Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1618/19.3T9TVD.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REENVIO PARA NOVO JULGAMENTO
Sumário: Ainda que à posição formal de gerente duma sociedade possa corresponder, normalmente, um exercício de poderes de facto correspondentes, tal não ocorre necessariamente em todos os casos, pelo que entendemos que a existência de uma situação de gerência de direito, regularmente constituída e inscrita no registo comercial, não permite inferir a prática dos factos e determinar a responsabilização das pessoas singulares que figuram no registo nessa qualidade, apenas em função desta, afirmando um juízo de certeza, ou seja, para além de toda a dúvida razoável, de que tenham sido os arguidos (co) autores do facto criminoso em causa nos autos.

A mera circunstância de três arguidos figurarem na certidão permanente como gerentes da sociedade não habilita a extrair, no plano criminal, por recurso às regras da lógica e da experiência, que todos conjugaram vontades e esforços em vista do concreto facto criminoso que lhes foi imputado, sendo que o tribunal a quo seguiu uma linha de raciocínio quanto à autoria dos factos (de que dá conta na motivação) que assenta, essencialmente, como já se assinalou, na estrutura societária e nos elementos sobre a gerência formal, de direito, que constam do registo, o que não tem base nos ditames da experiência comum e revela uma falha ostensiva na análise da prova.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 1618/19.3T9TVD, procedeu-se ao julgamento de SR, MR e TR, pelos factos e com o enquadramento jurídico constantes da acusação pública de fls. 142-148, para a qual remete o despacho de pronúncia de fls. 209-2018, imputando-lhes a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal (doravante “CP”), por referência ao artigo 202.º, alínea b) do mesmo diploma.

A sociedade “EDP - Distribuição de Energia, S.A.” apresentou pedido de indemnização civil contra os arguidos/demandados.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«NESTES TERMOS, decide-se:
a)-Condenar a arguida SR pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 202.º, alínea b) do mesmo diploma, na pena de 2 (dois) anos e (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo;
b)-Condenar a arguida MR pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 202.º, alínea b) do mesmo diploma, na pena de 2 (dois) anos e (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo;
c)-Condenar o arguido TR pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 202.º, alínea b) do mesmo diploma, na pena de 2 (dois) anos e (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo;
(…)

Do pedido de indemnização civil:
Decide-se julgar integralmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante “E- REDES – Distribuição de Eletricidade, S.A.” contra os arguidos e, em consequência, decide-se condenar os arguidos/demandados SR, MR e TR  a pagar uma indemnização à demandante, no montante global de € 148.729,99 (cento e quarenta e oito mil, setecentos e vinte e nove mil Euros e noventa e nove cêntimos), pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal civil em vigor de 4%, desde a data de notificação dos arguidos para contestar o pedido e até efectivo e integral pagamento.
(…)

