Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18153/18.0T8LSB-B.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: INABILITAÇÃO
CONVOLAÇÃO
MAIOR ACOMPANHADO
CONSENTIMENTO
BENEFICIÁRIO
PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Na acções de interdição e de inabilitação pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 4 de Agosto, que criou o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, cabe sempre ao tribunal, no âmbito dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal, sem os formalismos próprios dos processos de jurisdição contenciosa, mas sempre com respeito pelo contraditório, controlar se se justifica suprir a falta de autorização do eventual beneficiário.
II - Assim como lhe cabe controlar a concessão de autorização pelo mesmo, usando de cuidada ponderação, dado que não é justificável presumir nem que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização.
III - Contudo, essa tarefa não exige uma indagação probatória tão exaustiva e um juízo tão exigente como o que é reclamado para a aplicação ao beneficiário de uma medida de acompanhamento, sob pena de se esvaziamento deste processo nos casos em que com o pedido de acompanhamento se cumule o pedido de suprimento de autorização do beneficiário e de ocorrência do efeito perverso de não poderem ser “determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido” [artigo 139.º, n.º 2, do CC], pelo previsível “arrastamento” do incidente de suprimento da falta de autorização do beneficiário.
IV - Do cotejo dos artigos 891.º, n.º 1, 986.º, n.º 2, 1.ª parte, 987.º e 988.º, n.º 1, do CPC, não decorre que seja aplicável ao processo especial de maior acompanhado a tramitação específica dos processos de jurisdição voluntária, categoria de que faz parte o processo de suprimento do consentimento de recusa regulado no art.º 1000.º do CPC, antes as regras e princípios inerentes aos processos de jurisdição voluntária, nos termos dos quais o juiz goza de liberdade de iniciativa na realização de diligências [“poderes do juiz”], não está sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo a liberdade de proferir a decisão que lhe pareça mais conveniente e oportuna, a que melhor serve os interesses em causa [“critério de julgamento”] e pode, a todo o tempo, rever ou levantar a medida de acompanhamento aplicada, quando a evolução do beneficiário o justifique [“alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”].
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
1. S (…) …. e G(…) , intentaram acção especial de inabilitação contra a sua mãe M(…) …, nascida a 30-04-1934, com fundamento em anomalia psíquica ou, subsidiariamente, por prodigalidade.
Alegaram, em substância, que a Requerida reside em permanência, desde Março de 2016, na residência D(…) …, não tem já há vários anos capacidade cognitiva e discernimento para administrar convenientemente o seu património. Não obstante, de há alguns anos a esta parte, tem vindo a alienar sucessivamente o seu vasto património imobiliário, tendo vendido, ou doado ao seu filho D(…) imóveis com um valor de mercado que os Requerentes estimam não inferior a 2.500.000,00€, sendo que já depois de internada, em 2015, alienou o prédio sito na Praia da Luz. Em face desses factos, e temendo que a Requerida acabasse por dissipar o resto do seu património, aparentemente sem necessidade ou sequer conveniência, os Requerentes pediram o arrolamento dos bens que ainda lhe restavam, o que veio a ser decretado. Já depois de ter sido decretado o referido arrolamento e antes do mesmo ter sido registado, a requerida vendeu mais um imóvel, à pressa e por um preço muito inferior ao de mercado e, inclusivamente, por menos 150.000,00€ do que o preço de venda anunciado e pelo qual estava a ser comercializado. Apesar de todas estas alienações, as contas bancárias da Requerida encontram-se inactivas ou praticamente desprovidas de saldo. A administração do património da Requerida tem sido feita com a ajuda do seu filho D(…) o qual a representa junto do lar residencial, das imobiliárias, das administrações dos condomínios, etc., tendo sido o mesmo o beneficiário de vários actos de disposição gratuita dos seus bens.
Termos em que requereram que a requerida que fosse declarada inabilitada, por anomalia psíquica, ou ao menos por prodigalidade, e que, em consequência, privada de praticar, sem autorização, quaisquer actos de disposição ou administração dos seus bens, que não fossem os actos da vida corrente.
2. A Requerida apresentou contestação, mediante a qual afirmou que se opunha à aplicação de qualquer medida (de inabilitação), por se encontrar plenamente capaz, mantendo conservadas as suas capacidades mentais, tanto no plano cognitivo como no comportamental, e que é assistida no tratamento das questões patrimoniais pelo seu filho mais novo, D(…) …, único que continua a prestar à Requerida todo o apoio de que carece e deseja. Ademais, imputou aos Requerentes desinteresse pela sua pessoa, que inexiste entre ela e os Requerentes qualquer relacionamento de afeição e carinho, que estes prosseguem interesses patrimoniais próprios, no sentido de procederem ao controlo do património da Requerida, direito que lhes não reconhece, por contender com a sua vida privada.
3. Em face da oposição da Requerida ao prosseguimento dos autos de inabilitação, foi proferido despacho a convidar as partes a pronunciarem-se quanto às consequências substantivas e processuais decorrentes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2019, de 14 de Agosto, que determinaria a extinção do instituto da Inabilitação e a restrição da possibilidade de instauração de processos de acompanhamento, pelos filhos, sem a existência de autorização do beneficiário.
4. Na sequência desse convite, os Requerentes pugnaram no sentido do prosseguimento dos autos, pelo suprimento do consentimento da Requerida, para os efeitos do n.º 2 do artigo 141.º do Código Civil, e a Requerida pugnou no sentido da improcedência do pedido de acompanhamento ou, subsidiariamente, pela nomeação do seu filho D(…), para exercer o cargo de acompanhante.
5. O Ministério Público tomou posição no sentido de que os autos deverão prosseguir os seus termos, conforme artigo 26.º, n.º 1 da Lei n.º 49/2019, de 14 de Agosto (Lei) (Vista de 15-05-2019).
6. Procedeu-se à audição da Requerida [cfr. ref.ª 389666952, de 5-09-2019].
7. Realizado exame pericial, concluiu o Sr. Perito que:
(…)
7.1. Não existindo elementos bastantes para, por ora, afirmar a existência de um Síndrome Demencial instalado, ou noutra terminologia, de um quadro de Perturbação Neurocognitiva Major por Demência, ainda assim suscitam-se fundadas dúvidas quanto a sofrer a examinanda de um quadro de Défice Cognitivo Ligeiro ou Perturbação Neuro cognitiva Minor por involução demencial ou envelhecimento cerebral, de natureza degenerativa (demência degenerativa).
7.2. A Perturbação Neuro cognitiva Minor caracteriza-se nos termos de classificações internacionais, como o DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais, na sua 5.ª revisão da Associação Americana de Psiquiatria) por evidência de um declínio cognitivo modesto em relação a um nível prévio de desempenho num ou mais domínios cognitivos (atenção complexa, funções executivas, aprendizagem e memória, capacidade perceptivo-motora ou cognição social) com base em preocupação do indivíduo, de um informador conhecedor ou clínico, de que existe um ligeiro declínio da função cognitiva, um défice modesto no desempenho cognitivo, de preferência documentados por testes (que no caso concreto pretendemos solicitar). Importa ainda para este diagnóstico que os défices cognitivos não interfiram significativamente na realização independente das actividades da vida diária, ainda que podendo exigir um esforço maior ou utilização de estratégias de compensação ou de ajustamento. Não deve ocorrer exclusivamente no decurso de outras patologias e nesses períodos de tempo, sendo útil, portanto, no caso concreto, a consulta de registos objectivos do passado clínico que também se pretende solicitar.
