Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
34/21.1PHAMD.L1-9
Relator: PAULA PENHA
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ELEMENTOS SUJECTIVOS DO TIPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– A regra geral do nosso sistema penal assenta na punição das acções humanas típicas (elemento objectivo) e dolosas (elemento subjectivo), por serem estas que manifestam o desvalor jurídico mais grave e, simultaneamente, a culpa mais censurável.

Esta culpa sob a forma dolosa (ou dolo do tipo ou dolo do facto) constitui o elemento subjectivo do tipo criminal e que consiste: no conhecimento e vontade de realização da acção típica criminal, aquando da prática/no momento da conduta do agente.

II– Os elementos constitutivos do tipo-legal de crime de condução sem habilitação legal (na parte com interesse para o caso)são: a condução de veículo automóvel na via pública ou equiparada; sem que o condutor esteja habilitado com carta de condução; e o faça dolosamente.

Este último requisito (subjectivo) pressupõe: conhecimento e vontade de realização da acção típica criminal, aquando da prática/no momento da conduta do agente.

Isto é, decompõe-se em dois elementos:
- O elemento cognitivo ou intelectual do dolo = diz respeito ao conhecimento pelo agente de todas as circunstâncias de facto e de direito constitutivas do respectivo tipo criminal. Isto é, o agente conheça os elementos descritivos (elementos apreensíveis pelos sentidos) e normativos (elementos cuja apreensão depende da pressuposição lógica de uma norma)que integram o respectivo tipo legal de crime respectivo tipo. E este conhecimento permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética no sentido de preservar, ou não, o respectivo bem jurídico tutelado pelo respectivo tipo legal de crime;
- O elemento volitivo do dolo = diz respeito à vontade do agente aquando da prática do facto. Isto é, pressupõe que o agente dirija a sua vontade à realização de um facto ilícito típico ou, pelo menos, se conforme com a realização de um facto ilícito típico.

III– O processo especial abreviado foi criado pelo legislador com vista à simplificação e aceleração da tramitação do processo penal, sobretudo nas fases preliminares e, até, podendo a identificação do arguido e a narração dos factos da acusação ser efectuada, no todo ou em parte, por mera remissão para o auto de notícia. Bastando que contenha a narração concreta, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, isto é, dos factos constitutivos da prática do respectivo crime, previsto e punível por lei vigente aquando dos factos.

Compulsado o teor integral da concreta acusação pública, a mesma contém todos os sobreditos elementos necessários e suficientes e, por isso, deve considerar-se manifestamente fundada. Pois, caso venha a provar-se, em sede de julgamento, toda essa factualidade, a mesma é suficiente para se considerarem preenchidos todos os sobreditos elementos constitutivos do tipo legal de crime de condução sem habilitação legal e da sua autoria por parte do arguido.

Pois, naquelas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido agiu de forma consciente e voluntária, ao conduzir um veículo automóvel, na via pública, mesmo sabendo que não tinha carta de condução, que tal conduta era proibida por lei e mesmo assim fê-lo. Sendo esta sua actuação, para além de ilícita (porque contrária ao dever-ser jurídico-penal),também culposa/dolosa/merecedora de um juízo de censura (porque este arguido não agiu em conformidade com o dever ser jurídico, embora tivesse podido fazê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo. Isto é, embora tivesse podido e devido tê-lo feito, não o fez, assim optando por adoptar aquela conduta que sabia ser ilícita/contrária ao dever-ser jurídico).

IV– Mesmo que tivesse havido fundamento para uma rejeição liminar da acusação (que põs fim à fase de inquérito) não poderia haver lugar à remessa dos autos ao Ministério Público – contrariamente ao demais teor constante do despacho recorrido que, após rejeitar a acusação, ordenara a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público.

A este propósito é jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores que não é possível ordenar numa diferente fase processual o regresso à fase anterior, fazendo retroceder o processo de forma a sanar eventuais invalidades dessa antecedente fase processual.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa .


RELATÓRIO


No âmbito do Processo Especial Abreviado nº34/21.1PHAMD, do Juízo Local Criminal da Amadora – J4, fora deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido, A, nos seguintes termos (transcrição):

«O Ministério Público junto deste Tribunal, nos termos do art. 391.ºA e seguintes do CPP, deduz acusação, para julgamento na forma de processo Abreviada e por Tribunal Singular, contra A, melhor identificado no auto de noticia por detenção, pelos factos aí constantes, acrescentando que O arguido efectuou a condução de tal veículo sem ser titular de carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública.
O arguido agiu consciente e voluntariamente.
Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Cometeu o arguido, A, um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo art. 3.º, nºs 1 e 2 do D. L. nº 2/98, de 03.01 com referência ao art. 121º nº 1 do Código da Estrada.
PROVA:
Testemunhal:
- B, PSP Esq. Mina;
- C, PSP Esq. Mina;
Documental:
1 – Auto de notícia de fls. 3 e segs.
2 – Pesquisa de IMTT de fls. 8;
3 – CRC de fls. 12
Medidas de coacção:
Promovo que o arguido aguarde os termos do processo sujeita a TIR já prestado a fls. 7 dos autos.
***
Cumpra o disposto no artº 277º nº 3 “ex vi” artº 283º nº 5, ambos do CPP