2.Os arguidos recorreram da sentença, finalizando a sua motivação conjunta com as seguintes conclusões (transcrição):
I–Os Arguidos e ora Recorrentes foram julgados e condenados pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2 al. a), do Código Penal, por referência ao artigo 202.º, alínea b) do mesmo diploma, na pena de dois anos e seis meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo.
II–Foram ainda condenados a pagar à Demandante E-Redes – Distribuição de Eletricidade, S.A., a quantia de € 148.729,99 (cento e quarenta e oito mil setecentos e vinte e nove euros e noventa e nove cêntimos).
III–Com o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo, que na face de uma aparente ilegalidade entendeu que teria de encontrar responsáveis para punir criminalmente pela mesma, sem cuidar de verificar se a factualidade imputada seria suficiente e se a prova produzida permitiria dar por provada essa mesma factualidade.
IV–Também se considera que a factualidade imputada não permite a subsunção legal apresentada pela acusação e corroborada pela douta sentença ora recorrida.
V–Assim, da fundamentação resulta uma referência quase geral à autoria, à dinâmica de coautoria, ao conhecimento, consciência, vontade e intenção de atuação de cada um dos arguidos, não se identificando quais os factos, em concreto, para os quais houve recurso à prova por presunção.
VI–Não há correlação entre cada um dos factos e a prova considerada para essa decisão.
VII–Não o fazendo, ficam também os Arguidos impedidos de exercer de forma efetiva o seu direito ao recurso, constitucionalmente consagrado pelo n.º 1 do artigo 32.º da CRP, uma vez que não conseguem impugnar com a certeza necessária os pontos de facto contra si julgados por provados.
VIII–Termos em que se mostra verificada a nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 374.º do mesmo CPP, que aqui expressamente se argui para os devidos e legais efeitos.
IX–Ainda que assim não se entenda, certo é que também a prova produzida é manifestamente insuficiente para que o Tribunal a quo possa proferir uma decisão condenatória.
X–Os factos imputados diretamente aos arguidos, nomeadamente os pontos 6, 7, 9 e 10 da matéria de factos julgada provada, resultam apenas de uma presunção retirada de elementos probatórios que não contendem diretamente com os arguidos, pelo que a fundamentação da douta sentença é demonstrativa da insuficiência probatória para julgar por provados os factos acima elencados.
XI–A gerência referida na douta sentença – que não corresponde, na íntegra, com a estrutura societária, conforme resulta da certidão permanente de fls. 91 a 100, uma vez que nem todos os gerentes e arguidos são sócios–remete apenas para a gerência “de direito”.
XII–Não foi produzida qualquer prova no sentido de confirmar ou informar que essa mesma gerência formal tinha correspondência material.
XIII–Não se sabe, porque nem sequer constava do libelo acusatório, quem dava as ordens, quem tinha acesso às contas bancárias, quem recebia as faturas da referida EDP, S.A. e tinha por obrigação proceder à sua contabilização e pagamento.
XIV–Nada se sabe quanto à gerência de facto. Nada foi alegado quanto ao exercício efetivo da mesma, à exceção da alegada celebração de um contrato comercial com a EDP, S.A., que não conhecemos quem assinou.
XV–Não se sabe sequer como é que a sociedade “H. ” se obrigava, nem houve qualquer preocupação do Tribunal a quo em perceber isso mesmo, sendo que tal elemento constava da certidão permanente junto aos autos.
XVI–Não é igual a participação social de todos os arguidos na sociedade, o que, por si só, também significa que formalmente – porque materialmente tal matéria foi obliterada do libelo acusatório – a capacidade de decisão é diferente relativamente a cada um dos arguidos, sendo que, por exemplo o arguido TR  nem sequer é sócio da referida sociedade.
XVII–Contrariamente ao que argumenta a douta sentença recorrida, as “únicas pessoas interessadas em proceder à mencionadas alterações do contador”, não tem idêntico interesse, porquanto o seu eventual benefício – também ele apenas presumido por intermédio da sociedade que não se sabe quem gere – será manifestamente distinto para cada um dos arguidos.
XVIII–Não se consegue estabelecer uma conexão, para além de qualquer dúvida razoável, entre a autoria da apropriação de energia elétrica e os arguidos.
XIX–Ou seja, da prova produzida não se consegue afirmar que “em concretização de tais desígnios, por si ou por alguém por si mandatados, no dia 5 de Março de 2015, retiraram os selos da tampa do contador e os selos da régua de bornes do contador e lograram aceder ao interior do contador, onde substituíram as resistências existentes por outras resistências com um valor óhmico diferente, alterando assim o circuito de medição das correntes de entrada e desta forma fizeram com que as medições de passagem de corrente eléctrica na baixada passassem a ser superiores às que estavam registadas pelo contador, na ordem de -57%, contra a vontade e sem o conhecimento da “E-Redes”.
XX–Não cabe aos arguidos fazer prova da sua inocência, porquanto a mesma já se presume.
XXI–Similar decisão resulta do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, recentemente proferido em 13.01.2020, no âmbito do processo n.º 373/16.3T9BCL.G1, disponível em www.dgsi.pt, da qual resulta que “a mera prova de que o arguido era um dos sócios e o único gerente de uma sociedade na data em que foi realizada a manipulação do contador da electricidade fornecida ao respectivo estabelecimento comercial, de forma a que parte da energia consumida não fosse contabilizada, não permite ir ao ponto de estabelecer a conexão, para além de qualquer dúvida razoável, entre a autoria da apropriação da energia eléctrica e o arguido. Surgindo como resposta a esta incerteza o princípio do in dúbio pro reo, postulado do princípio constitucional da presunção de inocência.”
XXII–Com efeito, “a sentença que exclusivamente com base naquela factualidade e sua conjugação com as regras da experiência comum conclui ter sido o arguido – por intermédio de alguém a seu mando–o autor dos factos, enferma de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP.”
XXIIITambém nos presentes autos igual ilação terá de se retirar da inexistente prova produzida quanto à concreta autoria dos factos.
XXIV–Daí a impossibilidade de o Tribunal a quo cumprir com o desiderato da fundamentação, uma vez que se o tivesse feito, se conseguiria perceber que não há interrelação entre os factos acreditados por prova de caráter direto e os factos julgados por provados por recurso aos meios de prova indiretos.
XXV–Até quanto à imputada coautoria, a própria decisão recorrida refere que o acordo, entre os arguidos, não tem de ser prévio, nem expresso, “podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente, desde que o mesmo revele a consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime”.
XXVI–No entanto, calcorreada a própria decisão e concatenados todos os elementos probatórios efetivamente carreados para os autos, não há uma única referência a esse alegado comportamento concludente que permita concluir pela sua verificação.
XXVII–A condenação é assim manifestamente violadora do princípio de presunção de inocência constitucionalmente previsto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP, demonstrando-se, com o devido respeito por posição diversa, que a douta decisão enferma de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP.
XXVIII–Sem conceder, sempre se acrescenta que da prova produzida em audiência de julgamento, os pontos de facto 6, 7, 9 e 10 de facto dados por provados não podiam ter sido objeto de tal decisão.
XXIXNa verdade, do depoimento das testemunhas JD, AP e DP, impõe uma decisão distinta quanto à matéria de facto atinente aos aqui Arguidos, porquanto foram claros no sentido de afirmar desconhecerem em abuto os Arguidos, quem seriam os responsáveis pela sociedade que havia contratado o fornecimento do bem, a forma como essa contratação foi feita e também quem procedeu à alteração do contador.
XXX–Termos em que os pontos 6, 7, 9 e 10 da matéria de facto julgada provada vai devidamente impugnada, devendo tais factos ser julgados não provados e, em consequência, abvidos os arguidos do crime que lhes é imputado.
XXXI–Os aqui Recorrentes também discordam da qualificação jurídica dos factos que lhe sã imputados, porquanto, o que está em causa não é a apropriação indevida de um bem alheio –que sempre seria admissível face ao contrato existente –mas uma alteração no valor a pagar por esse mesmo bem.
XXXII–Como afirmaram todas as testemunhas, o fluxo energético nunca foi alterado e estava contratualmente legitimado, o ponto onde se verifica a alteração é na medição desse mesmo fluxo energético, originando um valor a pagar inferior ao que aparentemente seria devido.
XXXIII–Assim, a ofendida não fica desapossada do seu bem por força da ação dos Arguidos, razão, pela qual, não se mostram os factos subsumíveis ao crime de furto qualificado imputado aos aqui Recorrentes.
XXXIV–Por último, a abvição dos Recorrentes dos factos e do crime que lhes é imputado, determinará a abvição do pagamento da indemnização a que haviam sido condenados pela douta sentença recorrida.

VI–Do pedido
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, serem os Arguidos e aqui Recorrentes abvidos dos crimes que lhes são imputados e, em consequência, abvidos do pedido de indemnização civil contra eles deduzido.

3.–O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, no sentido de que a sentença recorrida não merece censura.
           
4.Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), acompanhou a posição assumida na resposta do Ministério Público.

54.–Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação

1.–Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quemtem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Nulidade da sentença, prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 379.º, por referência ao n.º 2, do artigo 374.º, ambos do C.P.P., por falta de fundamentação no que se refere aos factos constantes dos pontos 4, 6, 7, 9 e 10 da matéria de facto provada;
- Erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c), do n.º. 2, do artigo 410.º, do C.P.P.;
- Erro na qualificação jurídica dos factos.

2.–Da sentença recorrida

2.1.–O tribunal a quoconsiderou provados os seguintes factos:

1.–A sociedade “H. -, Lda.” (doravante apenas “H. ”) tem sede social na localidade de P_____, em ...-...-C_____ e tem como gerentes os arguidos SR, MR e TR .
2.–Esta sociedade tem instalações na Rua …, ...-...-C_____, que corresponde ao local de consumo de energia eléctrica com o número 1......3.
3.–A “EDP – Distribuição, S.A.” [actualmente “E- REDES – Distribuição de Eletricidade, S.A.”, doravante apenas “E-Redes”] é operador de redes de distribuição de electricidade, em regime de concessão de serviço público, em território nacional, designadamente na área de ...-...-C_____.
4.–No exercício dessa actividade, no dia 14 de Outubro de 2011, a “EDP – Comercial – Comercializ Energia S.A.” celebrou com “H.  - , Lda.”, um contrato de fornecimento de energia eléctrica, para abastecimento do referido local.
5.–Na sequência de tal contrato, a “E-Redes”, através dos seus funcionários, procedeu no referido local à ligação das instalações eléctricas à rede pública, mediante aplicação intermédia de aparelho de medida, designado contador, destinado a registar os consumos de energia eléctrica.
6.–Porém, em data não apurada, mas antes de 5 de Março de 2015, os arguidos, na qualidade de gerentes da sociedade, de comum acordo, delinearam um plano de se apropriarem de energia eléctrica com um custo mais baixo.
7.–Assim, em concretização de tais desígnios, por si ou por alguém por si mandatados, no dia 5 de Março de 2015, retiraram os selos da tampa do contador e os selos da régua de bornes do contador e lograram aceder ao interior do contador, onde substituíram as resistências existentes por outras resistências com um valor óhmico diferente, alterando assim o circuito de medição das correntes de entrada e desta forma fizeram com que as medições de passagem de corrente eléctrica na baixada passassem a ser superiores às que estavam registadas pelo contador, na ordem de -57%, contra a vontade e sem o conhecimento da “E-Redes”.
8.–No dia 8 de Outubro de 2018, após vistoria, os funcionários da ofendida verificaram que essas incongruências no contador e, de imediato, procederam à retirada do mesmo, remetendo-o para análise.
9.–Nos termos acima descritos, os arguidos quiseram agir como agiram, em nome da sociedade referida, com o propósito concretizado de consumir energia eléctrica, com custos mais baixos, dela usufruindo, no período compreendido entre o dia 5 de Março de 2015 e 8 de Outubro de 2018 e que, ao agirem da forma descrita, o faziam contra a vontade e sem consentimento da “E-Redes”, provocando àquela um prejuízo no valor global de € 148.729,99.
10.–Os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo tais condutas eram proibidas e puníveis por lei.

