Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
710/17.3T9MTJ.L1-9
Relator: RAQUEL LIMA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
TRATO SUCESSIVO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.–Pretendendo o recorrente sindicar a apreciação da prova efectuada em 1ª instância – art. 412º nº 3 CPP – estamos perante um caso de impugnação ampla, sendo que o recurso não visa a realização de um segundo julgamento, mas impedir eventuais erros ou incorrecções da sentença recorrida na forma como apreciou a prova.

II.–O artigo 127.º do CPP. consagra o princípio da livre apreciação da prova, não se encontrando o julgador sujeito às regras rígidas da prova tarifada, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais

III.–Nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.

IV.–A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º).

V.–Há violação do principio in dubio pro reu se o tribunal der como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido (mesmo que não tenha sentido a dúvida ou não a reconheça) se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha a existência de um estado de dúvida.

VI.–Estando em causa a prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo art. 171º nº 1 do CP não pode aplicar-se a agravação constante da al. c) do nº 1 do artº 177º CP porquanto, sendo a idade da menor, elemento do tipo, a agravação redundaria numa dupla incriminação.

VII.–Não obstante poder haver alguma dificuldade em determinar se os factos integradores do crime de abuso sexual, ocorreram semanalmente, mensalmente……essa dificuldade não deve levar o tribunal a bastar-se com imputações genéricas e cair na “tentação” da formulação jurídica do trato sucessivo.

VIII.–o agente deverá ser punido por tantos crimes quantos os actos levados a cabo e provados, em concurso efectivo de crimes.

IX.–Não tendo havido recurso do MP, determinar que o processo regressasse à primeira instância para melhor indagação do número de crimes praticados pelo arguido, seria um acto, na prática, inútil, atento o princípio da proibição da reformatio in pejus.

X.–Mesmo que o tribunal de recurso consiga determinar a prática de alguns crimes praticados pelo arguido, o aumento do número de crimes não levará nunca ao aumento da pena aplicada na 1ª instância (não tendo havido recurso do MP) por força do princípio da proibição da reformatio in pejus.

XI.–Verificando-se que na sentença em causa não foi arbitrada indemnização à vítima nos termos do disposto no art. 82.º-A, do CPP e número 2 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04.09 existe uma nulidade por omissão de pronúncia.

XII.–Para a colmatar deve a audiência ser reaberta e com observância do contraditório, decidir-se sobre o arbitramento de indemnização à vítima ( a não ser que esta se oponha), de acordo com os art. 82.ºA, n.º 1, do CPP


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


1.–RELATÓRIO


ACÓRDÃO


Por sentença proferida no dia 04 de Outubro de 2022 foi o arguido A condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea c), por referência ao artigo 69.º-B, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas e privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 69.º-B/2 do Código Penal.
           
Não se conformando com a decisão veio o arguido interpor recurso, apresentando, após a motivação as seguintes
Conclusões:
I. O arguido foi condenado, como autor, pela prática de 1 (um) crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea c), por referência ao artigo 69.º-B, n.º 2, todos do Código Penal, a pena de prisão de dois anos e oito meses e ainda na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções e actividade, públicas e privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de cinco anos.

II.–Foram incorrectamente dados como provados os seguintes factos (alínea a) do n.º 3 do art. 412.º do CPP):