*
No despacho judicial proferido (no dia 5/5/2022) foi decidido rejeitar a acusação nos seguintes termos (transcrição):
«Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º1 e 2, do DL 2/98, de 3 de Janeiro.
Nos termos do disposto no artigo 311.º, do CPP, considerando a remissão do art.º 386.º do CPP, recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Acrescenta o n.º2 do citado normativo que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada (al. a)), considerando-se como tal aquela que, além do mais, não contenha a narração dos factos (artigo 311.º, n.º3, al. b), do CPP).
Relativamente ao estatuído na última alínea do nº3 do preceito acabado de citar, tem entendido a doutrina e a jurisprudência actuais que a rejeição da acusação somente pode ocorrer quando manifestamente inexistam factos que correspondam à prática de um ilícito criminal, i. e., quando diante do texto da acusação  faltem elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2008, p. 791, n. 8, sublinhado nosso).
Do ponto de vista subjectivo, o crime de condução sem habilitação legal é um crime doloso.
Para que o dolo do tipo se afirme é necessário que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto.
Ou seja, para que se possa afirmar a actuação dolosa necessário se monstra que o “agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito”- Figueiredo Dias, Doutrina Geral do Crime, Lições do 3.º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 2001, pág. 90.- Elemento intelectual do dolo.
Mas o dolo não se basta com o conhecimento das circunstâncias do facto e da sua configuração jurídica, antes sendo igualmente necessário a “verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização” (idem) - o elemento volitivo do dolo do tipo, o qual pode assumir a forma de dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual- artigo 14.º do CP.
O dolo directo “consiste na vontade intencional dirigida à realização do facto”, o dolo necessário consiste “na vontade dirigida à prática do facto, com todas as consequências necessárias” e o dolo eventual consiste “na conformação do agente com a prática do facto, com as suas consequências possíveis”- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica, em anotação ao artigo 14.º
Temos assim que embora o dolo exprima uma vontade, não se basta com esta. A conduta dolosa não dispensa a consideração da intensidade da relação dessa vontade com o resultado típico, no sentido da intenção correspondente (a qual, todavia, não se confunde com a motivação do agente). Dito de outro modo, o dolo afirma-se com a vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.
Por outro lado, um facto ilícito só é punível se culposo, ou seja, se for reprovável porque o agente não “motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma, quando poderia e lhe era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao direito (...)
A culpabilidade representa, pois, um juízo de censura do agente por não ter agido em conformidade com o dever ser jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo, mas significa também o conjunto de pressupostos desse juízo de reprovação jurídica. (...)- Germano Marques da Silva, Direito Penal Português Parte Geral, III, Verbo, páginas 149 a 150.
Da acusação e no que ao elemento subjectivo diz respeito, nele se incluindo quer o dolo do tipo quer a culpa, consta o seguinte:
“O arguido agiu consciente e voluntariamente.
Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação
Assim, na acusação enuncia-se a culpa:o arguido agiu de forma livre (ou seja sem coacção), voluntária (no sentido de ser uma actuação controlada pela vontade, excluindo-se os espasmos, os estados de sonambulismo, os actos reflexos, os eventos naturais) e consciente ( porque ciente da punibilidade da conduta).
A acusação enuncia igualmente o elemento intelectual do dolo (o conhecimento da ilicitude.).
Mas, no que ao concerne ao dolo do tipo, a acusação é completamente omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo.
Ou seja, nada se diz se a realização do tipo é o fim último ou uma consequência necessária ou meramente eventual da conduta do arguido.
Em nosso entendimento não basta afirmar que a actuação foi voluntária, porque esta não esgota o sentido da ilicitude nem o sentido de desvalor, nos termos supra expostos.
Com efeito, como refere Germano Marques da Silva “o acto involuntário não é facto constitutivo de qualquer crime, mas a voluntariedade não se confunde com a projecção da vontade sobre o resultado”- ob. cit. Pág. 45
E não se diga que a formulação escolhida na acusação se refere ao dolo directo. Com efeito, neste, “o agente prevê a realização do facto criminoso e tem como fim essa realização: a realização do tipo objectivo de ilícito surge como verdadeiro fim da conduta”- Miguês Garcia, em anotação ao artigo 14.º, n.º1, citando Figueiredo Dias (Código Penal Parte Geral e Especial com notas, Almedina, pág137.
“Intenção significa que o elemento dominante, a vontade do agente, está conotado com a acção típica ou com o resultado previsto no tipo ou com ambos: o resultado é o fim, a meta que o agente se propunha” - idem. Nada disso é referido na acusação.
Por outro lado, uma actuação dolosa, em qualquer uma das suas modalidades, seja por dolo directo, eventual ou necessário, pode não ser uma actuação culposa, por não ser possível afirmar que tenha havido um “uso indevido de uma vontade livre” pelo agente (artigo 20.º do CP)- cfr. Germano Marques da Silva, Dirito Penal Português, Parte Geral, vol. II, Verbo, pág. 160.