Do pedido de indemnização civil:
11.–A “E-Redes” exerce, em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão no concelho de Torres Vedras.
12.–Na qualidade de concessionária da rede eléctrica pública, a ofendida procede à ligação à rede das instalações particulares de consumo cujos utilizadores tenham celebrado um contrato de fornecimento de energia eléctrica com um dos comercializadores legalmente constituídos e que operam no sector eléctrico.
13.–Na qualidade de operador de rede, a ofendida fornece e instala um equipamento de medição (vulgarmente designado por contador) que mede e regista os consumos de energia eléctrica, procedendo ainda à selagem desse equipamento, garantindo a sua integridade e fiabilidade.
14.–A ofendida procede à fiscalização das instalações particulares de consumo, com o objectivo de despistar eventuais ligações ilícitas e/ou manipulação e adulteração dos equipamentos de medida.
15.–A sociedade “H. -, Lda.”, de quem os arguidos são gerentes, como objecto social a “cultura de produtos hortícolas, raízes e tubérculos. Comércio por grosso de fruta e produtos hortícolas, exceto batata. Preparação e conservação de frutas e de produtos hortícolas por outros processos”.
16.–No âmbito da sua actividade de fiscalização, a ofendida gerou a ordem de serviço n.º 20.........9, com a finalidade de revisão do equipamento de telecontagem de baixa tensão especial instalado no local de consumo supra identificado, e icitou a deslocação de uma equipa técnica ao local.
17.–Tal ordem de serviço veio a ser cumprida a 08.10.2018.
18.–No período compreendido entre 05.03.2015 e 08.10.2018, os utilizadores da instalação apropriaram-se de parte da energia eléctrica efectivamente consumida na instalação, sem pagar o respetivo preço, energia essa que não foi medida, nem registada e, consequentemente, não foi paga.

19.–No período compreendido entre 08.10.2015 e 08.10.2018, e em consequência da conduta dos arguidos, a ofendida sofreu os seguintes prejuízos:
a.-888.333 kWh de energia consumida, no valor de € 112.012,77;
b.-244.406 kWh de energia reactiva, no valor de € 14.187,46;
c.-Encargos de potência em horas de ponta, no valor de € 21.422,04;
d.-Encargos de potência contratada, no valor de € 972,42;
e.-Custos com o equipamento danificado, no valor de € 57,61; e
f.-Encargos administrativos com a detecção e correcção da anomalia, no valor de € 77,70.

E ainda:
20.–A arguida SR trabalha como secretária na sociedade “H. ”, auferindo mensalmente quantia equivalente a € 1.500,00.
21.–Reside em casa própria, com uma filha maior de idade que trabalha.
22.–Tem o 10.º ano de escolaridade completa.
23.–Não tem quaisquer antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal.
24.–A arguida MR trabalha como empregada de escritório na empresa “H. ”, auferindo mensalmente quantia equivalente a € 1.500,00.
25.–Vive com o seu marido, o arguido TR, em casa própria.
26.–Os arguidos MR e TR  têm três filhos maiores de idade e independentes.
27.–A arguida MR tem como escolaridade a 4.ª classe.
28.A arguida MR não tem quaisquer antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal.
29.–O arguido TR  é empresário, explora a empresa “H. ” e outras empresas do mesmo ramo.
30.–Aufere mensalmente cerca de € 1.500,00.
31.–Tem como escolaridade a 3.ª classe.
32.–O arguido TR não tem quaisquer antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal.

2.2.Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
Com relevância para a presente decisão, inexistem factos por provar.
           
2.3.–O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
           
O Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, com base na apreciação de forma livre, crítica e conjugada, de todos os meios de prova disponíveis, tendo presentes as regras da experiência comum, o princípio da livre apreciação da prova e a livre convicção do julgador (cfr. artigo 127.º do Código do Processo Penal – doravante “CPP”).

Assim, por mais relevante e decisivo, é de destacar o seguinte:
- Os arguidos, compareceram à audiência de julgamento, mas fazendo uso da faculdade legal que lhes assiste não quiseram prestar declarações sobre os factos. Aceitaram, porém, depor sobre as suas condições pessoais e sócio-económicas, tendo as declarações prestadas, a este respeito, sido sérias e credíveis, motivo pelo qual mereceram acolhimento, considerando o Tribunal como provados os factos correspondentes;
- Foram inquiridas as seguintes testemunhas: (i) JD  (de 58 anos, técnico da “E-Redes”, actualmente em situação de pré-reforma, não conhece os arguidos); (ii) AP (de 58 anos, engenheiro da “E-Redes”, há cerca de 41 anos, não conhece os arguidos); e (iii) DP  (de 53 anos, economista e técnico superior da “E-Redes”, desde 2002, não conhece os arguidos);
- Consta dos autos a seguinte prova documental, a saber: (i) resultado de pesquisa efectuada na base de dados do Portal da Justiça de fls. 8; (ii) folha de dados da instalação de fls. 9; (iii) ordem de serviço de fls. 10; (iv) auto de vistoria do ponto de medição de fls. 12; (v) fotografias de fls. 13-23; (vi) relatório de ensaio 3011/18-QI/CE ao contador estático trifásico de fls. 24-31; (vii) relatório 3012/18-QI/SRI de fls. 32-40; (viii) relatório de análise e correcção de anomalias de consumo de fls. 41-46; (ix) mapa de cálculo de fls. 47-49; (x) certidão permanente da sociedade “H.  – , Lda.” de fls. 91-100; e (xi) certificados do registo criminal de fls. 245, 246 e 247.
A convicção do Tribunal a respeito da factualidade dada como provada fundou-se, assim, na análise, crítica e conjugada, de todos os meios de prova supra referidos, considerando-se que a prova produzida foi suficiente para comprovar com rigor todos os factos dados como provados, inclusivamente a autoria dos factos por parte dos arguidos.

Concretizando.

