de gravações ilícitas imputado pela recorrente à arguida.

3.- No requerimento de abertura de instrução constante dos autos, relativamente ao elemento subjectivo do crime de gravações ilícitos, refere-se, no ponto 57., apenas que A arguida agiu voluntária, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei.

4.- Tal expressão é manifestamente insuficiente para considerar devidamente descrito o elemento subjectivo do crime de gravações ilícitas, ainda que cumprido numa visão minimalista, pelo que outra solução não tinha a Sra. Juiz de Instrução que não a de não pronunciar a arguida pela prática de tal ilícito.

5.- No que tange aos factos descritos nos pontos 50 a 53 e 57 do RAI, efectivamente a decisão recorrida limita-se a afirmar que, atenta a ausência de prova suficiente os considerou como não indiciados, sem que tenham sido explicitadas as razões que levaram a tal conclusão.

6.-Tal falta de fundamentação, nesta parte, da decisão recorrida, consubstancia uma irregularidade, pelo que a sua arguição teria de ocorrer no prazo previsto para no art. 123.º do Código de Processo Penal, o que não ocorreu, pelo que a invocada irregularidade se encontra sanada.

7.- Sem prejuízo do supra exposto, importa dizer que não nos parece que a apontada irregularidade possa afectar o valor do acto praticado na justa medida em que, mesmo estando devidamente fundamentada a decisão recorrida na parte em que se considerou como não suficientemente indiciados os factos narrados nos pontos 50 a 53 e 57 do RAI, sempre a decisão a proferir, relativamente ao imputado crime de gravações ilícitas, seria a de não pronúncia, atenta a falta de narração no RAI de elementos suficientes para preenchimento do tipo subjectivo do ilícito.
Deve manter-se a decisão recorrida, negando-se provimento ao presente recurso.

5.A arguida respondeu ao recurso pedindo a sua improcedência.

6.Neste tribunal, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado procedente.

7.Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado C.P.P.), procedeu-se a exame preliminar, no qual se determinou a remessa dos autos à conferência, após vistos legais, a fim de o recurso aí ser julgado, nos termos do art.º 419º, nº3, al. b) do CPP, cumprindo agora decidir.

II–Fundamentação

1.- Das questões a decidir:

Nos termos do nº 1 do art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P. a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
É pacífico o entendimento de que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, o âmbito dos recursos é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

Atentas as conclusões apresentadas pela recorrente, importa apreciar:
- se a decisão padece de irregularidade, por falta de fundamentação
- se do requerimento de abertura da instrução constam todos os elementos respeitantes ao tipo subjectivo do crime p. e p. pelo artigo 199.º do Código Penal.

- se a arguida deve ser pronunciada pela prática de tal crime.

2.–Apreciação

2.1.- Da alegada irregularidade da decisão instrutória.
A decisão instrutória, na parte que aqui releva é do seguinte teor:
«Cumpre ainda e na sequência do requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente B, verificar se existem ou não nos autos indícios suficientes da prática pela arguida A dos crimes de denúncia caluniosa e de gravações e fotografias ilícitas, previstos e punidos, respetivamente pelos arts. 365.°, n° 1 e 199.°, n° 1, al. a), ambos do Código Penal.
(….)
No tocante ao crime de gravações e fotografias ilícitas, cumpre referir em primeiro lugar que os factos imputados a A e enunciados no requerimento de abertura de instrução não contemplam o dolo do crime em apreço.
Na verdade, o requerimento de abertura de instrução apresentado não contém qualquer menção quanto ao dolo do crime de gravações e fotografias ilícitas que a assistente B pretende imputar à arguida A.
Ora, “ (...) Na instrução, o juiz está limitado pelos fatos da acusação e, como entendemos, também pela sua qualificação jurídica ” (cfr. Prof Germano da Silva in “Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 161).
O tipo subjetivo do crime de gravações e fotografias ilícitas exige a verificação do dolo, enquanto conhecimento dos elementos objetivos do tipo e vontade de praticar um ato ou de atingir um resultado.
No caso vertente, o requerimento de abertura de instrução não contém a narração dos fatos relevantes para a imputação do aludido crime, designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à atuação do agente, não bastando, para o efeito, referir que “A arguida agiu voluntária, livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei” (cfr. n.° 57 do requerimento apresentado).
Em face do exposto, resulta que a arguida nunca poderia ser pronunciada pela prática do aludido crime de gravações e fotografias ilícitas com base no requerimento para abertura de instrução tal como está formulado pela assistente B.
Deste modo, atento o exposto e a ausência de prova suficiente, considero não indiciados os factos constantes dos n°s. 46 a 48 e 50 a 53 e 57 do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente B.»

