Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1461/16.1PFLSB.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: DIFAMAÇÃO
INDÍCIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Mantendo-se a matéria indiciária produzida em sede de inquérito e de instrução nos termos mencionados, não se pode efectuar um juízo de prognose condenatório, antes predomina uma razoável, séria mesmo, possibilidade de os arguidos virem a ser absolvidos por esses factos e vestígios probatórios.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


1.Nos presentes autos com o NUIPC 1461/16.1PFLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Instrução Criminal – J3, foi proferido, aos 26/10/2017, despacho de não pronúncia dos arguidos JA, ML e RP.

2.O assistente ALS não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando que seja substituído por outro que pronuncie os arguidos por factos integradores da prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal.

2.1Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

O presente recurso vem interposto do douto Despacho proferido em 26.10.2017 no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz 3, que decidiu não pronunciar os arguidos JA, ML e RP pela prática do crime de difamação que lhes era imputado na acusação particular
" Para sustentar a sua decisão o Tribunal a quo concluiu que "... os arguidos não poderiam em caso algum, por referência às expressões vertidas na acusação particular, preencher com a sua conduta os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de difamação."
Está em causa o "Relatório de Averiguação" de acidente automóvel com data 11.04.2013 com anexos, que foi elaborado pelo perito de seguros RP, sob a supervisão de  e sob a direcção de JA, aqui arguido, em que na página 9 do referido e sob a epígrafe "Factos Provados" fez-se constar que "Houve tentativa por parte do CVT em apresentar faltas testemunhas. (Sr. IM e VM) ".
Esses factos falsos são ofensivos da honra e do bom nome de outrem como é o caso do assistente e não se almeja, que tais factos foram proferidos na prossecução de um interesse legitimo.
5ªNão existindo quaisquer factos que possam suportar as expressões que a este respeito ficaram a constar no "Relatório de Averiguação", e que passaram a ser mais um elemento a ser considerado na decisão sobre a imputação da responsabilidade pelo sinistro, que como se sabe, injustamente, recaiu sobre o assistente.
Discorda-se pois e absoluto que para além de expressões "algo desagradáveis mas compreensíveis", venha também entendido que se enquadre tal imputação num quadro de normalidade da "vida em sociedade" com ocorrência de "alguma conflitualidade entre as pessoas", que se insere no quadro das "frequentes desavenças, lesões de interesses alheios, etc. que provocam animosidade", que "uma pessoa que se sente prejudicada por outra pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas".
A conduta cometida arguido RP, também à luz dos exemplos jurisprudenciais acabados de transcrever, não é excluída pelo princípio da insignificância.
Ocorrem indícios suficientes e bastantes, para se entender com segurança de que foi praticado o crime de difamação e o arguido RP é responsável pelo mesmo.
Ao contrário do que foi decidido, a ilicitude da conduta, por qualquer forma, não é afastada por força do disposto no artigo 180.º, n.º 2, al. a) e b) do CP.
10ªOcorrem indícios suficientes e bastantes, para se entender com segurança de que foi praticado o crime de difamação e o arguido RP é responsável pelo mesmo.
11ªQuanto aos arguidos JA e ML, reitera-se o que já foi dito a este respeito na acusação particular, no quadro de que os crimes em geral, como acontece com o crime de difamação, são suscetíveis de serem praticados por ação ou omissão.
12ªA parte geral do Código Penal inclui disposições que constituem verdadeiras cláusulas de extensão da tipicidade, ou seja, que alargam cada uma das previsões típicas constantes na parte especial do Código Penal de forma a permitir a punição, nomeadamente, da tentativa (artigos 22º e 23º), da cumplicidade (artigo 27º), da omissão (artigo 10º) e da co-autoria (artigo 26º).
13ªOs arguidos JA e ML, no exercício das suas funções de direção o primeiro e de supervisão o segundo, consentiram e nada fizeram para prevenir a inclusão das referidas imputações difamatórias, assim como consentiram e nada fizeram para prevenir o seu envio nessas condições à seguradora F..
14ªÉ forçoso concluir que também no caso dos arguidos JA e ML existem indícios suficientes de que praticaram os factos em co-autoria material por ação ou omissão
15ªRazão pela qual há que concluir que também ocorre a tipificação e subjetiva do tipo de crime de difamação, tendo sido violado o disposto no artigo 180.º 10.º e 14.º do Código Penal e 283.º do CPP.
16ªA douta decisão recorrida incorreu em erro de julgamento requerendo-se a Vossas Excelências que a revoguem a fim de ser proferida outra que pronuncie os arguidos pela prática do crime de difamação.
Termos em que, na procedência das presentes conclusões, e nos termos que o elevado saber de Vossas Excelências sempre mui doutamente suprirão, deve revogar-se o douto Despacho recorrido, proferindo-se outro que pronuncie os arguidos pela prática do crime de difamação.