Cumpre, desde já, salientar que todas as testemunhas inquiridas prestaram em audiência depoimentos que o Tribunal reputou como objectivos, coerentes e isentos. Demonstraram ter conhecimento directo dos factos sobre os quais depuseram exclusivamente por força do exercício da sua actividade profissional. Foram sérios e credíveis, tendo os depoimentos sido considerados genuínos, motivo pelo qual todos mereceram credibilidade, tendo os depoimentos sido determinantes para a formação da convicção do Tribunal, em conjugação com a prova documental constante dos autos, cujo teor não foi impugnado pelos arguidos nos autos e se mostra sustentado pelo depoimento das testemunhas, razão pela qual o Tribunal também considerou a documentação junta aos autos fiável e fidedigna.

Assim, quanto à factualidade respeitante à identificação da sociedade comercial “H.  - , Lda.”, nomeadamente sede social, objecto social e composição da gerência, atendeu o Tribunal ao resultado de pesquisa efectuada na base de dados do Portal da Justiça de fls. 8 conjugado com a certidão permanente do registo comercial de fls. 91-100 dos autos, que sustenta tal factualidade.
Ademais, a respeito do contrato celebrado entre a referida sociedade e o comercializador de energia eléctrica “EDP – Comercial”, nomeadamente data do contrato e respectivo local de consumo, tal factualidade ficou demonstrada nos autos pela conjugação da prova testemunhal produzida, em particular as testemunhas AP e DP, mostrando-se os depoimentos prestados em audiência conformes à prova documental constante dos autos, designadamente folha de dados da instalação de fls. 9 e ordem de serviço de fls. 10 e 11. Com relevância, depôs ainda a testemunha JD, técnico que se deslocou ao local de consumo, e que aí esteve presente, confirmando a sua existência e que identificou o cliente em apreço, certificando os dados que preencheu no auto de vistoria do ponto de mediação de fls. 12. Os três depoimentos foram, por isso, concordantes entre si a respeito desta matéria, revelando-se coesos e seguros, e encontram sustento na documentação referida e nenhuma prova foi produzida que infirmasse esta factualidade, motivo pelo qual o Tribunal ficou convencido quanto à sua verificação, dando-a, consequentemente, como provada.
No que concerne às anomalias detectadas, manipulação do contador existente no local, tipo de intervenção realizada e consequências daí derivadas, ficou o Tribunal absolutamente convencido da verificação de tais factos, por força da conjugação do depoimento das supra identificadas testemunhas com a demais prova documental constante dos autos.
Efectivamente, da análise, crítica e conjugada, dos depoimentos das referidas testemunhas, resultou que, cada uma das testemunhas, mostrou ter tido uma intervenção relevante em momentos distintos, a qual descreveram de forma detalhada, precisa e digna de crédito, levando a que os três depoimentos se complementassem, de forma cabal, entre si.
Destarte, a testemunha JD, enquanto técnico responsável por se deslocar ao local de consumo, descreveu a realidade com que aí se deparou e a sua concreta intervenção. Contou, pois, como deu cumprimento à ordem de serviço emitida pela EDP (actualmente “E-Redes”) para o cliente em apreço. Com interesse, disse que, no local, tendo-se dirigido aos escritórios do cliente, foi-lhe dada autorização para aceder ao contador, onde se dirigiu acompanhado por uma pessoa que se identificou como PR, mas que se veio a ausentar do local, não chegando a assinar consigo o auto de vistoria. Explicou que, logo que teve acesso ao contador, de imediato, se apercebeu que os selos apresentavam sinais de terem sido manipulados. Contou, depois, o trabalho de medição do fluxo de corrente que levou a cabo no local, e que lhe permitiu verificar que o fluxo de corrente que saída da rede era superior à contagem que estava a ser efectuada pelo contador, motivo pelo qual levantou o auto de vistoria, fez reportagem fotográfica e procedeu à substituição do contador, enviando-o para análise para o laboratório da “E-Redes” (Labelec), juntamente com os selos. Mais contou que, depois de operada a substituição do contador por outro, fez novo trabalho de medição, sendo que, nessa altura, o diferencial deixou de existir. Confrontado com os documentos de fls. 11 e 12, confirmou o teor da ordem de serviço e bem assim do auto de vistoria por si levantado, reconhecendo a sua assinatura, sendo que o por si relatado tem pleno acolhimento no teor dessa documentação. Mostrou-se preciso na descrição dos factos por si presenciados.
Por sua vez, a testemunha AP, num depoimento esclarecedor, seguro e fundamentado, descreveu a análise efectuada no laboratório Labelec ao contador retirado da instalação pela anterior testemunha, os resultados obtidos e as conclusões alcançadas. Foi, inclusivamente, a referida testemunha confrontada com a documentação de fls. 21 a 49 dos autos, cujo teor reconheceu e confirmou integralmente em audiência.
Assim, da conjugação do depoimento desta testemunha, nomeadamente com o relatório 34-38, ficou demonstrado, de forma patente nos autos, que os selos metrológicos do contador foram manipulados e que houve uma alteração no circuito de medição das correntes de entrada, operada através da substituição das resistências do contador.
Mais explicou a referida testemunha, fazendo-o de modo sustentado e fundamentando, como através da análise de todos os dados disponíveis, nomeadamente registos de telecontagem, eventos de abertura de tampa do contador e históricos de consumo do cliente, conseguiu detectar que houve uma abertura da tampa do contador no dia 05.03.2015 que disse não ter sido levada a cabo por técnicos da E-Redes (veja-se a tabela de registo de eventos constante de fls. 44 dos autos, da qual se retira a data e hora da referida abertura) e que, comparando os dados obtidos com o gráfico de histórico de consumos de energia do cliente, verificou que, a partir desse dia, os consumos de energia baixaram de forma significativa, o que disse apresentar-se conforme ao tipo de anomalia detectada no contador. Mais esclareceu então a forma, lógica e articulada, como concluiu que a manipulação das resistências internas do contador, melhor descrita no relatório de fls. 34-38, ocorreu nesse dia e prolongou-se até ao dia 08.10.2018, altura da vistoria em que foi detectada essa mesma anomalia e substituído o contador existente na instalação. O relato da testemunha tem pleno acolhimento no teor do auto de vistoria do ponto de medição de fls. 12, no relatório de ensaio de fls. 24-31 e no relatório da Labelec de fls. 32-40. Importa ainda salientar que esta testemunha demonstrou, ao longo do seu depoimento, uma grande segurança e precisão na descrição dos factos.
A respeito da energia consumida na instalação e os prejuízos sofridos pela “E-Redes”, depuseram as testemunhas AP e DP. Ora, atendendo ao tipo de manipulação do contador apurado nos autos, ficou patente que a troca de resistências efectuada fez com que o valor de corrente entrada assumido pelo contador fosse menor que o valor real, por conseguinte, a energia contabilizada no período em apreço foi inferior à energia efectivamente consumida. Vieram aquelas testemunhas em audiência explicar o método utilizado para contabilizar então a energia consumida no local da instalação durante o referido período. Em concreto, relatou a testemunha AP o trabalho de análise e correcção dos dados efectuado por si, de modo a proceder à sua regularização, narrando, de forma lógica e coerente, como foi obtido o facto de correcção a aplicar e as consequências da aplicação do referido factor. Do seu depoimento, claro e esclarecer, resultou que a aplicação do referido factor de correcção permitiu alcançar uma linha de consumo coerente com todo o histórico de consumos reais do cliente.
Também a testemunha DP, com base na informação apurada, relatou a forma como efectuou os cálculos que lhe permitiram concretizar o concreto prejuízo sofrido pela “E-Redes”, nomeadamente em termos de energia que foi consumida e não foi paga, por força da já descrita manipulação detectada no contador. Esta testemunha confirmou os valores em causa e bem assim os custos e as despesas incorridas com a detecção e eliminação da anomalia e custo de substituição do equipamento danificado, esclarecendo que, aos valores obtidos, já foi descontado o valor facturado e efectivamente pago pelo cliente no período em apreço. O seu depoimento sustenta os mapas de cálculo de fls. 47-49.
Resultou ainda do depoimento destas duas testemunhas que o método e formas de cálculo utilizadas para alcançar os referidos valores foram os legais, motivo pelo qual também foi apenas considerado o período de 36 meses, ao invés do período total em se registou a anomalia, o qual é temporalmente superior aos 36 meses.
O depoimento esclarecedor, fundamentado e seguro destas testemunhas permitiu ao Tribunal dar como provados os valores de prejuízos sofridos pela ofendida.
Foi, assim, da valoração conjugação de toda a prova referida, que resultou como um dado seguro e inabalável, não só a existência de manipulação do contador, como também o valor da energia efectivamente consumida e não contabilizada, motivo pelo qual a mesma se deu como provada.
Por sua vez, no que respeita à autoria dos factos pelos arguidos, refira-se, desde já, que não foi possível obter prova directa dessa factualidade. Destarte, os arguidos não confessaram os factos, as testemunhas também nada presenciaram a este respeito, e nenhuma outra fonte de prova directa foi produzida.
Sucede que, como é sabido, na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. Ao passo que as primeiras são consideradas instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos; as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que se tem por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir, entrando-se no campo da designada prova indirecta ou indiciária.
A prova indirecta ou indiciária reporta-se, pois, a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova (as chamadas presunções naturais). Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.09.2019 (processo n.º 294/17.2JGLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt), “Sabido é que o tribunal a quo pode prevalecer-se da prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admissível pelo nosso ordenamento jurídico. – A prova indirecta ou indiciária reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência (sendo estas “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentemente do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.
A denominada prova indirecta ou por presunção assume, por isso, também um papel fundamental e virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência, uma vez que em processo penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (cfr. artigo 125.º do CPP).
Ora, a validade da prova por presunção está dependente da existência de determinados factos conhecidos (os factos base ou factos indiciantes, que funcionam como indícios), com base nos quais, e através de recurso a um juízo de normalidade e probabilidade, em conformidade com regras da experiência comum, se afirma então um facto desconhecido (o factum probandum), para além de qualquer dúvida razoável.
Posto isto, no caso em apreço, foi possível apurar nos autos o seguinte:
Para o local de consumo em apreço (sito na Rua do  …, em ...-...-C_____) foi celebrado em nome da empresa “H. –, Lda.” um contrato de fornecimento de energia eléctrica. O referido contrato está em vigor desde 14.10.2011, permitindo o abastecimento daquele local com energia eléctrica.
De acordo com a ordem de serviços de fls. 10, cujo teor foi integralmente confirmado em audiência pela testemunha JD, num depoimento objectico e isento, que esteve pessoalmente no local e vistoriou o contador aí existente, trata-se de um armazém de frios, o que se mostra compatível com a actividade a que se dedica a referida empresa.
Da conjugação da prova testemunhal e documental junta também ficou cabalmente demonstrado nos autos que o contador existente nessa instalação foi adulterado, tendo havido alteração no circuito de medição das correntes de entrada, o que fez com que o valor de corrente de entrada assumida pelo contador fosse menor que o valor real e, consequentemente, a energia contabilizada fosse inferir à efectivamente consumida.