Dispõe o artigo 308.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe de “Despacho de pronúncia ou de não pronúncia”:
1- Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2- É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.
3- (….)
De acordo com a remissão prevista no n.º 2, o despacho deve conter, sob pena de nulidade, os elementos previstos nas alíneas a) a g) do n.º 3 do artigo 283.º, entre os quais se inclui, a narração dos factos que fundamentam o aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, sem prejuízo, porém, do disposto na segunda parte do n.º1 do artigo 307.º, ou seja, sem prejuízo de o juiz poder fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.
Embora essa remissão do n.º 2 do artigo 308.º, ao referir-se ao despacho referido no n.º 1 do mesmo preceito legal, que engloba tanto o despacho de pronúncia como o de não pronúncia, pareça abranger ambos, entendemos que a remissão apenas envolve o despacho de pronúncia. Esta conclusão deriva do facto de o preceito que se considera ser aplicável diz respeito à acusação, relativamente à qual se compreende que tenha requisitos em parte equivalentes aos do despacho de pronúncia, e não ao despacho de arquivamento, a que se refere o artigo 277.º do Código.
Da falta de rigor da remissão não pode extrair-se a aplicação de um regime que estipula a nulidade de um despacho de não pronúncia ao qual são até inaplicáveis muitos dos requisitos enunciados nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º.
Isto não quer dizer que o despacho de não pronúncia não deva ser fundamentado, de facto e de direito, como é exigido pelo artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, sob pena de irregularidade, dependente de arguição no quadro do artigo 123.º, n.º1 do Código de Processo Penal (neste sentido cf. o acórdão da Relação do Porto, de 10/09/2008, Processo 0813142, em www.dgsi.pt).
No caso dos autos, a Sra. Juíza de instrução não faz uma descrição dos factos indiciados e dos factos não indiciados, limitando-se a afirmar que o requerimento de abertura de instrução não contém a narração dos fatos relevantes para a imputação do crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo artigo 199.°, n° 1, al. a), do Código Penal, designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à atuação do agente, não bastando, para o efeito, referir que “A arguida agiu voluntária, livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei”. Acrescenta, em jeito de conclusão, a ausência de prova suficiente, sem concretizar se essa ausência se refere ao elemento objectivo do tipo, cujos indícios nunca chega sequer a apreciar, se ao elemento subjectivo.
O que torna o seu despacho irregular, por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 97.º, n.º 5 e 118.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.
Uma vez que a recorrente não arguiu tempestivamente tal irregularidade e não é caso da sua reparação oficiosa, mostra-se a mesma sanada.

2.2.–Da existência ou não dos elementos respeitantes ao tipo subjectivo do crime p. e p. pelo artigo 199.º do Código Penal e da pronúncia ou não da arguida.

O requerimento para abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente, com a finalidade de obter uma decisão instrutória, que pronuncie o arguido pelos factos pelos quais o Ministério Público não acusou, tem de constituir uma verdadeira acusação, devendo conter os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos (típicos) objectivos e subjectivos do tipo criminal que se considere ter sido preenchido. (artigo 283.º do C.P. P.).
Conforme refere o Prof.º Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Verbo, III Vol., pág. 134 “o requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta”.
Os factos/elementos que integram o dolo têm, pois, de ser descritos na acusação, não sendo uma mera emanação da factualidade objectiva e, consequentemente, têm de estar articulados no requerimento de abertura da instrução, independentemente de saber quais sejam tais factos.
O STJ fixou já jurisprudência através do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015 (publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 18, de 27 de Janeiro de 2015) no sentido de que a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo, não pode ser integrada, no julgamento, por recurso ao mecanismo da alteração não substancial dos factos.
O dolo, enquanto conhecimento (elemento cognitivo ou intelectual) e vontade (elemento volitivo) de realização do tipo objectivo é, com muita frequência alegado, pelo próprio Ministério Público, com recurso à utilização de fórmulas tabelares ou “jargões” aplicados genericamente a qualquer crime e a quaisquer circunstâncias, como é, por exemplo o de “O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente” e é como tal pacificamente aceite pelos tribunais.

