Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
31947/15.9T8LSB.L2-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: DISCRIMINAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
CATEGORIA PROFISSIONAL
FUNÇÕES ATRIBUIDAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I– Invocando o Autor/trabalhador ser alvo de discriminação relativamente a outros trabalhadores da Ré/empregadora, incumbe-lhe alegar e provar esse comportamento alegadamente discriminatório e indicar os trabalhadores em comparação com os quais tal comportamento se verifica.
II– À Ré/empregadora incumbe provar que as diferenças de tratamento entre o Autor e os demais trabalhadores que indica, não assentam em qualquer factor de discriminação e que não são irrazoáveis.

III– Tendo o Autor, empregado de mesa de 1ª, sido reintegrado na Ré após despedimento com invocação de justa causa (sob a alegação da prática de furto e abuso de confiança), declarado judicialmente como ilícito, mas adoptando a Ré os seguintes comportamentos

- desde logo não lhe disponibilizando caixa própria no sistema de registo, tendo o mesmo de recorrer às caixa dos colegas para registar os pedidos e pagamentos, e no fim do trabalho entregar o dinheiro e talões de pagamento ao seu colega de turno, que os registava como se fossem dele, embora num turno diferente daquele em que se encontravam, sendo certo que era o único empregado de mesa que não constava dos registos;

- logo que implementou o sistema “áreas/runners”, colocou o Autor como “runner”, ao contrário do que aconteceu com os seus colegas com antiguidade similar, para não mais o retirar desta posição,

e para os quais não fez prova das justificações alegadas, nomeadamente que as diferenças de tratamento não assentam nas razões alegadas pelo Autor, antes numa avaliação do mérito segundo critérios objectivos, estamos perante um factor de discriminação negativo ilegítimo, análogo aos referidos no artigo 24º nº2 do CT.

IV– A tutela da categoria não visa apenas a garantia dos ganhos do trabalhador, tem igualmente em vista a sua profissionalidade.

V– O esvaziamento das funções resultantes da categoria profissional do Autor, por via da sua integração na sub categoria criada pela Ré de “runner”, no âmbito da qual é exercida apenas um função, mas não aquelas que são as nucleares da mesma categoria profissional e actividade contratada, traduz-se numa violação do contrato de trabalho em vigor entre as partes, e numa violação dos direitos de personalidade do trabalhador, consubstanciando a prática de um ilícito pela Ré.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


AAA instaurou a presente acção especial de tutela da personalidade do trabalhador, contra BBB, SA, pedindo a condenação da Ré a atribuir-lhe todas as funções profissionais correspondentes à categoria de empregado de mesa de 1ª, conforme disposto no IRCT, ou, no caso de manter o actual sistema de divisão de empregados de mesa em “áreas” e “runners”, a atribuir-lhe a posição de “área”, bem como abster-se de praticar actos discriminatórios, hostis, humilhantes, vexatórios, ou persistir directa ou indirectamente nos praticados, e dar-lhe o mesmo tratamento que confere aos demais empregados de mesa nas mesmas circunstâncias em que exercem as funções dessa categoria profissional, e também pagar-lhe a importância de 60.000€ a título de danos não patrimoniais, quantia a que acrescem juros de mora à taxa legal , desde a data da citação até efectivo pagamento.

Alega que
- foi admitido ao serviço da Ré em 17 de Junho de 1982 para desempenhar a sua actividade profissional;
- tem a categoria profissional de empregado de mesa de 1ª, pelo menos desde Outubro de 2007;
- desde Abril de 2014 que a Ré o impede de desempenhar as funções da sua categoria profissional;
- esse impedimento tem natureza persecutória e discriminatória e constitui assédio moral.
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Citada, a Ré contestou arguindo a excepção de ilegitimidade, e impugna a matéria factual alegada pelo Autor.

Conclui pela procedência da excepção e, caso assim se não entenda, pela improcedência da acção. Pede a condenação do Autor como litigante de má fé.
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Foi proferida decisão que julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva da Ré, com a  sua absolvição da instância, decisão que foi revogada por este Tribunal da Relação, que declarou a  Ré parte legítima e determinou o prosseguimento dos autos.[1]
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Baixados os autos à primeira instância foi fixado o objecto do litígio e foi dispensada a enunciação dos temas da prova.
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Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
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Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo a Ré do pedido.
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Inconformado, o Autor interpôs recurso, concluindo nas suas alegações,
(…)
Termos em que, e com o mais de douto suprimento, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, anulada a douta sentença e proferido douto Acórdão que, decidindo pela ilegalidade do impedimento de desempenho pelo A. das suas funções de Empregado de Mesa, considere procedente a acção e condene a Rda de acordo com o pedido formulado pelo A.
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A Ré contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
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A Mma Juíza a quo pronunciou-se sobre a arguida nulidade da sentença, no sentido da sua improcedência.
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O Exmo Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
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Os autos foram aos vistos às Exmas Desembargadoras Adjuntas.

Cumpre apreciar e decidir.
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II–Objecto do Recurso 
Sendo pelas conclusões que se afere o objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir
- se a sentença é nula;
- se o tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto, quanto aos factos impugnados;
- se o Autor é discriminado pela Ré relativamente aos demais colegas, no que respeita às funções que exerce;
- se a Ré incumpre a sua obrigação contratual em relação ao Autor, ao atribuir-lhe funções de “runner”;
- acerca dos danos não patrimoniais.
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III–Fundamentação de Facto