Mais, foi possível apurar a concreta data em que ocorreu essa manipulação – 05.03.2015 – por força da análise comparativa do registo de eventos de abertura de tampa do contador com o registo de histórico de consumos do cliente e pontas máximas.
Logrou-se, como tal, definir concretamente o período da anomalia que se prolongou de 05.03.2015 a 08.10.2018, sendo que o contador era exclusivo daquela instalação, apenas abastecendo aquele local de consumo.
Da análise da certidão permanente da empresa “H. ” extrai-se que a sociedade foi constituída no ano de 1994, com um capital social de € 165.000,00, dividido por duas quotas de € 82.500,00, uma delas pertencente ao arguido TR, casado com a arguida MR, e outra à arguida SR  (cunhada dos arguidos, viúva) e TAR (na altura, menor de idade). À data da constituição da sociedade, foram, desde logo, nomeados como gerentes os sócios e arguidos TR  e SR  e a não sócia e arguida MR. No ano de 2009, houve uma transmissão da quota que pertencia ao arguido TR para a sua esposa, a arguida MR, mantendo-se a estrutura da gerência a cargo dos arguidos, agora não sócio TR  e sócias SR  e MR. Nesse mesmo ano, houve um aumento de capital da sócia arguida MR, passando a deter uma quota de € 167.500,00. Do exposto, resulta, pois, que a estrutura da gerência manteve-se inalterável desde o já longínquo ano de 1994 -ano da constituição da sociedade - até ao presente.
Tal significa que, quer à data da celebração do contrato de fornecimento de energia eléctrica, quer à data em que foi realizada a adulteração do contador, quer no período em que essa adulteração se prolongou no tempo sem ser detectada, a estrutura da gerência da referida empresa foi sempre a mesma, sendo composta única e exclusivamente pelos aqui arguidos, sendo que, no período da verificação da anomalia, as arguidas, para além de gerentes, são sócias da referida sociedade.
É sabido que, da manipulação efectuada no contador, resultou um benefício ilegítimo para a sociedade gerida pelos arguidos, beneficio esse correspondente ao valor da energia efectivamente consumida e não contabilizada no local.
Ora, esse benefício ilegítimo traduziu-se numa diminuição relevante nos custos fixos de exploração daquela empresa. Destarte, ficou patentemente demonstrado nos autos uma adulteração que provoca um erro fora de norma no contador de -57%, conforme se alcança do depoimento das testemunhas AP e DP, em sustentação do descrito no relatório da Labelec já anteriormente referido.
Ora, levam-nos as regras da experiência comum, da lógica e da normalidade da vida a concluir que os arguidos, por força da sua ligação à sociedade “H. ” são as únicas pessoas interessadas em proceder às mencionadas alterações do contador e que, conforme supra explanado, naturalmente implicaram um benefício ilegítimo.
Destarte, dizem-nos as ditas regras que os arguidos, enquanto gerentes da referida sociedade, não tendo sido produzida qualquer prova que infirme essa ligação dos arguidos à sociedade em apreço, têm um interesse geral em ver reduzidas as despesas respeitantes à facturação da energia eléctrica.
Os arguidos, enquanto gerentes, têm interesse na redução do preço das matérias primas e de todos os custos de exploração (fixos ou variáveis), em ordem à prossecução do objecto social da sociedade com um maior lucro. Esse é, aliás, um interesse comum a qualquer gerente de uma sociedade, que exerça o cargo com responsabilidade.
No caso concreto, olhando para a ordem de grandeza dos valores em causa, a adulteração efectuada teve necessariamente expressão na facturação dos custos da energia eléctrica da empresa, é desprovido de qualquer racionalidade lógica afirmar o contrário.
Os arguidos, enquanto gerentes, e as arguidas ainda cumulando essa qualidade com a qualidade de sócias, numa empresa de estrutura familiar e da qual todos dependem em termos de salário tinham de ter necessariamente conhecimento desta situação.
Acresce que conforme ficou demonstrado em audiência estamos perante uma adulteração do contador que se traduz numa operação complexa e sofisticada, a qual exige recursos e assume perigosidade, como bem salientaram as testemunhas. Ora, ditam as regras da experiência comum que só uma pessoa com cargo de responsabilidade da empresa se sujeitaria a essa situação.
Os dados apurados nos autos permitem, pois, excluir, com segurança, que eventuais terceiros que a tenham realizado tenham agido por sua própria iniciativa e interesse, e sem o acordo e/ou o conhecimento do arguido, e concomitantemente, tal circunstância permite concluir que foram os arguidos ou outrem a seu mando e no seu interesse a realizar tal operação.
Pelo que todo o conjunto de indícios acima reproduzido permitem afastar a presunção de inocência de que os arguidos beneficiam e determinar a participação dos mesmos nos factos, numa dinâmica de co-autoria, pois todos os indícios apontam nesse único sentido, sustentado a versão da acusação, não tendo, aliás, sido carreada para os autos qualquer outra versão alternativa que pudesse suscitar dúvidas no espírito do julgador.
Por sua vez, no que concerne ao conhecimento, à consciência da ilicitude e à vontade de praticar os factos por parte dos arguidos, cumpre, também, notar que tais factos, referentes a estados psíquicos, respeitam essencialmente ao foro interno, psicológico e íntimo, pelo que a sua verificação não é passível, por norma, de qualquer demonstração directa, sendo, ao invés, apenas revelada por indícios que as regras da experiência e da lógica permitem associar.
Ora, considerando a globalidade da factualidade apurada, em conjugação com as regras da normalidade da vida e da experiência comum, a conclusão não pode ser outra senão a da verificação desse conhecimento, consciência, vontade e intenção de actuação.
Foi, assim, que se formou a convicção do Tribunal, tendo a prova produzida permitido dar como provado os factos supra descritos.
***