Dito de outro modo, a alegação de que a conduta é culposa, porque censurável, já que o agente não se motivou na norma, podendo e devendo fazê-lo (porque tinha a liberdade e a capacidade para o fazer), não equivale a afirmar o dolo.
O Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão recente de 22.09.21, entendeu igualmente, numa acusação deduzida aliás pelo Ministério Público desta instância local da Amadora (que, tal como aqui, quanto ao elemento subjectivo apenas escreveu “O arguido agiu livre e conscientemente bem conhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta), que “impunha-se ter alegado e imputado ao arguido que o mesmo quis, que agiu com intenção” (negrito nosso, acórdão disponível em www.dgsi.pt).
O STJ no acórdão de fixação de jurisprudência 1/2015, publicado no DR, série I, de 27/01/2015, refere, exactamente a este propósito, que A acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).”- negrito nosso.
É que o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos. Embora, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se possa deduzir dos factos externos, objectivos, tal não dispensa que tenha de constar da acusação.”- cfr. ac. da RC de 13.09.17, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, conforme entendeu o STJ a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”. (negrito nosso)
Pelo exposto, por ser omissa na descrição de factos essenciais, que não podem ser completados pelo Tribunal considerando a doutrina do AUJ 1/2015 atrás citado, não se recebe a acusação e ordena-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.
Notifique.»
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Inconformado com tal decisão, dela veio interpor o presente recurso(no dia 8/6/2022), pedindo que seja revogada e determinada a sua substituição por decisão que admita a acusação proferida. Para o efeito, na sua motivação, após dedução das alegações culmina com as seguintes conclusões (transcrição):
« I.–Conforme o disposto nos art.°s 391.° A, n.°s 1 e 3 e 391.° B, n.° 2, do CPP, o Ministério Público acusou ISF..., imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art.° 3.°, n°s 1 e 2 do D. L. n° 2/98, de 03.01 com referência ao art.° 121.° n.° 1 do Código da Estrada.
II.–Em 06.04.2022, com fundamento que a acusação é completamente omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo do dolo, foi proferido despacho, no qual se decidiu: “...não se recebe a acusação e ordena-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.”
III.–É o seguinte o teor da acusação:
O Ministério Público junto deste Tribunal, nos termos do art. 391.ºA e seguintes do CPP, deduz acusação, para julgamento na forma de processo Abreviada e por Tribunal Singular, contra ISF..., melhor identificado no auto de noticia por detenção, pelos factos aí constantes, acrescentando que
O arguido efectuou a condução de tal veículo sem ser titular de carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública.
O arguido agiu consciente e voluntariamente.
Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
IV.–Deduzida acusação sob a forma de processo abreviado, bastaria que a narração dos factos fosse efectuada, no todo ou em parte, para o auto de notícia, ficando preenchido em absoluto, o disposto no art.° 283.°, n.° 3, ex vi, art.° 391.°-B, n.° 1 e 391.°-A, n.° 1, do CPP.
V.–A acusação rejeitada não se limitou a remeter os autos a julgamento por remissão para o auto de notícia, mas antes, completou-se com os factos que veio a descrever e que também são integradores dos elementos objectivos e subjectivos do tipo imputado.
VI.–O tipo objectivo de ilícito de condução sem habilitação legal abarca a condução de veículo a motor em via pública ou equiparada, sem o respectivo título habilitante. No que respeita ao tipo subjectivo de ilícito, o crime consuma-se a título doloso.
VII.–Em nosso entender, a acusação rejeitada é explicita na imputação dolosa do tipo ao agente quando descreve, sobre os elementos subjectivos: O arguido efectuou a condução de tal veículo sem ser titular de carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública. O arguido agiu consciente e voluntariamente. Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
VIII.–Da leitura do despacho de acusação e do auto de notícia por detenção, resulta, de forma clara e no que em concrecto respeita aos elementos do tipo subjectivo, que é concretizado o conhecimento do arguido de que a sua conduta não era permitida por lei, a vontade de a concretizar não obstante esse conhecimento e o facto de livremente a ter realizado tal como efectuou, sendo-lhe assim, imputada a prática do crime a título doloso.
IX.–Foi descrito na acusação que: “O arguido efectuou a condução...”
X.–É descrito no auto de notícia por detenção que o arguido se apresentava a conduzir (“ vislumbrei o suspeito a conduzir a viatura de marca...”) e que indagado quanto  à utilização do veículo, informou este “que apenas foi buscar dois familiares que se encontravam em Queluz ...” – factos que, em nosso entender, descrevem a acção  completa do arguido / a vontade e o animus da sua acção, i.e. o elemento volitivo do  dolo.
XI.–O elemento volitivo ou emocional – que se diz em falta - traduz-se na especial direcção da vontade em realizar o facto ilícito previsto e conhecido pelo agente.
Elemento este, que por sua vez, dará lugar aos diferentes tipos de dolo (dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual).
XII.–Sem dúvida, o dolo deve ser narrado e suportado em factos que são juridicamente relevantes nos termos do artigo 124.' do CPP, uma vez que, sem a sua verificação, como é exigido in casu, não haveria crime (cfr. art.' 13.' do Código Penal).