3.Respondeu o magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo à motivação de recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

4.Também os arguidos responderam à motivação de recurso, concluindo por não merecer provimento.

5.Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu “Visto”.

6.Colhidos os vistos, foram os autos à conferência

Cumpre apreciar e decidir.

IIFUNDAMENTAÇÃO.

1.Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série – A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se existem indícios suficientes da prática pelos arguidos, em co-autoria, do crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal.

2.A Decisão Recorrida

2.1A decisão recorrida, na parte que releva, tem o seguinte teor (transcrição):

Nos presentes autos os arguidos JA, MLe RP vieram requerer a abertura de instrução por se mostrarem inconformados com a acusação particular deduzida pelo assistente ALS, não acompanhada pelo Ministério Público pela prática do crime de difamação, p.p. no art. 180.º nº 1, do C. Penal.
Alegam os arguidos JÁ e ML que, respectivamente, na qualidade de Supervisor de Averiguações e Director de Averiguações, não intervieram na elaboração do Relatório que consta a fls. 21 e seg. dos autos, nem tomaram do mesmo conhecimento prévio ao seu envio ao cliente Seguradora F..
Não faz parte das suas funções normais intervirem neste tipo de procedimentos, tendo o arguido RP elaborado este relatório com autonomia no âmbito das suas funções na empresa onde todos trabalham.
Mais consideram os arguidos que o relatório em causa não contém quaisquer expressões difamatórias.
Por sua vez o arguido RP alega que as expressões que colocou no relatório que elaborou não são difamatórias e antes resultou dos factos que apurou durante o processo de averiguações sobre o sinistro onde interveio o assistente.
Tais afirmações têm por base o que recolheu junto das testemunhas IM e VM, apresentadas pelo assistente, tendo o primeiro apresentado uma versão dos factos que depois negou ter existido e tendo a segunda referido que nada sabia sobre o acidente pois não esteve no local.
Actuou no âmbito das suas funções de perito avaliador ao serviço da seguradora F. e a solicitação desta.
Pelo exposto, requererem os arguidos que seja proferido despacho de não pronuncia.
Foram inquiridas as testemunhas arroladas pelos arguidos.
Realizou-se Debate Instrutório com obediência ao legal formalismo.
O Tribunal é competente e o processo o próprio.
Não existem nulidades ou questões prévias que obstando ao conhecimento do mérito da causa, cumpra conhecer.
Atento o preceituado no artº 308.º n.º 1 do CPP há que apurar se dos autos resultam indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, sendo certo que só se mostram suficientes e prova bastante quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, num juízo de prognose sobre a prova a produzir em julgamento.
Mostra-se, assim, necessário aferir se dos autos resultam indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de facto que determinam a aplicação ao arguido de uma pena pela prática dos crimes de difamação e injúrias.
Em termos fácticos tem relevância para a apreciação da prática do crime em apreço, a prova recolhida em inquérito e instrução, que se expõe nos seguintes termos:
- Os presentes autos principiaram com a denúncia apresentada por ALS contra JA, ML, RP, CV, AVe AMV. Segundo o assistente, na sequência de acidente de viação ocorrido no dia 29.03.2013, pelas 03H50, entre o veículo ligeiro por si conduzido e o veículo conduzido pela denunciada CV, foi instaurado o processo n.º 45/13.0SPLSB, que corre termos em Lisboa - Instância Local - Secção Criminal - 113, no qual o assistente é arguido e foi acusado do crime p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, do Código Penal. Nesse processo, o assistente aí arguido vem sustentando posição diversa, entendendo que foi a denunciada CV que deu causa ao acidente.
Entretanto, o queixoso teve conhecimento que a Companhia Seguradora F. juntou aos referidos autos, em 22.12.2015, vários documentos, entre os quais um "Relatório de Averiguação" com anexos, tendo em vista definir a responsabilidade pelo acidente, elaborado sob a direcção de JA, sob a supervisão de ML, tendo sido perito RP. Na página 9 do dito relatório, sob a epígrafe "Factos Provados", foi consignado que "Houve tentativa por parte do CVT em apresentar falsas testemunhas. (Sr. IM e VM)", sendo que CVT significa Condutor de Veículo Terceiro, no caso, o ora assistente.
Instaurado inquérito, foi interrogado o arguido RP, que se remeteu ao silêncio (fls. 74 e 75).
Interrogado o arguido JA, o mesmo esclareceu que não elaborou nem contribuiu para a elaboração do relatório em causa nos autos e que o seu nome apenas consta do cabeçalho do relatório por ser Director de Peritagens, nada sabendo sobre o seu teor. Por último, explicou que a fim de evitar estes incómodos com a justiça, designadamente que as pessoas sejam chamadas a depor sem terem conhecimento dos factos, já se decidiu retirar alguns dos nomes do cabeçalho (fls. 80 e 81).
O arguido ML, interrogado a fls. 86 e 87, referiu que não elaborou nem contribuiu para a elaboração do relatório em causa e que o seu nome apenas consta do cabeçalho do relatório por ser Supervisor de Peritagens, tratando-se de uma mera formalidade, nada sabendo sobre o seu teor.
Resulta do documento de fls. 21 e seg., que o arguido RP elaborou o "Relatório de Averiguação" da empresa GEP Peritagens e recolheu os elementos que constam dos respectivos anexos, sendo os arguidos JAe ML, o seu Director e Supervisor nessa empresa.
Consta de fls. 37, declaração de IM quanto ao acidente, que depois foi riscada, tendo este declarado que não presenciou o acidente nem sabe a posição dos semáforos.
O arguido RP não recolheu as declarações de VM porquanto esta disse não ter presenciado o acidente.
A testemunha BF, administrador da GEP, ouvido em instrução, declarou que o arguido RP presta serviços a esta empresa como perito. Este desenvolve o seu trabalho autonomamente, sem qualquer intervenção dos co-arguidos, os quais apenas intervêm nas peritagens de forma pontual e em casos complexos. Quando o relatório de peritagem está pronto é enviado ao cliente sem ser revisto pelo supervisor ou director.
SC, funcionária da F., sociedade seguradora que integra o mesmo grupo empresarial que a GEP, disse que no seu trabalho apenas contacta com o averiguador, cuja percepção dos factos e testemunhas é relevante para si.
Compulsados os autos, resulta dos mesmos que o assistente configura a imputação do arguido RP inserida no relatório de averiguações que este elaborou, sustentada na sua perspectiva também pelos arguidos Miguel e JA, como difamatória, nos termos do art. 180.º nº 1 do C. Penal.
No entanto e tal como já tinha concluído o Ministério Público a fls.110 e seg. e 128, esta imputação não é susceptível de integrar o ilícito em apreço.
Desde logo, quanto aos arguidos JA e ML, não foram recolhidos quaisquer indícios de que estes sejam os autores da imputação descrita pelo assistente na acusação particular, a qual é da exclusiva autoria do arguido RP.