São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância.
1.– O requerente foi admitido ao serviço da requerida em 17/06/1982 para, sob autoridade e direcção dela, desempenhar a sua actividade profissional, sob o regime de contrato individual de trabalho.
2.– A matéria aqui descrita é matéria de direito[2], razão pela qual se decide eliminá-la do elenco dos factos provados.
3. O local de trabalho do requerente é o estabelecimento da Ré, (…) em Lisboa.
4. O período de trabalho do requerente é de 40 horas semanais, por turnos fixos da seguinte forma: segunda-feira: 12,00h-15,00h/18,00-01,00; terça-feira: 17,00h-01,00; quarta-feira e quinta-feira: folga; sexta-feira: 18,30h-01,30h; sábado: 17,30h-01,30h, e domingo: 18,00h-01,00h.
5. A retribuição base mensal do requerente é de € 897,53, acrescida de "comissão de vendas" e do trabalho nocturno referente às horas nocturnas de cada turno.
6. O requerente tem a categoria profissional de empregado de mesa de 1ª, pelo menos desde Outubro de 2007.
7. À data de 24/03/2009 o requerente era delegado sindical do (…).
8. Até 24/03/2009 o requerente sempre desempenhou na requerida funções profissionais próprias da categoria profissional de empregado de mesa de 1ª, constantes do IRCT, e que são as seguintes: serve refeições e bebidas a clientes, é responsável por um turno de mesas, executa e colabora na preparação das salas e arranjo das mesas para as refeições, das bandejas e dos carros destinados às refeições e bebidas das mesas do seu turno, acolhe e atende os clientes, apresenta-lhes a ementa ou lista do dia, dá-lhes explicações sobre os diversos pratos e bebidas e anota os pedidos; serve os alimentos escolhidos, elabora e emite a conta dos consumos ( antecedida da "consulta de mesa" ), efectua a  respectiva cobrança com a  recepção  do pagamento e efectivação dos trocos, no final procede à arrumação da sala na zona do seu turno.
9.– Em 24/03/2009 a requerida suspendeu preventivamente o requerente do desempenho das suas funções, instaurou-lhe um processo disciplinar e, em 13/07/2009, despediu-o com invocação de justa causa.
10.– O requerente impugnou judicialmente esse despedimento através do proc.° n.° 3437/09.6TTLSB, tendo, por sentença do 1° Juízo, 1ª Secção, do Tribunal do Trabalho de Lisboa confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, sido julgada procedente a acção e declarado ilícito o despedimento.
11.– O requerente foi reintegrado na requerida em 4/03/2014.
12.– Entre 3 e 13 de Abril de 2014 o requerente desempenhou as suas funções de Empregado de Mesa de 1ª, conforme descritas em 8, mas com recurso à caixa de colegas, em concreto dos colegas (…) e (…), uma vez que a requerida argumentava que o requerente não constava do registo de pessoal e, consequentemente, não tinha caixa própria no sistema de   registos e  contabilização em  vigor  para  os empregados de mesa.
13.– Nesse período temporal o requerente desempenhou as suas funções normais e, no final do trabalho, entregava o dinheiro ou talões de pagamento ao seu colega de turno, que o registava como se fosse dele embora num turno diferente daquele.
14.– O requerente era o único empregado de mesa da empresa que não constava dos registos.
15.– A requerida tinha despedido o requerente em 2009 com a acusação de furto e abuso de confiança, por alegadamente ele se ter apropriado de quantias das receitas dos seus serviços.
16.– A requerida fez queixa-crime contra o requerente, imputando-lhe a prática de dois crimes de abuso de confiança, por se ter apropriado de quantias entregues por clientes para pagamento de produtos consumidos no restaurante.
17.– Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido sobre recurso do despacho de pronúncia, foi decidido não pronunciar o requerente, por falta de indícios suficientes da prática dos crimes imputados pela requerida.
18.– Quando a requerida voltou a colocar o requerente no registo de pessoal, alterou o seu número de empregado, que deixou de ser o 13.200 e passou a ser o 15.658.
19.– A indumentária usada pelos "áreas" é diferente da que é usada pelos "runners", sendo que primeiros usam uma capa com capuz e os segundos têm um avental.
20.– Entre 3 e 13 de Abril de 2014 o requerente usou a mesma indumentária que usava antes de Março de 2009, mas em 14/04/2015, por ordem da requerida, passou a usar a farda de "runner".
21.– No dia 14/04/2014 a requerida implementou na Cervejaria (…) um sistema de trabalho em que divide os empregados de mesa em duas "classes" - os "áreas" e os "runners".
22.– Essas duas "classes'   desempenham funções completamente diferentes: os "áreas" atendem e servem os clientes e os "runners" são carregadores de comida e/ou de bebidas da cozinha ("controle") para as mesas e/ou dos "aparadores" para a copa.
23.– O "área": toma nota dos pedidos das refeições e bebidas dos clientes, é responsável por um turno de mesas, executa e colabora na preparação das salas e arranjo das mesas para as refeições, das bandejas e dos carros (quando era o caso) destinados às refeições e bebidas das mesas do seu turno, acolhe e atende os clientes, apresenta-lhes a ementa ou lista do dia, dá-lhes explicações sobre os diversos pratos e bebidas e anota os pedidos; serve os alimentos escolhidos, elabora e emite a conta dos consumos (antecedida da "consulta de mesa"), efectua a respectiva cobrança com a recepção do pagamento e efectivação dos trocos, no final procede à arrumação da sala na zona do seu turno.
24.– O "runner" transporta a comida e as bebidas da cozinha ("controle") para as mesas e/ou dos "aparadores" para a copa, de acordo com as indicações quantitativas que lhe dão, sem qualquer contacto com as mesas, a não ser para "descarregar" os pratos, nem com os clientes.
25.– A partir de 14/04/2014 o autor passou a desempenhar as funções de "runner",  nunca tendo desempenhado as funções de "área".
26.– Já em 2013 a requerida tinha implementado esse sistema de funcionamento na Cervejaria Trindade durante um determinado período.
27.– De todos os empregados de mesa ao serviço da requerida, o requerente é o segundo mais antigo (apenas o Colega (…) foi admitido antes dele).
28.– Os empregados de mesa ao serviço da requerida desde data anterior a Março de 2009 são (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), e todos exercem as funções de "áreas".
29.– Entre os "runners" há os das "comidas" e os das "bebidas e entradas", sendo que os primeiros são os que carregam mais peso.
30.– O requerente foi sempre "runner" das comidas até 9 de Janeiro de 2015.
31.– No dia 9/01/2015, por volta das 22h00, ao pegar numa bandeja cheia de pratos, caçarolas, etc., o requerente sofreu um acidente na coluna, foi no dia seguinte ao hospital, foi de seguida ao médico da requerida e, em consequência, esteve de baixa médica pelo seguro entre essa data e 22/01/2015.
32.– O requerente nasceu em 23/05/1956, tinha 58 anos à data da reintegração e tem hoje 59 anos de idade.
33.– As funções de “runner” implicam maior desgaste físico relativamente às  desempenhadas pelos “áreas”, pelo transporte de pesos.
34.– O requerente teve necessidade de recorrer ao hospital e ao médico de família, tendo estado de baixa médica entre 30 de Outubro e 7 de Novembro de 2014 e entre 10 e 20 de Abril de 2015.
35.– No início de Janeiro de 2015 o requerente foi sujeito a exames radiológicos, por determinação dos serviços clínicos da requerida.
36.– No relatório de 06/01/2015 do (…), Lda, identifica-se no estudo radiológico da mão esquerda "processo degenerativo entre o trapézio e o escafoide com osteofitose acentuada e densificação subcondral das superfícies articulares bem como redução do espaço articular a esse nível"; em ecografia das partes moles dos punhos, no punho esquerdo "intenso processo degenerativo entre o trapézio e o escafoide, com acentuado espessamento sinovial traduzindo intenso processo degenerativo com um processo inflamatório associado. Note-se também artrose entre o 1° metacarpo e o trapézio à esquerda; no punho direito "intenso processo degenerativo entre o trapézio e o escafoide, sendo no entanto menos exuberante que o lado contra-lateral, observando-se também artrose entre o 1° metacarpo e otrapézio, identificando-se nessa área imagem quística medindo cerca de 1,7 cm, correspondendo a quisto sinovial associado ao processo degenerativo descrito".
37.– A requerida tem conhecimento da situação clínica do requerente, descrita em 36.
38.– O requerente foi sempre um trabalhador cumpridor dos seus deveres, sempre exerceu as suas funções profissionais com zelo e diligência, não foi objecto de qualquer reprimenda ou reprovação por parte da requerida nem, para além daquele que os tribunais invalidaram, de qualquer processo disciplinar.
39.– No seu ambiente familiar e perante os amigos e conhecidos o requerente tem manifestado tristeza e inquietude pelas funções que tem vindo a desempenhar.
40.– A requerida utiliza o software de gestão denominado sistema (…) que lhe permite criar um número de registo do colaborador e gerir o mesmo desde a sua admissão até a cessação do vínculo laboral, sistema que aplica a todos os seus colaboradores.
41.– Quando um trabalhador é admitido ao serviço da requerida é-lhe, de imediato, atribuído um número de registo de pessoal em sistema e, quando se verifica uma cessação do contrato de trabalho, o número de registo de pessoal referente ao trabalhador cujo contrato termina, independentemente do motivo que está subjacente a essa mesma cessação, fica automaticamente inactivo, embora não seja eliminado.
42.– Caso venha a existir, no futuro, uma readmissão ou reintegração, a requerida atribuí ao trabalhador um novo número, tal como sucedeu com o requerente, o que não tem qualquer influência na antiguidade de qualquer trabalhador da requerida, tal como não teve no caso do Autor.
43.– A especialização de funções referida em 21-24 supra visa a obtenção de maior qualidade de serviço, permite aumentar o nível de acompanhamento feito ao cliente por parte da equipa de empregados de mesa, obtendo-se maior eficácia e rapidez no serviço, o que permite alcançar uma maior satisfação do cliente.
44.– As funções de “área”e “runner”são complementares e todos os empregados de mesa fazem parte da mesma equipa, quer desenvolvam uma função ou outra, não sendo o exercício das tarefas associadas a cada uma delas estanque e exclusivo, no sentido dos colaboradores não se poderem entreajudar, sempre que o volume do trabalho o exija.
45. Eliminado conforme decisão infra.
46. Eliminado conforme decisão infra.
47.– A especialização de funções referida em 21-24 faz parte integrante de um projecto da empresa denominado "(…)", que visou a implementação de um ambiente temático e conventual, uma melhoria de algumas infra estruturas e implicou uma modificação na imagem constante dos diversos objectos, a saber: mesas e cadeiras, toalhetes e canecas, utilização de candelabros, tochas e lanternas de mesa, música ambiente com sintonia conventual e alteração de fardas.
48.– Para além do referido no ponto anterior, a requerida criou uma nova ementa - tendo contratado um chefe de cozinha internacional especificamente para o seu desenvolvimento - e implementou a fortificação do sistema de "áreas" e "runners", sistema este que já existia no estabelecimento onde o requerente exerce as suas funções profissionais e noutras unidades exploradas pelo Grupo (…).
49.– A implementação do sistema vigente implicou um elevado investimento financeiro, muitos meses de preparação e planeamento, que antecederam a decisão judicial de reintegração do requerente, cujo teor e data de notificação a requerida não podia antecipar.
50.Eliminado conforme decisão infra.
51.– Desde 9/01/2015, em face dos problemas de saúde referidos pelo requerente, o mesmo passou a transportar e servir bebidas, por considerar a requerida tratar-se do serviço fisicamente menos exigente que um empregado de mesa pode executar na requerida.
52.– As fardas dos empregados de mesa foram instituídas no âmbito do projecto referido em 47.
53.Eliminado conforme decisão infra.
54.– A situação criada pela requerida ao requerente fere e lesa profundamente o seu brio pessoal e profissional e causa-lhe sofrimento. – Aditado conforme decisão infra
55.– Resultado da conduta da requerida, o requerente sente um profundo desgosto, incerteza e ansiedade, com perturbação no seu comportamento, vivendo em permanente estado de tensão e irritabilidade. – Aditado conforme decisão infra
56.– A conduta da Ré origina no Autor profundo mal-estar e uma permanente situação de angústia e infelicidade. – Aditado conforme decisão infra
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IV–Apreciação do Recurso

