Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3330/2008-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
APREENSÃO DE VEÍCULO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. Com a extinção da instância, pelo julgamento, o procedimento cautelar, porque dependente da acção principal, também se pode extinguir, sem prejuízo dos efeitos duradouros da providência decretada.
II. Depois da sentença condenatória proferida na acção principal ter transitado em julgado, extingue-se também a instância do procedimento cautelar, salvo se for ainda indispensável realizar diligências executivas necessárias à tutela jurisdicional efectiva.
III. Assim, no procedimento cautelar de entrega judicial previsto no art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, tendo sido decretada a providência, aquele não se extingue, por efeito da sentença condenatória na acção principal, quando ainda seja necessária a realização de diligências executivas para a sua integral efectivação.
OG
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
D – Instituição Financeira de Crédito, S.A., instaurou, em 14 de Março de 2007, na 11.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra M, procedimento cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo, para que fosse decretada a imediata apreensão do veículo automóvel, marca Mercedes, modelo Vito 112 6 Lug., e ordenado o cancelamento do respectivo registo do contrato de locação financeira, tendo alegado, para o efeito, a resolução do contrato de locação financeira, celebrado em 23 de Dezembro de 2002, tendo por objecto o referido veículo, por incumprimento da Requerida, que deixara de pagar as rendas a partir da 43.ª, e depois de interpelada para proceder ao pagamento das prestações vencidas.
Remetido o processo para a 2.ª Vara Mista da Comarca de Vila Nova de Gaia, por ter sido julgada a competente, foi decretada, em 21 de Maio de 2007, a providência requerida, determinando-se nomeadamente “a imediata apreensão do veículo automóvel (…) e respectivos documentos e a subsequente entrega à Requerente”.
Em 22 de Junho de 2007, a GNR, para além de ter lavrado um auto de declarações à Requerida, nos termos do qual se fez constar que “se recusa a entregar a viatura, afirmando também que a mesma não circula e se encontra guardada na sua residência até à resolução da situação”, lavrou também o auto de apreensão do referido veículo automóvel, tendo a Requerida como depositário (fls. 79), e notificou a mesma para, no prazo de dez dias, apresentar os documentos do veículo.
A Requerida foi depois notificada da decisão que decretou a providência cautelar.
Em 25 de Junho de 2007, foi proferida sentença na acção principal, nos termos da qual a Requerida foi condenada a devolver à Requerente o referido veículo automóvel, da qual não houve recurso.
Em 31 de Julho de 2007, depois de requerimento da Requerente, foi solicitada à respectiva entidade policial a “apreensão efectiva”, reiterada depois por despacho de 14 de Agosto de 2007.
Já depois do procedimento cautelar ter sido apensado à acção principal, instaurada também em 14 de Março de 2007, na 14.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, a GNR dos Carvalhos informou, a 26 de Setembro de 2007, que a Requerida, apesar de advertida de que incorreria em desobediência, se “recusou a entregar o veículo”.
Após requerimento da Requerente, em 6 de Novembro de 2007, o Juiz determinou que a autoridade policial procedesse “à apreensão efectiva do veículo (…) se necessário recorrendo à força pública”.
Em 3 de Dezembro de 2007, a GNR dos Carvalhos informa que a Requerida “se recusa a entregar a referida viatura” e que “não foi possível proceder à efectiva apreensão da viatura por não se saber o paradeiro da mesma nem a ter localizado na área de jurisdição deste Posto” (fls. 144).
Em 27 de Dezembro de 2007, a Requerente requereu, para além do mais, a notificação da Requerida, a fim de proceder à entrega do veículo, no prazo máximo de 10 dias, num posto da PSP ou da GNR, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
Esse requerimento, por despacho de 28 de Dezembro de 2007, foi indeferido, condenando-se a Requerente nas “custas do incidente anómalo”, com a taxa de justiça de 2 UC, com o fundamento de já ter sido proferida sentença, com trânsito em julgado, na acção principal.

Não se conformando com essa decisão, a Requerente recorreu e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:
a) Na decisão não se interpretou correctamente as disposições do CPC e do DL n.º 149/95, de 24 de Junho.
b) A concretização da presente providência pressupõe a execução da mesma, a qual se traduz na efectiva apreensão do veículo.
c) A execução da sentença da acção principal não se coaduna com a urgência na tutela do respectivo direito.
d) Não se verifica qualquer dos casos de caducidade da providência previstos no art. 389.º do CPC.
e) As providências devem manter-se ao serviço de um direito reconhecido, respeitando-se o princípio da celeridade e economia processual.
f) O procedimento cautelar pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva.
g) Foi violado o disposto nos artigos 381.º, n.º 1, e 389.º, do CPC, 21.º, n.º s 1 e 6, do DL n.º 149/95, de 24 de Junho.

Pretende, com o seu provimento, a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento dos autos até final.

A Requerida não contra-alegou.
A decisão recorrida foi, tabelarmente, sustentada.

Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Descrita a dinâmica processual, importa então conhecer do objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, respeitando a questão jurídica emergente a saber se, proferida a sentença na acção principal, com trânsito em julgado, se mantém ainda o procedimento cautelar, nomeadamente para a execução da respectiva providência cautelar.
A decisão recorrida respondeu negativamente a essa questão, mas com expressa discordância da Recorrente, que entende dever o procedimento cautelar especificado de entrega judicial prosseguir até à execução da providência, isto é, até à apreensão efectiva do bem.
O procedimento cautelar instaurado corresponde à entrega judicial e cancelamento de registo previsto no art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, por ter como objecto do contrato de locação financeira um bem sujeito a registo.
O procedimento cautelar tanto pode ser preliminar como incidente da acção principal, dependendo do momento da instauração determinada pela situação de urgência da respectiva decisão provisória, para evitar o prejuízo, parcial ou total, do direito pretendido fazer valer e cuja decisão final carece, naturalmente, de um prazo razoável para ser proferida.
O procedimento cautelar é, pois, sempre instrumental da causa que tem por fundamento o direito acautelado, assegurando através da respectiva providência, a composição provisória do conflito até se obter a sentença final – art. 383.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).
Deste modo, o procedimento cautelar está dependente do julgamento da acção principal, a ponto da improcedência desta determinar a caducidade da providência.
Por outro lado, com a extinção da instância, pelo julgamento, o procedimento cautelar, porque dependente da acção principal, também se extingue, por regra, sem prejuízo dos efeitos duradouros da providência.
Por norma, o procedimento cautelar é instrumental da acção declarativa, embora nalgumas situações, ainda que raras, também se possa admitir que o seja da acção de execução. Indispensável, porém, é que se comprove o requisito do periculum in mora, que, por se tratar de uma acção destinada ao cumprimento coercivo de uma obrigação, será muito difícil de satisfazer. Sendo as providências executivas eficazes para assegurar, geralmente, a satisfação do direito do credor, não se justifica a necessidade do decretamento de medidas cautelares, de resto com uma clara afinidade daquelas.

Esclarecida a finalidade geral das providências cautelares e revertendo à matéria dos autos, não deixa de impressionar, desde logo, o cumprimento defeituoso da decretada providência cautelar de entrega judicial de bem, que fora objecto de um contrato de locação financeira, que, por incumprimento da locatária, foi considerado extinto.
Na verdade, só com a entrega do veículo automóvel à Recorrente, ou a quem a esta mandatasse para o receber, se poderia considerar integralmente realizada a providência cautelar decretada, de forma a permitir a sua disponibilidade à locadora.
Embora tivesse sido lavrado um auto de apreensão do veículo automóvel, com a Recorrida a ser nomeada fiel depositário, o certo é que os autos evidenciam que a entidade policial não chegou a efectuar a apreensão, com os respectivos documentos, para depois o entregar à Recorrente, frustrando o objectivo da providência.
Deste modo, não se cumprindo a decisão jurisdicional, como devia, designadamente pela entidade administrativa competente, contribuiu-se para o desprestígio do poder soberano que, legitimamente, decretara a providência cautelar.
Entretanto, com a acção principal a correr termos, foi proferida, em 25 de Junho de 2007, a sentença, não impugnada, tendo a Recorrida sido condenada a devolver à Recorrente o veículo automóvel, marca Mercedes.
Com a sentença da acção principal, transitada em julgado, extinguiu-se a respectiva instância, nos termos da alínea a) do art. 287.º do CPC, situação que pode afectar, por efeito da respectiva dependência, o procedimento cautelar.
Assim, depois da sentença transitada em julgado, deveria extinguir-se a instância do procedimento cautelar de entrega judicial, dado a sua natureza instrumental.
Contudo, ponderando que a providência específica em causa tem uma clara natureza executória, manifestada na apreensão efectiva do bem, e, por outro lado, atentando ainda que o locador, extinto o contrato de locação financeira e decretada a providência, pode dispor livremente do bem, podendo aliená-lo, como expressamente se prevê nos artigos 21.º, n.º 6, e 7.º do referido DL n.º 149/95, deve o procedimento cautelar manter-se até ser possível a realização da diligência executória da apreensão efectiva do bem.
Num contexto como o descrito, admite-se que poderia ser muito injusto obrigar o locador a instaurar a execução para entrega de coisa certa, quando a lei lhe facultara, para o mesmo efeito jurídico, outro meio processual, mais célere e eficiente, que usou instaurando o procedimento cautelar e obtendo total procedência, embora depois prejudicado pelo deficiente e inaceitável cumprimento da providência decretada.
A aplicação da mera dogmática jurídica redundaria, neste caso, em resultados práticos indesejáveis, que não podem ser consentidos, sendo certo ainda que o processo é um mero instrumento da realização do direito substantivo.
Encontrando-se o direito reconhecido, definitivamente, mais se justifica ainda que se completem as diligências executivas da providência decretada, que há muito deviam estar cumpridas, para satisfação eficaz do direito constitucional à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º da Constituição da República Portuguesa).
Sendo necessária a determinação jurisdicional de diligências de natureza executiva da providência cautelar decretada, é manifesto que, para esse efeito, não se encontra esgotado o poder jurisdicional. Este verifica-se, no caso, quanto à pretensão jurídica formulada no procedimento cautelar, mas não prejudica a regulação do processo necessária para a satisfação integral da pretensão jurídica, designadamente quanto às diligências de natureza executiva, como a da apreensão do bem.
Nestes termos, procede a motivação essencial do recurso e, por isso, é de revogar a decisão recorrida.

2.2. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I. Com a extinção da instância, pelo julgamento, o procedimento cautelar, porque dependente da acção principal, também se pode extinguir, sem prejuízo dos efeitos duradouros da providência decretada.
II. Depois da sentença condenatória proferida na acção principal ter transitado em julgado, extingue-se também a instância do procedimento cautelar, salvo se for ainda indispensável realizar diligências executivas necessárias à tutela jurisdicional efectiva.
III. Assim, no procedimento cautelar de entrega judicial previsto no art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, tendo sido decretada a providência, aquele não se extingue, por efeito da sentença condenatória na acção principal, quando ainda seja necessária a realização de diligências executivas para a sua integral efectivação.

2.3. A Recorrida, não obstante tenha ficado vencida por decaimento, não é responsável pelo pagamento das custas, por efeito da isenção subjectiva prevista na alínea g) do n.º 1 do art. 2.º do Código das Custas Judiciais.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.
Lisboa, 24 de Abril de 2008
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)