3.–Apreciando

3.1.–Alegam os recorrentes que a sentença recorrida enferma de falta de fundamentação, porquanto desta “resulta uma referência quase geral à autoria, à dinâmica de coautoria, ao conhecimento, consciência, vontade e intenção de atuação de cada um dos arguidos, não se identificando quais os factos, em concreto, para os quais houve recurso à prova por presunção”; não há correlação entre cada um dos factos e a prova considerada para essa decisão; o que impede os arguido “de exercer de forma efetiva o seu direito ao recurso, constitucionalmente consagrado pelo n.º 1 do artigo 32.º da CRP, uma vez que não conseguem impugnar com a certeza necessária os pontos de facto contra si julgados por provados.”
Dispõe o artigo 205.º, n.º1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O artigo 97.º, n.º5, do C.P.P., prescreve, em relação aos actos decisórios em geral, que «são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
O acto da sentença, nos termos do disposto no artigo 374.º, do C.P.P., exige uma fundamentação especial.
De harmonia com o disposto no artigo 374.º, n.º2, do C.P.P., ao relatório da sentença segue-se a fundamentação que consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Por sua vez, estabelece o artigo 379.º, n.º1, alínea a), do C.P.P., que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º2 e na alínea b) do n.º3 do referido artigo 374.º.
A enumeração dos factos provados e não provados reporta-se, a nosso ver, a todos os factos submetidos à apreciação do tribunal e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, os constantes da acusação ou da pronúncia, do pedido de indemnização civil, da contestação penal e da contestação civil, quer sejam substanciais, quer circunstanciais ou instrumentais com relevo para a decisão. Acrescerá, sendo caso disso, o dever de se pronunciar quanto aos factos que resultem da discussão da causa e sejam relevantes para a decisão, no respeito do princípio da vinculação temática e sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos.
Exige-se, ainda, uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto (que, naturalmente, hão-se ser seleccionados de entre os factos provados e não provados) e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
O exame crítico da provas situa-se nos limites propostos, entre outros, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, D.R., 2ª Série, de 5 de Março de 1999, que julgou inconstitucional a norma do n.º2 do artigo 374.º do C.P.P. de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º1 do artigo 205.º da Constituição, bem como, quando conjugado com a norma das alíneas b) e c) do n.º2 do artigo 410.º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º1 do artigo 32.º, também da Constituição.
Não basta, por conseguinte, indicar os meios de prova utilizados, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
Mais detidamente sobre o “exame crítico” das provas, disse o Supremo Tribunal de Justiça: «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» (Acórdão de 16 de Março de 2005, Processo:05P662, www.dgsi.pt).
A fundamentação, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas inquiridas, ainda que de forma sintética. O exame crítico deve ser aferido com critérios de razoabilidade, não indo ao ponto de exigir uma explanação fastidiosa, com escalpelização descritiva de todas as provas produzidas, o que transformaria o processo oral em escrito, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo (cfr., sobre esta matéria, o Acórdão do STJ, de 26 de Março de 2008, Processo: 07P4833, www.dsgi.pt; também com interesse, Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º3, p. 21 e segs.).
Não devemos confundir ausência ou deficiência de fundamentação com uma fundamentação que não convença o arguido quanto às razões de convicção apresentadas pelo tribunal.
A fundamentação visa permitir a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial e não promover, necessariamente, o convencimento do destinatário da decisão quanto ao bem fundado dessas razões.
Perante as provas cada pessoa formará a sua convicção. O que importa é que o julgador dê a conhecer, de forma clara e no quadro do que é razoável exigir, as razões da sua convicção, de forma que possam ser compreendidas, e não que logre convencer todos da sua razão, pois à convicção do tribunal sempre se contrapõem as convicções divergentes de outros sujeitos processuais.
É por isso que a nulidade, resultante da falta ou insuficiência da fundamentação, só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o tribunal a quochegou, posto que, percebidas as razões do julgador, podem os sujeitos processuais, com recurso, quando tal for necessário, ao registo da prova, argumentar para que o tribunal de recurso altere a matéria de facto fixada.
No caso em apreço, concorde-se ou não com a motivação da decisão, entendemos que a sentença recorrida não padece de falta fundamentação, esforçando-se o tribunal a quo no sentido de explicitar as razões da sua convicção, conforme se infere da transcrição supra. A partir dessa exposição, podemos identificar o porquê da decisão de facto e o raciocínio lógico-dedutivo seguido pelo tribunal recorrido que serviu de suporte a tal decisão.
Assim, o tribunal invocou a prova testemunhal e a prova documental.
No que toca à prova testemunhal, o tribunal assinalou que todas as testemunhas inquiridas prestaram em audiência depoimentos que o Tribunal reputou como objectivos, coerentes e isentos. Demonstraram ter conhecimento directo dos factos sobre os quais depuseram exclusivamente por força do exercício da sua actividade profissional. Foram sérios e credíveis, tendo os depoimentos sido considerados genuínos, motivo pelo qual todos mereceram credibilidade (…).”
No que toca ao contrato celebrado entre a sociedade “H. ” e o comercializador de energia eléctrica “EDP – Comercial”, nomeadamente data do contrato e respectivo local de consumo, diz-se na motivação que tal factualidade ficou demonstrada nos autos pela conjugação da prova testemunhal produzida, em particular as testemunhas AP e DP , mostrando-se os depoimentos prestados em audiência conformes à prova documental constante dos autos, designadamente folha de dados da instalação de fls. 9 e ordem de serviço de fls. 10 e 11. Com relevância, depôs ainda a testemunha JD , técnico que se deslocou ao local de consumo, e que aí esteve presente, confirmando a sua existência e que identificou o cliente em apreço, certificando os dados que preencheu no auto de vistoria do ponto de mediação de fls. 12.”
Quanto às anomalias detectadas, manipulação do contador existente no local, tipo de intervenção realizada e consequências daí derivadas, a motivação indica a intervenção de cada uma das testemunhas e a relevância dos respectivos depoimentos, em conjugação com a prova documental, para a fixação dos factos provados.
Muito embora não se indique que prova serviu para dar como provado cada facto, facilmente se alcança que os pontos de facto 2, 3, 4, 5, a intervenção no interior do contador referida nos pontos de facto 7 e 8, e bem assim os prejuízos sofridos pela demandante, resultaram provados da conjugação da referida prova testemunhal com a prova documental, como indicado na motivação – matéria sobre a manipulação do contador e o valor da energia efectivamente consumida e não contabilizada
Quanto à autoria dos factos, a sentença recorrida reconhece a inexistência de prova directa, pelo que foi utilizada a chamada prova indirecta.
A partir da verificação de que o contador havia sido manipulado e do período em que tal se verificou, do que resultou um benefício ilegítimo para a sociedade em questão, o tribunal concluiu que apenas os arguidos, por serem gerentes da mesma, tinham interesse em proceder às mencionadas alterações do contador, para verem reduzidas as despesas respeitantes à facturação da energia eléctrica. Tendo em vista a ordem de grandeza dos valores em causa, a adulteração efectuada teve necessariamente expressão na facturação dos custos da energia eléctrica da empresa e os  arguidos enquanto gerentes, e as arguidas ainda cumulando essa qualidade com a qualidade de sócias, numa empresa de estrutura familiar e da qual todos dependem em termos de salário tinham de ter necessariamente conhecimento desta situação.”