5. Com o passar do tempo, ainda no ano de 2016, os períodos em que a menor ficava aos cuidados do arguido começaram a aumentar de frequência e de duração, e este, apesar de bem saber que aquela tinha apenas 6 anos de idade e estar ciente de que se encontrava à sua guarda, cuidado e sob a sua assistência e protecção, aproveitou-se desse facto, e passou a procurar a menor para satisfazer os seus desejos sexuais;
6. Nos anos de 2016 e 2017, em datas não concretamente apuradas, quando a menor adormecia em casa do arguido, tanto no período nocturno, como durante a tarde, quando chegava da escola, este aproximava-se da mesma e apalpava o seu corpo com as mãos, em especial a vagina e as nádegas, algumas vezes por cima do vestuário, outras colocando as suas mãos por baixo da roupa, desse modo obtendo prazer sexual;
7. No quadro do descrito comportamento, em datas que não se conseguiram determinar, quando a menor, depois de tomar banho, se deslocava para o quarto para se vestir, o arguido abordava a mesma, encontrando-se apenas em roupa interior e pediu à menor que lhe desse beijinhos na pilinha, o que a mesma sempre recusou;
8. No mesmo quadro, em datas que não se lograram apurar, mas ocorridos nos anos de 2016 e 2017, o arguido, em algumas dessas situações em que a menor se encontrava despida no quarto, depois do banho, colocava-se sobre a mesma e beijava a vagina da menor;
9. Nas mesmas situações, o arguido, aproveitando-se do facto de estar sobre o corpo da menor, efectuava com o seu corpo movimentos oscilantes característicos da relação sexual, tentando inserir o seu pénis erecto na vagina e no ânus da menor, não logrando, porém, atingir os seus intentos, por motivos alheios à sua vontade, pois a menor sempre se queixou com dor;
10. No mesmo período temporal, em datas não concretamente apuradas, o arguido pediu à menor que lhe mexesse no pénis, umas vezes colocando o seu órgão sexual para fora das calças, outras vezes, dizendo à menor para agarrar o seu pénis erecto, colocando as mãos dela dentro das suas calças;
11. No mesmo período de tempo, i.e. no decurso dos anos de 2016 e 2017, em datas não concretamente apuradas, o arguido colocou em exibição no seu computador vídeos de cariz pornográfico obrigando a menor a visualizá-los;
12. Em todas essas situações, num número total aproximado de 13 (treze), ocorridas no decurso dos anos de 2016 e 2017, o arguido sempre pediu à menor para não contar os seus comportamentos à respectiva progenitora, nem à sua esposa, ao que a menor acedeu por ter bastante receio daquele;
13. Ao actuar da forma descrita sobre a menor D, agiu o arguido sempre com o propósito concretizado de obter prazer sexual e de satisfazer os seus instintos libidinosos, estando bem ciente de que aquela tinha à data, 6 (seis) e 7 (sete) anos de idade, e se encontrava à sua guarda e cuidados;
14. Agiu igualmente o arguido, abusando da sua superioridade física bem como da imaturidade e fragilidade da menor, tendo plena consciência da relação de amizade e proximidade que tinha com a menor e com a respectiva família;
15. Ao adoptar as demais condutas acima enunciadas, quis e conseguiu o arguido praticar sobre a menor actos de natureza e conteúdo sexual, com a intenção de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais e com a vontade de dominar a liberdade de autodeterminação sexual daquela, bem sabendo que a mesma, em razão da sua idade, ainda não possuía a capacidade e discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente;
16. Tinha também o arguido pleno conhecimento que as zonas do corpo da menor em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade de D, de que punha em causa o seu são desenvolvimento da consciência sexual e de que ofendia o respectivo sentimentos de pudor, intimidade e liberdade sexual, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, o que também visou e conseguiu, interrompendo o percurso normativo do desenvolvimento psicossexual e erotizando a menor antes de esta dispor de competências cognitivas, sociais e emocional para regularizar a sua sexualidade, bem como para evitar o contacto sexual com um adulto;
. Actuou sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas;
. Nas entrevistas, e relativamente ao presente processo, A adoptou um discurso de descomprometimento moral, procurando desvalorizar os factos, tendo revelando uma ausência de empatia perante a ofendida e a mãe da mesma.

III. Sobre os referidos factos o arguido prestou declarações que foram desvalorizadas em face do depoimento da menor D, que o Tribunal a quo caracterizou como coerente, espontâneo e circunstanciado, por esta não se ter cingindo a resposta de “ sim” ou “não”, utilizando expressões próprias da sua tenra idade e caracterizando a postura do arguido como de “negando veemente os factos” e “teatralizando o choro e a sua inocência”.

IV. O Tribunal a quo fez uma errada interpretação da prova produzida, pois, a prova documental constante nos autos, bem como as declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas, têm de ser valoradas na apreciação dos factos que se consideram incorrectamente julgados e contrariam a versão da ofendida, razão pela qual não devem ser dados como provados os factos 5 a 17 e 27 dos factos provados.