XIII.–E para verificar a existência de dolo não basta que o agente preveja na sua cabeça/mente a realização do facto. Este terá igualmente que ter a intenção de praticar o acto que está a representar e uma acção/actuação da sua parte (e não estando no plano da ficção como se retratou no filme “Minority Report”, o direito penal só é chamado a intervir quando esses pensamentos sejam exteriorizados em actos).
XIV.–Descrever o dolo de um tipo numa acusação, é sem dúvida alguma, a parte mais exigente e difícil desse processo. Se pudéssemos simplificar e desmaterializar o dolo na teoria do crime - e apelamos a que realmente seja esse o futuro, sob pena de só podermos verificar um tipo legal de crime se conseguirmos descrever ou estar dentro da mente do agente,naquele momento, ou se pudermos entrevistar os personagens que estão dentro da nossa cabeça, talqualmente aparecem no filme “Divertidamente “Inside out” – o dolo descrito em factos, traduz-se no conhecimento (no saber) e numa vontade exteriorizada (no querer, no fazer, no realizar, no efectuar).
XV.–A exigência dos elementos subjectivos do crime, surge (na maioria das vezes) traduzida na forma narrativa da acusação, através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou “dever ser” jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).
XVI.–E foi esta fórmula – O arguido agiu consciente e voluntariamente. Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação – utilizada na acusação ora rejeitada;
XVII.–A qual não contém em si apenas o juízo da culpa, mas também a acção do agente (efectuou/voluntária/deliberada) e completa a narrativa factual.
XVIII.– Lê-se na acusação:
O arguido efectuou a condução ...
O arguido agiu ... voluntariamente.
Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
XIX.–E no auto de notícia por detenção:
... vislumbrei o suspeito a conduzir a viatura de marca...
... indagado quanto à utilização do veículo, informou este “que apenas foi buscar dois familiares que se encontravam em Queluz ...
XX.–Agir de forma voluntária, livre, significa que alguém de forma deliberada quis determinada acção, que não foi compelido a tanto, que não se tratou de um lapso, de um erro, de uma acção natural, ou de uma imposição de terceiro - ou seja, a acção foi praticada com livre arbítrio e com plena consciência pelo próprio, querendo aquele resultado.
XXI.–“Efectuar” é executar, fazer, realizar algo, levar a efeito ou a cabo... é dizer que o arguido quis e conseguiu conduzir.
XXII.–A acção foi praticada com livre arbítrio e com plena consciência pelo próprio, querendo aquele resultado – tanto mais que consta ainda do auto de notícia por detenção o seu móbil e vontade.
XXIII.–Mais, podendo o dolo revestir diversas modalidades (dolo directo, necessário ou eventual), nem sempre o “narrador da história” - ainda que percebendo o móbil da acção; pode ir além da circunstância de fazer constar que o agente agiu de forma livre, consciente e voluntária, ao praticar aquela acção (i.e. de forma dolosa, talqualmente vem descrito no art.' 14.', n.' 1, do CP).
XXIV.–Os factos descritos na acusação rejeitada, integram o tipo de dolo directo e é esse que é imputado - ou seja, o resultado típico como o fim último de uma conduta perpetrada por alguém.
XXV.–E não podemos ser mais exigentes do que a lei, que não diz qual o tipo de dolo que é preciso verificar (se directo, se necessário ou se eventual); ao ponto de numa acusação se exigir que seja logo limitado o tipo de dolo, quando dos elementos exteriores que temos, apenas nos é permitido inferir o dolo como directo.
XXVI.–Resulta do libelo acusatório que o arguido conhecia todas as circunstâncias e elementos integradores do tipo, e quis aquele resultado (efectuou a condução de forma livre, consciente e voluntária).
XXVII.–Dizermos mais do que aquilo que se disse (que o arguido efectuou a condução de forma livre, consciente e voluntária, i.e., com vontade plena) e dizer, por exemplo, que o arguido previu o facto criminoso como consequência necessária da sua conduta voluntária e não se absteve ainda assim da sua prática; ou que, o arguido ao actuar, fê-lo conformando-se como possível que se viesse a realizar o facto criminoso como consequência da sua conduta e assumiu o risco de produzir o resultado, não lhe repugnando a sua verificação, seria entrar no campo das suposições.
XXVIII.–E se o despacho ora recorrido se socorre do mencionado AUJ do STJ, para fundamentar a rejeição do despacho de acusação, aqui em causa; a verdade, é que também resulta deste próprio acórdão, que não se aceita a existência de um dolo implícito que resulte da materialidade objectiva, chegando a defender que o dolo deve ser expresso na acusação na seguinte fórmula: "uma actuação de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser-jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstância do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).”
XXIX.–Afastando-se até da ideia que o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.
XXX.–Na acusação rejeitada o Ministério Público através da descrição dos factos e também por remissão para o auto de notícia, alegou e concretizou os elementos que preenchem o dolo e para além disso, ainda fez constar a fórmula que é exigida pelo AUJ invocado.
XXXI.– Aliás, considerar que o elemento volitivo do dolo não se basta, até, com a menção da acção (efectuou) e com a forma de actuação deliberada/ voluntária por parte do agente, extravasa o disposto e o pretendido no invocado AUJ.»

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Não houve resposta ao recurso.

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Neste Tribunal da Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pugnando pela procedência do recurso. Para o efeito, alega que (transcrição):
«Acompanhamos a sua fundada e distinta argumentação constante da motivação de recurso.
Salienta-se que a acusação foi deduzida em processo abreviado.
Também entendemos que a acusação não é completamente omissa quanto ao elemento volitivo do dolo. Devia, consequentemente, ter sido recebida.»

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Não houve resposta ao sobredito parecer.

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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo conhecer e decidir.


ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO
Face ao disposto nos arts. 412º e 417º do Código de Processo Penal (doravante com a abreviatura CPP) é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (designadamente as previstas no art. 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) - cfr. nomeadamente o Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, pág. 335, o acórdão do STJ de 15/4/2010 e o acórdão do STJ de 29/1/2015, ambos em dgsi.pt
Assim sendo, no caso vertente a única questão a apreciar e decidir é a seguinte: Há fundamento para a rejeição da acusação do Ministério Público por omissão de factos relativos ao elemento volitivo do dolo ?


FUNDAMENTAÇÃO
Para uma resposta cabal à questão solvenda, importa:
- começar por analisar o tipo legal de crime em apreço;
- em seguida, analisar as particularidades do processo especial abreviado até à fase do seu saneamento;
- e, para terminar, analisar a acusação em apreço.

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O Artigo 3º do Decreto-Lei nº 2/98, de 3-1 estipula o seguinte:
1-Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2-Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

O Artigo 121º, nº 1, do Código da Estrada  estipula o seguinte:
“Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.”
E tal título de habilitação em caso de veículo automóvel designa-se carta de condução, é emitida pelas entidades competentes e válida para as categorias de veículos e períodos de tempo nela averbados, conforme prevê o art. 122º, nºs 1 e 3, deste mesmo diploma. E, também, pode habilitar a condução de veículos a motor certos outros títulos, nos termos previstos no art. 125º deste mesmo diploma.
O bem jurídico protegido através deste tipo legal [de crime de condução sem habilitação legal] é a segurança de circulação rodoviária.
Pois, sendo a condução rodoviária, por natureza, uma actividade perigosa, mais perigosa será se o respectivo condutor não estiver habilitado para o efeito, através da respectiva licença/carta de condução.
Pelo que, indiretamente, este tipo legal de crime tutela bens jurídicos que se prendem com essa segurança, tais como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais que estão perigo face a uma condução de veículo a motor na via pública ou equiparada sem que o condutor tenha habilitação legal para o efeito.
Os elementos constitutivos deste tipo-legal de crime de condução sem habilitação legal (na parte com interesse para o caso)são:
  • a condução de veículo automóvel na via pública ou equiparada;
  • sem que o condutor esteja habilitado com carta de condução;
  • e o faça dolosamente.
Pois, como sabemos, o art. 13º do Código Penal (doravante com a abreviatura CP), sob o intitulado “Dolo e negligência” estipula que: “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.  
Por isso, quanto ao tipo legal de crime em apreço, não estando expressamente prevista a punibilidade de tal facto com mera negligência, tal facto só é punível quando praticado com dolo.

A propósito deste último requisito – relativo à culpa dolosa do agente – importa fazer uma breve resenha que nos será útil para a solução ou resposta a dar à sobredita questão do caso apreço.

Seguindo os ensinamentos doutrinais de Paulo Pinto de Albuquerque em “Comentário do Código Penal”, 4ª edição actualizada, págs. 158-163, de Jorge de Figueiredo Dias em “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I”, 3ª edição, págs. 407 e segs e do Acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 1/2015 (publicado no DR nº 18, I série de 27/1/2015):
A regra do nosso sistema penal assenta na punição das acções humanas típicas (elemento objectivo) e dolosas (elemento subjectivo), por serem estas que manifestam o desvalor jurídico mais grave e, simultaneamente, a culpa mais censurável.
Esta culpa sob a forma dolosa (ou dolo do tipo ou dolo do facto) constitui o elemento subjectivo do tipo criminal e que consiste: no conhecimento  e vontade de realização da acção típica criminal, aquando da prática/no momento da conduta do agente.
Assim, decompondo-se o elemento subjectivo (do dolo do tipo) em dois elementos:
- O elemento cognitivo ou intelectual do dolo = diz respeito ao conhecimento pelo agente de todas as circunstâncias de facto e de direito constitutivas do respectivo tipo criminal. Isto é, o agente conheça os elementos descritivos (elementos apreensíveis pelos sentidos) e normativos (elementos cuja apreensão depende da pressuposição lógica de uma norma)que integram o respectivo tipo legal de crime respectivo tipo. E este conhecimento permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética no sentido de preservar, ou não, o respectivo bem jurídico tutelado pelo respectivo tipo legal de crime;
- O elemento volitivo do dolo = diz respeito à vontade do agente aquando da prática do facto. Isto é, pressupõe que o agente dirija a sua vontade à realização de um facto ilícito típico ou, pelo menos, se conforme com a realização de um facto ilícito típico.
Quanto a este seu elemento volitivo, o dolo pode assumir uma de três formas que estão previstas no art. 14º, nºs 1 a 3, do CP:
dolo directo = quando o agente, representando um facto que preenche um tipo de crime, actua com intenção de o realizar;
dolo necessário = quando o agente, representando que a realização de um facto preenche, como consequência necessária da sua conduta, um tipo de crime;
dolo eventual = quando o agente, representando como consequência possível da sua conduta, o preenchimento de um tipo de crime, conforma-se com tal realização.  

Em suma e na sua formulação mais geral, o dolo é conceitualizado como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito. Isto é, o agente conhece, sabe, tem consciência (previsão ou representação) das circunstâncias do facto que preenchem um tipo de ilícito objectivo e, sabendo dessa factualidade típica, o agente actua com esse conhecimento e a vontade de realizar esse ilícito típico.

Nos autos em apreço, consta (a fls. 3 a 5 aqui dadas como reproduzidas) um auto de notícia da PSP por detenção do arguido, segundo o qual (em suma):
No dia 17/1/2021 (e não 2020 conforme o aditamento feito a fl.5), à 1h. e 45m.,na Avª. ..... ..... ..... A_____, no âmbito de uma acção de fiscalização levada a cabo por essa entidade policial, foi constatado que o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Audi, modelo 8V, cor cinza, de matrícula ..., sem estar habilitado para o efeito. Tendo-lhe sido dada ordem de paragem, através de sinais audiovisuais da viatura policial, esse imobilizou a viatura na Avª. ..... ..... ..... A_____. E, nessa mesma ocasião, após ser indagado quanto à utilização do veículo, o arguido informou que apenas fora buscar dois familiares que se encontravam em Queluz.

Tendo sido deduzida acusação contra este arguido, imputando-lhe a prática do sobredito crime de condução sem habilitação legal, com base em tais factos constantes desse auto de notícia e também, nos demais factos nela acrescentados (nos termos supra transcritos e constantes de fls. 39-40 dos autos), segundo os quais:
O arguido efectuou a condução de tal veículo sem ser titular de carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública. O arguido agiu consciente e voluntariamente. Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

Com base em toda a supra-descrita factualidade o Ministério Público deduziu contra o arguido a já supra-transcrita acusação, para julgamento na forma de processo abreviado.

Como sabemos, o processo especial abreviado consta dos arts. 391º-A a 391º-G do CPP.
E foi criado pelo legislador com vista à simplificação e aceleração da tramitação do processo penal, sobretudo nas fases preliminares, quando se trate de crimes puníveis com pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos ou mesmo superior a 5 anos se, neste último caso, o Ministério Público entender, na acusação, não dever ser aplicada pena concreta de prisão superior a esse limite e, em qualquer dos casos, houver provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, não será sequer obrigatória a realização de inquérito – cfr. a este propósito a anotação do Exmº Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição revista, págs. 1201 a 1213.  
Tendo o legislador (na última alteração à redacção desse art. 391º-A, nº3,através da Lei nº 48/2007, de 29-8, expressamente, considerado que há provas simples e evidentes quando (na parte com interesse para o caso): o agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não puder efectuar-se sob a forma de processo sumário e/ou a prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos.
Devendo a acusação do Ministério Público (para julgamento de arguido em processo abreviado) conter todos os elementos a que se refere o art. 283º, nº 3, do CPP (por remissão expressa do nº 1 do art. 391º-B do mesmo diploma e na parte com interesse para o caso): a identificação do arguido; a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; as circunstâncias relevantes para atenuação especial da pena ou dispensa da pena; a indicação das disposições legais aplicáveis; o rol máximo de 20 testemunhas com respectiva identificação; a indicação de outras provas a produzir ou a requerer; a data e assinatura.
E podendo a identificação do arguido e a narração dos factos ser efectuada, no todo ou em parte, por mera remissão para o auto de notícia.
O que importa (na parte com interesse para o caso) - com ou sem remissão – é que tal acusação contenha a narração concreta, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, isto é, dos factos constitutivos da prática do respectivo crime, previsto e punível por lei vigente aquando dos factos (cfr. os arts. 391º-B, nº 1 e 283º, nº 3, al. b), do CPP, o art. 1º, nº 1, do CP e o art. 1º, al. a), do CPP).
Esta exigência advém da natureza ou estrutura acusatória do nosso processo penal (com consagração expressa no art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa)segundo a qual: o objecto do processo é fixado pela acusação que, por isso, delimita a temática do processo (“thema probandum”) e o respectivo poder cognitivo do tribunal.
Daí que o legislador tenha previsto que a falta de tal narração factual constitui causa de nulidade da acusação e motivo de sua rejeição - cfr. os art. 283º, nº 3, al. b, e 311º, nº 2, al. a), e nº 3, “ex vi” dos arts. 391º-B, nº 1, e 391º-C, nº 1, todos do CPP.  
Pois, caso falte tal narração factual, já não poderá ser completada, pelo julgador, para suprir a omissão de alegação de factos que integram os elementos constitutivos do tipo legal de crime e da sua autoria por parte do arguido, sob pena de que redundaria numa alteração substancial dos factos dela constantes e feriria de nulidade a sentença (nos termos previstos pelos arts. 1º, al. f), 391º-F, 389º-A e 379º, nº 1, al. b), do CPP). E, nesse caso, a feitura do julgamento redundaria num acto, manifestamente, inútil, com violação do princípio geral de proibição da prática de actos inúteis (previsto no art. 137º do Código de Processo Civil “ex vi” do art. 4º do CPP).
Sendo de salientar, porém, que em caso de rejeição liminar da acusação (que põe fim à fase de inquérito) não há lugar à remessa dos autos ao Ministério Público – contrariamente ao demais teor constante do despacho recorrido, o qual, após rejeitar a acusação, ordenara a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público -.
A este propósito é jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores que não é possível ordenar numa diferente fase processual o regresso à fase anterior, fazendo retroceder o processo de forma a sanar eventuais invalidades dessa antecedente fase processual. Pois: tal não está previsto no art. 311º, nº 2, do CPP; constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público a quem cabe dirigir o inquérito nos termos do art. 263º, nº 1, do CPP; e colocaria em causa as legítimas expectativas do arguido e as suas garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32º, nº 1, da CRP (cfr. nomeadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7/3/2018 do Exmº Relator Orlando Gonçalves e o Acórdão desta Relação de Lisboa de 2/2/2021 do Exmº Relator Artur Vargues, bem como a vasta jurisprudência citada nestes mesmos acórdãos e para a qual também se remete).

Posto isto, importa voltar ao caso em apreço.
Compulsado o teor integral da concreta acusação pública [à luz dos sobreditos normativos legais e ensinamentos doutrinais], afigura-se-nos que a mesma contém todos os sobreditos elementos necessários e suficientes e, por isso, deve considerar-se manifestamente fundada.
Pois, caso venha a provar-se, em sede de julgamento, toda essa factualidade, a mesma é suficiente para se considerarem preenchidos todos os sobreditos elementos constitutivos do tipo legal de crime de condução sem habilitação legal e da sua autoria por parte do arguido.
Ressalvando o devido respeito pela posição da Exmª Juiz da 1ª instância, não consideramos que haja razão para rejeitar esta acusação por alegada omissão de factos relativos ao elemento volitivo do dolo.
Pois, conforme já foi referido, os dizeres ou teor narrativo integral desta acusação abrangem, também, todos os dizeres/teor literal do auto de notícia por detenção do arguido [para a qual a acusação, também e expressamente, remeteu e com cobertura legal na, expressa, previsão contida no citado art. 391º-B, nº 1, do CPP]. 

Da conjugação de todos estes concretos dizeres resulta a seguinte narração factual no caso concreto em apreço:
No dia no dia 17/1/2021, à 1h. 45m.,na Avª. ..... ..... ..... A_____, no âmbito de uma acção de fiscalização levada a cabo pela Polícia de Segurança Pública, foi constatado que o arguido, A, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Audi, modelo 8V, cor cinza, de matrícula ..., sem estar habilitado para o efeito.
Tendo-lhe sido dada ordem de paragem, através de sinais audiovisuais da viatura policial, esse imobilizou a viatura na Avª. ..... ..... ..... A_____. E, após ser indagado quanto à utilização do veículo, o arguido informou que apenas fora buscar dois familiares que se encontravam em Queluz.
O arguido efectuou a condução de tal veículo sem ser titular de carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública. O arguido agiu consciente e voluntariamente. Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