No caso dos autos, a assistente, no requerimento que formulou para abertura da instrução, alegou a seguinte materialidade, que imputa à arguida nos seguintes termos:
«50- No dia 17-02-2019, cerca das 19H00, encontrando-se no patamar do rés-do-chão (hall de entrada) do prédio sito na ..., freguesia de São ... ...-, A, supra id., fazendo uso de telemóvel, gravou palavras ditas por B, dentro de casa desta, sita no rés-do- chão esquerdo do mesmo prédio, à porta fechada.
51- B proferiu essas palavras em conversa com sua mãe, C, e na presença de sua filha, D.
52- Proferiu-as em voz alta por se encontrar enervada e não porque quisesse que as mesmas fossem ouvidas fora da sua residência, não as tendo dirigido nem tendo intenção de as dirigir ao público.
53- Não sabia que as suas palavras estariam a ser gravadas nem deu consentimento para que o fossem, tendo as mesma sido registadas contra sua vontade.
54- No dia 18-02-2019, pelas 13H43, na mesma 56ª Esquadra, perante o agente E, com a matrícula n° ..., A entregou uma folha A4 da qual constava, além do mais, que no dia 17-02-2019, pelas 19H00, a dita B, dentro de sua casa, havia ameaçado que lhe iria partir a boca toda, já que não tinha tido a oportunidade de o fazer anteriormente, e que se fosse preciso iria ao local de trabalho da queixosa e faria um escândalo, palavras de que tinha gravação porque a denunciada tinha feito questão de falar muito alto de maneira que se ouvisse dentro da casa da queixosa, informando que desejava procedimento criminal pelos mesmos.
55- No dia 26-09-2019, pelas 09H53, na Esquadra de Investigação Criminal de Cascais da PSP, perante o agente F, com a matrícula n° ..., compareceu a mesma A, a qual, inquirida como testemunha, protestou juntar gravação áudio feita com o telemóvel, de ameaças proferidas pela denunciada e respeitantes à ocorrência narrada a fls. 10.
56- A juntou efectivamente aos autos pen drive com a aludida gravação.
57- A arguida agiu voluntária, livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei.
58- Pelo exposto, cometeu a arguida, em autoria material e na forma consumada, um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e. p. pelo art. 199°, n° 1, alínea a), do Código Penal.»

O crime em causa satisfaz-se com o chamado dolo genérico e tratando-se de um crime de mera actividade, não tem sentido falar na vontade de atingir um determinado resultado, como se diz no despacho recorrido, já que tal é estranho ao tipo objectivo.

A assistente descreveu a materialidade objectiva da conduta integradora do crime de gravações ilícitas p. e p. pelo artigo 199.º, n.º1 do Código Penal e, ainda que com recurso a um “jargão”, descreveu, também, os factos integradores do dolo, designadamente o elemento volitivo, ao dizer que a arguida agiu de forma voluntária e deliberada, e o elemento cognitivo, ao afirmar que a arguida agiu de forma livre e conscientemente, tendo ainda alegado a consciência da ilicitude.

O que, dada a forma frequente e pacífica como é utilizado esse modo de alegar o dolo nas acusações por crimes dolosos é de aceitar como suficiente. Aliás, essa mesma fórmula foi usada pelo Ministério Público na acusação que deduziu nos autos contra a mesma arguida, pelo crime de dano, ao alegar “A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a conduta é punida e proibida por lei”, acusação essa que a Sra. Juíza de instrução manteve, no âmbito da instrução que foi requerida pela arguida, sem levantar qualquer obstáculo quanto ao elemento subjectivo.

Não se vê, assim, qualquer razão para afastar a pronúncia da arguida com base no argumento invocado no despacho recorrido, de falta de alegação do elemento subjectivo.

Sendo suficiente a alegação dos factos feita pela assistente quanto ao elemento subjectivo e resultando dos autos, designadamente da prova pessoal (declarações da arguida de fls. 23 e da assistente, na qualidade de arguida, de fls. 31 e 32) e da pen junta pela arguida, suficientemente indiciada a materialidade objectiva que a recorrente descreve no requerimento de abertura da instrução, deverá a sra. Juíza a quo proferir nova decisão que pronuncie a arguida pelo crime que lhe é imputado, nos termos e dentro dos limites assinalados no requerimento de abertura de instrução.

Termos em que se impõe dar provimento ao recurso.

III–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido na parte em que não pronunciou a arguida A, pelo crime de gravações e fotografias ilícitas, o qual deverá ser substituído por outro que pronuncie a arguida pelos factos e qualificação jurídica constantes do requerimento de abertura da instrução.
Sem custas.



Lisboa, 7 de Março de 2023


(texto elaborado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2, do C.P.P.)


(Maria José Costa Machado- relatora)
(Carlos Espírito Santo- 1.º adjunto)
(Paulo Duarte Barreto Ferreira - 2.º adjunto)