7.3. Se bem que tal quadro, como se disse, não perturbe seriamente o funcionamento global, nem decisões seja de baixa densidade, seja do dia-a-dia concreto, ou mesmo aquelas que tenham um peso mais afectivo do que de todo exclusivamente racionais, poderá porventura interferir e comprometer em maior ou menor grau - cuja amplitude se desconhece e importa melhor dilucidar com recurso a elementos de prova psicológicos - decisões complexas ou que exijam um maior esforço de distanciamento, capacidade de abstração elevadas ou operações de gestão de vasto património.
7.4. Desta forma é possível afirmar que globalmente sendo cognitivamente capaz de tomar como as acima referidas, e perante a funcionalidade global apurada na Audição pela Meritíssima Juiz e exaustivamente descrita e fundamentada pelas rúbricas de exame directo deste exame pericial psiquiátrico, não se suscitam quaisquer dúvidas médicas razoáveis quanto à necessidade (em termos médico-legais) de ser suprido pelo tribunal o consentimento para a presente acção, a que se reporta o artigo 141.º do Código Civil, na nova redacção conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto. Está assim respondido pericialmente, nos estritos limites da ciência psiquiátrica, ao concreto objecto de perícia exarado em Despacho datado de 20.05.2019, e conforme decorre também da promoção que antecede da Senhora Procuradora da República.
7.5. Todavia, para ser dada resposta cabal, em termos estritamente médico-legais, às questões previstas e definidas no artigo 899.º do Código de Processo Civil, na nova redacção conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, carece porém o perito de elementos adicionais que, caso a Mm.ª Juiz doutamente entenda o prosseguimento da Acção, deverão ser obtidos pelo Tribunal, mediante ofício, e quando constarem dos autos serem remetidos ao Perito, para elaboração de novo relatório (final), ou, porventura, se medicamente necessário após a observação desses elementos supervenientes, se proceder previamente a continuação da entrevista. (…)
8. Foi, então, proferida Decisão, datada de 18-12-2019, com a referência 392330415 [cfr. fls. 124 verso a 128verso] a suprir a falta de autorização da Requerida para que os autos prosseguissem os seus termos como processo de acompanhamento de maior, regulado no artigo 891.º e segs. do CPC.
9. Inconformada com tal decisão, a Requerida apelou para esta Relação de Lisboa, finalizando as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«1ª - Nos termos do disposto no art.º 141º, nº1, do Código Civil, na redação introduzida pela Lei nº 49/2018, de 14 de agosto, os autores da ação especial de habilitação proposta contra sua (deles) mãe, M(…), careciam de legitimidade para, na sequência da entrada em vigor daquela Lei, requererem o prosseguimento daqueles autos como processo especial de acompanhamento de maiores, regulado no art. 891º segs. do CPC, porquanto a requerida M(…) não os autorizou, nem autoriza, a requererem a conversão da referida ação especial no sobredito processo especial de acompanhamento..
2ª - Por outro lado, não se verificam nos autos os requisitos exigidos pelo n.º 2 do citado art.º 141º do Código Civil para que a Mmª Juiz autora do, aliás, douto despacho recorrido pudesse legalmente suprir, como o fez, a falta de autorização da requerida para o questionado prosseguimento dos autos como processo especial de acompanhamento de maiores.
3ª - Acresce que, antes da prolação do despacho recorrido, não foram cumpridas as formalidades essenciais do incidente de suprimento que constam do art.º 1000º e segs. do CPC, cujo art.º 1001º foi, aliás, alterado pela citada Lei 49/2018, uma vez que, tendo a requerida alegado nos autos a sua firme oposição a que a ação de inabilitação prosseguisse os seus termos como processo especial de acompanhamento de maiores, deveria, no mínimo, ter sido designado dia para a audiência final, depois de concluídas as diligências que houvesse necessidade de realizar previamente” (cfr. n.º 2 do citado art. 1000º do CPC).
4ª- E na necessária, mas não realizada, audiência de julgamento deveriam ser praticados os atos previstos no nº 3 do mesmo supracitado art.º 1000º do CPC e só depois é que a Mmª Juiz poderia decidir, ou não, o suprimento da autorização da requerida.
5ª - Deste modo, nos termos do disposto no nº 1, in fine, do art. 195º do CPC, a inobservância da legal tramitação do incidente de suprimento de consentimento provocou a nulidade do despacho recorrido, dado que a irregularidade cometida pode “influir no exame ou na decisão da causa”.
6ª- Por outro lado, nos precisos termos da redação do art.º 138º do Código Civil, introduzida pela supracitada Lei nº 49/2018, apenas é admitido o decretamento de medidas de acompanhamento em relação ao maior que esteja “impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”.
7ª - Ora, conforme inequivocamente resulta dos autos, a referida condição “sine qua non” para o decretamento de medidas de acompanhamento não se verifica no caso da requerida.
8ª - Na verdade, as declarações escritas por médicos psiquiatras que foram juntas à contestação da acção de inabilitação e também os factos considerados provados na douta sentença proferida no processo apenso (procedimento cautelar de arrolamento) demonstram de forma cabal que a requerida “apresenta capacidades normais de juízo e livre arbítrio, sem alterações de forma ou conteúdo do pensamento que lhe permitem a utilização normal do discernimento e da síntese crítica” e que a requerida “apresenta inteira normalidade das capacidades mentais, tanto no plano cognitivo como no comportamental, com utilização normal de discernimento e de autocrítica
9ª - E conforme também consta da mesma supracitada sentença (facto provado n.º 24), “tanto quanto resulta do depoimento do seu médico, das declarações das testemunhas que revelaram conhecimento dos factos, por com esta privarem, a Requerida tem capacidade para se autodeterminar.”
10ª - Nesta mesma referida sentença, foi considerado provado que “a requerida responde com lógica e coerência a qualquer pergunta que lhe seja formulada e mantém uma conversação normal sobre os mais variados assuntos com quaisquer pessoas que com ela dialoguem, nomeadamente os funcionários do lar Residência Domus …, as pessoas amigas e o seu filho D(…) …, que com ela convive diariamente” (facto 25).
11ª- De notar que, na mesma sentença de que se vem transcrevendo alguns extractos, foi considerado provado que “a requerida é uma pessoa dotada de um elevado nível cultural, que passou uma grande parte da sua vida no exercício das funções de professora universitária e actualmente ainda é uma assídua leitora de livros sobre os mais diversos temas, nomeadamente obras literárias, e geralmente não se furta a emitir a sua opinião sobre qualquer tema que seja abordado em conversas com pessoas e conhecidas” (facto 26).