Ora, esta descrição/narração contém todos os factos que são necessários e suficientes para imputar (como foi imputada) a este arguido a prática de um crime de condução sem habilitação legal.
Pois, naquelas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido agiu de forma consciente e voluntária, ao conduzir um veículo automóvel, na via pública, mesmo sabendo que não tinha carta de condução, que tal conduta era proibida por lei e mesmo assim fê-lo.
Tal descrição contém todos os elementos do tipo legal de crime em apreço, incluindo o elemento volitivo do seu requisito subjectivo.
Pois, conforme refere o supra citado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2015 do STJ, o dolo costuma ser expresso na acusação através da seguinte fórmula: uma actuação de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser-jurídico); voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto); conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).
E conforme tão bem salienta a Digna Procuradora do Ministério Público junto do tribunal recorrido, a interpretação feita, no caso em apreço, pelo tribunal recorrido extravasa o disposto e o pretendido neste mesmo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.
No caso em apreço: o arguido sabia não poder conduzir na via pública um veículo automóvel por não ser titular de carta de condução ou qualquer outro documento que lhe legalmente lhe permitisse tal; e decidiu fazê-lo, naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar; mesmo sabendo que ao fazê-lo estava a praticar um acto proibido por lei/contrário ao dever-ser jurídico.
Sendo esta sua actuação (para além de ilícita = porque contrária ao dever-ser jurídico-penal),também é uma culposa/dolosa/merecedora de um juízo de censura = porque este arguido não agiu em conformidade com o dever ser jurídico, embora tivesse podido fazê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo. Isto é, embora tivesse podido e devido tê-lo feito, não o fez, assim optando por adoptar aquela conduta que sabia ser ilícita.
Aliás, também tem sido este o entendimento da jurisprudência deste Tribunal da Relação de Lisboa, destacando-se os acórdãos do TRL de 2/2/2022 do Exmº Relator Alfredo Costa, de 5/5/2022 da Exmª Relatora Renata Whitton da Terra, de 24/5/2022 do Exmº Relator Jorge Gonçalves e de 13/10/2022 da Exmª Relatora Simone Pereira, todos em www.dgsi.pt. – que salientam, a propósito de situações semelhantes à dos autos, que (respectivamente):
uma atuação de forma livre, voluntária e consciente nada mais é que uma atuação livremente determinada, e se o agente atuou com vontade livremente determinada é porque a sua conduta foi desejada. Dito de outra forma, se o arguido atua de forma livre, voluntária e consciente é porque tomou a resolução/deliberou conduzir aquele veículo e conduziu-o, nas circunstâncias descritas na acusação, ou seja, voluntariamente, porque assim quis;
“Cumpre esclarecer que não há uma fórmula semântica única para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo, sendo, naturalmente, livres a redacção e a utilização dos termos que servirão para descrever, para integrar o dolo, não havendo uma fórmula que, não sendo utilizada ipsis verbis, conduza fatalmente à queda da acusação por manifestamente infundada, por não conter a suficiente narração dos factos. (…) o elemento volitivo, consiste na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado – ou previsto- as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito”;
Se da acusação resulta – em função do auto de notícia e do que foi aditado - que o arguido conduziu um veículo, num determinado dia, hora e local, sem ter habilitação legal para o fazer, e que o fez de forma voluntária e consciente, sabendo que tal conduta não lhe era permitida e tendo liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação, então é porque ponderou na conduta referida e que a quis levar a cabo, que é quanto basta para que esteja preenchido o elemento volitivo do dolo. De outro modo, quanto ao elemento volitivo, afigura-se-nos que a acusação indica o que efectivamente foi querido pelo agente: efectuar a condução do veículo sem carta de condução, nisso se traduzindo a vontade que presidiu à sua actuação”;
“Quando se afirma que o conhecimento de que o acto de condução sem habilitação legal lhe estava vedado por lei e era punível não o impediu de agir da forma descrita, o que quis e concretizou, está-se obviamente a afirmar que o arguido conhecedor [e consciente] de que não dispunha de título que o habilitasse a conduzir, sabendo da proibição legal de conduzir nessas circunstâncias [tendo portanto liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação], optou por querer realizá-la, o que fez”.

Por tudo isto, resta-nos dizer que não assiste razão à Exmª Juiz da 1ª instância, devendo ser atendida a pretensão recursiva da Digna Procuradora do Ministério Público junto da 1ª instância e à qual aderiu a Digna Procuradora Geral-Adjunta junto deste tribunal superior.

Nesta conformidade, deverá a 1ª instância determinar o prosseguimento dos autos nos termos previstos pelo art. 391º-C do CPP (nomeadamente, com agendamento da audiência de julgamento caso não se verifique outra circunstância ou questão que o impeça).      

 
DECISÃO
Nestes termos acordam os juízes da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Notifique.

(Texto elaborado pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
                                             
                     
Lisboa, 12 de Janeiro de 2023 
 

                                                         
A Juiz Desembargadora Relatora
Paula de Sousa Novais Penha

O Juiz Desembargador Adjunto
Carlos da Cunha Coutinho

A Juiz Desembargadora Adjunta
Raquel Correia de Lima