A–Da Nulidade da Sentença
O recorrente invoca a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615º nº1 d) do CPC, alegando que a mesma não se pronunciou sobre a impugnação de documentos juntos aos autos pela Ré, e sobre os factos e alegações do Autor proferidos no requerimento de fls 365 a 367, em resposta a esses documentos, apenas o fazendo em relação aos seis meses de antecedência pretendidos.
A recorrida considera que, face à fundamentação da matéria de facto da sentença, o tribunal não ignorou a questão arguida pelo recorrente, não ocorrendo a nulidade.
O Mmo juiz a quo considerou não estar cumprido o disposto no artigo 77º do CPC, ainda assim, pronunciou-se, sem mais, no sentido de “salvo o devido respeito por opinião contrária, não se vislumbra que a sentença padeça da nulidade invocada, pelo que se entende nada haver a suprir …”.

Vejamos.

O Recorrente anuncia a sua intenção de arguir a nulidade da sentença no requerimento de interposição de recurso (cfr. fls 395 a 398), referindo sucintamente em que consiste essa nulidade, argumentação que depois desenvolve no âmbito das alegações.
Dispõe o art. 77º do CPT que “A arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso.” (sic)

Como afirmou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 23-04-1998 “I – No processo de trabalho há uma norma especial segundo a qual a arguição de nulidade da sentença é feita no requerimento de interposição do recurso e não nas alegações radicando a razão de ser dessa norma no princípio da economia e da celeridade processuais para permitir ao tribunal que proferiu a decisão a possibilidade de suprir a arguida nulidade.” [3]

De facto, a citada norma do CPT encontra a sua justificação na circunstância de a arguição das nulidades ser, em primeira linha, dirigida à apreciação pelo juiz do tribunal da 1ª instância e para que as possa suprir.

Daí que deva destacar-se das alegações de recurso, para ser facilmente perceptível pelo juiz que proferiu a sentença e a quem, em primeira linha, incumbe corrigir o vício.

A jurisprudência e a doutrina vêm entendendo que, não sendo a nulidade arguida no requerimento de interposição de recurso mas apenas nas alegações, a mesma não pode ser conhecida pelo tribunal de recurso por ser extemporânea.[4]

No caso em apreço, embora o Recorrente não desenvolva a sua argumentação subjacente à arguição de nulidade no requerimento de interposição de recurso, mas apenas nas alegações, considera-se atingido o desiderato legal, pois o juiz da primeira instância detectou a alegação da nulidade, e inclusivamente, ainda que de forma perfunctória e conclusiva, pronunciou-se sobre a mesma.

E assim sendo, este tribunal conhecerá da nulidade em causa.

Após o encerramento da audiência de discussão e julgamento, a Mma Juíza a quo proferiu o seguinte despacho: “No decurso da audiência de julgamento, a testemunha (…) referiu que as avaliações a que está sujeita a alternância entre a posição de runners e de áreas é realizada por escrito e assenta em critérios objectivos que são do conhecimento dos trabalhadores.
Afigura-se-nos pertinente, para melhor apreciação do alegado a esse respeito, a junção aos autos dos referidos registos de avaliação, referentes ao autor e ainda dos registos de avaliação de um colega do autor que tenha alternado entre a posição de runner e de área.
Assim, e fazendo uso do princípio do inquisitório, plasmado no art. 411º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 1º do Código de Processo de Trabalho, determina-se a notificação da ré/requerida para ,em 8 dias, juntar aos autos os registos de avaliação do autor e de um colega que tenha alternado entre a posição de runner e de área, referente aos últimos seis meses.
Vindos tais documentos, e com a notificação entre mandatários, inicia-se o prazo de 8 dias que se concede ao autor/requerente para exercício do contraditório.”

Juntos que foram os documentos, o Autor respondeu, alegando que
- os documentos têm mais de um ano, não sendo relativos aos últimos seis meses, conforme ordenado pelo Tribunal;
- apenas lhe foram apresentados pela Ré dois documentos, que foram juntos por aquela aos autos, não reconhecendo os demais, que não têm aposta a sua assinatura;
- os documentos não contêm indicação sobre se se referem a avaliação enquanto runner ou enquanto área, porém, como está provado por confissão da Ré que o Autor nunca foi área, tais documentos referem-se a runner;
- há vários itens nos documentos que, tendo em conta as funções do runner, não podem ser apreciados porque estão fora do seu desempenho, sendo próprios dos áreas;
- os critérios de avaliação não são objectivos, antes genéricos e extremamente subjectivos;
- a Ré nunca lhe deu conhecimento dos critérios de avaliação;
- os documentos não corroboram, antes infirmam, o depoimento da testemunha (…).

Quanto a tais documentos, o tribunal a quo faz-lhes referência quando fundamenta a matéria de facto, nos seguintes moldes: “A testemunha (…) esclareceu o que consta dos pontos 44 a 46 e 50 (…) confirmou que pode haver ajuda mútua entre o runner e o área), dizendo que está instituído um sistema de avaliação {não confirmou que a mesma seja quinzenal - cfr. resposta contida na alínea o) dos factos não provados) e que é com base na mesma, e portanto, em critérios de mérito, que são escolhidos para área os três empregados com as melhores avaliações, o que nunca sucedeu com o requerente, por não ser dos empregados mais amistosos com os clientes. Mais disse que as avaliações são afixadas na empresa, sendo promovida uma certa competição (saudável) entre os empregados de mesa (conforme resulta de fls. 108 e seguintes). As avaliações com regularidade de cerca de 2 a 3 meses estão comprovadas nos autos, a fls. 356-362, sendo que o tribunal solicitou as referentes aos últimos seis meses, o que tem que ser entendido por referência à data da entrada da acção em juízo, uma vez que é essa a data de referência da factualidade alegada. A testemunha (…) confirmou o sistema de avaliação e a escolha dos três empregados com melhores avaliações para as funções de área. A testemunha (…) confirmou, pois, o que consta do ponto 50. Face a estes depoimentos, considerou-se não provado o que consta da alínea h) dos factos não provados. A mesma testemunha (…) disse que perante as queixas de saúde do requerente lhe atribuiu funções que considerou mais leves, por implicarem na sua óptica menor esforço, ou seja, de transporte e serviço apenas de bebidas, facto este que foi confirmado por (…), pelo que se considerou provado o que consta do ponto 51.”(sic)

As causas de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciadas no art. 615º nº 1 do CPC, onde se estabelece que é nula a sentença, para o que ao presente caso interessa, “ d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (sic nº1 d).

