Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17/16.3PTHRT.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
ADEQUAÇÃO
AMEAÇA AGRAVADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I.Elemento objetivo do crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, é o emprego de violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física.

II.– Provando-se que o agente, depois de ser-lhe dada voz de detenção, enquanto era manietado e algemado, “lutou” e “esbracejou”, sem se concretizar o que efectivamente fez, haverá que entender que a factualidade provada não foi descrita em termos que permitam a integração do tipo objectivo do crime de resistência e coacção sobre funcionário, não estando concretizada qualquer conduta que seja idónea a intimidar, dificultar ou impedir de forma significativa a capacidade de actuação dos agentes policiais na situação em causa.

III.– Não integra o crime de ameaça agravada dizer-se ao ofendido “Vou-te tirar a farda. Isso não vai ficar assim. Tem cuidado comigo”.

(Sumário elaborado pelo Relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


1.– No processo sumário n.º 17/16.3PTHRT, procedeu-se ao julgamento do arguido F…, melhor identificado nos autos, pela imputada prática, em autoria material e concurso real, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 155.º, n.º1, al. c) com referência aos artigos 153.º e 132.º, nº2, al. l), todos do Código Penal.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
«Pelo exposto, o Tribunal julga a acusação totalmente procedente e, em consequência, decide condenar F…, em autoria material e concurso efectivo, pela prática de:
i.-Um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p° e p° pelo art° 347.°, n.º 1 do Código Penal, na pena de dois anos de prisão.
ii.-Um crime de ameaça agravada, p° e p° pelo art°155.º/1c) com referência aos arts. 153.° e 132/2, al. l) todos do Código Penal, na pena de um ano de prisão.
iii.-Em cúmulo jurídico de penas, condenar o Arguido pela prática dos crimes supra referidos nos pontos i. e ii., pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir.
(…).»
 
2.O arguido recorreu da sentença, finalizando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

DA INEXISTÊNCIA DO CRIME DE RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO.

1.– Todos os factos provados na sentença recorrida em relação à atitude do recorrente são inidóneos para a prática do crime previsto no artigo 347.º, n.º1, do C.P.
2.– "No âmbito da ação típica do crime de resistência e coação sobre funcionário, do art. 347.º, do Cód. Penal, constituirá violência todo o ato de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança" - Ac TRP, de 27-06-2012, Proc. 268/11.7GAVLC.P1, in www.dgsi.pt.
3.– Os únicos factos provados referem que o arguido mostrou-se agressivo, "levantando os braços e avançando em direção" ao agente P…, dando este voz de detenção e, com a ajuda do agente Nuno, tentaram imobilizar o arguido no chão, o qual recusava colaborar na colocação das algemas (pontos 3, 4 e 5 dos factos provados da sentença).
4.– Como poderá o arguido praticar violência ou resistir aos agentes se está no chão, com os braços nas costas? Não pode, e não aconteceu.
5.– Mesmo que tenha existido "violência ou ameaça", era preciso que estas fossem idóneas a atingir de facto o seu destinatário. A sentença recorrida não deu tal como provado.
6.– Da parte dos agentes, nenhum dos atos do arguido foram impeditivos ou dificultaram a ação destes. Aliás, eram 2 agentes que, em lado nenhum, afirmaram que o arguido tenha praticado atos violentos; referem apenas que, uma vez no chão, o arguido dificultou a colocação das algemas porque esbracejava, mas tal não anulou nem comprimiu a capacidade de atuação dos 2 agentes.
7.– Pelo exposto deverá o arguido ser absolvido do crime de resistência e coação sobre funcionário, pp pelo art. 347.º, n.º 1, do C.P.

DA INEXISTÊNCIA DO CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA.

