Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11726/20.2T8LSB.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: ARRENDAMENTO
INCAPACIDADE DE FILHO DO ARRENDATÁRIO
TRANSMISSÃO POR MORTE
COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A aquisição do direito ao arrendamento por transmissão mortis causa opera automaticamente, ipso iure – não depende de comunicação – e o grau de incapacidade pode ser comprovado por meio probatório (documento, sentença, prova pericial ) obtido posteriormente ao óbito do arrendatário; imprescindível é que a incapacidade seja pré-existente ou sua contemporânea ; o que releva não é o momento em que é obtida a prova do grau de incapacidade, mas sim que o grau de incapacidade legalmente exigido se verifique à data do óbito do arrendatário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

JC instaurou ação declarativa de condenação contra AS, pedindo:
a) a declaração de caducidade do contrato de arrendamento com data de 5.11.2006;
b) a condenação do R. a entregar ao A. a fração livre e devoluta de pessoas e bens próprios;
c) a condenação do R. a pagar ao A. o valor de € 37.044,00 e ainda o valor mensal de € 450,00 desde julho de 2020, inclusive, até à efetiva entrega da fração livre e devoluta de pessoas e bens próprios.
Para o efeito alegou, em síntese, que o A. e sua mulher são usufrutuários da fração autónoma designada pela letra D, a que corresponde o terceiro andar, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua…. Tal fração foi arrendada em 01/12/1964, com destino exclusivamente para habitação, a S. Teve recentemente conhecimento de que o arrendatário faleceu e que o arrendamento teria sido transmitido à esposa, AS. Esta faleceu, no estado de viúva do arrendatário, no dia 5 de novembro de 2006. O contrato caducou nesta data, uma vez que não se verifica nenhuma das situações previstas no artº 57º do NRAU, pelo que deve o R. ser condenado a entregar o locado ao A., livre e devoluto de pessoas e bens próprios. Uma vez que o R. não entregou o locado no prazo de 6 meses após o óbito da sua mãe, deve o A. ser indemnizado pela perda do valor locativo ao longo dos anos.
O R. apresentou contestação, pugnando pela transmissão do direito ao arrendamento, por ser filho do primitivo arrendatário e seu cônjuge, ter vivido com eles desde o início do arrendamento, ter sido diagnosticado com esquizofrenia paranoide, de caráter permanente e irreversível, desde os 24 anos de idade (grau de incapacidade superior a 60%), nos termos do artº 57º, nº 1, al. e) e f) do NRAU.
Notificado para o efeito, o A. respondeu à exceção pugnando pela sua improcedência. Alegou, em síntese, que o R. não é sobrevivo ao primitivo arrendatário; à data do falecimento da mãe do R., o mesmo não tinha qualquer comprovada incapacidade; os documentos juntos, além de supervenientes, não cumprem os requisitos da prova da incapacidade igual ou superior a 60%.
Realizada audiência prévia, foi de seguida proferido despacho saneador sentença que julgou improcedente a ação.
O A. interpôs recurso desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“1. No momento do falecimento da mãe do R. não existia grau comprovado da incapacidade do R., tendo assim caducado o contrato de arrendamento, não sendo de retroagir os efeitos da sentença de interdição de 2008, sendo esta a forma, em modesto ver e s.m.o., de aplicar o art. 57.º do NRAU em concatenação com a aludida sentença.
2. Deve pois ser revogada a douta sentença e considerar caducado o contrato de arrendamento, seguindo os autos para apreciação do demais peticionado.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
1. O autor e a sua mulher M. são usufrutuários da fração autónoma designada pela letra “D”, a que corresponde o terceiro andar, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua….
2. Por contrato celebrado entre AA e JS, foi dado de arrendamento o terceiro andar do prédio da Rua …, com início a 01-12-1964.
3. JS faleceu a 01-05-1982, no estado de casado com AS.
4. AS faleceu a 05-11-2006.
5. O réu nasceu a 21-02-1953 e sempre habitou com os progenitores.
6. Padece de Psicose Esquizofrénica, tipo Paranoide.
7. Por sentença de 11-12-2008 foi o réu declarado interdito por anomalia psíquica, derivada de Psicose Esquizofrénica, tipo Paranoide, com efeitos desde 15-06-1993.
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Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).
Assim, a única questão a decidir consiste em determinar se ocorre a caducidade do contrato de arrendamento (ou se se verifica a transmissão do direito ao arrendamento).
Na decisão recorrida considerou-se que ocorreu transmissão do arrendamento para o R., por óbito da sua mãe, transmissária do arrendamento por morte do seu cônjuge, pai do R., nos termos da alínea e), do n.º 1, do artigo 57.º, do NRAU, na sua redação originária.
O A. pugna pela caducidade do contrato de arrendamento em virtude de, à data do óbito da arrendatária, não existir grau comprovado da incapacidade do R., não sendo de retroagir os efeitos da sentença de interdição, proferida em 2008.
O contrato de arrendamento foi celebrado em 01/12/1964, isto é, em data anterior ao primitivo R.A.U. (aprovado pelo D.L. 321-B/90, de 15 de outubro).
Entretanto, a Lei 6/2006, de 27 de fevereiro aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) e revogou o regime anterior (cfr. artº 60º, nº 1). O artº 59º do NRAU estatui que este diploma se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo das normas transitórias previstas nos artºs. 26º a 58º.
A transmissão por morte da posição jurídica no arrendamento é regulada pela Lei vigente à data do decesso.