12ª - E também conforme se salientou no douto Acórdão desse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa em que foi ordenado o levantamento dos arrolamentos decretados no processo apenso, “a circunstância de ter, ela própria, outorgado as escrituras identificadas em 37. e 39. dos factos provados, (para além dos demais actos de transmissão identificados em 35., dos factos provados), só reforça a conclusão de que a requerida não está afectada nas suas faculdades intelectivas e volitivas, pois que, a não ser assim, nunca lograria prestar as declarações de vontade que prestou, perante notário.”
13ª - De realçar ainda que, no mesmo acima referido Acórdão desse Tribunal da Relação de Lisboa, também se escreveu o seguinte: “em suma, como não está provado que a requerida padeça de qualquer anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, de carácter permanente, nem de habitual prodigalidade ou de abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, não estão reunidos os pressupostos para afirmar a possibilidade de, na acção de que o arrolamento é dependência, ser decretada a inabilitação da mesma, com nomeação de curador a quem seja entregue, no todo ou em parte, a administração do património da mesma.”
(negrito nosso).
14ª - Sucedeu, porém, que, no despacho recorrido, a Mmª Juiz não faz a menor referência ao teor das referidas declarações emitidas e assinadas por médicos psiquiatras, ou seja, habilitados com a mesma especialidade que a do Sr. Perito Médico que, no dia 5 de Setembro de 2019, na sala de audiências do Juízo Local Cível de Lisboa, procedeu a um longo e, atendendo à sua idade (a caminho dos 86 anos), certamente cansativo interrogatório da requerida, do qual resultou o “Relatório de Perícia Psiquiátrica” junto aos autos.
15ª - Identicamente, a Mmª Juiz também fez completa tábua rasa do facto de a requerida ter respondido com acerto e coerência de raciocínio a todas as questões que lhe foram colocadas, quer na audição pessoal conduzida por ela, Mmª juiz, quer no aludido interrogatório a que foi submetida pelo Sr. Perito Médico, incluindo o instrumento de rastreio das funções cognitivas denominado “Mini Mental State Examination (MMSE), uma conta de aritmética, um desenho e a redação de uma frase, testes estes em que teve a nota máxima possível ou muito próxima desta, assim evidenciando plenamente que os seus 85 anos de idade não afectaram a sua capacidade para se autodeterminar, aliás já anteriormente reconhecida em factos tidos por provados na douta sentença e no douto Acórdão desse Tribunal da Relação de Lisboa, proferidos no processo apenso.
16ª - A propósito das respostas dadas às muito numerosas perguntas que lhe foram feitas pelo Sr. Perito Médico, algumas incidentes sobre a intimidade da sua vida privada, julga-se que a Mmª Juiz não deveria olvidar que faltam já menos de 4 (quatro meses) para que a requerida complete 86 anos de idade, pois nasceu no dia 30 de Abril de 1934, e que, portanto, um ou outro lapso de memória são absolutamente normais nesta fase da vida de qualquer pessoa e até, conforme é facto público e notório, em pessoas bastante mais novas que a requerida, o que não significa que esta não seja plenamente capaz, como de facto é, de “exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres” (cfr. a actual redação do art. 138º, nº 1, do Código Civil).
17ª - Cumpre ainda observar que a Mmª Juíza “a quo”, para além de, no despacho recorrido, não fazer qualquer menção do teor das três declarações médicas e de outros meios de prova constantes dos autos, fundamentou a sua decisão de suprimento nas meras conjecturas e nas “dúvidas” expressas pelo Sr. Perito Médico no parágrafo 7.1 do seu “Relatório de Perícia Psiquiátrica” e nas subsequentes também meras conjecturas e hipóteses formuladas nos parágrafos 7.2., 7.3, 7.4 e 7.5 do mesmo relatório.
18ª - De facto, no parágrafo 7.1 do seu relatório, o Sr. Perito Médico declara, em primeiro lugar, que não existemelementos bastantes para, por ora, afirmar a existência de um Síndrome Demencial Instalado, ou noutra terminologia, de um quadro de Perturbação Neurocognitiva Major por Demênciae só depois declara que “ainda assim suscitam-se fundadas dúvidas quanto a sofrer a examinanda de um quadro de Défice Cognitivo Ligeiro ou Perturbação Neuro cognitiva Minor por involução demencial ou envelhecimento cerebral, de natureza degenerativa (demência degenerativa).
19ª - Constata-se, pois, que, apesar de tudo, o Sr. Perito Médico teve a hombridade de reconhecer que é “ligeiro” o hipotético “Défice Cognitivo” e é reduzida (“Minor”) a igualmente hipotética “Peturbação Neuro cognitiva
20ª - Semelhantemente, no douto despacho recorrido também se transcreve o que o Sr. Perito Médico escreveu no parágrafo 7.3 do seu relatório, em que, após se reconhecer que o quadro descrito não perturba “seriamente o funcionamento global, nem decisões seja de baixa densidade, seja do dia-a-dia concreto, ou mesmo aquelas que tenham um peso mais afectivo do que de todo exclusivamente racionais”, mais uma vez, mas também apenas conjeturalmente e não com base em qualquer evidência científica, permitiu-se opinar que aquele quadro, a verificar-se, “poderá porventura interferir e comprometer em maior ou menor grau - cuja amplitude se desconhece e importa melhor dilucidar com recurso a elementos de prova psicológicos - decisões complexas ou que exijam um maior esforço de distanciamento, capacidade de abstracção elevadas ou operações de gestão de vasto património”.
21ª - De notar, porém, que, sobre o teor deste parágrafo 7.3, o Sr. Perito Médico, que trabalha para uma empresa privada - a Legismente, Lda. - teve a hombridade de reconhecer que a requerida tem capacidade suficiente para tomar decisões, mas acaba por, no parágrafo 7.4, se pronunciar a favor do “suprimento para a presente acção” e, nos parágrafos 7.2, 7.3 e 7.5 , sugerir, caso a Mmª Juiz decida ordenar o prosseguimento da ação, a realização de mais “testes” (I para a elaboração de novo relatório (final) ou, porventura, se medicamente necessário, a observação desses elementos supervenientes, se proceder previamente à continuação da entrevista ()”.
22ª - Todavia, é, por demais evidente que, tanto das respostas dadas pela requerida às perguntas formuladas pela Mmª Juiz na audição pessoal, como da leitura atenta do “Relatório da Perícia Psiquiátrica” decorre, com meridiana clareza, que a requerida, apesar da sua provecta idade, tem, num grau elevado e, portanto, mais que suficiente, o discernimento, capacidade intelectual e vontade própria para gerir a sua pessoa e os seus bens e, portanto, nada justificará que a Mmª Juiz a tenha colocado numa situação de “capitis diminutio”, se bem que ainda não formalmente declarada, ao não valorizar, como logicamente se impunha, a sua decisão, livre e consciente, de não autorizar a conversão da contestada ação de inabilitação no igualmente para ela indesejado processo de acompanhamento de maiores.
23ª - Por outro lado, por força da nova redacção do art.º 140º, n.º 2, do Código Civil, a medida de acompanhamento “não tem lugar sempre que o seu objectivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam”.