Ou seja, “A sentença deve manter-se, quanto ao seu conteúdo, dentro dos limites definidos pela pretensão do autor e da reconvenção eventualmente deduzida pelo réu.”[5]

O problema está em saber qual o sentido a dar à expressão “questões” a apreciar, para evitar que a sentença fique inquinada do aludido vício.

A chamada nulidade por omissão de pronúncia está directamente relacionada com os limites da sentença - nos termos do disposto no art. 609º nº1 do CPC “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.” (sic) - e interligada com a norma que disciplina a “ordem de julgamento”, a saber, o artº 608º nº 2 do CPC - “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (sic).

Ou seja, o juiz deve examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões.

Em concreto, quanto à alegada nulidade da sentença, a mesma não existe. De facto, a sentença, na parte relativa à fundamentação da matéria de facto, pronuncia-se sobre os documentos em causa, aceitando-os. Poder-se-á configurar uma situação de deficiente fundamentação dessa aceitação ou estarmos perante um erro de julgamento, mas não perante uma nulidade da sentença, que se pronunciou sobre todas as questões a que o tribunal foi chamado a pronunciar-se na p.i.

Improcede, pois, a alegada nulidade.
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B–Recurso da Matéria de Facto
O Autor expressou impugnar a resposta à matéria de facto, pretendendo se considerem provados os factos descritos nas alíneas l), m) e n) dos factos não provados, e não provados os factos descritos sob os nºs 45, 46 e 50 dos provados. Relativamente à matéria descrita sob o nº 53, pugna pela sua eliminação por conclusiva.
Determina o art. 662º do CPC que “1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Trata-se de um preceito imperativo, sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso do alcançado pela primeira instância.
In casu, foram cumpridos os requisitos a que se refere o art. 640º do CPC, pelo que cumpre reapreciar a matéria de facto impugnada.

Factos l), m) e n) dos não provados.
São os seguintes: l) A situação criada pela requerida ao requerente fere e lesa profundamente o seu brio pessoal e profissional e causa-lhe sofrimento.
m) Resultado da conduta da requerida, o requerente sente um profundo desgosto, incerteza e ansiedade, com grave perturbação no seu comportamento, vivendo em permanente estado de tensão e irritabilidade, necessitando mesmo por vezes de ingerir medicamentos.
n) A conduta da requerida origina no requerente profundo mal-estar e uma permanente situação de angústia, infelicidade, inquietação, receio e pânico, pelo seu grave estado de saúde e pelo seu agravamento por força do avançar da idade.
A primeira instância fundamentou a resposta negativa a estes factos da seguinte forma: “Não se provou qualquer nexo causal entre os problemas de saúde do autor que se demonstraram e o que consta das alíneas i) e k) a n).”

Este Tribunal ouviu a totalidade da prova produzida e não sufraga o entendimento da primeira instância.

Quanto testemunhas inquiridas acerca desta matéria, (…), (…), colegas do Autor, nada souberam esclarecer acerca destas questões, limitando-se a referir, em termos hipotéticos, que é natural que, perante aquilo que consideram ser o exercício de funções inferiores às de empregado de mesa, que o Autor se sinta triste e humilhado.

A testemunha (…), filha do Autor , declarou que o mesmo sente-se humilhado e desgostoso pelas funções que vem desempenhando na Ré e que tal tem afectado a sua relação familiar, com crises de irritabilidade e ansiedade, para além de ver afectada a sua saúde física, pelo esforço que tem de fazer no exercício das suas funções de runner.

Ora, relativamente ao depoimento desta testemunha, apesar de se tratar da filha do Autor, com a carga emocional inerente, o seu depoimento revelou-se sincero, sendo certo que, quanto à questão da medicação, a própria afirmou que o pai tem outros problemas de saúde, pois teve um avc relativamente recente e que toma medicação por causa desse acontecimento.

Em face deste depoimento, que nos mereceu credibilidade, entendemos por provado que :
54.– A situação criada pela requerida ao requerente fere e lesa profundamente o seu brio pessoal e profissional e causa-lhe sofrimento.
55.– Resultado da conduta da requerida, o requerente sente um profundo desgosto, incerteza e ansiedade, com perturbação no seu comportamento, vivendo em permanente estado de tensão e irritabilidade.
56.– A conduta da Ré origina no Autor profundo mal-estar e uma permanente situação de angústia e infelicidade.
Quanto aos factos descritos sob os números 45., 46., e 50., é a seguinte a sua redacção: 45.A especialização de funções referida em 21-24 e o posicionamento de um determinado trabalhador numa ou noutra não é estanque e varia de acordo com o mérito num determinado período e consubstancia-se na passagem dos três melhores "runners" a "áreas" e na transição dos três piores "áreas" a "runners".
46.– Os critérios acima enunciados vigoram há  mais de um ano, são diariamente  publicitadas as respectivas condições.
50.– O requerente tem desempenhado as funções de runner em resultados das avaliações que a requerida lhe tem feito, tendo em consideração o que consta em 45-46 supra.
(…)
Era à Ré quem incumbia a prova dos critérios subjacentes às avaliações que alega levar a efeito aos trabalhadores e que determinam que uns sejam integrados na sub categoria de áreas e outros na sub categoria de runneres. No entanto, não apresentou qualquer documento de onde resultem os alegados critérios objectivos de avaliação dos seus trabalhadores. Esses critérios, não só devem existir por escrito, como devem ser do conhecimento dos visados e as ditas avaliações ser devidamente fundamentadas.
Trata-se de prova de grande simplicidade, que a Ré não fez.
(…)
A prova produzida não é, pois, de molde a fazer-nos concluir pela existência de verdadeiras avaliações no seio da Ré, pelo menos no que respeita ao Autor e, portanto, não podemos considerar estarem provados os factos descritos sob os nºs 45, 46 e 50.

Já quanto ao facto descrito sob o nº53, o mesmo é conclusivo, face ao já descrito nos pontos 8. e 21. a 24, razão pela qual se determina a sua eliminação do elenco da matéria de facto.
***