E conclui:
«Os dados apurados nos autos permitem, pois, excluir, com segurança, que eventuais terceiros que a tenham realizado tenham agido por sua própria iniciativa e interesse, e sem o acordo e/ou o conhecimento do arguido, e concomitantemente, tal circunstância permite concluir que foram os arguidos ou outrem a seu mando e no seu interesse a realizar tal operação.
Pelo que todo o conjunto de indícios acima reproduzido permitem afastar a presunção de inocência de que os arguidos beneficiam e determinar a participação dos mesmos nos factos, numa dinâmica de co-autoria, pois todos os indícios apontam nesse único sentido, sustentado a versão da acusação, não tendo, aliás, sido carreada para os autos qualquer outra versão alternativa que pudesse suscitar dúvidas no espírito do julgador.
Por sua vez, no que concerne ao conhecimento, à consciência da ilicitude e à vontade de praticar os factos por parte dos arguidos, cumpre, também, notar que tais factos, referentes a estados psíquicos, respeitam essencialmente ao foro interno, psicológico e íntimo, pelo que a sua verificação não é passível, por norma, de qualquer demonstração directa, sendo, ao invés, apenas revelada por indícios que as regras da experiência e da lógica permitem associar.
Ora, considerando a globalidade da factualidade apurada, em conjugação com as regras da normalidade da vida e da experiência comum, a conclusão não pode ser outra senão a da verificação desse conhecimento, consciência, vontade e intenção de actuação.»

Afigura-se-nos, assim, que a sentença satisfaz as exigências de fundamentação, de modo a não incorrer no vício de nulidade por falta de fundamentação que os arguidos lhe imputam, sendo clara na exposição das razões de convicção e do raciocínio prosseguido pelo tribunal.
Coisa diversa será saber se essas razões da convicção e o percurso lógico seguido pelo tribunal a quo merecem aceitação.

3.2.–O artigo 125.º do C.P.P. estabelece serem admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
A presunção é uma “prova” reconhecida pelo ordenamento jurídico, enquanto ilação a tirar de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – artigos 349.º e 351.º, do Código Civil.
Porque nos encontramos em jurisdição penal, não operam as presunções legais, pelo que falamos, naturalmente, da possibilidade de fazer operar uma presunção natural, de facto, simples, de experiência, hominis ou judicial (praesumptiones facti ou hominis), enquanto definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal, em que se parte de um facto conhecido (o facto base, facto indiciante ou, simplesmente, indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum ou facto consequência), recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.
Naturalmente, as ditas presunções simples, naturais ou hominis, são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
Fazendo a distinção entre prova directa e prova indirecta ouindiciária,verificamos que aquela refere-se imediatamente ao thema probandum, ou seja, o meio de prova tem em vista, de modo imediato, o facto a provar, enquanto a prova indirecta reporta-se a factos diversos do tema da prova, que, com o auxílio das regras da experiência, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., permitem uma ilação ou inferência relativamente a este. Por sua vez, o indício revela o facto probando com tanta mais segurança quanto menos consinta a inferência de factos diferentes.
As regras da experiência são critérios gerais, índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, que servem para produzir prova de primeira aparência, baseadas na experiência de vida, argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer, já se sabendo, porém, que o caso particular pode ficar fora do caso típico (cfr. Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002 e, particularmente, 1011).

Também o Juiz Conselheiro Santos Cabral, em Prova Indiciária e as novas formas de criminalidade, Julgar n.º 17, sustenta:
«As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efectuar a generalização.
Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária

Como se diz no acórdão do S.T.J., de 09-02-2005, Processo 04P4721 (in www.dgsi.pt, como os que venham a ser citados sem outra indicação):
«As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [...] ou de uma prova de primeira aparência». (cfr. v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, nº 112 pág, 190).
Em formulação doutrinariamente bem marcada e dada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.»