24ª -Tais deveres gerais de cooperação e de assistência estão consagrados no art.º 1874º, nº 1, do Código Civil, nos seguintes termos “pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência”.
25ª - Ora, conforme se alegou na contestação (arts. 41º e 45º) e na resposta dada à notificação da Mmª Juiz para que as partes se pronunciassem acerca dos efeitos da Lei 49/2018 sobre a então pendente ação de inabilitação (nºs 10, 11, 12, 13 e 14 da dita resposta) e, aliás, já está suficientemente provado nos autos (v.g. o facto provado n.º 28 da douta sentença proferida no processo apenso), que “o filho D(..) é o único que continua a prestar à requerida todo o apoio de que esta carece e muito deseja e aprecia, designadamente no que respeita à assistência médico-medicamentosa, convívio com pessoas amigas, idas a restaurantes e à sua referenciada casa de habitação e na administração do seu (dela) património mobiliário e imobiliário ” (facto provado nº 28)
26º - Na verdade, consta dos autos prova bastante de que o filho mais novo da requerida, D(…), tem vindo a cumprir escrupulosamente para com ela os “deveres gerais de cooperação e assistência a que alude o n.º 2 do citado art.º 140º do Código Civil e que são os prescritos no art.º 1874º, nº 1, do Código Civil.
27ª - Esta inelutável realidade torna legítima, para a requerida, a ilação de que a tentativa dos seus outros dois filhos, os autores da ação de inabilitação e requerentes do arrolamento dos bens imóveis e contas bancárias da requerida, cujo levantamento foi ordenado pelo esse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de, através dos tribunais, imporem à requerida sua mãe restrições totalmente injustificadas à sua capacidade civil (art.º 26º, n.º 1, da Constituição da República) constituirá, no mínimo, um manifesto e chocante abuso do direito (art.º 334º do Código Civil).
28ª - Deste modo, salvo o devido respeito, julga-se que, contrariamente ao que a Mmª Juiz expende na página 9 do douto despacho recorrido, se dúvidas houvesse sobre a alegada desnecessidade da medida de acompanhamento, atendendo a que o seu objetivo se mostra “garantido através dos deveres gerais de cooperação e assistência que no caso caibam” (art.º 140º, nº 2, do CPC), os meios legais de que o tribunal dispunha para esclarecer tais dúvidas seriam as diligências instrutórias prescritas no art.º 1000º do CPC, que regula a tramitação do incidente de “suprimento de consentimento no caso de recusa”, diligências essas que não foram realizadas e foram totalmente ignoradas pela Mmª Juiz da 1ª Instância.
29ª - É que se, em tais diligências instrutórias, se viessem a confirmar os factos já provados nos autos, no sentido de que a requerida tem garantida toda a cooperação e assistência de que possa necessitar, evitar-se-ia, por se traduzir na prática de atos inúteis, o prosseguimento da ação de inabilitação como processo de acompanhamento de maiores e, conforme se julga ser imperativo, a requerida seria, pura e simplesmente, absolvida da instância e, consequentemente, como é seu veemente desejo, não teria mais de suportar os incómodos do doloroso processo contra si instaurado por dois dos seus três filhos (vd. as impressivas respostas dadas a este propósito pela requerida, tanto na audição pessoal conduzida pela Mmª Juiz, como durante o interrogatório feito pelo Sr. Perito Médico).
30ª - Por outro lado, importa salientar que a Mmª Juiz não invocou expressamente qualquer incapacidade real e actual da requerida para, livre e conscientemente, exprimir a sua vontade, conforme reiteradamente o fez e continua a fazer, de não autorizar a instauração do processo de acompanhamento almejado pelos filhos Gonçalo e Sofia, como forma de, direta ou indirectamente, controlarem a gestão do seu património e até a sua própria pessoa.
31ª. Na verdade, a Mmª Juiz limitou-se a fundamentar o aqui impugnado suprimento apenas num hipotético, mas não provado ou sequer indiciado “Défice Cognitivo Ligeiro” ou “Perturbação Neuro cognitiva Minor”, referidos pelo Sr. Perito Médico apenas com base numa “dúvida” tida por “fundada”, mas sem dizer porquê, a que a Mmª Juiz acrescentou a alusão a uma suposta, mas inexistente, “doença”, sem de modo algum a caracterizar ou identificar, a qual também não está provada ou sequer indiciada nos autos, tudo isso para tentar justificar a conclusão de que se impunha ao Tribunal “considerar suprida a autorização do Beneficiário, para os efeitos do nº 2 do artigo 141º do Código Civil”.
32ª - De igual modo, a Mmª Juiz também não invocou quaisquer factos reais e atuais que possam ser qualificados como “fundamento atendível” (art. 141º, in fine, do Código Civil), para justificar o suprimento em causa, em alternativa à, aliás, inexistente incapacidade ou impossibilidade da requerida de “exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”, de harmonia com o disposto no art.º 138º do Código Civil).
33ª - Assim, decidindo de modo contrário ao exposto, a Mmª Juiz autora do despacho recorrido violou o disposto nos arts. 138º, 140º, nº 2, 141º, nºs 1 e 2, todos do Código Civil, na redação dada pela Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, e bem assim os arts. 1000ª e 1001º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos demais que Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, mui doutamente suprirão, deverá conceder-se provimento ao recurso e, consequentemente, revogar-se o despacho recorrido e absolver-se a requerida da instância, por força de, in casu, se verificarem as exceções dilatórias previstas nos arts. 576º, nº 2, e nas alíneas d) e e), do art. 577º, do CPC, aplicáveis ao processo especial de acompanhamento por força do disposto no art. 549º, nº 1, do mesmo diploma legal.