C–Da discriminação do Autor/categoria profissional
A questão fulcral do recurso consiste em determinar se a Ré, após a reintegração do Autor, o impediu de desempenhar as suas funções de empregado de mesa, apenas lhe permitindo o desempenho de funções de transportador de comida de e para as mesas.
O Autor considera
- que este procedimento constitui uma discriminação face aos seus colegas de trabalho;
- que este procedimento viola o disposto nos artigos 118º, 120º e 129º nº1 c) do CT.
Os artigos 186-D a 186-F regulam o processo especial de tutela da personalidade do trabalhador introduzido no Código de Processo de Trabalho pelo art. 2º do Decreto-Lei 295/2009, de 13-10.
De acordo com a Exposição de Motivos que antecedeu a proposta de Lei nº 284/X, este novo processo especial, com natureza urgente, destina-se “a tutelar os direitos de personalidade, inspirado no processo especial de tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial previsto no Código de Processo Civil, em razão da semelhança dos valores em presença”, ou seja, à semelhança do então processo de jurisdição voluntária previsto e regulado nos arts. 1474º e 1475º do CPC/61 e que corresponde actualmente ao processo especial previsto nos arts. 878º a 880º do NCPC.
O processo especial de tutela da personalidade do trabalhador resulta assim da necessidade de conferir ao trabalhador meios processuais de exercitar os direitos de personalidade que resultam dos artigos 14º a 22º do CT/09.
No presente caso, cumpre antes do mais decidir se o Autor tem sido alvo de discriminação negativa relativamente aos colegas, empregados de mesa, em virtude de parte deles integrar a subcategoria de “área”, enquanto ele vem integrando ininterruptamente a subcategoria de “runner”.
Como se sabe, da Constituição resultam direitos fundamentais dos trabalhadores, tratando-se, em muitos casos, de direitos subjectivos que têm aplicação no domínio laboral. É o caso do disposto no art. 59º da CRP, onde se pode encontrar uma norma de aplicação imediata com interesse para o presente caso, a saber, a plasmada no seu nº1 a), nos termos do qual “Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
b)À organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal (…)”(sic).
Este princípio constitui uma decorrência natural do princípio fundamental da igualdade estabelecido no art. 13º da Constituição da República Portuguesa, e é um princípio de equidade que proíbe discriminações entre trabalhadores e aplica-se directa, imediata e efectivamente às entidades empregadoras e às relações de trabalho[6] .

Também a lei ordinária protege a igualdade e equidade entre trabalhadores, esclarecendo o art. 23º do CT/2009, sob a epígrafe “Conceitos em matéria de igualdade e não discriminação”  - que “1– Para efeitos do presente Código, considera-se:
a)- Discriminação directa, sempre que, em razão de um factor de discriminação, uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável;
b)- Discriminação indirecta, sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutro seja susceptível de colocar uma pessoa, por motivo de um factor de discriminação, numa posição de desvantagem comparativamente com outras, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objectivamente justificado por um fim legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários; (…)”
E o art. 24º, sob a epígrafe “Direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho” – “1 – O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.(…)”
Artigo 25º sob a epígrafe “Proibição de discriminação” – “1 – O empregador não pode praticar qualquer discriminação, directa ou indirecta, em razão nomeadamente dos factores referidos no nº1 do artigo anterior.
2–Não constitui discriminação o comportamento baseado em factor de discriminação que constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da actividade profissional, em virtude da natureza da actividade em causa ou do contexto da sua execução, devendo o objectivo ser legítimo e o requisito proporcional.
(…)
5–Cabe a  quem alega  discriminação indicar o trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer factor de discriminação. (… sic)”

Conforme esclarecem Pedro Romano Martinez e outros[7], a propósito do citado art. 23º do Código do Trabalho 2003, actual art. 25º, “o elenco de factores de discriminação referido no número 1 não é taxativo, mas sim exemplificativo, circunstância que decorre expressamente da utilização do vocábulo «nomeadamente»” e “o que está em causa, na proscrição da discriminação, não é a diferenciação em si mesma, mas sim a irrazoabilidade da sua motivação e a ausência de motivos que a justifiquem” (sic).

Por outro lado, “o n.º 3 (actual nº5 – nota da relatora) do preceito em causa consagra uma regra geral de inversão do ónus da prova, ao arrepio do regime geral do art. 342.º do CC. (…) Trata-se de um preceito com uma importância extrema: provar que uma exclusão teve por fundamento o sexo, a raça, as convicções religiosas ou políticas do trabalhador lesado constitui um óbice quase intransponível. A utilização das regras gerais em matéria do ónus da prova afigura-se, neste domínio, claramente insuficiente. À luz deste preceito, cabe ao empregador a prova de que a exclusão ou o tratamento desvantajoso conferido ao trabalhador ou ao candidato a emprego não é irrazoável, arbitrário e discriminatório, tendo uma justificação plausível” (aut. cit., op. cit., pp. 122-123).

No presente caso, entendemos que efectivamente o Autor é alvo de  discriminação relativamente aos demais trabalhadores da Ré, que ele menciona na sua p.i. e que se refere o ponto 28 dos factos provados.

Vejamos

Incumbia ao Autor alegar o comportamento discriminatório da Ré e indicar os trabalhadores em relação aos quais se considera discriminado. Foi o que fez.

Perante essa demonstração, era à empregadora que incumbia provar que as diferenças de tratamento não assentam em qualquer factor de discriminação e que não são irrazoáveis.

Neste caso, a Ré alega que o desempenho do Autor não é compatível com o exercício de funções de “área”, o que, na sua perspectiva, resulta das avaliações que leva a efeito aos trabalhadores.

Cumpre atentar que o Autor foi readmitido na Ré após ter sido despedido com invocação de justa causa, e por intervenção do tribunal, na sequência de recurso interposto da decisão de despedimento.

Após a reintegração, a Ré colocou-o a exercer as normais funções de empregado de mesa de 1ª, mas desde logo não lhe disponibilizou caixa própria no sistema de registo, tendo o mesmo de recorrer às caixas dos colegas para registar os pedidos e pagamentos, e no fim do trabalho entregar o dinheiro e talões de pagamento ao seu colega de turno, que os registava como se fossem dele, embora num turno diferente daquele em que se encontravam. O Autor era o único empregado de mesa que não constava dos registos. A tal não é alheio o facto de o Autor ter sido despedido sob a alegação de furto e abuso de confiança. Na verdade, não se compreende que o Autor desde que foi reintegrado não tenha sido permitido mexer no caixa. Apesar do que resulta provado sob os números 40 a 42, a verdade é que , no momento em que foi ordenada a reintegração do Autor, com trânsito em julgado, a Ré deveria ter voltado a activar o seu número de registo pessoal (ou um número novo) no sistema. Não há qualquer razão, nem ela está provada, para não o ter feito. E logo que implementou o sistema “áreas/runners”, colocou imediatamente o Autor como “runner”, ao contrário do que aconteceu com os seus colegas com antiguidade similar, para não mais o retirar desta posição, o que é totalmente irrazoável e injustificado.

Estamos perante um factor de discriminação negativo ilegítimo, análogo aos referidos no artigo 24º nº2 do CT, sendo certo que a Ré não provou que as diferenças de tratamento não assentam nestas razões alegadas pelo Autor, antes numa avaliação do mérito segundo critérios objectivos.

Portanto, ocorre discriminação do Autor em relação aos seus colegas de trabalho.

Mas ainda que assim se não entendesse, consideramos que foi violado o direito do Autor à categoria profissional.

Como se sabe, o trabalhador obriga-se, através do contrato de trabalho, a prestar a sua actividade sob a autoridade e direcção do seu empregador, traduzindo-se essa actividade na execução de várias tarefas.

A categoria corresponde ao essencial das funções a que o trabalhador se obrigou pelo contrato ou pelas alterações decorrentes da sua dinâmica concreta.

Corresponde a uma determinação qualitativa da prestação de trabalho contratualmente prevista.

O enquadramento numa categoria profissional exige assim que se tenha uma visão global do conjunto de tarefas que são desempenhadas pelo trabalhador, sendo elemento decisivo para a sua determinação o núcleo funcional, o chamado “núcleo duro” de funções que o mesmo exerce.