8.– A expressão "Vou-te tirar a farda. Isso não vai ficar assim. Tem cuidado comigo" ou mesmo a expressão "não tenho medo de ti", não significa o anúncio de um mal futuro, como requer o tipo de crime de ameaça, pp pelo artigo 155.º1c), com referência aos artigos 153. ºe 132.º2, al l), todos do C.P.
9.– "São elementos constitutivos do crime de ameaça: o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro, dependente da sua vontade e que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor e que esse anúncio seja adequado a provocar na pessoa a quem se dirige medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação" - Ac. da Relação de Coimbra de 23-06-2010, Proc. 379/08.6PBVIS.C, in www.dgsi.pt.
10.– "A ameaça adequada é assim a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as suas características, conhecidas pelo agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado, isto é, "(...) o que é preciso é demonstrar uma intenção de causar medo ou intranquilidade ao ofendido, e que a promessa se revista de aspeto sério. Ou seja, que o agente dê a impressão de estar resolvido a praticar o facto" (Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, in Código Penal Anotado, 3.ª ed., 2.º vol., Editora Rei dos Livros, 2000, p. 306), constituindo o ilícito em apreço um crime de perigo concreto" (Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 349);
11.– O recorrente estando embriagado e em estado de nervosismo nunca poderá proferir tais expressões de forma séria ou com a intenção de causar medo no agente P….
12.– Ainda que se admita, por mera hipótese, a existência de uma "ameaça", não foi a mesma suscetível de ser tomada a sério pelo "ameaçado", desde logo, pelo facto de o agente da PSP, depois, porque o mesmo não se encontrava sozinho, estando protegido pelos colegas, encontrando-se num local público num caso e na esquadra da PSP noutro, certo que em momento algum sentiu medo da "ameaça", continuando a circular na esquadra da PSP e a abordar permanentemente o recorrente.
13.– In casu,o Tribunal a quofez uma apreciação errada dos factos dados como provados, subsumindo-os de forma errada ao crime de ameaça. Até porque, em lado algum, é referido que o agente da PSP tenha ficado com medo, presente ou futuro.
14.– Nenhum dos elementos do tipo legal de crime analisados se encontram preenchidos, pelo que, o Tribunal a quo fez uma subsunção errada dos factos ao crime de ameaça, pp pelo artigo 155.º1c), com referência aos artigos 153° e 132.º2, al 1), todos do C.P.
15.– A sentença ora objeto de recurso encontra-se, assim, ferida de uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos da alínea b), do n.º 2 do art. 410.º do CPP, devendo ser revogada, absolvendo-se o recorrente da prática dos crimes que vem acusado, sob pena da violação destas normas.

DA MEDIDA DA PENA.
16.– A decisão recorrida, salvo o devido respeito, na determinação da medida da pena, violou o princípio da proporcionalidade vertido nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, desconsiderando as circunstâncias de atenuação especial da pena previstas no artigo 72° do CP, designadamente o facto de o arguido estar integrado familiar, social e profissionalmente (pontos 10 a 13 dos factos provados da sentença). Entendemos que seria adequada a pena de prisão de 6 meses, suspensa na sua execução.

DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO.
17.– Da conjugação dos artigos 43.º a 50.º do C.P., a aplicação da pena de prisão efetiva, quando a mesma não é superior a um ano, será mesmo o último dos recursos, tendo o Tribunal que demonstrar e fundamentar, uma a uma, a não aplicação de cada uma destas penas de substituição, pela seguinte ordem: multa, suspensão da execução da pena, regime de permanência na habitação, prisão por dias livres e regime de semidetenção, sob pena da violação daquelas normas e do artigo 18.º, n.º2 da CRP.
18.– Mesmo que se entenda adequada a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, considerando que a pena de prisão é inferior a 5 anos, a mesma deverá ser suspensa na sua execução.
19.– "A suspensão da execução ... permite manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão" - Ac. STJ de 25-07-2003, in CJ, Ano XI, tomo 11/2003, pág. 221 a 224.
20.– Neste caso, a carência de uma pena de prisão não se apresenta manifesta, até porque o arguido está integrado familiar, social e profissionalmente (pontos 10 a 13 dos factos provados da sentença), devendo assim substituir-se a pena de prisão aplicada ao recorrente pela suspensão integral da sua execução, sob pena de violação do art. 50.º do Código Penal.
21.– A sentença recorrida violou as normas identificadas nestas conclusões.