Subsidiariamente, para o caso de o pedido formulado supra (absolvição da instância) ser julgado improcedente, deverá julgar-se procedente, por provada, a invocada nulidade decorrente da não instauração do incidente de suprimento de consentimento, regulado nos arts. 1000º e segs. do Código de Processo Civil, e da consequente omissão das diligências probatórias previstas nos nºs 2 e 3 do citado preceito legal, antes da prolação do despacho recorrido, o qual, em tal hipótese, deverá ser anulado, com a subsequente devolução do processo à 1ª Instância, a fim de serem cumpridas as formalidades prescritas nos mencionados preceitos legais, com o que, mediante a prolação de qualquer das referidas decisões, se fará a costumada »
10. Os Requerentes apresentaram contra-alegações com a seguinte síntese conclusiva:
«- O despacho recorrido não enferma da nulidade invocada, por preterição de formalidades essenciais, por não ser aplicável ao caso o processo especial de suprimento a que se refere o art.º 1000º e seguintes do CPC;
- Quer a recorrente, quer os recorridos, tiveram oportunidade de se pronunciar e apresentar prova sobre a questão relacionada com o suprimento da autorização e a convolação do processo de interdição/inabilitação no processo de acompanhamento de maior;
- O processo do maior acompanhado, regulado no art.º 891º do CPC, qualificado de processo urgente, tem a sua tramitação própria;
- Podendo o Juiz decidir livremente com base na ponderação das provas, pelo suprimento da autorização do beneficiário, quando entenda que o maior em causa se encontra impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, nos termos do art.º 138º do Código Civil;
- Devendo, por isso, entender-se que ao caso não é aplicável o disposto no art.º 1000º e seguintes do CPC (processo suprimento);
- Não se encontrando, ainda claro, na opinião do perito médico, se a recorrente sofre ou não, de um síndrome demencial instalado e que, “não obstante se entender que a existência do referido quadro não perturba seriamente o funcionamento global nem a tomada de decisões de baixa densidade, seja do dia a dia concreto, ou mesmo aquelas decisões que tenham um peso mais afectivo do que racional” importará esclarecer cabalmente se a recorrente está capaz de por si só tomar “decisões complexas ou que exijam um maior esforço de distanciação, capacidade de abstracção elevada ou operações de gestão de vasto património” – vd. Relatório “parágrafo 7.3” ;
- O que apenas será possível mediante o suprimento da autorização da beneficiária, uma vez que esta manifestou a sua recusa para a convolação dos autos de inabilitação nos presentes autos de acompanhamento de maior;
- De qualquer das formas, e ainda que, por hipótese, venha a ser dado como provado que a recorrente não sofre do referido síndrome demencial, sempre deverá ser suprida a sua autorização para o prosseguimento dos presentes autos, por se entender que no caso se verifica motivo atendível para tal, nos termos do art.141, n.º 2, do Código Civil;
- Consubstanciado na evidente e comprovada ruinosa gestão do seu património, que a deixou impossibilitada de, actualmente, fazer face às despesas inerentes ao seu próprio sustento;
- Devendo ainda entender-se necessária a medida de acompanhamento por não estar garantido o bem-estar e o pleno exercício dos direitos da recorrente, através dos deveres gerais de cooperação e assistência, a que se refere o nº 2 do art.º 140º do Código Civil;
- Já que o alegado exercício de tais deveres por parte do seu filho D(…) em relação à sua mãe, de contornos muito duvidosos, não a impediram de se encontrar na ruinosa situação em que hoje se encontra;
- Sendo, pois, essencial que a referida gestão seja efectuada de forma controlada, tendo em vista a manutenção do bem-estar e a garantia do sustento da beneficiária, ora recorrente;
- Para tanto, necessário será que o tribunal supra a autorização em causa.
- Pelo que o presente recurso não deve merecer provimento
Assim se fazendo a costumeira justiça!».
11. Na sua resposta, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso.
12. No despacho de admissão do recurso, a Senhora Juiz apreciou a nulidade processual suscitada pela Recorrente, desatendendo-a.
13. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objecto do recurso
Tendo em consideração que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso - cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1.ª - Da nulidade processual decorrente da inobservância da tramitação do incidente de suprimento de consentimento no caso de recusa regulado no artigo 1000.º do CPC [conclusões 3.ª a 5.ª];
2.ª - Da ilegitimidade dos Requerentes para requererem a convolação do processo de inabilitação em processo especial de acompanhamento de maior [conclusão 1.ª];
3.ª - Da verificação, ou não, dos requisitos legalmente exigidos para que ocorra o suprimento, pelo tribunal, da falta de autorização da Requerida [conclusões 2.ª e 6.ª a 32.ª].
III – Fundamentação
A) Motivação de Facto
A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a constante do relatório que antecede.
B) Mérito do recurso
B.1) Primeira questão
A Requerida, aqui Recorrente, veio invocar a nulidade processual da Decisão em crise, proferida a 8 de Dezembro de 2019, cominada no artigo 195º, n.º 1, in fine, do CPC, em virtude de, na sua perspectiva, o Tribunal a quo ter decidido o suprimento da sua recusa de consentimento para que a acção de inabilitação prosseguisse como processo especial de acompanhamento sem respeitar a tramitação prevista no artigo 1000.º do CPC para o processo de suprimento de consentimento no caso de recusa, que obrigava à realização da Audiência de Discussão e Julgamento “ (…) deveriam ser praticados os atos previstos no n.º 3 do mesmo supracitado art.º 1000º do CPC e só depois é que a Mmª Juiz poderia decidir, ou não, o suprimento da autorização requerida. (…) ”.
Segunda a Recorrente, a inobservância da referida tramitação própria do processo de suprimento de consentimento no caso de recusa constitui uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa, que inquina de invalidade a Decisão recorrida.
Os Recorridos e o Ministério Público sustentam que a Decisão recorrida não enferma da nulidade invocada, por preterição de formalidades essenciais, embora com diferentes enquadramentos. Enquanto os Recorridos defendem expressamente não ser aplicável ao caso o processo especial de suprimento regulado no art.º 1000.º do CPC, o Ministério Público afasta implicitamente a aplicabilidade da referida tramitação processual, ao considerar que a Decisão em crise observou o disposto no art.º 897.º, n.º 1, do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, e que se insere dentro dos poderes de gestão processual atribuídos ao juiz a coberto do quadro legal estabelecido para os processos de jurisdição voluntária, subsidiariamente aplicável ao caso, como o de investigar livremente os factos, coligir as provas, etc. [art.º 986.º, n.º 2, do CPC], pelo que “não é merecedora de qualquer crítica, censura, reparo ou repreensão por não ter seguido o espartilho do retromencionado artigo 1000º do Código de Processo Civil, na medida em que incumbe exclusivamente ao Tribunal, prevalecendo-se dos mecanismos atinentes às regras dos Processos de Jurisdição Voluntária atrás referidas, realizar as diligências que considerar necessárias para a descoberta da verdade e o apuramento da boa decisão da causa.”
Desde já podemos adiantar que não assiste razão à Recorrente.
Vejamos,
A entrada em vigor do regime do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, veio alterar o paradigma da protecção de uma pessoa maior afectada de incapacidade de exercício, substituindo os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação, assentes na incapacidade de exercício do requerido, pela figura maleável [maior acompanhado] com conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, capacidades e possibilidades do concreto beneficiário da medida de acompanhamento.
Pretendeu-se, com o novo regime, consagrar medidas que pudessem auxiliar as pessoas com deficiência, mantendo estas a sua capacidade de exercício de direitos.
Tal mudança tem raízes na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e nas alterações legislativas operadas em vários sistemas jurídicos, como a Alemanha, França, Itália, Espanha e Brasil, entre outros [vide ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, no Congresso Comemorativo do Cinquentenário do Código Civil, que decorreu no Auditório da Faculdade de Direito de Coimbra, em 24 e 25 de Novembro de 2016, cujo texto foi publicado na RLJ, ano 146.°, n.° 4002, defendeu princípios e ideias que foram acolhidos na reforma operada pela Lei n.º 49/2018].
Refere o autor citado “transcrevendo expressamente o que então defendi, disse ser favorável a um sistema de maior flexibilidade, que promovesse, na medida do possível, a vontade das pessoas com deficiência e a sua autodeterminação, que respeitasse, sempre, a sua dignidade e facilitasse a revisão periódica das medidas restritivas decretadas por sentença judicial. Concretizando, disse concordar, em primeiro lugar, que, sempre que possível, devesse ser tomada em conta a vontade de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva ou de apoio. Por maioria de razão, acrescentei concordar com o mandato em previsão do acompanhamento ou da incapacidade, isto é, com a possibilidade de qualquer pessoa prevenir uma eventual necessidade futura, indicando, desde logo, quem a acompanhará ou a representará, caso isso venha a verificar-se, e que poderes lhe atribui. Evidentemente, este mandato terá de ser devidamente disciplinado.