Como se afirma em acórdão desta Secção de 18-04-2012, “A posição do trabalhador na organização da empresa em que presta a sua actividade define-se através do conjunto de serviços e tarefas que formam o objecto da prestação laboral. A essa posição corresponde a categoria do trabalhador, a qual traduz o status do trabalhador na empresa, determinado com base numa classificação normativa e em conformidade com a natureza e espécie das tarefas por ele efectivamente realizadas no exercício da sua actividade. A categoria profissional do trabalhador é, pois, determinada pela justaposição, no mesmo trabalhador, das realidades, factual e jurídica, correspondente a dois conceitos integrados pelo mesmo nome de categoria: a categoria-função, também designada por categoria contratual e a categoria-estatuto, também designada por categoria normativa.
A categoria-função identifica o essencial das funções a que o trabalhador se obrigou pelo contrato de trabalho ou pelas alterações que este vai sofrendo em resultado da sua própria dinâmica. Resulta do contrato de trabalho e deve corresponder às funções efectivamente delineadas, constituindo, assim, uma determinação qualitativa da prestação de trabalho, contratualmente prevista e deve ser respeitada pela entidade patronal pois na parte em que tenha sido contratualmente acordada é intangível, salvo acordo das partes e o caso particular do jus variandi
….
A categoria-estatuto identifica o núcleo de direitos garantidos àquele complexo de funções pela lei e pelos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho. Equivale, por isso, à designação dada nas fontes a certa situação laboral a fim de lhe associar a aplicação de diversas normas; resulta da categoria-função isto é de um juízo de integração do trabalhador nessa categoria – é a categoria função que comanda a determinação da categoria-estatuto a aplicar, pois esta assenta nas funções efectivamente exercidas pelo trabalhador - e repercute-se em diversos aspectos da relação laboral, designadamente na hierarquia salarial, operando a integração do mesmo na estrutura hierárquica da empresa; a categoria estatuto não pode baixar – (…) se existirem áreas de indefinição vale, então, para a classificação numa das várias categorias, o núcleo essencial das funções exercidas”[8]

A qualificação correcta na categoria assume-se como um direito do trabalhador, na medida em que lhe fixa direitos, nomeadamente integrando-o numa determinada carreira e sendo o factor de referência para a determinação da retribuição devida em contrapartida da prestação da sua actividade.

Nos termos do disposto no artigo 118º do CT “1 – O trabalhador deve, em princípio, exercer funções correspondentes à actividade para que se encontra contratado, devendo o empregador atribuir-lhe, no âmbito da referida actividade, as funções mais adequadas às suas aptidões e qualificações.
2- A actividade contratada, ainda que determinada por remissão para categoria profissional ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou regulamento interno da empresa, compreende as funções que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas, para as quais o trabalhador tenha qualificação adequada e que não impliquem desvalorização profissional.(…)”

A mobilidade funcional pode ocorrer, mas nas situações a que se refere o artigo 120º do CT, que dispõe que “1- O empregador pode, quando o interesse da empresa o exija, encarregar o trabalhador de exercer temporariamente funções não compreendidas na actividade contratada, desde que tal não implique modificação substancial da posição do trabalhador.
2- As partes podem alargar ou restringir a faculdade conferida no número anterior, mediante acordo que caduca ao fim de dois anos se não tiver sido aplicado.
3- A ordem de alteração deve ser justificada, mencionando se for caso disso o acordo a que se refere o número anterior, e indicar a duração previsível da mesma, que não deve ultrapassar dois anos.
4- O disposto no n.º 1 não pode implicar diminuição da retribuição, tendo o trabalhador direito às condições de trabalho mais favoráveis que sejam inerentes às funções exercidas.
5- Salvo disposição em contrário, o trabalhador não adquire a categoria correspondente às funções temporariamente exercidas.”

No presente caso, no entanto, os factos não expressam uma situação de ius variandi. O trabalhador, ora Autor, não é chamado a prestar funções situadas fora do objecto do seu contrato de trabalho e desenquadradas da sua categoria profissional.

O que acontece, como resulta do confronto dos factos descritos sob os números 8, 22 e 24 dos factos provados, é que o Autor passou a desempenhar apenas uma das funções que resultam do leque das que constituem a sua categoria profissional, e que, concretamente, consiste em levar à mesa o prato escolhido pelo cliente,[9] e levantá-lo da mesa deste. Deixou de ter qualquer outro contacto com o cliente e deixou de desempenhar as demais funções que resultam do ponto 8 dos factos provados, a saber, ser responsável por um turno de mesas, executar e colaborar na preparação das salas e arranjo das mesas para as refeições, das bandejas e dos carros destinados às refeições e bebidas das mesas do seu turno, acolher e atender os clientes, apresentar-lhes a ementa ou lista do dia, dar-lhes explicações sobre os diversos pratos e bebidas e anotar os pedidos, elaborar e emitir a conta dos  consumos (antecedida  da  "consulta  de  mesa"),  efectuar  a  respectiva cobrança com a  recepção  do pagamento e efectivação dos trocos, no final proceder à arrumação da sala na zona do seu turno.

A Ré afirma que esta divisão da categoria profissional do Autor em áreas/runners resulta de uma alteração global na organização da empresa no que respeita à forma como é desenvolvida a função de empregado de mesa, e não numa alteração das funções do trabalhador.

Justifica esta mudança com “factores de qualidade, eficiência e adaptação da empresa às novas exigências do consumidor/cliente actual que transcendem a situação deste trabalhador em concreto e cujo planeamento e definição é prévio à reintegração do trabalhador.”

Afirma ainda que, situando-se as funções desempenhadas nos limites da mesma categoria profissional, a pretensão do Autor inverteria o poder de direcção, de organização da actividade, dos poderes de gestão da entidade empregadora e coloca questões sérias e legítimas de reacção por parte dos demais trabalhadores.
Conclui que há um preconceito criado pelo trabalhador no que respeita aos dois núcleos que integram as funções de empregado de mesa e que, no fundo, o que o Autor pretende é furtar-se às mesmas regras e critérios dos demais colegas, para aceder à sub categoria de “área”.

A questão que nos trouxe a decidir prende-se com a interessante temática do que seja o “interesse da empresa”, a que se refere Júlio Vieira Gomes no seu Direito do Trabalho[10], em confronto com o que seja o interesse do trabalhador e as suas garantias.

Como afirma este Autor, “a relação laboral é marcadamente complexa – SUPPIEJ considerava  mesmo tratar-se de uma relação fundamental – em que pode coexistir interesses antagónicos e interesses comuns.
(…) a empresa é uma organização de pessoas, que não deixam de ser pessoas por nela participarem e que devem ser tratadas com o respeito correspondente. A ideia … de que o trabalhador ao realizar a sua prestação tem de atender ao interesse tipicamente visado pelo credor com a sua prestação – o interesse da coordenação dessa prestação com outras prestações e com factores produtivos no quadro de uma organização – e que, por conseguinte, o trabalhador não se limita a oferecer uma quantidade de energias laborais ou a sujeitar o seu corpo em atitude puramente passiva, mas se obriga a colaborar lealmente, numa colaboração que, aliás, à medida que se sobe na hierarquia ou que se tem autonomia técnica, é cada vez mais activa, tem também a outra face da medalha, a de que o empregador tem de considerar, por força da boa fé, os interesses contrastantes dos trabalhadores e ponderar a gravidade dos sacrifícios que lhes exige à luz dos interesses que visa satisfazer. Em suma, o interesse da empresa representa uma especificação da boa fé, a exigência de uma racionalidade na gestão que não se compadece coma prossecução de políticas arbitrárias e, muito menos, de vinganças pessoais.”(sic)

Neste contexto, o tema dos direitos de personalidade no âmbito do contrato de trabalho assume grande importância, desde logo porque a principal característica distintiva deste contrato é a subordinação jurídica do trabalhador, a que corresponde, em contraponto, o poder directivo e disciplinar do empregador. Ou seja, e na perspectiva do trabalhador, o contrato de trabalho implica desde logo uma certa compressão dos seus direitos enquanto individuo.[11]