V. A documentação clínica evidencia a ausência de vestígios físicos compatíveis com o alegado abuso sofrido pela ofendida: “ não foram observadas lesões traumáticas na superfície corporal”, “não foram observadas lesões traumáticas na região anal, tendo o esfíncter anal tónus mantido” e “não foram observadas lesões traumáticas recentes na região genital, tendo a examinanda uma membrana himenial anular, com solução de continuidade, não completa e não recente às 1h. A existência de uma solução de continuidade, não recente, nesta localização, é considerada normal e não relacionada com eventual agressão sexual”. (Página 3 do Relatório da Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal - Clínica Forense, fl s. 284 verso do processo)

VI. A menor confirma os abusos, no entanto, muitas vezes refere que o abuso que sofreu foi a agressão sofrida pela mãe às mãos do arguido.

VII. Resulta do Relatório da Perícia Médico-Legal, Psicologia (página 3, correspondo a fl s. 273) que a menor, quando solicitado que descrevesse os abusos, referiu o episódio conflituoso entre o arguido e a mãe: “Convidada a descrever as situações em que João a terá “violado” afirma “(…) uma vez, eu estava na casa do meu avô… eu chamava ele de avô e o João foi lá a dizer que a minha mãe tinha dito para ele me ir buscar e o meu avô ligou à minha mãe e a minha mãe disse que era mentira, para ele não nos deixar sair até ela chegar… quando a mãe chegou o João xingou a mãe, chamou nomes… ele pôs o telemóvel em cima do carro, a gravar o som… a mãe pegou e mandou no chão para conseguir por eu e o meu irmão dentro do carro… a mãe ficou entre a parede e o carro e o João pisou ela… a mãe tentou chamar a polícia e o João fugiu, depois não sei se a mãe foi na polícia (…) ele dizia que se eu contasse à minha família ele ia matar eles” (sic)”.

VIII. No que tange aos factos provados 12, 28 e 29, refere o Tribunal a quo na douta sentença que o arguido havia pedido à menor para não contar os abusos à sua esposa e à progenitora “ao que a menor acedeu por ter bastante receio daquele” e que esse receio fundado por ter agredido a mãe da menor, o que deu causa ao processo comum n.º 11/17.7PAMTJ, do Juízo Local Criminal do Montijo, tendo o arguido sido condenado, em 28/12/2016, de um crime de ofensa à integridade física simples.

IX. Incompreensivelmente, a douta sentença não refere os factos que motivaram a instauração desse processo e que resultou provado do depoimento de várias testemunhas, do arguido e da menor.

X. Resulta da prova produzida que o arguido agrediu a mãe da menor porque esta deixava a menor e o irmão, sozinhos, durante o dia e noite em casa de S, onde só existe um quarto e uma cama, o qual já cumpriu 4 anos de pena efectiva por abuso sexual de menores.

XI. Na época a D teria entre os 2 e os 6 ou 7 anos e o H teria entre os 5 a 9 ou 10 anos de idade.

XII. A mãe da menor referiu: “O João queria levar-me a menina porque dizia que o Senhor António era um violador e que eu era uma mãe inconsciente e que a criança não devia estar ali”, passagens 00:18:28 a 00:19:18 , tendo o seu depoimento a duração de 00:33:51, com referência à acta de 15/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 15 minutos (n.º 4 do art.º 412.º do CPP).

XIII. A mãe da menor afirmou terem sidos vizinhos há muitos anos e durante muito tempo e que a sua mãe também a deixava ao cuidado de S, o qual também tinha tomado conta dela entre os 12 anos e os 15 anos de idade, passagens 00:23:55 a 00:25:00 , tendo o seu depoimento a duração de 00:33:51, com referência à acta de 15/09/2022, porém, a sua mãe (avó materna da menor) diz não conhecer S, passagens 00:08:18 a 00:10:52, tendo o seu depoimento a duração de 00:13:00, com referência à acta de 15/09/2022.

XIV. O motivo da discussão resulta provado:
- das declarações da menor, passagens 00:22:15 a 00:23:45 , tendo o seu depoimento a duração de 00:28:05, com referência à acta de 07/08/2020;
- das declarações do arguido, passagens 00:13:04 a 00:23:00, tendo o seu depoimento a duração de 00:52:51, com referência à acta de 08/09/2022;
- do depoimento da testemunha I, passagens 00:09:25 a 00:10:20, tendo o seu depoimento a duração de 00:20:15, com referência à acta de 08/09/2022;
- do depoimento da mãe da menor, passagens 00:16:51 a 00:20:20 , tendo o seu depoimento a duração de 00:33:51, com referência à acta de 15/09/2022;
- e do depoimento da testemunha S, passagens 00:02:11 a 00:12:16, tendo o seu depoimento a duração de 00:12:17, com referência à acta de 23/09/2022.