Houve também a consagração de uma medida semelhante àquela que o Brasil adoptou, relativa à “tomada de decisão apoiada”, permitindo à pessoa com deficiência, física ou mental, escolher alguém que pudesse apoiá-la nas decisões a tomar, fornecendo-lhe os elementos e informações necessários para esse efeito. É claro que também esta medida dependerá da aprovação do juiz competente.
Estas medidas pressupõem a manutenção da capacidade de exercício de direitos por parte da pessoa que a elas recorre. Trata-se de medidas de apoio a pessoa com deficiência assentes na sua autodeterminação.
“Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão. Há, assim, uma mudança de paradigma, deixando a pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade de sujeito de direitos. Em vez da pergunta: “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica? ”, deve perguntar-se: “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”.
A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto é provavelmente a maior reforma operada no Código Civil após a revisão pelo Decreto-Lei n.º 496/77, que adaptou o Código Civil à Constituição de 1976, e certamente a maior reforma na Parte Geral do Código Civil após a sua publicação em 25 de Novembro de 1966.
O novo regime do maior acompanhado ocupa precisamente os mesmos artigos 138.° a 156.° do Código Civil, que disciplinavam os institutos da interdição e da inabilitação, institutos estes eliminados pela Lei em apreço.
Dito isto, a primeira pergunta é relativa à questão de saber quem pode beneficiar das medidas de acompanhamento. Responde o (novo) art.º 138.°, atribuindo esse benefício ao “ maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”.  São, assim, de dois tipos, esses requisitos: por um lado, quanto à causa: razões de saúde, deficiência ou ligadas ao seu comportamento; e , por outro lado, quanto à consequência: a impossibilidade de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.
Optou o legislador, como se vê, por uma formulação ampla, afastando-se claramente da posição fechada relativa aos fundamentos da interdição e da inabilitação. Um ponto muito importante que neste contexto importa sublinhar é o de que na actual formulação ampla que permite o recurso às medidas de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes. [Neste sentido, ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Fevereiro de 2019 - 1. Das incapacidades ao maior acompanhado - Breve apresentação da Lei n.º 49/2018, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf].
Como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA [O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, E-Book citado, CEJ, Fevereiro de 2019, págs. 45-46] “Ao processo especial de acompanhamento de maiores aplicam-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de decisão e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art.º 891.°, n.º 1). Esta regulamentação contém uma remissão para o regime dos processos de jurisdição voluntária nos seguintes aspectos:
 - Poderes do juiz: o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; além disso, só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias para a boa decisão da causa (art.º 986.°, n.º 2);
- Critério de decisão: nas providências a tomar, o tribunal deve adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art.º 987.°); isto significa que, nos processos de acompanhamento de maiores, o critério de decretamento da respectiva medida é a discricionariedade;
- Alteração das decisões: as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; a superveniência pode ser objectiva ou resultar de ignorância da parte ou de outro motivo ponderoso que tenha conduzido à omissão da alegação (art.° 988.°, n.º 1).
Assim, das características gerais dos processos de jurisdição voluntária só não é aplicável aquela que determina que, nas resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, não é admissível recurso para o STJ (art.º 988.º, n.º 2).
Em suma: o processo especial de acompanhamento de maiores é, em termos substanciais, um processo de jurisdição voluntária.
Formalmente, todavia, o processo de acompanhamento de maiores não pode ser considerado um processo de jurisdição voluntária, não só porque não se encontra inserido no Título XV do Livro V do Código de Processo Civil, mas também porque não há nenhuma disposição legal que o qualifique como tal. Este aspecto, embora formal, é muito relevante, porque implica, por exemplo, que a desnecessidade da constituição de advogado que consta do art.º 986.º, n.º 4, não é aplicável aos processos de acompanhamento de maiores. Dito pela positiva: a obrigatoriedade do patrocínio judiciário determina-se nos termos gerais estabelecidos no art.º 40.º, n.º 1. 2. Além de algumas características dos processos de jurisdição voluntária, o processo especial de acompanhamento de maiores caracteriza-se ainda pela circunstância de o juiz não estar vinculado à medida de acompanhamento requerida pelo requerente que instaurou o processo (art.º 145.º, n.º 2, CC). Esta solução justifica-se porque, além do mais, só durante o processo é possível determinar, com rigor, a medida de acompanhamento adequada para o beneficiário. Recorde-se que a medida de acompanhamento se deve restringir ao estritamente necessário (art.º 145.º, n.º 1, CC), pelo que o juiz não deve decretar nem uma medida que seja excessiva atendendo às necessidades do beneficiário, nem uma medida que seja insuficiente considerando essas mesmas necessidades.”.
Ora, dada a remissão constante do art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária, o juiz pode coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 986.°, n.º 2, 1.a parte).
Em suma, cabe sempre ao tribunal, no âmbito dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal, sem os formalismos próprios dos processos de jurisdição contenciosa, mas sempre com respeito pelo contraditório, controlar se se justifica suprir a falta de autorização do eventual beneficiário, assim como lhe cabe controlar a concessão de autorização pelo mesmo, usando de cuidada ponderação, dado que não é justificável presumir nem que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização.
O que acima se disse sobre o controlo da autorização ou da recusa de autorização tanto se aplica aos pedidos de aplicação de medida de acompanhamento requeridos pelo eventual beneficiário ou pelas pessoas legitimadas para tanto pelo n.º 1 do art.º 141.º do Cód. Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, como às situações de adequação formal dos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da entrada em vigor do referido diploma legal [art.ºs 25.º, n.º 1 e 26.º, n.ºs 1 e 2].
Nessa tarefa de controlo, o juiz não está limitado, como bem salienta o Ministério Público, pelo “espartilho” do art.º 1000.º do CPC, ou seja, não tem de seguir os formalismos próprios do processo de suprimento do consentimento no caso de recuso, antes os próprios do processo especial de acompanhamento de maior, regulado nos artigos 891.º a 905.º do CPC, na redacção actualmente vigente, cuja tramitação não prevê a realização de audiência de discussão e julgamento.
O artigo 891.º, n.º 1, do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 49/2018,l de 14 de Agosto, estatui: “O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.” [destaque a negrito nosso]
Tal remissão, como está bom de ver, abarca as seguintes disposições gerais dos processos de jurisdição voluntária, insertas no Código de Processo Civil:
- Artigo 986.º, n.º 2, sob a epígrafe «Regras do processo»:
“2. O tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.”;
- Artigo 987.º, com a epígrafe «Critério de julgamento»:
Nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”.
- Artigo 988.º, n.º 1, com a epígrafe «Valor das resoluções»:
“1. Nos processos de jurisdição voluntária as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidas, com fundamento em circunstancias supervenientes que justifiquem a alteração […]”.