A possibilidade de recurso à prova indirecta, em sede penal, para basear a convicção da entidade decidente sobre os factos, não oferece dúvida, reconhecendo-se de há muito a possibilidade de o tribunal deduzir racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária, devidamente valorada (cfr. Acórdãos do STJ de 11/12/03, Proc. n.º 03P3375; 07/01/04, Proc. n.º 03P3213; o já citado de 09/02/05, Proc. n.º 04P4721; 04/12/08, Proc. n.º 08P3456; 12/03/09, Proc. n.º 09P0395 e de 18/06/09, Proc. n.º 81/04PBBGC.S1. Ver também os acórdãos da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, C.J., Ano XXV, I, pp. 51 e seguintes, e o de 11 de Maio de 2005, proc. 1056/05).

Na prova indiciária, em primeiro lugar, há que ter um indício, plenamente demonstrado, se possível por prova directa, que corresponde à premissa menor do silogismo; em segundo lugar, tem de haver o despoletar de uma máxima de experiência ou regra de ciência que permita passar de um estado de ignorância para o esclarecimento; e, por último, em face do indício, infere-se o facto sob julgamento.
Residindo a essência da prova indiciária na conexão entre o facto-base e o facto-consequência, fundamentada no princípio da normalidade conectado a uma máxima da experiência, a força probatória de um indício será tanto maior ou menor consoante seja mais ou menos estreito o nexo lógico e prático entre ele (facto indiciante) e o facto probandum.
Na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

A prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos:
a)-Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou abutamente credíveis (embora excepcionalmente possa admitir-se um só se o seu significado for determinante);  
b)-Racionalidade da inferência obtida, de maneira que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo inteiramente razoável face a critérios de discernimento humano baseados na lógica e nas regras da experiência.

Importa reter que a tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tem em vista alcançar a verdade – não a verdade abuta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática ou prático-jurídicae processualmente válida (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1984, p. 194, 204-205; Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1968, Coimbra, p. 48-50), resultado de um convencimento do juiz sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.

Como se explica no acórdão da Relação de Lisboa, de 13-02-2013, Processo 256/10.0GARMR.L1-3, a reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é meramente marginal. O cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e a decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem, impondo a definição de um “standard” de prova a adoptar.

In casu, da leitura da motivação logo se depreende que o tribunal a quo chegou à autoria do furto com base, essencialmente, num facto indiciário: à data dos factos -  manipulação do contador da eletricidade - os três arguidos eram gerentes da sociedade “H.  - , Lda.”, conforme prova documental, sendo as arguidas também sócias.
Essenciais para o tribunal foram, por conseguinte, os elementos sobre a gerência inscritos na certidão permanente da sociedade.

A partir da verificação de que o contador havia sido manipulado e do período em que tal se verificou, do que resultou um benefício ilegítimo para a sociedade em questão, o tribunal concluiu que apenas os arguidos, por serem gerentes da mesma, tinham interesse em proceder às mencionadas alterações do contador, para verem reduzidas as despesas respeitantes à facturação da energia eléctrica. Tendo em vista a ordem de grandeza dos valores em causa, a adulteração efectuada teve necessariamente expressão na facturação dos custos da energia eléctrica da empresae os arguidos enquanto gerentes, e as arguidas ainda cumulando essa qualidade com a qualidade de sócias, numa empresa de estrutura familiar e da qual todos dependem em termos de salário tinham de ter necessariamente conhecimento desta situação.”

Admite-se, sem dificuldade, segundo as regras da experiência comum, que por causa da ligação dos arguidos com a dita sociedade, os mesmos teriam, em princípio, um interesse geral em ver reduzida a conta da eletricidade, tal como teriam igualmente interesse na redução do preço das matérias-primas e de outros custos, em ordem à prossecução do objecto da sociedade com maior lucro.

Contudo, não se diz, e também não se vislumbra que tenha sido indagado - nada constando a esse respeito - se aos três arguidos correspondia, para além da qualidade de “gerentes” no sentido nominal ou formal, o domínio e a capacidade efectiva de administração da referida sociedade comercial.

Não se diz, por exemplo, quem em representação da sociedade celebrou o contrato de fornecimento de energia eléctrica para abastecimento do referido local, nem que funções de gerência de facto e não apenas de direitocada um dos gerentes exercia (se é que todos exerciam a gerência de facto), muito embora se diga que a testemunha JD, dirigiu-se aos escritórios da sociedade, foi-lhe dada autorização para aceder ao contador, “onde se dirigiu acompanhado por uma pessoa que se identificou como PAR”.

Ainda que à posição formal de gerente duma sociedade possa corresponder, normalmente, um exercício de poderes de facto correspondentes, tal não ocorre necessariamente em todos os casos, pelo que entendemos que a existência de uma situação de gerência de direito, regularmente constituída e inscrita no registo comercial, não permite inferir a prática dos factos e determinar a responsabilização das pessoas singulares que figuram no registo nessa qualidade, apenas em função desta, afirmando um juízo de certeza, ou seja, para além de toda a dúvida razoável, de que tenham sido os arguidos (co) autores do facto criminoso em causa nos autos.

Neste contexto, a mera circunstância de os três arguidos figurarem na certidão permanente como gerentes da sociedade “H.  - , Lda.” não habilita a extrair, no plano criminal, por recurso às regras da lógica e da experiência, que todos conjugaram vontades e esforços em vista do concreto facto criminoso que lhes foi imputado, sendo que o tribunal a quo seguiu uma linha de raciocínio quanto à autoria dos factos (de que dá conta na motivação) que assenta, essencialmente, como já se assinalou, na estrutura societária e nos elementos sobre a gerência formal, de direito, que constam do registo, o que não tem base nos ditames da experiência comum e revela uma falha ostensiva na análise da prova.  

Estabelece o artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.

Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

O vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, do C.P.P., verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao homem médio - ou, talvez mais adequadamente (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao jurista ou ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente. (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74).

A nosso ver, é o que acontece no caso em apreço, já que se inferiu por prova indirecta a responsabilização de todos os arguidos sem que a base indiciária invocada permita estabelecer a conexão entre a autoria da apropriação de energia eléctrica e os arguidos, individualmente ou em conjunto, nos termos constantes da sentença, sem as indagações possíveis no respeito do âmbito do objecto do processo (e nos limites consentidos pelo regime da alteração dos factos), pelo que a sentença enferma do vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P., razão por que, não sendo possível decidir da causa, impõe-se reenviar o processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto.
***
           
III–Dispositivo

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em declarar a existência do vício a que alude a alínea c), do n.º2, do artigo 410.º do C.P.P., determinando, nos termos dos artigos 426.º, n.º1 e 426-A, do mesmo Código, o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo.
Sem tributação.



Lisboa, 10 de Maio de 2022


(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)



(Jorge Gonçalves)                              
(Fernando Ventura)