XV. A sentença do Tribunal a quo omite que o conflito que deu origem a esse processo em que o arguido foi condenado, foi motivado pelo facto do arguido querer proteger os menores de estarem ao cuidado de um cadastrado por abuso sexual de menores, contra a vontade da própria mãe dos menores!

XVI. Não faz sentido que o arguido denunciasse a situação da exposição destas crianças a uma pessoa condenada pela prática do crime em causa nos presentes autos quando, alegadamente, estivesse a fazer o mesmo, sabendo que essa sinalização viria a conduzir a exames físicos e psicológicos às crianças que o poderiam denunciar!

XVII. O próprio arguido, por repugnar esta realidade e este crime, reportou a situação à CPCJ do Montijo e foi condenado em Tribunal por ter tentado retirar as crianças desta situação.

XVIII. Resulta provado nos autos que o atrito entre o arguido e a mãe da menor ocorreu a 28/12/2016, tendo a menor e o irmão assistido a tudo.

XIX. Nesse dia, o arguido, sabendo que as crianças estavam na casa de S, avisou a mãe dos menores que os ia de lá retirar.

XX. A mãe dos menores não gostou, tendo os dois discutido e partido para ofensas físicas a que os menores assistiram e ficaram traumatizados.

XXI. A testemunha L, técnico da CPCJ, refere no seu depoimento que a menor disse que não gostava do padrinho pelo que ele tinha feito à mãe, não a si (passagem 00:18:55 a 00:19:40 , tendo o seu depoimento a duração de 00:25:58, com referência à acta de 08/09/2022.

XXII. Em 20/02/2017, o arguido apresentou denúncia na CPCJ do Montijo, conforme ficha de sinalização/denúncia junta aos autos, (fl s. 74 a 75 verso do processo), relatando o modo negligente como a mãe da menor a trata, com o seguinte teor: “- A D e o H não fazem uma alimentação adequada. Só comem cereais. Muitas vezes têm água em casa e gás. - A D fica vários dias sem tomar banho. - A casa tem défice de limpeza (“a cozinha e o quarto são uma nojice”: sic). - A mãe e as crianças moram junto da avó materna. - A mãe leva a filha para locais onde existem consumos de droga (festas de transe). Aquela também é consumidora. “Consome tudo… o que vem à rede é peixe…” (sic). - A mãe, às vezes, tranca os filhos em casa, à noite, e ausenta-se. Quando não os tranca, de dia, as crianças andam na rua sem supervisão. - A avó materna Ana tem 2 trabalhos, um deles com horário nocturno. - As crianças não são assíduas na escola. - A D é negligenciada a nível de saúde pela mãe. - A mãe já deixou os filhos serem levados por um pedófilo cadastrado (conhecido por “Toino”, morador no Bairro sem Justiça) para casa dele, por várias vezes. Trata-se de uma pessoa idosa entre os 60 e 70 anos (caucasiano). Não sabe se a mãe continua ou não a permitir esses contactos. - Sabe que já familiares foram chamados à atenção pela escola, pelo facto de a criança ir “mal vestida” (sic). (sublinhado nosso)
- Até meados de Dezembro, o padrinho tinha um contacto regular com a D. Na sequência de um conflito com a mãe das crianças, por esta ter roubado um casaco oferecido à D por uma amiga do Sr. João, Sónia não permitiu mais contactos.
- No dia 28/Dez/2016, uma amiga telefonou ao Sr. João a dizer que as crianças estavam com um pedófilo e aquele foi buscá-los a casa do alegado idoso.
- João estava a retirar as crianças dessa casa, quando a mãe apareceu e não permitiu que tal acontecesse, além de o ter agredido. (sublinhado nosso)
- Tentou várias vezes “fazer as pazes” (sic) com Sónia, para ver a sua afilhada, mas a mãe não o permite.
- Para dar presentes aos filhos de Sónia teve de o fazer na escola.”

XXIII. Só após o arguido apresentar denúncia na CPCJ que surge a primeira conversa de D sobre os abusos (passagens 00:22:15 a 00:23:45, tendo o seu depoimento a duração de 00:28:05, com referência à acta de 07/08/2020; passagens 00:06:20 a 00:13:03, tendo o seu depoimento a duração de 00:33:51, com referência à acta de 15/09/2022, passagens 00:21:50 a 00:22:20 e 00:24:50 a 00:25:35, tendo o seu depoimento a duração de 00:25:58, com referência à acta de 08/09/2022).

XXIV. Em 29/10/2018, o arguido volta a efectuar denúncia dos comportamentos da mãe da menor, conforme ficha de sinalização/denúncia junta aos autos, (fl s. 124 a 126 do processo), com o seguinte teor: “O Sr. João refere que há 4 meses a PSP ligou para si porque as crianças andavam na rua sozinhas. Devido a algumas chatices, o Sr. João não foi buscar as crianças porque a D. Sónia não permitia. As crianças frequentam o café “New Wave” sozinhas, até à 1h da manhã. As crianças vivem sozinhas e sem tomar banho porque a mãe vive no Seixal com um senhor toxicodependente e a D. Sónia frequenta festas de trance, onde “há compra e venda de droga livre” (sic). O Sr. João sente-se preocupado porque não sabe se as crianças continuam a frequentar esses espaços com a mãe. A avó tem a guarda de facto de uma das crianças, tem 2 trabalhos e passa pouco tempo em casa. A D. Sónia já admitiu ao Sr. João que a mãe é uma alcoólica. “Os meninos estão negligenciados” (sic). O Sr. João pretende que a situação seja analisada urgentemente porque está preocupado com as crianças. “A D tem Facebook e tem apenas 9 anos” (sic). As crianças continuam sem acompanhamento na escola, e a sofrer carência alimentar e ao nível da saúde.”

XXV. O arguido informou na CPCJ que não pretendia manter o anonimato quanto à identidade do participante das sinalizações apresentadas, possivelmente, se tivesse optado por manter o anonimato não teria sido alvo das represálias e mentiras de que está a ser vítima.

XXVI. Em virtude disso, a fl s. 2 do auto de audição da CPCJ, aquando da visita realizada a 30/05/2017 o seguinte: “A D releva embaraço e muita vergonha ao falar-se sobre este assunto dizendo que não gosta dele, porque ele também tinha batido na mãe dela.” , ou seja, a D quando convidada a falar do que o arguido lhe fez, refere que a forma como ele a “violou” foi ter batido na sua mãe. (sublinhado nosso)

XXVII.  A evidenciar o quanto que esta situação foi marcante e traumatizante para a D, o auto de audição da menor, ocorrido em 30/05/2017 (fl s. 39 e 39 verso do processo), refere que a menor fala deste assunto de forma totalmente despropositada quando apenas lhe é solicitado que faça um desenho: “Quando lhe foi pedido para fazer o desenho da figura humana, a D desenhou uma menina (...) ela referiu que afinal faltava fazer a cara. A D espontaneamente começou a referir que um indivíduo conhecido da mãe, partiu-lhe o telemóvel e agrediu em frente a ela e ao irmão. Referiu que o João (padrinho) já tinha batido na mãe e que já não ia para casa dele.”

XXVIII. A menor passou a ter uma atitude retaliatória e vingativa em relação ao arguido: “Solicitada a pronunciar-se sobre o tipo de sanção que consideraria justa para punir o alegado abusador sexual refere “(…) que ele pagasse pelo que fez, que fosse preso, entre 5 a 10 anos” (sic).” (página 4 do Relatório da Perícia Médico-Legal, Psicologia – Relatório psicológico, fl s. 273 verso do processo)

XXIX. A agressão à mãe é o motivo pelo qual a menor criou a realidade que imputa ao arguido, por forma a mantê-lo longe da sua mãe e de si e tal resulta do depoimento da mãe da menor, (passagens 00:06:20 a 00:13:03 e 00:22:50 a 00:23:25, tendo o seu depoimento a duração de 00:33:51, com referência à acta de 15/09/2022.

XXX. Bem como da entrevista da mãe: “No que diz respeito à revelação dos alegados abusos sexuais de que terá sido vítima informa que a examinanda “(…) numa visita que a CPCJ fez à minha casa, tinha ela 6 anos, disse que o João a tinha tentado violar … ela disse que ele tentou fazê-lo: - O João tentou violar-me! (…) nunca tinha falado nisso … será que disse porque viu o João a agredir-me? Para me proteger? Depois da agressão é que ela contou na presença do Dr. João”(sic).” (página 8 do Relatório da Perícia Médico-Legal, Psicologia – Relatório psicológico e fls. 275 verso do processo)

XXXI. Resulta como facto provado 19 que, em 09/11/2021, a menor apresentava sintomatologia depressiva com significado clínico, no entanto, tal não está ligada aos factos imputados ao arguido na acusação, mas antes por ser desprezada pelo pai e posteriormente ter sido retirada a guarda da mãe, com a qual tem uma forte ligação, passando a estar à guarda da avó.