Conforme os próprios declararam e foi ainda esclarecido pela testemunha BF, o arguido RP na qualidade de prestador de serviços para a GEP, com a categoria de perito averiguador em acidentes de viação, elaborou com total autonomia o relatório de fls. 21 e seg., que terá enviado directamente ao cliente F., sem intervenção dos co-arguidos.
Não logrou o assistente demonstrar e antes o contrário resultou da prova produzida, que estes arguidos tenham determinado o arguido RP à utilização da expressão página 9 do dito relatório, sob a epígrafe "Factos Provados", foi consignado que "Houve tentativa por parte do CVT em apresentar falsas testemunhas. (Sr. IM e VM)", pelo que não é possível concluir como sequer minimamente indiciados factos susceptíveis de se reconduzirem aos elementos típicos do crime de difamação.
Assim, necessariamente os arguidos JA e ML devem ser objecto de despacho de não pronúncia.
A difamação ou injúria, enquanto acto proferido perante terceiro ou perante o visado, devem entender-se como a afronta, ultraje, agravo, acção que ofende outrem, a articulação de palavras ofensivas, sendo todo o facto que envergonha, perturba ou humilha o sujeito que é alvo do mesmo.
Tal facto deve ser aferido como ofensivo segundo um sentido comum, aceite pela generalidade das pessoas, tido como inaceitável na prática social e na convivência diária com os outros.
No caso vertente, desde logo há a referir que as expressões acima referidas foram emitidas na prossecução de um interesse legítimo, o exercício da actividade laboral de perito averiguador de seguros e para apuramento da responsabilidade civil no acidente de viação onde o assistente foi interveniente.
Tais imputações dizem respeito à imputação de um facto - a apresentação de falsas testemunhas, o qual em si mesmo não se afigura sequer, do ponto de vista da normalidade social e por força do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, como ilícito penal, encontrando-se ainda no âmbito do exercício socialmente tolerável da liberdade de expressão.
No âmbito dos crimes de injúrias e difamação, tem sido entendido que é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc. que provocam animosidade. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o Direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função.
A situação dos autos enquadra-se justamente no supra descrito. Na verdade, no caso vertente as expressões utilizadas são algo desagradáveis mas compreensíveis no âmbito do exercício da actividade do arguido RP.
Acresce que o arguido tinha razões objectivas para reputar esta imputação de verdadeira, face ao comportamento exteriorizado pelas testemunhas IM e VM, sendo que o primeiro até se dispões num primeiro momento a apresentar uma versão favorável ao assistente, que posteriormente rejeitou, cfr. fls. 37.
Assim, entende-se que as expressões em causa, naquele contexto e na conflitualidade demonstrada nos autos, embora desagradáveis, não atingem núcleo do que em termos gerais na sociedade actual se entende pela honra e consideração do assistente e que ainda que assim não se entendesse, a ilicitude da conduta do arguido estaria afastada por força do art. 180.º nº 2 als. a) e b) do C. Penal.
Entende-se assim que os arguidos não poderiam em caso algum, por referência às expressões vertidas na acusação particular, preencher com a sua conduta os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de difamação. Por todo o exposto decido:
Não pronunciar os arguidos JA, ML e RP pela prática do crime de difamação que lhes era imputado na acusação particular.

Apreciemos.

Nos termos do artigo 286º, nº 1, do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

E, estabelece o artigo 308º, nº1, que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia” - nº 1.
Por seu turno, esclarece-se no artigo 283º, nº 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Está em causa a apreciação de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução e a respectiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição a julgamento dos arguidos.

Nessa aferição o tribunal aprecia a prova (indiciária, obviamente) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção - artigo 127º, do CPP.

Salienta Figueiredo Dias que “(...) os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. E acrescenta ainda: “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” - Direito Processual Penal, 1º vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pág. 133.

Como sustenta Carlos Adérito Teixeira, no conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável” desta, por força daqueles indícios e não de outros” - Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação” (…) Revista do CEJ, 2º semestre 2004, nº 1, pág. 189.

Assim, os indícios qualificam-se de “suficientes” quando justificam a realização de um julgamento; tal ocorre quando a possibilidade de condenação, em função deles, for razoável.

No que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado, que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo “indícios suficientes” de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a este conceito não pode alhear-se do mencionado princípio.

No desenvolvimento deste entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 439/2002, de 23 de Outubro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, considerou que “a interpretação normativa dos artigos citados (286º nº 1, 298º e 308º nº1, do CPP) que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº 2, da Constituição” – e no mesmo sentido da aplicação deste princípio em qualquer fase do processo, nomeadamente no inquérito e na instrução, se perfilam, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 04/01/2006, Proc. nº 0513975 e de 22/10/2008, Proc. nº 0814910, bem como os desta Relação e Secção de 02/05/2006, Proc. nº 849/2006-5 e 16/11/2010, Proc. nº 3555/09.TDLSB.L1-5, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Face ao que, o juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto probatório em que se afirma, deverá passar pela fasquia da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, manifestar a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento.

Em todo o caso, o referente da condenação respeita ao crime que é imputado e em relação ao qual o juízo de indiciação suficiente se reporta.

Regressando à matéria concreta dos autos, há que questionar se, com base nos elementos de prova indiciária recolhidos no inquérito e na instrução, é de formular um juízo de probabilidade elevada de que, em julgamento, os arguidos venham a ser condenados pelos factos e incriminação legal imputados na acusação particular deduzida pelo assistente ALS.

E, esse juízo, há-de atender para a sua formação não só à prova directa (em que o facto probatório - meio de prova - se refere imediatamente ao facto probando), como também à prova indirecta ou indiciária, que igualmente é admissível pelo nosso ordenamento jurídico – cfr. neste sentido, Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt – e reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o recurso às regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.

Vejamos então o a situação sub judice.

Os indícios suficientes terão de se reportar aos factos e à infracção criminal cujo cometimento se imputa aos arguidos, ou seja, o crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal.

Estabelece-se neste normativo legal:

“1.Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2.A conduta não é punível quando:
a)-A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b)-O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3.Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do artigo 31º o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar de imputação de facto relativo à intimidade da vida privada ou familiar.

4.A boa fé referida na alínea b) do n º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”.

O bem jurídico protegido pelo tipo do artigo 180º, do Código Penal, é a honra, perspectivada em duas vertentes: a interna, enquanto valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade (a ideia que cada um tem de si) e a externa, relativa à sua reputação ou consideração exterior, ou seja, a ideia que terceiros têm de nós - cfr. Faria e Costa, “Comentário Conimbricence do Código Penal”, Coimbra Editora, volume I, pág. 607.

Será difamatória (ou injuriosa) a acção ou expressão que tenha aptidão (objectivamente, perseguindo critérios de normalidade e repudiando meras susceptibilidades pessoais) para colocar em causa a “auto-estima” ou a “fama” do sujeito visado, sendo que a ofensa pode apresentar-se sob a forma de imputação de facto ou de formulação de juízo ofensivos da honra ou consideração de outrem.

Faria Costa, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 609/612, elucida-nos que “a noção de facto se traduz naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência” ou seja, “um facto é um juízo de existência ou de realidade”, enquanto que um juízo “deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor”, o que equivale a afirmar-se que “deve ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto, se valorados em função do fim prosseguido (a verdade, a beleza, a moral, a justiça, etc.)”.

A frase houve tentativa por parte do CVT em apresentar falsas testemunhas. (Sr. IM e VM) é susceptível de revestir conotação pejorativa podendo, em abstracto, é vero, preencher a tipicidade do crime de difamação.

Contudo, há que integrar a mesma no contexto em que foi aplicada, que foi o de um Relatório de Averiguação elaborado pelo perito/ora arguido RP, em que figuram como responsável da Direcção o arguido JA e responsável da Supervisão o arguido ML, na sequência de solicitação da Seguradora “FM” sobre a definição de responsabilidades em sinistro automóvel em que foram intervenientes viaturas tripuladas pelo assistente e CVV.

Ora, compulsados os autos, resulta que o assistente e CV fizeram declaração amigável de acidente automóvel e foi participado o sinistro à seguradora, tendo o primeiro apresentado também um escrito intitulado “adenda à reclamação de sinistro apresentada por AS”, por si assinada, em que se pode ler:

“Testemunhas que se faziam transportar no Viatura do Reclamante, assim como em viaturas que seguiam no mesmo sentido e na mesma via de trânsito, precedendo e posteriormente à viatura do Reclamante:

1.IM 916566464 (viatura posterior);

2.VM 914763079 (viatura anterior);”

E, no decurso da averiguação efectuada pelo arguido RP, a testemunha IM prestou declarações, que foram reduzidas a escrito, em que começa por narrar pormenorizadamente as circunstâncias em que ocorreu o sinistro automóvel que afirma ter presenciado, sendo que, no entanto, no final da peça figura a frase: “Não presenciei o acidente em si nem a posição dos semáforos” e bem assim uma assinatura atribuída ao “declarante” IM, cuja veracidade e autoria não foram sequer colocadas em causa nestes autos.

Analisando o “Relatório” elaborado por RP, podemos também ler que: “Junto da testemunha VM, atriz de televisão e modelo e amiga do CVT, solicitou-se a sua versão dos factos. Esta informou que nada tinha a declarar pelo facto de não ter presenciado o acidente, e com receio de ser prejudicada profissionalmente”.

Ou seja, as mencionadas duas testemunhas (outras foram também indicadas, mas não vêm ao caso) indicadas pelo assistente como seguindo em viaturas que circulavam no mesmo sentido e via de trânsito do veículo que tripulava no momento do acidente, vieram afinal a declarar que não o presenciaram, sendo até que uma delas foi descrevendo, afirmando que o visualizara, o sinistro com pormenores durante a sua audição para, no final desta, mencionar que, na verdade, não o tinha presenciado.

Face ao que, a referência feita pelo arguido quanto ao assistente insere-se no quadro das funções de perito que exercia e mostra-se alicerçada nos elementos por ele recolhidos no decurso da averiguação que efectuou sendo, por isso, aceitável nesse âmbito, pelo que perde dignidade penal a sua abstracta relevância para afectar a honra e consideração do visado.

Assim, a conduta do arguido RP não se mostra sequer lesiva da honra do assistente, quer na sua dimensão interior, decorrente da dignidade da pessoa, quer na sua dimensão exterior, traduzida na pretensão de respeito, condição indispensável ao livre desenvolvimento da personalidade, não preenchendo o tipo objectivo do artigo 180º, nº 1, do Código Penal.

E, no que concerne aos arguidos JÁ e ML, nem sequer, como bem se assinala na decisão revidenda logrou o assistente demonstrar e antes o contrário resultou da prova produzida, que estes arguidos tenham determinado o arguido RP à utilização da expressão página 9 do dito relatório, sob a epígrafe "Factos Provados", foi consignado que "Houve tentativa por parte do CVT em apresentar falsas testemunhas. (Sr. IM e VM)", pelo que não é possível concluir como sequer minimamente indiciados factos susceptíveis de se reconduzirem aos elementos típicos do crime de difamação.

Destarte, mantendo-se a matéria indiciária produzida em sede de inquérito e de instrução nos termos mencionados, não se pode efectivamente efectuar um juízo de prognose condenatório, antes predomina uma razoável, séria mesmo, possibilidade de os arguidos virem a ser absolvidos por esses factos e vestígios probatórios.

Não se mostram, pois, recolhidos nos autos indícios suficientes de que os arguidos tivessem praticado conduta de onde possa resultar a sua responsabilização penal pelo crime p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal, que lhes é imputado, pelo que se apresenta como improvável a sua condenação em julgamento pela prática de tal ilícito criminal.

Donde se conclui que cumpre negar provimento ao recurso.

IIIDISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso pelo assistente ALS interposto e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.



Lisboa, 20 de Fevereiro de 2018



(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP).


(Artur Vargues)
(Jorge Gonçalves)