Do cotejo dos artigos 891.º, n.º 1, 986.º, n.º 2, 1.ª parte, 987.º e 988.º, n.º 1, do CPC, não decorre que seja aplicável ao processo especial de maior acompanhado a tramitação específica dos processos de jurisdição voluntária, categoria de que faz parte o processo de suprimento do consentimento de recusa regulado no art.º 1000.º do CPC, antes as regras e princípios inerentes aos processos de jurisdição voluntária, nos termos dos quais o juiz goza de liberdade de iniciativa na realização de diligências [“poderes do juiz”], não está sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo a liberdade de proferir a decisão que lhe pareça mais conveniente e oportuna, a que melhor serve os interesses em causa [“critério de julgamento”] e pode, a todo o tempo, rever ou levantar a medida de acompanhamento aplicada, quando a evolução do beneficiário o justifique [“alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”].
De tudo se conclui que, ao invés do advogado pela Recorrente, não foi preterida pelo Tribunal a quo qualquer formalidade essencial, susceptível de influir no exame ou decisão da causa, não estando, por conseguinte, a decisão recorrida inquinada pela nulidade processual invocada [art.º 195.º, n.º 1, in fine, do CPC], arguição essa que assim vai indeferida.
B.2) Segunda questão
A Recorrente veio invocar a falta de legitimidade processual dos Requerentes Sofia… e Gonçalo … para “[…] requererem o prosseguimento daqueles autos como processo especial de acompanhamento de maiores, regulado no art.º 891º segs. do CPC, porquanto a requerida M(…) não os autorizou, nem autoriza, a requererem a conversão da referida acção especial no sobredito processo especial de acompanhamento […]”.
A Requerida e Recorrente, vem, assim, defender que, face à sua recusa de consentimento, não existe fundamento legal para a conversão da acção de inabilitação em processo especial de maior acompanhado, por duas ordens de razões.
- Porque os presentes autos só poderiam continuar ao arrepio da vontade livre, consciente e esclarecida da Requerida, aqui Recorrente, no caso de ter sido instaurada pelo Ministério Público que, no âmbito da presente lei, passou a ser a única entidade com poderes para instaurar um processo especial de maior acompanhado contra a vontade do(a) Requerido(a), em conformidade com o disposto no artigo 141º, n.º 1 (parte final), do Código Civil, na redacção actual, - que por essa razão passou a estar dotado de um maior poder e ao mesmo tempo de uma acrescida responsabilidade relativamente ao anterior regime da Interdição/Inabilitação.
- Porque estaria vedada, por força do artigo 141.º, n.º 2, do Código Civil, com a nova redacção introduzida pela Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, a possibilidade do suprimento da vontade da Requerida na medida em que, segundo o teor dos Relatórios Médicos juntos aos autos a Maior Acompanhada estava em condições psíquicas de recusar o seu consentimento de uma forma livre, esclarecida e consciente.
Este último argumento não tem ligação com a questão da legitimidade ad causam dos Requerentes, que é manifesta, face à relação material controvertida, tal como configurada na petição inicial da acção de inabilitação [art.º 30.º do CPC], mas como a terceira questão suscitada pelo recurso que trataremos mais adiante, qual seja a de saber se, no caso em apreço, se verificam, ou não, os requisitos legalmente exigidos para que ocorra o suprimento, pelo tribunal, da falta de autorização da Requerida.
Sobre a legitimidade ad causam para a propositura do processo especial de acompanhamento de maior, após a entrada em vigor do novo regime legal, dispõe o artigo 141.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto.
Nos termos da referida disposição legal, o acompanhamento pode ser requerido:
- Pelo próprio beneficiário; a esta situação há que equiparar aquela em que o beneficiário tenha representante legal (nomeadamente, progenitores ou tutor) ou mandatário com poderes de representação (cfr. art.º 156.º, n.º 1, CC) e em que o acompanhamento seja requerido por esse representante ou mandatário do beneficiário em nome deste;
- Pelo cônjuge ou unido de facto do beneficiário ou por qualquer parente sucessível do beneficiário, desde que esteja autorizado por este;
- Pelo Ministério Público, no exercício da sua função de representação dos incapazes (cfr. art.º 3.º, n.º 1, al. a), EMP).
No caso em apreço não está em causa a propositura, ex novo, de um processo especial de acompanhamento de maior, mas tão só a eventual convolação e adequação formal de uma acção de inabilitação pendente, promovida pelos Requerentes contra a Requerida, para processo especial de acompanhamento de maior, pelo que nem sequer se coloca, nesta fase, a questão da legitimidade dos Requerentes para pedirem/obterem a convolação da acção de inabilitação para o referido processo especial e promoverem a sua ulterior tramitação nesta espécie.
Esta situação está contemplada no n.º 2 do artigo 141.º do Código Civil, na sua nova formulação, que conjugado com o n.º 2 do artigo 26.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que conferem ao tribunal o poder de suprir a autorização do requerido, eventual beneficiário de uma medida de acompanhamento, “quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível”.
Donde, improceder a invocada questão/excepção de ilegitimidade dos Requerentes, ora Recorridos.
B.3) Terceira questão
Finalmente, importa apreciar se no caso em apreço, se verificam, ou não, os requisitos legalmente exigidos para que ocorra o suprimento, pelo tribunal, da falta de autorização da Requerida.
A Recorrente alega que “no despacho recorrido, a Mmª Juiz não faz a menor referência ao teor (…) declarações emitidas e assinadas por médicos psiquiatras, ou seja, habilitados com a mesma especialidade que a do Sr. Perito Médico que, no dia 5 de Setembro de 2019, na sala de audiências do Juízo Local Cível de Lisboa, procedeu a um longo e, atendendo à sua idade (a caminho dos 86 anos), certamente cansativo interrogatório da requerida, do qual resultou o “Relatório de Perícia Psiquiátrica” junto aos autos.
E que “Identicamente, a Mmª Juiz também fez completa tábua rasa do facto de a requerida ter respondido com acerto e coerência de raciocínio a todas as questões que lhe foram colocadas, quer na audição pessoal conduzida por ela, Mmª juiz, quer no aludido interrogatório a que foi submetida pelo Sr. Perito Médico, incluindo o instrumento de rastreio das funções cognitivas denominado “Mini Mental State Examination (MMSE), uma conta de aritmética, um desenho e a redação de uma frase, testes estes em que teve a nota máxima possível ou muito próxima desta, assim evidenciando plenamente que os seus 85 anos de idade não afectaram a sua capacidade para se autodeterminar, aliás já anteriormente reconhecida em factos tidos por provados na douta sentença e no douto Acórdão desse Tribunal da Relação de Lisboa, proferidos no processo apenso”.
Sustenta, igualmente, que a Senhora Juiz a quo, “para além de, no despacho recorrido, não fazer qualquer menção do teor das três declarações médicas e de outros meios de prova constantes dos autos, fundamentou a sua decisão de suprimento nas meras conjecturas e nas “dúvidas” expressas pelo Sr. Perito Médico no parágrafo 7.1 do seu “Relatório de Perícia Psiquiátrica” e nas subsequentes também meras conjecturas e hipóteses formuladas nos parágrafos 7.2., 7.3, 7.4 e 7.5 do mesmo relatório.”