3.– O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta no sentido de que o recurso não merece provimento, concluindo (transcrição das conclusões):
(…)
           
4.– Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu o parecer de fls. 79 a 82, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.

5.– Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação.

1.– Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
(…)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Enquadramento jurídico-penal dos factos provados /preenchimento dos elementos típicos dos crimes por que foi condenado/vício do artigo 410.º, n.º2, al. b), do C.P.P.
           
2.– Da sentença recorrida

2.1.– O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1.- No dia 14 de Junho de 2016 pelas 22h50m, na Rua … Horta, o Arguido encontrava-se a ser controlado por outras pessoas, porquanto havia momentos antes se envolvido em desacatos, quando foi abordado pelos agentes da PSP P…e N…, os quais se deslocaram ao local após ter sido solicitada a sua intervenção.
2.- Ao ver os citados agentes, o Arguido numa atitude inesperada dirigiu-se ao agente P… dizendo "Quem te chamou para aqui! Vai para o caralho, não tenho medo de ti".
3.- De imediato o referido agente abordou o Arguido com vista a acalmá-lo, o qual se mostrou agressivo, levantando os braços e avançando em direcção ao mesmo.
4.-Foi, então, de imediato dada voz de detenção ao Arguido, tentando os agentes imobilizá-lo.
5.-No entanto, porque o mesmo se recusava a colaborar, tiveram os agentes da PSP que usar da força necessária para o manietar e algemar, ao mesmo tempo que o mesmo os repelia, lutando e esbracejando.
6.-Chegado à esquadra da PSP da Horta e uma vez no interior das instalações, o Arguido voltou a intimidar e desconsiderar o agente policial referido, afirmando "Vou-te tirar a farda. Isso não vai ficar assim. Tem cuidado comigo!".
7.-Sabia o Arguido que os agentes da PSP com os quais se confrontou e desconsiderou estavam no exercício legítimo das suas funções e que ao insultá-los, ameaçá-los e intimidá-los, os impediam de exercer convenientemente as mesmas, nomeadamente, no que respeita à manutenção da ordem e tranquilidade públicas durante a operação em causa, bem como no que respeita ao estado da legítima detenção do próprio Arguido, o que quis e fez.
8.-O Arguido agiu ainda de forma livre, voluntária e consciente, ciente que o agente P… estava devidamente uniformizado e no exercício legítimo das suas funções e que ao proferir as expressões referidas em 6) as mesmas eram adequadas a produzir-lhe receio, medo e inquietação, o que alcançou.
9.-Bem sabia o Arguido que tais condutas eram proibidas por lei.
10.-O Arguido aufere €809,00 mensais enquanto pescador.
11.-O Arguido é solteiro e tem um filho de seis anos, que vive com a sua progenitora.
12.-O Arguido tem o 6.º ano de escolaridade.
13.-O Arguido reside com os seus progenitores.
(…)

2.2.Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
Inexistem.

2.3.– O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
(…)

3.– Apreciando.
           
3.1.-O arguido/recorrente foi condenado como autor material de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos de prisão.
Dispõe o referido artigo 347.º, n.º1 (na redacção introduzida pela Lei n.º 19/2013, de 21/02):
«Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão de um a cinco anos

Disse o S.T.J., no seu acórdão de 25 de Setembro de 2002 (publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do S.T.J., Ano X, tomo III, p. 182-184), sobre o bem jurídico protegido, citando acórdão do mesmo S.T.J., de 28 de Abril de 1999, com o mesmo relator:
«Da própria inserção sistemática do art. 347.º do CP, conjugada com o seu teor, resulta que o bem jurídico que a lei especialmente quis proteger com a incriminação que contém, é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade, manifestada na liberdade funcional de actuação do seu funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, punindo, para o efeito, quem empregue violência ou ameaça grave contra este, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções ou para o constranger a que pratique acto relativo a esse exercício, mas contrário aos seus deveres.»