Maria do Rosário Ramalho[12] assinala a característica de vínculo complexo do contrato de trabalho, “que, a par da componente obrigacional  (i.e., o  binómio  de  troca  trabalho-salário)  tem  duas  outras  componentes:
uma componente organizacional, decorrente da inserção do trabalhador na organização do empregador, que tem variadíssimos efeitos no vínculo laboral; e uma componente de pessoalidade, que se revela no envolvimento integral da personalidade do trabalhador na prestação e na execução do seu contrato, no carácter infungível da prestação de trabalho e no carácter intuitus personae (e, em alguns casos, na natureza fiduciária) do contrato[13].
Ora, no  nosso entender, é justamente nesta componente  pessoal  do vínculo laboral que aumenta a probabilidade da violação dos direitos de personalidade do trabalhador.
II. Esta  vulnerabilidade acrescida dos  direitos  de  personalidade do  trabalhador no vínculo  de  trabalho,  pela  conjugação  das  componentes  de  poder  e  de pessoalidade do contrato torna   mais   importante   assegurar,  neste   contexto, o princípio   geral da preservação  dos  direitos de  personalidade  do  trabalhador, enquanto  cidadão,  na pendência do contrato.
Este princípio geral tem três projecções imediatas.
Em primeiro lugar, o trabalhador tem o direito de exigir ao empregador que respeite os seus direitos enquanto pessoa e enquanto cidadão, na execução do contrato de trabalho.
Em  segundo lugar, os direitos de personalidade  do    trabalhador impõem-se genericamente à autonomia privada, logo,  impõem-se também ao  empregador  no vínculo  laboral,  pelo  que, como  regra,  devem  prevalecer  sobre  outros  direitos  do empregador.
Em terceiro e último lugar, as restrições aos direitos de personalidade, no contexto laboral, devem sujeitar-se ao princípio do mínimo, de acordo com os cânones de  interpretação  do  art.º  18 da  Constituição,  para  além  de  se sujeitarem aos  limites gerais do art. 81º do CC.” (sic)

Aproximemo-nos do caso concreto

Da Constituição emanam direitos do empregador como o direito à iniciativa económica privada (cfr. art. 61º nº1) e o direito à liberdade de iniciativa e de organização empresarial (cfr. art. 80º c).

Nos termos da lei ordinária – artigo 97º do CT -  sob a epígrafe “Poder de direcção”, “Compete ao empregador estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem.”

Portanto, é o empregador que define os termos em que a prestação é realizada, mormente quanto ao horário e local onde tal acontece e quanto ao modo como se realiza.

Releva, pois, do poder de organizar e gerir a empresa, a escolha das actividades exigíveis ao trabalhador, sendo certo que uma estrutura funcional da empresa demasiado rígida inviabiliza uma gestão racional do trabalho, impondo-se, ao invés, uma “certa flexibilidade funcional[14], isto é, a concepção da “actividade contratada como “núcleo central” da posição contratual do trabalhador, sem que fiquem excluídas outras aplicações da sua força de trabalho, dentro de certos limites e mediante determinadas condições[15]

Por outro lado, a lei – artigo 15º do CT e 70º do C.Civil – também tutela a integridade moral do trabalhador.
Como refere o STJ em acórdão de  13-11-2013[16] , a propósito do poder de vigilância e controlo decorrentes do poder de direcção, mas cuja razão argumentativa é aplicável ao presente caso[17], “é sabido que o exercício de tais poderes tem de conciliar-se com toda uma série de princípios de cariz garantístico, que visam não só salvaguardar a individualidade dos trabalhadores, mas também – e, porventura, sobretudo - conformar o sentido da ordenação jurídica das relações de trabalho (e, em geral, das relações sociais) em função de determinados valores jurídico-constitucionais, ou seja, mais concretamente, em função de um projeto de ordem social assente na dignidade da pessoa humana e na liberdade individual.[5[18]]
Para além das normas atinentes aos direitos fundamentais (mormente daqueles que são específicos dos trabalhadores) e à tutela dos direitos de personalidade, há ainda a destacar, neste âmbito, as exigências legais (e constitucionais) de boa fé, finalidade legítima, adequação, necessidade, proporcionalidade e harmonização (sem prejuízo do princípio da intangibilidade do conteúdo essencial dos direitos fundamentais) de todos os interesses conflituantes presentes em cada caso concreto.
Deste modo, a eficácia dos direitos fundamentais é comprimível pela operatividade de outros interesses dignos de proteção, do empregador ou de terceiros, que, em concreto, se mostrem merecedores de adequada tutela, em regra concernentes à proteção e segurança de pessoas e bens ou a particulares exigências inerentes à natureza da atividade desenvolvida pelo trabalhador[6[19]], constituindo afloramento de um princípio geral os parâmetros a este propósito consagrados no art. 20º, nº 2, CT.”

No presente caso, a Ré, ao impor ao Autor o exercício da função (única, aliás) inerente à sub categoria que criou, de “runner”, viola a categoria-função contratualizada com o Autor.

É certo que, como afirma Monteiro Fernandes, “a categoria não tem, à luz do CT um papel delimitador do trabalho exigível ao trabalhador. O conceito fundamental é, hoje, o de actividade contratada, que … pode abarcar tarefas ou funções integráveis em várias categorias – e, simultaneamente , não abranger todas as que em cada uma delas se compreendem….os limites a atender são os da actividade contratada e não os da categoria.[20]No entanto, cumpre ter presente que a tutela da categoria não visa apenas a garantia dos ganhos do trabalhador, tem igualmente em vista a sua profissionalidade.[21]

De facto, é completamente diverso, o trabalhador limitar-se a transportar travessas de comida para as mesas, ou exercer também as demais funções inerentes à categoria profissional de empregado de mesa de 1ª, a saber: ser responsável por um turno de mesas, executar e colaborar na preparação das salas e arranjo das mesas para as refeições, das bandejas e dos carros destinados às refeições e bebidas das mesas do seu turno, acolher e atender os clientes, apresentar-lhes a ementa ou lista do dia, dar-lhes explicações sobre os diversos pratos e bebidas e anotar os pedidos, elaborar e emitir a conta dos consumos (antecedida  da  "consulta  de  mesa"),  efectuar a  respectiva  cobrança  com  a  recepção  do pagamento e efectivação dos trocos, no final proceder à arrumação da sala na zona do seu turno.

Tão pouco se pode dizer que a empregadora manteve o Autor a cumprir aquelas que são as funções nucleares da sua categoria profissional e actividade contratada. Esse núcleo, constituído pelas funções verdadeiramente caracterizadoras do estatuto profissional do trabalhador no seio da empresa, não podem deixar de envolver o contacto com o cliente, o que envolve a informação sobre a ementa, o recebimento dos pedidos e do respectivo pagamento.

O mero transporte de travessas entre a copa e a mesa do cliente, por comparação daquelas que são as funções actualmente desempenhadas pelos denominados “áreas”, dá do trabalhador a imagem de que integra uma categoria profissional inferior[22], o que não tem efectiva correspondência com a realidade da categoria- estatuto na qual todos estão inseridos, e afecta sem dúvida a imagem profissional do Autor perante os clientes e perante os seus pares, companheiros de trabalho.

É certo que o contrato de trabalho, no que à sua execução diz respeito, não é uma realidade estática, antes dinâmica, e que ao longo do tempo pode sofrer alterações, mas estas, se não podem implicar o resvalar para funções que extravasem a categoria profissional, a não ser nos casos previstos na lei e que acima nos referimos, também não podem resvalar para situações em que não sejam atribuídas ao trabalhador as funções caracterizadoras da categoria, originando a que a posição que o trabalhador ocupa na organização apareça diminuída.

Considera a empregadora que esta distinção entre “áreas” e “runners” potencia a eficácia do serviço que presta, o que não está em causa. Mas esse desiderato não pode ser alcançado à custa do esvaziamento das funções dos seus trabalhadores, neste caso do Autor. Trata-se de medida desproporcionada àquele objectivo por atentar contra a dignidade profissional do trabalhador.

Entendemos, pois, que o esvaziamento das funções resultantes da categoria profissional do Autor, por via da sua integração na sub categoria criada pela Ré de “runner”, traduz-se numa violação do contrato de trabalho em vigor entre as partes, e  numa violação dos direitos de personalidade do trabalhador, consubstanciando a prática de um ilícito pela Ré.