Na decisão recorrida, a páginas 8 a 9verso, no que para aqui releva, ponderou-se o seguinte:
 “A primeira nota que se impõe é a de que haverá que distinguir os pressupostos para o suprimento do consentimento, dos pressupostos para a procedência do pedido.
Os primeiros destinam-se a assegurar a pendência dos autos em juízo. Já os segundos determinarão a aplicação de uma medida flexível, adequada e proporcional ao caso.
Perante a conclusão pericial de que existe a necessidade de aferir da existência de um possível “Défice Cognitivo Ligeiro ou Perturbação Neuro cognitiva Minor, por involução demencial ou envelhecimento cerebral, de natureza degenerativa (demência degenerativa)” e das consequências que do mesmo possam advir para Requerida, nomeadamente para efeitos de gestão de património e tomada de decisões complexas, resulta demonstrado que aquela poderá encontrar-se numa situação de necessitar de cuidados, por possuir a sua capacidade “limitada ou diminuída”.
Ora, no caso da inabilitação o que estava em causa era a defesa do Requerido no tráfego negocial, sendo que o que a poderia motivar era exactamente uma “situação de perigo para o governo dos (seus) interesses, conservando-se um espaço mais ou menos limitado de autonomia negocial.” (“A Protecção do incapaz adulto no Direito Português”, Geraldo Rocha Ribeiro, 2010)
Também no acompanhamento, quando este vise a protecção patrimonial do beneficiário, como sucede, existindo tal dúvida fundada quanto à verificação de um perigo para a administração e disposição de património do Beneficiário, em resultado de doença, se tem que concluir que se impõe ao Tribunal considerar suprida a autorização do Beneficiário, para os efeitos do n.º 2 do artigo 141.º do Código Civil. Daí que se supra a autorização da Beneficiária.
Neste ponto, haverá, ainda, que salientar que o suprimento da autorização do Beneficiário constitui um requisito para o prosseguimento dos autos, não lhe sendo aplicável a restrição constante do n.º 2 do artigo 140.º do Código Civil, que dispõe que a medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.
Neste momento, não cumpre, pois, proceder à averiguação quanto ao carácter “desnecessário” da aplicação de qualquer medida, por os seus objectivos se mostrarem cumpridos pelos deveres gerais de assistência.
Também neste ponto, se impõe afirmar que não está em causa a questão da designação de acompanhante, nomeadamente se deverá ser, ou não, ratificada a decisão da Requerida no sentido de, em caso de necessidade de determinação de medida de protecção, vir a desempenhar tais funções o filho mais novo.
Em suma, a decisão quanto ao suprimento de autorização, pelo Tribunal, visa apenas decidir se os autos devem prosseguir os seus termos.
Em face da factualidade que resultou provada, inexistem quaisquer argumentos que permitam o afastamento da conclusão pericial acima transcrita. Daí que se supra o consentimento da Requerida, para efeitos processuais, nos termos e para os efeitos do artigo 141.º, n.º 2. do CC., prosseguindo os autos os seus termos.”
Na mesma linha de raciocínio já se havia afirmado, a fls. 5, parágrafo 5.º, da Decisão recorrida que “(…) o juiz não poderá deixar de analisar a regularidade da instância, antes mesmo de passar para a análise dos elementos juntos pelas partes – cfr aplicação conjugada dos artigos 592.º, n.º 1, alínea b) e 608.º, n.º 1, do Código de Processo Civil”.
Ou seja, o Tribunal a quo, ao contrário do afirmado pela Recorrente, não desprezou os elementos juntos pelas partes, antes remeteu a sua análise para momento posterior, o da instrução [artigo 897.º do CPC], por considerar que os pressupostos exigidos para a decisão de suprimento da falta de autorização da Requerida, de incidência meramente processual, destinados à regularização ou não da instância, não eram os mesmos que os exigidos para a aplicação de uma medida de acompanhamento.
E só podemos acompanhar esta decisão, pelo seu acerto.
É certo, como se referiu supra, que o tribunal dever exercer um rigoroso controlo no apuramento da justificação para o suprimento da falta de autorização do beneficiário. O suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, pois, repete-se, não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização.
Contudo, essa tarefa não exige uma indagação probatória tão exaustiva e um juízo tão exigente como o que é reclamado para a aplicação ao beneficiário de uma medida de acompanhamento, sob pena de se esvaziamento deste processo nos casos em que com o pedido de acompanhamento se cumule o pedido de suprimento de autorização do beneficiário e de ocorrência do efeito perverso de não poderem ser “determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido” [artigo 139.º, n.º 2, do CC], pelo previsível “arrastamento” do incidente de suprimento da falta de autorização do beneficiário.
No caso, o suprimento da falta de autorização da Requerida visa tão só a regularização da instância, ou seja, o prosseguimento da acção de inabilitação como processo especial de acompanhamento de maior, pelo que é suficiente a demonstração da séria probabilidade de o beneficiário se encontrar impossibilitado, “por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres” [cfr. artigo 138.º do Cód. Civil].
Como bem se salienta na Decisão recorrida, com base no relatório pericial elaborado pelo Perito Médico nomeado pelo Tribunal, sob uma perspectiva médico-legal existem fundadas dúvidas quanto à Requerida sofrer de uma quadro de Défice Cognitivo Ligeiro ou Perturbação Neuro Cognitiva Minor, por involução demencial ou envelhecimento cerebral, de natureza degenerativa (demência degenerativa).
Ora, existindo dúvida fundada quanto à verificação de um perigo para a livre e esclarecida administração e disposição do seu património por parte da Requerida, em resultado de doença, bem andou o Tribunal a quo em considerar, como considerou, suprida a autorização da mesma para os efeitos do n.º 2 do artigo 141.º do Código Civil, na redacção actual.
Tal conclusão não prejudica a ponderação que o Tribunal a quo terá de fazer, no âmbito da indagação da necessidade, ou não, de aplicação à Requerida de uma medida de acompanhamento, de todas as provas produzidas, designadamente dos elementos juntos pelas partes[[1]], ou a produzir eventualmente [perícia colegial], em face das reticências do relatório pericial e das discrepâncias entre este e as declarações emitidas pelos dois médicos psiquiatras juntas aos autos [artigo 139.º/1 do CC e 897.º/1 e 899.º, n.º 2, do CPC].
Nestes termos, a Decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo.
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A Recorrente, porque decaiu no recurso, suportará as respectivas custas – artigo 527.º do CPC.
IV - Decisão
Perante o que fica exposto, acordam os Juízes da 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente e manter a Decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo Recorrente.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 2 de Julho de 20
Manuel Rodrigues
Ana Paula Carvalho
Nuno Ribeiro
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[1] Referimo-nos às declarações juntas a fls. 41 [de 7/01/2004], 82 [30/04/2018], 82 verso [01/06/2015] e 83, [30/04/2018], emitidas e assinadas por médicos psiquiatras, respectivamente, os Senhores Drs. A…. [fls. 41 e 82 verso] e L… [fls. 82 e 83].