Cristina Líbano Monteiro (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, p. 339) refere-se, a propósito do bem jurídico tutelado, à autonomia intencional do Estado, acrescentando que, se simultaneamente se protege a pessoa do funcionário incumbido de desempenhar determinada tarefa, essa protecção da sua liberdade individual é tão-só funcional ou reflexa (Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial, Almedina, 2015, 2.ª edição, salientam que o “bem ou interesse protegido só coincide circunstancialmente com a pessoa do próprio funcionário”).
O tipo objectivo do n.º1 do artigo 347.º inclui duas modalidades: (1) oposição a que funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança pratique acto relativo ao exercício das suas funções; (2) constrangimento a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres.
Do tipo faz parte quer o fim da acção, quer o meio utilizado, que na versão originária do Código era definido como “violência ou ameaça grave” e que, a partir da redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, passou a ser descrito como “violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física”, tratando-se, pois, de um crime de execução vinculada.

Como defende Cristina Líbano Monteiro (ob. cit., p. 339), o crime em causa é “de perigo”, por não ser necessária a efectiva lesão do bem jurídico, mas apenas a possibilidade ou probabilidade de a corresponde conduta proibida vir a afectar os interesses protegidos (diversamente, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, p. 822, pronuncia-se no sentido de que se trata de crime de dano, mas com a nota de que o crime, no caso do n.º1, se consuma com a acção de resistência ou constrangimento, não sendo necessária a prática do acto coagido pelo funcionário – crime de resultado cortado, segundo o referido autor).

A violência exigida pelo tipo legal de crime tanto pode ser física como psicológica, uma vez que, como flui do normativo, a ameaça grave (vis compulsiva) e a ofensa à integridade física (vis phisica) são mencionadas, exactamente, como modalidades da violência, importando apenas que a mesma seja idónea para intimidar o visado e limitá-lo no exercício da sua liberdade pessoal (que aqui releva na estrita medida em que representa a liberdade do Estado).

Já o acórdão do S.T.J., de 7 de Outubro de 2004, (publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do S.T.J., Ano XII, tomo III, p.184), referindo-se à redacção do artigo 347.º então vigente, salientava:
«A violência e a ameaça grave de que fala o preceito têm de ser contextualizadas e apuradas em concreto para se poder aferir se uma ou outra, ou ambas, são idóneas ao ponto de perturbar a liberdade de acção do funcionário, nunca esquecendo que este é, em princípio, possuidor de qualidades especiais de ordem psicológica e física (…). Se não houver o emprego de violência ou de ameaça, limitando-se o agente à inacção, à fuga ou tentativa de fuga, à imprecação verbal contra o acto de que está a ser alvo, à gesticulação mais ou menos efusiva, sempre presente em tais situações, ou quaisquer outras atitudes e comportamentos que não sejam aptos a anular ou dificultar significativamente a capacidade de actuação do funcionário ou afim, não há resistência e, como tal, não há crime.
(…)
Mesmo admitindo exaltação acompanhada de alguma gesticulação e impropérios, habitual nestas situações, que envolveu e antecedeu a detenção do arguido e a que os agentes se referiram como agressividade, tal comportamento não constitui seguramente elemento objectivo integrador do ilícito imputado, ou seja, não integraria o conceito de violência a que se reporta o preceito incriminador, porque não era acto idóneo a intimidar, dificultar ou impedir que a missão dos agentes tivesse sido levada a cabo, como foi.»

Nesse sentido, Cristina Líbano Monteiro (ob. cit., p. 341) defende que «[o]s meios utilizados – violência ou ameaça grave – devem ser entendidos, principalmente, do mesmo modo que no tipo legal de coacção (…). Há-de considerar-se, em todo o caso, que os destinatários da coacção possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum. A utilização do critério objectivo-individual (...) há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário. Assim, será natural que uma mesma ação integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar ou um membro das forças de segurança. Ou seja: nalgumas hipóteses desta concreta coacção que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas “sobre-capacidades”.»

Quer isto dizer que a “violência” deve surgir como pré-ordenada e idónea a coagir, a impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário ou equiparado, devendo a adequação do meio ser aferida por um critério objectivo, tendo sempre em conta as específicas circunstâncias de cada caso.

O que não significa, como é evidente, que o tipo de crime (na primeira modalidade do n.º1 do artigo 347.º) exija que o agente impeça, de facto, o exercício do acto que estiver em causa, sendo bastante que o agente se oponha com “violência” a esse exercício.
Como adverte expressamente Cristina Líbano Monteiro (ob. cit., p. 342), «diferentemente do que acontece no crime de coacção do artigo 154.º, não se torna necessário que à adequação do meio, no sentido atrás considerado, se siga um comportamento coagido. Tanto a resistência eficaz como a ineficaz estão compreendidas na ofensa típica. Trata-se, contudo, de um crime material, uma vez que deve exigir-se, para a consumação, um resultado intermédio: que a acção violenta ou ameaçadora tenham atingido, de facto, o seu destinatário

Quanto ao tipo subjectivo, admite qualquer modalidade de dolo.

No caso em apreço, a sentença recorrida diz que, perante os factos apurados, “dúvidas não restam que o Arguido praticou acção coactora adequada a comprimir a capacidade de actuação do agente da PSP P….”

Vejamos.

Deu-se como provado que o arguido dirigiu-se ao agente P…, dizendo “Quem te chamou para aqui! Vai para o caralho, não tenho medo de ti” (ponto de facto provado n.º 2).

Diz-se que, de imediato o referido agente abordou o arguido com vista a acalmá-lo, “o qual se mostrou agressivo, levantando os braços e avançando em direcção ao mesmo” (ponto de facto provado n.º3).

Segundo se alcança, a demonstração de “agressividade” traduziu-se no referido acto de levantar os braços e avançar na direcção do agente policial de braços levantados.

Seguidamente, no que toca à factualidade atinente ao crime em análise, diz-se nos pontos 4 e 5 da factualidade provada:
«4.-Foi, então, de imediato dada voz de detenção ao Arguido, tentando os agentes imobilizá-lo.
5.-No entanto, porque o mesmo se recusava a colaborar, tiveram os agentes da PSP que usar da força necessária para o manietar e algemar, ao mesmo tempo que o mesmo os repelia, lutando e esbracejando.»

A expressão que o arguido utilizou, dirigindo-se ao agente P…, poderá ser considerada injuriosa e, por ter sido proferida pelo arguido contra órgão de polícia criminal, susceptível de tipificar o crime de injúria agravada dos artigos 181.º n.º 1, 184.º e 132.º n.º 2 alínea l), todos do Código Penal.

Quanto ao facto de o arguido ter levantado os braços e avançado na direcção do agente P…, e bem assim de, enquanto era manietado e algemado, os ter (aos agentes da PSP, entenda-se) repelido, “lutando e esbracejando”, afigura-se-nos que a factualidade provada não está concretizada em termos que permitam a integração do tipo objectivo de crime imputado.

Em que se se traduziu, concretamente, esse “lutar” e “esbracejar”? Que fez, exactamente, o arguido, em ordem a impedir ou dificultar a acção dos agentes que o pretendiam manietar e algemar?

Partindo do critério objectivo-individual acima referenciado, temos que, no caso em análise, face à matéria provada, inexiste a descrição de concretos actos de violência idóneos a intimidar, perturbar e, no fundo, dificultar ou impedir a liberdade de acção dos agentes da PSP, traduzida na detenção do arguido.

Admitindo-se que o “esbracejar” do arguido quando estava prestes a ser algemado, após lhe ter sido dada voz de detenção, tenha causado perturbação à acção dos agentes da PSP, não menos certo é que se tratava de dois agentes, que por via da sua profissão possuem especiais qualidades no que concerne à capacidade para suportar pressões e que estão munidos de instrumentos de defesa e do conhecimento de técnicas que vulgarmente não assistem ao cidadão comum, pelo que o “esbracejar” de um detido que está prestes a ser algemado, na tentativa de obstar a tal detenção, de algum modo habitual nestas situações, não era idóneo, a nosso ver, a atingir a liberdade de acção dos agentes policiais em causa, nem estão concretamente descritas acções suficientemente constrangedoras que pudessem (como não puderam) levar aqueles agentes de autoridade a deixarem de agir como lhes incumbia (ver, a este propósito, os acórdãos: da Relação do Porto, 27/06/2012, processo 268/11.7GAVLC.P1, e de 17/04/2013, processo 597/12.2GCOVR.P1; da Relação de Coimbra, 08/09/2010, processo 9/09.9GBCNT.C1; da Relação de Guimarães, de 09/01/2017, processo 622//14.2GBBCL.G1, todos em www.dgsi.pt).

Assim, o comportamento do arguido, tal como consta da factualidade provada, não integra o conceito de violência a que se reporta o preceito incriminador, por não ser idóneo a intimidar, dificultar ou impedir de forma significativa a capacidade de actuação dos agentes policiais na situação em causa, pelo que, não configurando o crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 347.º do Código Penal, o arguido deverá ser absolvido nessa parte.

3.2.– O arguido/recorrente foi condenado, igualmente, como autor material de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 155.º, n.º1, alínea c), com referência aos artigos 153.º e 132.º, n.º2, al. l), todos do Código Penal, na pena de um ano de prisão.

Dispõe o referido artigo 153.º, n.º1, do Código Penal:
«Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido (…).»

Por sua vez, prevê o artigo 155.º, n.º1, alínea c):
«1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados:
(…)
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;
(…)
o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B.
(…).»

A verificação deste crime depende dos seguintes pressupostos:
- anúncio de um mal, pessoal ou patrimonial, que configure, em si mesmo, um facto ilícito típico: o mal ameaçado tem que constituir crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;
- o mal ameaçado tem que ser futuro, não iminente (um dos critérios distintivos da tentativa, por um lado, e do crime de coacção, por outro);
- a ocorrência desse mal tem que depender, nas palavras do agente, apenas de si próprio;
- a ameaça tem que ser adequada a provocar medo no destinatário ou a afectar a sua liberdade de determinação.

Como o refere Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., p. 413), referindo-se ao crime base, «atenta a natureza do crime, não é aplicável a teoria da adequação do resultado à acção, mas a mensagem comunicada tem de ser "adequada" a provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação do destinatário. Isto é, não é necessário que o destinatário tenha efectivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade (daí, se afigurando como mais adequada a qualificação como crime de perigo abstracto-concreto e não como crime de perigo concreto, como pretende TAIPA DE CARVALHO, anotação 23.ª ao artigo 153.°, in CCCP, 1999, nem como crime de perigo abstracto, como defendem SÁ PEREIRA e ALEXANDRE LAFAYETIE, 2008: 412, anotação 13.ª ao artigo 153.°; e, na jurisprudência, acórdão do STJ, de 26.4.2001, in SASTJ, 50, 55, e acórdão do TRE, de 24.4.2001, in CJ, XXVI, 2, 270). Nas palavras proferidas por FIGUEIREDO DIAS na comissão de revisão do CP de 1989-1991, “O que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação” (actas CP/Figueiredo Dias, 1993: 500”».

Diz a sentença recorrida que, face à factualidade que resultou provada, “não restam dúvidas que a conduta do Arguido se subsume a este tipo legal de crime, no que concerne ao agente Pedro Santos, porquanto as expressões susceptíveis de configurarem a prática do crime se relacionam directamente contra a vida e a integridade física” e que resultou provado “o anúncio de um mal futuro contra a vida e integridade física, pelo que se mostram preenchidos os elementos do tipo legal de crime, impondo-se, em consequência a condenação do Arguido”.

As expressões em causa são: “Vou-te tirar a farda. Isso não vai ficar assim. Tem cuidado comigo!”.

No caso, a sentença recorrida entendeu que, com estas palavras, o arguido estava a anunciar a prática de um crime contra a vida ou a integridade física do agente da PSP visado.

Estamos, portanto, em sede de interpretação da declaração do arguido.

Se existem casos em que o sentido da declaração/mensagem não oferece dúvidas, outros há em que o sentido não é tão óbvio, o que exige uma actividade de interpretação que terá de obedecer às regras normais da interpretação de qualquer declaração proferida no âmbito de uma conversa ou exposição: tem de se atender às palavras proferidas, tem de se considerar a vontade presumível do declarante, manifestada nessas palavras, e tem de se atender ao sentido que qualquer destinatário retiraria daquelas palavras, colocado que estivesse na posição do real destinatário (ver acórdão da Relação de Coimbra, de 28/09/2011, processo 2489/09.3PCCBR.C1, que seguimos de perto, em www.dgsi.pt).

Quando o arguido disse para o agente da PSP “Vou-te tirar a farda. Isso não vai ficar assim. Tem cuidado comigo”, quis dizer que ia atentar contra a sua vida ou agredi-lo?

A nosso ver, estas expressões não consentem que se extraia que o arguido, ao dirigi-las ao agente policial, se referia a um mal futuro traduzido no cometimento de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, como exige o tipo objectivo.

Mesmo que tenha sido essa a intenção do arguido, entendemos que não está devidamente exposta na matéria de facto assente, pois não é líquido que o seu sentido seja, apenas, o anúncio de um crime contra a vida ou a integridade física.

Por exemplo, para além de as referidas palavras poderem constituir uma mera “gabarolice” inconsequente, podem também significar que o arguido pretendia apresentar queixa contra o visado, de modo a “tirar-lhe a farda”.

Quer isto dizer que o facto dado como provado é de tal modo vago e impreciso, que não é forçoso entendê-lo, a nosso ver, nos termos em que a sentença recorrida o entendeu e que, aliás, não tem tradução na factualidade provada.

E embora esteja provado que as referidas expressões “eram adequadas a produzir-lhe [ao agente policial] receio, medo e inquietação, o que alcançou”, temos que o facto, na forma relatada na sentença, não atinge o patamar de idoneidade adequado ao seu enquadramento típico, uma vez que não é possível considerar como seguro que a única interpretação possível, de acordo com as regras da experiência, é a de que o arguido pretendeu ameaçar a vida ou a integridade física do agente policial - o que, note-se uma vez mais, nem sequer está dado como provado na sentença recorrida.

Conclui-se que também nesta parte o arguido terá de ser absolvido.

3.3.– Uma nota final para dizer que, como já se assinalou, a expressão referida no ponto 2 dos factos provados, dirigida ao agente da PSP, poderá ser considerada injuriosa e, por ter sido proferida pelo arguido contra órgão de polícia criminal, susceptível de tipificar o crime de injúria agravada dos artigos 181.º n.º 1, 184.º e 132.º n.º 2 alínea l), todos do Código Penal.

Trata-se, porém, de um crime semipúblico e não foi exercido o direito de queixa, sendo que, como já se decidiu nos acórdãos do S.T.J., de 05/12/2007, processo 07P3758, e da Relação de Coimbra, de 18/01/2012, processo 45/10.2GDCVL.C1 (em www.dgsi.pt), o simples relato dos factos no auto de notícia elaborado pela PSP só por si não revela uma manifestação inequívoca de que se deseja procedimento criminal pelo crime de natureza semipública.

III–Dispositivo:

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto por F…, revogando a sentença recorrida e absolvendo o arguido/recorrente dos crimes por que foi condenado.

Sem tributação.



Lisboa, 9.05.2017



Jorge Gonçalves - (o presente acórdão, integrado por dezoito páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
Maria José Machado