O óbito do primitivo arrendatário, pai do R., ocorreu antes do RAU e o óbito da mãe do R. deu-se na vigência do N.R.A.U, sendo, pois, aplicável ao caso dos autos o regime transitório no mesmo previsto, mormente o disposto no artigo 57º, que previa (na redação vigente à data do óbito):
Transmissão por morte no arrendamento para habitação
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - Quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
4 - A transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, nos termos dos números anteriores, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 ou nos termos do número anterior.”
Está em causa, no presente recurso, a situação prevista na alínea e) do nº 1 deste preceito, no segmento referente à comprovação do grau de incapacidade.
Também o artº 1111º do Código Civil, na redação vigente à data do óbito do primitivo arrendatário, estabelecia que o arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha reta, com menos de 1 ano ou que com ele vivessem pelo menos há 1 ano.
Conforme decidido em 1ª instância, nos termos do artº 57º do NRAU, e no caso que nos ocupa, a lei permite um duplo grau de transmissão do direito ao arrendamento, conquanto o descendente reúna os requisitos exigidos na al. e) do nº 1, dado que a mãe do R. adquiriu o direito por virtude da morte do seu marido, pai do R. (cfr. al. a) do nº 1, ex vi do nº 4).
Não é objeto do recurso a convivência há mais de 1 ano nem o grau de incapacidade do R..
O apelante entende que a sentença que decretou a interdição do R., por anomalia psíquica (esquizofrenia paranoide), e que foi proferida em 2008, não retroage os seus efeitos, pelo que à data do óbito da mãe do R. este não tinha incapacidade comprovada. É, pois, entendimento do apelante que ao adotar a expressão “comprovada” o legislador exige que a prova da incapacidade exista à data em que o direito surge e que a sua falta implica que o arrendamento não se transmita ao R..
Adiantamos que não lhe assiste razão.
O que releva não é o momento em que é obtida a prova do grau de incapacidade, mas sim que o grau de incapacidade legalmente exigido se verifique à data do óbito do arrendatário.
Como se refere no Ac. RP de 18/12/2018, disponível em www.dgsi.pt, “a ratio da exigência legal da deficiência “com grau comprovado de incapacidade” tem a ver com a necessidade de se afastarem  situações duvidosas, exigindo-se que a eficiência alegada pelo descendente seja efetiva e devidamente demonstrada por meio de prova adequado.”  
Importa trazer à colação o atual artº 1107º, nº 2 do CC (em termos semelhantes ao preceituado no artº 89º, nº 3 do RAU), que dispõe:
“1 - Por morte do arrendatário, a transmissão do arrendamento, ou a sua concentração no cônjuge sobrevivo, deve ser comunicada ao senhorio, com cópia dos documentos comprovativos e no prazo de três meses a contar da ocorrência.
2 - A inobservância do disposto no número anterior obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão.”
Verifica-se que o legislador apenas estabeleceu como consequência da omissão da comunicação da transmissão e/ou da remessa dos documentos comprovativos dos respetivos requisitos (relação de parentesco, grau de incapacidade) uma indemnização pelos danos causados pela omissão, não se mostrando previsto qualquer cerceamento do direito ao arrendamento por transmissão mortis causa, pela inobservância da comunicação e/ou prova dos factos integradores do direito. Dizendo de outro modo, a lei não faz depender a aquisição do direito ao arrendamento, da junção do meio probatório da incapacidade.
É que a aquisição do direito ao arrendamento opera automaticamente, ipso iure – não depende de comunicação – e o grau de incapacidade pode ser comprovado por meio probatório (documento, sentença, prova pericial), ainda que obtido posteriormente ao óbito do arrendatário; imprescindível é que a incapacidade seja pré-existente ou sua contemporânea.
O entendimento do apelante, como realçado no acórdão citado, “obrigaria que o descendente, (pessoa que além do mais, é portadora de deficiência grave) se encontrasse sempre previamente munido de um documento que comprovasse ser portador de incapacidade e que esse documento comprovasse ainda que essa situação se verificava numa data imprevisível, como é a da ocorrência da morte do ascendente.
Essa limitação mostra-se até desconforme ao princípio do acesso ao direito aos tribunais (art. 20º da CRP) e até o princípio da livre apreciação da prova, pois que limitaria de forma injustificada a possibilidade de discussão e de produção de meios de prova sobre o grau da incapacidade do descendente.”
A interpretação da al. e) do nº 1 do artº 57º do NRAU sufragada pelo apelante não merece acolhimento.
Do facto provado nº 7 – não impugnado – consta “por sentença de 11-12-2008 foi o réu declarado interdito por anomalia psíquica, derivada de Psicose Esquizofrénica, tipo Paranoide com efeitos desde 15-06-1993.”
Ainda que a sentença de interdição tenha sido proferida em 2008, na mesma foi fixado o início da incapacidade do R., com efeitos desde 15/06/1993, em obediência ao disposto no artº 901º, nº 1 do CPC, na redação vigente àquela data, que impunha que a sentença que decretasse a interdição fixasse, sempre que possível, a data do começo da incapacidade.
Assim, dúvidas não restam de que a incapacidade do R. se mostra comprovada, e que a mesma teve início em data anterior ao óbito da sua mãe.
Não tem o efeito preclusivo pretendido pelo apelante, a circunstância de a sentença que decretou a interdição do R., por anomalia psíquica, ter sido proferida em data posterior ao óbito da arrendatária.
Operou, pois, a transmissão do arrendamento para o R., facto impeditivo da caducidade do contrato, a impor a improcedência da ação.

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo do apelante.

Lisboa, 5 de Maio de 2022
Teresa Sandiães
Octávio Diogo
Cristina Lourenço