Em face do exposto, procede o pedido do Autor, devendo ser-lhe atribuídas as funções inerentes à sua categoria profissional de empregado de mesa de 1ª, nos mesmos termos em que o são aos trabalhadores referidos em 28., ou, no caso de manter o actual sistema de divisão dos empregados de mesa em "áreas" e
“runners", atribuir ao Autor a posição de “área”,condenando-se ainda a Ré a abster-se de praticar actos discriminatórios, hostis, humilhantes, ou persistir directa ou indirectamente nos praticados, e dar ao Autor o mesmo tratamento que confere aos demais empregados de mesa nas mesmas circunstâncias em que exercem as funções dessa categoria profissional.
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D–Danos não Patrimoniais
Peticiona o Autor a condenação da Ré a pagar-lhe a importância de 60.000€ a título de danos não patrimoniais, face ao sofrimento que a conduta da Ré lhe causa.
Quanto aos danos de natureza não patrimonial, os mesmos inserem no instituto da responsabilidade civil por facto ilícito, dependendo da verificação dos requisitos a que se refere o artigo 483º do Civil, a saber, a existência de um facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Como referimos a Ré praticou factos ilícitos, discriminando o Autor e violando o seu direito à categoria profissional. Agiu culposamente.

O artigo 496º nº1 do C.Civil dispõe que, “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

Essa gravidade, como ensina Antunes Varela, deve “medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”.[23]

Deve assim sopesar-se as circunstâncias concretas do caso, para averiguar se o dano justifica a concessão de uma satisfação de natureza pecuniária ao lesado.

Não justificam tal indemnização os simples incómodos e contrariedades.

No presente caso, os danos a que se reportam os pontos 54 a 56 não podem  deixar de se considerar graves e a merecer a tutela do Direito, pelas consequências na vida do Autor.

Resulta da lei que o montante da indemnização por danos não patrimoniais será fixado equitativamente, considerando o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e a as demais circunstâncias do caso (cfr. art. 496º nº3 e 494 do C.Civil).

O recurso à equidade deve-se ao facto de ser difícil, se não mesmo, muitas vezes, impossível, a prova do montante dos danos não patrimoniais. Contudo, “o facto de a lei, através da remissão feita no artigo 496º nº3 para as circunstâncias mencionadas no artigo 494º, ter mandado atender, na fixação da indemnização, quer à culpa, quer à situação económica do lesante, revela que ela não aderiu, estritamente, à tese segundo a qual a indemnização se destinaria nestes casos a proporcionar ao lesado, de acordo com o seu teor de vida, os meios económicos necessários para satisfazer ou compensar com os prazeres da vida os desgostos, os sofrimentos ou as inibições que sofrera por virtude da lesão. Mas também a circunstância de se mandar atender à situação económica do lesado, ao lado da do lesante, mostra que a indemnização não reveste, aos olhos da lei, um puro carácter sancionatório.
A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar; no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.”[24]

Equidade não significa arbitrariedade e a indemnização deve traduzir a justiça do caso concreto, devendo o julgador “ter em conta as regras da boa prudência, do bom sendo prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida” [25].

Ponderando o supra exposto, e considerando o grau de culpa da Ré, a sua situação económica, que releva dos factos, e a natureza dos danos provocados ao Autor, o tribunal considera ajustada a sua condenação a pagar ao Autor a quantia de 4.000€, a título de danos não patrimoniais.
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V–Decisão.
Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por AAA, revogando a sentença recorrida, e, em consequência, condena-se a Ré a atribuir ao Autor as funções inerentes à sua categoria profissional de empregado de mesa de 1ª, nos mesmos termos do que aos trabalhadores referidos em 28., ou, no caso de manter o actual sistema de divisão dos empregados de mesa em "áreas" e “runners", atribuir ao Autor a posição de “área”, condenando-se ainda a Ré a abster-se de praticar actos discriminatórios, hostis, humilhantes, ou persistir directa ou indirectamente nos praticados, e dar ao Autor o mesmo tratamento que confere aos demais empregados de mesa nas mesmas circunstâncias em que exercem as funções dessa categoria profissional.
Condena-se também a Ré a pagar ao Autor a quantia de 4.000€ (quatro mil euros), a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde a data da citação, até integral pagamento.
Custas a cargo da Ré e do Autor na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.


Lisboa, 2017-11-08


(Relatora – Paula de Jesus Jorge dos Santos)
(1ª adjunta – Maria João Romba)
(2ª adjunta – Paula Sá Fernandes)

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[1]No STJ foi declarada extinta a instância de recurso, por desistência.
[2]“À relação laboral entre as partes é aplicável o CCT entre a ARESP - Associação da Restauração e Similares de Portugal e a FESAHT - Federação dos Sindicatos da Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal, publ. em Revisão Global no BTE, 1ª Série, n° 3/2012, e anteriormente publ. em Revisão Global no BTE, 1ª Série, n° 28/2004, com as alterações posteriormente introduzidas, publ. in BTE 45/2004, 29/2007 e 24/2008, 42/2008, 8/2009 (tendo sempre em consideração os respectivos Regulamentos e Portarias de Extensão - RE e PE).
[3]Cfr BTE, 2º série nº4-5-6/99, pág. 711 e Ac Relação do Porto de 20-02-2006 – Proc 0515705 e jurisprudência aí citada.
[4] Cfr, entre outros, Ac. STJ de 10-12-1997 - in AD 436º-524 – de 28-01-1998 – in AD, 436º, pág. 558 - de 17-06-2010 - in www.dgsi.pt - Acórdão desta Relação de 21-01-1998 - in BMJ 473-554 - e António Santos Abrantes Geraldes em “Recursos no Processo de Trabalho”, pág. 61. 
[5]Sic Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2º edição, pág. 675.
[6]Cfr CRP anotada, Prof Gomes Canotilho e Vital Moreira, 4º edição, em anotação ao art. 59º.
[7]Código do Trabalho Anotado, Almedina, 2005, p. 120 e 121.
[8]Proc 26451/09.7 T2SNT.L1-4.
[9]Entre os runners há os das comidas e os das bebidas e entradas (cfr. ponto 29 da matéria de facto), mas o Autor foi sempre runner de comida, à excepção do período referido no ponto 51 dos factos provados.
[10]Volume I, 2007, pág 802 a 807.
[11]Cfr. Sónia Kietzmann Lopes, Cadernos do CEJ – Direitos Fundamentais e de Personalidade do Trabalhador - Direitos de personalidade do trabalhador à luz do código do Trabalho - pág. 15.
[12]In Tutela da personalidade e equilíbrio entre interesses dos trabalhadores e dos empregadores no contrato de trabalho. Breves notas – disponível on line.
[13]Para mais desenvolvimentos sobre estas características do  contrato  de  trabalho,  ROSÁRIO  PALMA RAMALHO, Tratado de Direito do Trabalho cit., II, 96 ss.
[14]António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 16ª edição, pág. 182.
[15]António Monteiro Fernandes, ob citada, pág, 182.
[16]Processo 73/12.3TTVNF.P1.S1.
[17]No acórdão discute-se a reserva da vida privada, face ao uso de meios de vigilância à distância.
[18]Cfr. José João Abrantes, Contrato de trabalho e direitos fundamentais, Coimbra Editora, 2005, p. 220 e 228. Nota de rodapé do acórdão.
[19]Ibidem, p. 230. Nota de rodapé do acórdão.
[20]António Monteiro Fernandes, ob citada, pág, 181.
[21]António Monteiro Fernandes, ob citada, pág, 178.
[22]As próprias testemunhas, trabalhadores da Ré, ao referirem-se à mobilidade entre as duas sub categorias, “área” e “runner”, referiram em sede de julgamento que, ou subiam a “área” ou desciam a “runner”.
[23]Sic das Obrigações em Geral, 10º edição, pág. 606.
[24]A. Varela, Obrigações em Geral, 10º edição, pág. 607 e 608
[25]P.Lima e A.Varela, C.Civil anotado, vol I, pág. 501.

Decisão Texto Integral: