Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2270/07.4TBVFX-B.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: EXECUÇÃO FISCAL
CONCURSO DE CREDORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.No que tange à articulação entre o disposto no art. 794º, nº1, do Código de Processo Civil, com art. 244º, nº2, do CPPT, existem duas posições em confronto.

II.Segundo uma, o art. 244º, nº 2, do CPPT, deve ser interpretado restritivamente no sentido de que a impossibilidade legal de venda do imóvel penhorado só ocorre nos casos em que a Autoridade Tributária seja o único interveniente no processo fiscal, nada obstando a que se proceda a essa venda na execução fiscal por impulso do credor comum.

III.A esta posição contrapõe-se outra, segundo a qual o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal pelo art. 244º, nº2, do CPPT, devendo prosseguir a execução comum, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.

IV.Os argumentos que sustentam a segunda tese são mais impressivos e pertinentes, sendo que esta segunda tese foi sancionada pelo Tribunal Constitucional que, nos Acórdãos nºs. 610/2017 e 329/2019, bem como na decisão sumária nº 728/2018, considerou que o artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, configura um impedimento à venda judicial do imóvel penhorado no âmbito do processo de execução fiscal, mas não nos autos de execução comum.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 13.4.2018, o exequente Novo Banco, SA, formulou o seguinte requerimento:

«(…)  vem requerer a V/Exa. o levantamento da sustação da execução e consequente prosseguimento das diligências atinentes à venda do imóvel penhorado a 27.09.2017 e indicado no requerimento executivo, nos termos e com os fundamentos seguintes:
- Sobre o bem da verba UM do auto de penhora elaborado em 27.09.2017 (Prédio descrito na CRPredial de VFXira sob o nº 5…/ Povoa - fração V) a 13.12.2017 foi determinada pela Sra. Agente de Execução a sustação da presente execução nos termos do disposto no nº 1 do artigo 794º do CPC.
- Sucede que, conforme se demonstrará o circunstancialismo previsto no art. 794º n.º 1 do CPC já não se verifica porquanto as execuções fiscais que estão pendentes e que motivaram as penhoras prioritárias sobre tal imóvel não podem prosseguir quanto a esse bem.
- Antes de mais, e conforme anteriores comunicações enviadas à Sra. Agente de Execução, relativamente à primeira penhora registada em 16.11.2006 (ap. 60 de 29.11.2006) no processo nº 3239200101000063 que corre termos no Serviço de Finanças de Lisboa - 7º, o processo mostra-se extinto encontrando-se a Sra. Agente de Execução a diligenciar pelo registo de cancelamento da referida penhora.
- Relativamente às quatro penhoras que se encontram registadas em 09.10.2008 (ap. 27 de 21.10.2008) no processo nº 3239200601002414 e apensos, em 06.06.2012 (ap. 2522 de 19.06.2012) no processo nº 3239200801049240 e apensos, em 03.01.2014 (ap. 2126 de 03.01.2014) no processo nº 3239200901024434 que correm termos no Serviço de Finanças de Lisboa - 7º e em 07.03.2014 (ap. 1674 de 07.03.2014) no processo nº 3573201101046179 e apensos que corre termos no Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira - 2º, tais ónus embora ativos não podem desencadear o prosseguimento das respetivas execuções fiscais atentas as limitações legais impostas a este Credor.
- Conforme resulta da informação prestada pelo Serviço de Finanças de Lisboa 7 ao Exequente e à Sra. Agente de Execução (Cf. Documentos n.º 1 e 2 que aqui se juntam), a venda do imóvel encontra-se suspensa nos termos do 244º n.º 2 da Lei 13/2016.
- A Lei 13/2016 de 23 de maio veio prever que, no caso de penhora em execução fiscal de bem imóvel que corresponde a habitação própria permanente do Executado e de valor patrimonial inferior a € 574.000,00, não há lugar à realização da venda na execução fiscal, estabelecendo assim um impedimento legal à venda com a verificação destes requisitos, o que se verifica no caso em apreço.
- Sucede que, salvo melhor opinião, esta alteração legislativa não torna a casa de morada de família um bem inexecutável, nem mesmo um bem impenhorável.
Estabelece, isso sim, uma proibição das entidades públicas procederem à venda judicial do bem em razão de uma dívida fiscal, estando o seu âmbito de aplicação âmbito circunscrito aos processos de execução fiscal.
- Não podendo esta alteração legislativa impedir ou travar a possibilidade do Credor Hipotecário avançar com a execução da sua garantia real validamente constituída sob pena de prejudicar em grande medida a garantia do credor à satisfação do seu crédito
- Ora o aqui Exequente é credor com garantia real registada – quer por via das hipotecas quer por via da penhora - podendo por isso promover a venda do imóvel em questão, sendo certo que a penhoras anteriormente registadas garantem o direito de crédito do Estado perante terceiros credores posteriores.
- Pelo que não se mostrando-se ativas e dinâmicas as execuções fiscais que motivaram a sustação da execução, carece de aplicação o circunstancialismo do art. 794º n.º 1 do CPC, devendo a presente execução prosseguir os tramites normais para venda do imóvel penhorado e citação da Fazenda Nacional como credor para reclamar os seus créditos, os quais ficaram certamente acautelados por via de sentença de verificação e graduação de créditos.
- Deste modo, requer-se a V/Exa. se digne a autorizar o levantamento da sustação da execução e consequente notificação à Sra. Agente de Execução para que esta possa avançar com as diligências.»

Sobre tal requerimento recaiu, em 15.1.2019, o seguinte despacho, objeto da impugnação:

«Salvo melhor entendimento, ainda não está comprovada nos autos a impossibilidade de a venda do imóvel penhorado na presente ação executiva ter lugar na execução fiscal em que foi efetuada a penhora prioritária.
Com efeito, o artigo 244.º, n.º 2 do CPPT, na redação introduzida pela Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, não parece obstar àquela venda quando concorram outros credores, além da Autoridade Tributária, que tenham reclamado os seus créditos na execução fiscal.
O objetivo da referida Lei n.º 13/2016 foi apenas o de impedir que se proceda à venda, em execução fiscal, para pagamento exclusivo de créditos fiscais, de imóvel destinado, efetiva e exclusivamente, a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar. Logo, existindo outros créditos, de natureza diferente, objeto de reclamação na execução fiscal, a venda executiva fiscal pode ser realizada.
Realça-se que a Autoridade Tributária é obrigatoriamente citada na execução comum para reclamar créditos que gozem de preferência de pagamento pelo produto da venda do bem em causa, pelo que, não funcionando, neste caso, o impedimento legal estabelecido no artigo 244.º, n.º 2 citado, o mesmo deve valer quando o concurso de credores ocorre em sede de execução fiscal.
Contudo, caso seja oposto algum obstáculo, pelo órgão da execução fiscal, ao exercício dos direitos do credor reclamante, cabe-lhe reagir pelos meios próprios ao seu dispor, que não são os destes autos de execução e, só quando tais meios se mostrarem esgotados, tornando-se definitiva a paralisação da marcha da tramitação da execução fiscal quanto ao imóvel penhorado, é que será de ponderar a possibilidade desta execução prosseguir em relação a tal bem, por constituir então a única via para a atuação da tutela jurisdicional efetiva devida ao exequente.
Pelo exposto, indefere-se o requerido pelo exequente no seu requerimento de 13 de abril de 2018.»

Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, em 31.1.2019, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

1.O presente recurso vem interposto de despacho que indefere o pedido de levantamento de sustação da execução, não podendo o aqui apelante concordar a interpretação do art. 244º, n2, do CPPT feito pelo Tribunal a quo, que considera que a limitação aí prevista não se aplica quando existam outros credores, mas apenas quando a execução fiscal prossegue para pagamento exclusivo de créditos fiscais.
2.A 25.4.2007 o qui apelante apresentou requerimento executivo tendo em vista a execução de dívida com garantia hipotecária, emergente de um contrato de compra e venda e mutuo com hipoteca e fiança e de um de mútuo com hipoteca e fiança, em que foi penhorado o imóvel hipotecado ao aqui apelante a 27.9. 2017 (ap. 3… de 2017/09/27).
3.A 13.12.2017 a Sra. Agente de execução determinou a sustação da presente execução nos termos do disposto no nº1 do art. 794º do Código de Processo Civil por existirem várias penhoras anterior que aí discriminou na sua decisão de sustação.
4.A primeira penhora registada, à data foi, entretanto, cancelada, e relativamente às restantes penhoras em que o exequente é sempre a Fazenda Nacional, o Serviços de Finanças de Lisboa 7 veio informar quer o exequente quer a Sra. Agente de execução, que a venda do imóvel penhorado foi suspensa nos termos do 244º, nº2 da Lei 13/2016.
5.Pelo que, perante esta impossibilidade legal do Serviços de Finanças de Lisboa 7 em promover a venda do imóvel penhorado, o aqui apelante requereu o levantamento da sustação a 13.4.2018 e que motivou o despacho de que se recorre.
6.Resulta do processo inequívoco que esta entidade pública se mostra impedida de promover a venda do bem penhorado no âmbito da execução fiscal pendente por força do disposto no art. 244º, nº2, do CPPT.
7.Com a entrada em vigor da Lei nº 13/2016, de 23.5., que prevê que, sendo penhorada em execução fiscal bem imóvel que corresponda a habitação própria e permanente do executado, não há lugar à realização da venda na execução fiscal, estabelecendo um impedimento legal à venda dos imóveis que se encontrem nessas circunstâncias, como confirmado pelo próprio Serviço de Finanças de Lisboa 7.
8.Mas tal impedimento legal, apenas aplicável à Administração Fiscal, não torna a casa de morada de família um bem inexecutável, nem mesmo um bem impenhorável.
9.A Lei 13/2016, de 23.5., veio prever que, no caso de penhora em execução fiscal de bem imóvel que corresponde a habitação própria permanente do executado e de valor patrimonial inferior a € 574.000, não há lugar à realização da venda na execução fiscal, estabelecendo assim um impedimento legal à venda com a verificação destes requisitos, o que se verifica no caso em apreço.
10.O que não impede que o credor com garantia real registada – quer por via das duas hipotecas registadas quer por via da penhora – promova a venda do imóvel em questão na sua execução e se citem os credores, mesmo que com penhoras anteriores registadas.
11.Acresce que, face ao impedimento legal à venda do imóvel previsto no art. 244º nº2 do CPPT, não pode o aqui apelante reagir impulsionando o processo de execução fiscal, apenas o pode fazer quanto à sua execução.
12.O CPPT não prevê qualquer possibilidade de a execução prosseguir por impulso do reclamante com garantia real em situação semelhante à dos autos, contrariamente ao defendido pelo tribunal a quo.
13.Aliás se assim fosse certamente o do art. 244º do CPPT teria essa previsão, tal como se prevê a possibilidade do próprio executado fazer cessar este impedimento legal no seu nº6.
14.O artigo é totalmente omisso quanto à cessação do impedimento legal de venda a requerimento de outro credor reclamante.
15.Conforme jurisprudência recente – acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.7.2018, processo 893/12 –o CPPT não prevê qualquer possibilidade de a execução prosseguir por impulso do reclamante com garantia real em situação semelhante à dos autos.
16.Não pode o apelante concordar com a interpretação feita no despacho quanto ao art. 244º do CPPT.
17.As alterações introduzidas pela Lei 13/2016 no que concerne à venda em execução fiscal, visam a proteção da cada se morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, não resultando que a sua aplicação apenas produza efeitos em execuções fiscais para pagamentos exclusivos de créditos fiscais tal como defendido pelo tribunal a quo.
18.A limitação mantém-se independentemente de na referida execução fiscal terem sido reclamados outros créditos por outros credores que não públicos.
19.Não resulta da lei a possibilidade de qualquer credor nessa execução fiscal ter legitimidade para promover a venda, devendo sim promover a venda na sua própria execução, demonstrada que esteja a impossibilidade prevista no art. 244º nº2 do CPPT, o que se verifica no caso dos autos.
20.Nem tão pouco resulta que o âmbito de aplicação daquele preceito – 244º, nº2, do CPPT – se cinja aos casos em que a Administração Fiscal seja o único credor interveniente no processo.
21.E não podendo tal limitação se sobrepor ao legítimo crédito do credor hipotecário, aqui exequente e apelante, caberá a este promover na sua execução onde a penhora se mostra imediatamente registada após as penhoras da execução fiscal.
22.A ratio legis do artigo 794º1 do Código de Processo Civil prende-se com a necessidade de evitar que sobre o esmo recaiam duas vendas ou adjudicações, pretendendo-se que a liquidação seja uma só, por razões de certeza e de proteção das partes.
23.Pressupondo que as execuções se mostrem ativas e dinâmicas, o que não sucede com a execução fiscal, conforme confirmação feita pelo Serviços de Finanças de Lisboa 7 quanto à venda do imóvel.
24.Assim, deve a presente execução, e que está ativa, prosseguir os seus trâmites normais para venda do imóvel penhorado, e determinar-se a citação da Fazenda Nacional como credor para reclamar, querendo, os seus créditos.
25.Neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 2.7.2018, Processo 893/12 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.9.2017, processo 1420/16.
26.Não prejudicando de forma alguma este credor que ficará certamente acautelado por via de sentença de verificação e graduação de créditos a ser proferida.
27.Este credor está impedido de prosseguir com a venda mas não se encontra impedido de reclamar os seus créditos.
28.Pelo que, contrariamente ao entendimento do despacho de que se recorre, não pode o apelante impulsionarem tão pouco ser pago pelo produto da venda do bem imóvel em sede de execução fiscal por força do disposto no art. 244º, nº2 CPPT, não sendo a execução fiscal o meio e local próprio para reagir ao impedimento de prossecução das diligências de venda do imóvel, por falta de legitimidade do aqui apelante e por falta de previsão legal para o efeito.
29.Impondo-se a revogação do despacho proferido e que seja proferido despacho que determine o levantamento da sustação da execução com vista à venda, do imóvel penhorado e citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos, rateando-se o produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de graduação.
Nestes termos, e atento tudo o que vem de se expor, deve ser concedido provimento ao recurso, devendo o despacho proferido ser revogado nos exatos termos acabados de referir.»

Não se mostram juntas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, a questão a decidir consiste em aquilatar se deve ser revogado o despacho impugnado, ordenando o prosseguimento da execução sobre o imóvel anteriormente penhorado em execução fiscal.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório cujo teor se dá por reproduzido.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Recapitulando os factos essenciais, foi penhorada uma fração autónoma de habitação dos executados, tendo a Agente de Execução sustido a execução quanto a tal fração em virtude de incidir sobre a mesma penhora anterior da Autoridade Tributária. Ou seja, a Agente de execução deu cumprimento ao disposto no nº1 do art. 794º do Código de Processo Civil.

Sucede que a Lei nº 13/16, de 23-5, veio proteger a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado (art. 1º). O art. 244º, nº 2, do CPPT, passou a ter a seguinte redação: “não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar,quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.”
Este regime suscita um problema de articulação com o art. 794º nos casos em que a penhora prioritária da habitação própria e permanente tenha ocorrido na execução fiscal, questionando-se se tal regime vincula o credor comum.

Existem duas posições sobre a questão.

Uma primeira posição, segue de perto as  reflexões de Delgado Carvalho, “As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/16, de 23/5, no CPPT e na Lei Geral Tributária, e as suas repercussões no concurso de credores no caso de venda de imóvel destinado a habitação própria e permanente na execução fiscal”, em www.blogippc.blogspot.com, segundo qual o art. 244º, nº 2, do CPPT, deve ser interpretado restritivamente no sentido de que a impossibilidade legal de venda do imóvel penhorado só ocorre nos casos em que a Autoridade Tributária seja o único interveniente no processo fiscal. Nas suas palavras:

« (…) o impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente previsto no nº 2 do art. 244º do CPPT só opera em função do tipo de garantia real (em sentido impróprio) invocada pela administração fiscal: se esta garantia for a que alude o art. 822º, nº 1 do CC, não há lugar à realização da venda; mas se houver concurso do crédito fiscal com os créditos dos outros credores do executado, seja qual for a natureza (fiscal ou não fiscal) do processo executivo em que for admitido o concurso de credores, já a venda daquele imóvel pode realizar-se. Neste caso, o imóvel é vendido para cobrança de créditos não fiscais e o crédito do Estado, invocando este último os privilégios creditórios. Só esta solução mantém a coerência do sistema, que é uma exigência do art. 9º, nº 1, do CC, a respeito da interpretação da lei, sendo também compatível com o disposto no nº 4 do art. 794º do CPC, que determina a extinção da execução comum, no caso de não serem identificados outros bens penhoráveis.”

(…)

Uma vez expostas estas proposições, importa retirar a seguinte conclusão: a administração tributária não pode vender o imóvel afeto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar no âmbito de uma execução por si instaurada, mas já pode ser paga pelo produto da venda desse imóvel no concurso com outros credores do mesmo devedor, dado que a limitação legal criada apenas se aplica no âmbito da execução instaurada para satisfação de créditos fiscais. Daqui decorre que a administração fiscal pode apresentar-se a reclamar créditos de impostos no âmbito de processos de execução comum, na hipótese de a casa de morada de família ter sido primeiramente penhorada numa execução comum, mesmo que o seu crédito seja graduado em primeiro lugar (como acontece quando o imposto devido é IMI ou IMT) e ainda que
arrecade a totalidade do produto da venda. Note-se que, em tal caso, a casa de morada de família não é objeto de venda para satisfação de um crédito de natureza fiscal, nem a garantia invocada pela administração fiscal é a penhora. No concurso com os demais credores do devedor, a administração fiscal faz valer os privilégios creditórios, gerais ou especiais, que por lei lhe são reconhecidos.


(...)

Uma vez que é de admitir que a administração fiscal se possa apresentar a reclamar créditos para fazer valer os privilégios creditórios de que beneficia quando em concurso com os credores comuns do devedor, então há que entender que é indiferente o processo de execução no qual se realiza o concurso de credores. Dito de outra forma, não funcionando a proibição da venda quando esta seja realizada para satisfazer conjuntamente créditos fiscais e créditos não fiscais, a fase de concurso de credores tanto pode ser aberta no âmbito da execução fiscal como no âmbito da execução comum. Tudo depende do processo em que a penhora seja mais antiga. Em suma, não se verifica o impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar quando, citados os credores comuns (isto é, não fiscais) do devedor na sequência da penhora de imóvel abrangido pela sua garantia, estes se apresentem a reclamar créditos no processo de execução fiscal, por ser este o processo em que a penhora é mais antiga. O regime instituído pela Lei n.º 13/2016 não pode implicar nem isentar os credores comuns do concurso da fazenda nacional (o que, aliás, teria como consequência um injustificado favorecimento dos particulares em detrimento do Estado), nem isentar esta fazenda do concurso dos credores comuns. […]»

Na jurisprudência, esta posição foi seguida designadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.10.2017, Sílvia Pires, 249/13, segundo o qual:

«(…) foi introduzida a impossibilidade, após a entrada em vigor da referida Lei - aplicável a todos os processos de execução fiscal pendentes -, de nos processos de execução fiscal, serem vendidos mediante impulso da Autoridade Tributária os imóveis destinados exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.
Esta impossibilidade de venda do imóvel penhorado que seja habitação própria e permanente do executado não foi estendida aos demais credores, pelo que à partida não se afigura razoável que se impeça um credor comum com uma penhora sobre aquele bem que foi reclamar o seu crédito numa execução fiscal de promover a sua venda para ver satisfeito o seu crédito.
No caso em apreço a execução movida pelo Exequente foi sustada para este ir reclamar o seu crédito ao processo de execução fiscal em virtude de penhora anterior à sua sobre o mesmo bem.
A aparente desarmonia do regime em causa criada pelo n.º 2 do art.º 244º do CPPT só resulta da interpretação deste preceito que, forçosamente não pode ser literal, sendo manifesto que nada nos indica que o legislador tenha querido criar um entrave ao prosseguimento das ações executivas cíveis. Mantendo-se a penhora anterior efetuada na execução fiscal não há dúvida que é aí que o agora Exequente terá que reclamar o seu crédito e direito a vê-lo pago pelo produto da venda do bem penhorado.
A solução para a questão há de encontrar-se na interpretação que se faça do citado art.º 244º, n.º 2 que tem de ser no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover, nessa situação – penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar –, a venda desse bem, mas não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda dado que se encontra em situação similar à prevista no art.º 850º, n.º 2, do C. P. Civil, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias. Tal interpretação reduz, pois, o âmbito de aplicação daquele preceito – 244º, n.º 2, do CPPT – aos casos em que a Administração Fiscal seja o único credor interveniente no processo.»

No mesmo sentido, cf. o Acórdãos da Relação do Porto de 8.3.2019, Anabela Dias da Silva, 11128/11, da Relação de Coimbra de 8.4.2019,   Falcão de Magalhães, 1325/16.

Nos termos da corrente oposta, o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal pelo art. 244º, nº2, do CPPT, devendo prosseguir a execução comum, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos ( cf. Acórdãos da Relação de Coimbra de 26.9.2017, Fontes Ramos, 1420/16, da Relação de Évora de 12.7.2018, Maria Sousa e Faro, 893/12, da Relação de Guimarães de 17.1.2019, Alexandra Mendes, 956/17 e da Relação de Évora de 30.5.2019, Tomé Ramião, 402/18).

Os principais argumentos desta posição são os seguintes:
i.- A ratio legis da norma do art.º 794º, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado, como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa situação de dinâmica processual;
ii.- Atento o teor taxativo do nº2 do art. 244º do CPPT (“não há lugar à realização de venda”), o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal, independentemente de ser requerida por qualquer credor comum;
iii.- O CPPT não prevê o prosseguimento da execução fiscal por impulso dos credores reclamantes, não tem norma equivalente ao art. 850º, nº2, do Código de Processo Civil;
iv.- Estando suspensa a execução fiscal, não pode funcionar o regime previsto no art.º 794º, nº1, que tem como pressuposto a ausência de qualquer impedimento legal ao prosseguimento normal da execução fiscal e venda do bem penhorado;
v.- O art.º 244º do CPPT encontra-se inserido na Secção VIII, sob a epígrafe “Da convocação dos credores e da verificação dos créditos”, o que constitui um elemento sistemático de interpretação que não pode ser ignorado, donde se infere que nada vale reclamar na execução fiscal o crédito se a sua satisfação só poderia ser obtida pela venda do imóvel hipotecado, venda que está expressamente interdita na execução fiscal.
vi.- A regra da preferência resultante da penhora (art. 822º do Código Civil) não pode impedir a venda do imóvel no processo onde a penhora é posterior, visto que a Autoridade Tributária pode reclamar o seu crédito nesta execução (art. 786º), sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir.

Mais uma vez se demonstra que o Legislador poderia ter sido mais esclarecido, dispondo expressamente sobre a matéria e prevenindo dúvidas de regime. De todo o modo, cremos que os argumentos da segunda tese são mais impressivos e pertinentes, tanto mais que esta segunda tese foi sancionada pelo Tribunal Constitucional que, nos Acórdãos nºs. 610/2017 e 329/2019, bem como na decisão sumária nº 728/2018, considerou que o artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, configura um impedimento à venda judicial do imóvel penhorado no âmbito do processo de execução fiscal, mas não nos autos de execução comum.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se o despacho impugnado, o qual deve ser substituído por outro despacho que ordene o levantamento da sustação da execução tendo em vista a venda do imóvel penhorado, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.
Sem custas.


Lisboa, 22-10-2019


Luís Filipe Sousa
Carla Câmara
Higina Castelo

(assinado eletronicamente)



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, da Relação de Lisboa de 22.1.2019, José Capacete, 15420/18.