XXXII. Conforme resulta dos autos:  “A D diz que o pai não quer saber dela, e que foi a mãe que disse”, o auto de audição da menor na CPCJ do Montijo em 30/05/2017 (fl s. 40 do processo); “A Sónia diz que por vezes vai na rua com a D e quando o pai da D a vê, não lhe liga nenhuma. A D sabe quem é o pai e não compreende não a procura e não fala com ela quando passa na rua. A Sónia diz que não sabe muito bem como explicar à D que o pai não quer saber dela”, auto de audição da mãe da menor na CPCJ do Montijo em 05/04/2017 (fl s. 12 verso do processo) e “Questionada sobre as suas expectativas face ao futuro relata “(…) gostava de ir viver com a minha mãe, que fosse ao contrário, viver com a minha mãe e ir todos os fins de semana à minha avó.” (sic).”, página 4 do Relatório da Perícia Médico-Legal, Psicologia – Relatório psicológico (fl s. 273 verso do processo).

XXXIII. Esta criança e o seu irmão terão conhecimentos, comportamentos e experiências bem diferentes daquilo que são as regras de experiência comum de crianças das suas idades, refira-se que a testemunha I refere que a mãe contava o que fazia sexualmente com os namorados na frente dos filhos, “com os pormenores todos, coisas mesmo fortes”, passagens 00:09:25 a 00:10:20 , tendo o seu depoimento a duração de 00:20:15, com referência à acta de 08/09/2022.

XXXIV. Foi dado como provado no facto 11, que, no decurso dos anos de 2016 a 2017, “o arguido colocou em exibição no seu computador vídeos de cariz pornográfico obrigando a menor a visualizá-los”.

XXXV.  O arguido negou e esclareceu que a menor se limitava a jogar nele, passagens 00:39:32 a 00:40:24, tendo o seu depoimento a duração de 00:52:51, com referência à acta de 08/09/2022, corroborado pelas declarações da menor: “Eu jogava no computador do João”(linha 14, da página 2 do Auto de Inquirição da menor na Polícia Judiciária, correspondendo a fl s. 17 verso do processo) e “Nas idas a casa do João, a D refere que ele brincava com ela com jogos…” (auto de audição da menor, ocorrido em 30/05/2017, fl s. 39 verso do processo).

XXXVI. No entanto, provou-se que a menor tinha visto um vídeo de cariz pornográfico em casa da avó (passagens 00:46:00 a 00:48:32, tendo o seu depoimento a duração de 00:52:51, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 9 horas e 53 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 46 minutos; passagens 00:11:10 a 00:11:43 , tendo o seu depoimento duração de 00:20:15, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 11 horas e 42 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 02 minutos e passagens 00:07:50 a 00:09:29, tendo o seu depoimento a duração de 00:14:52, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 12 horas e 22 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 37 minutos).

XXXVII. E não podemos ignorar que a D desde os 2 até aos seus 6 anos era deixada em casa de S, que já cumpriu quatro anos de pena de prisão efectiva por ter abusado sexualmente de menores, sozinha, pernoitando lá inclusivamente, tendo tal sido reconhecido pelo próprio, passagens 00:16:51 a 00:20:20, tendo o seu depoimento a duração de 00:12:17, com referência à acta de 23/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 10 horas e 07 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 20 minutos.

XXXVIII. O Tribunal a quo considerou que não existia uma criação fantasiosa por parte da menor, pois a mesma “utilizou palavras próprias da sua tenra idade”, tal como “pedia para mexer na pilinha” e “também tentava esfregar a piloca no meu pipi”, apesar de uma das testemunhas referir que esta não era a linguagem habitual da menor (passagens 00:10:48 a 00:11:09, tendo o seu depoimento a duração de 00:20:15, com referência à ata de 08/09/2022).

XXXIX. No entanto, a primeira vez que surge a afirmação de que a menor havia sido abusada pelo arguido, esta é feita pelo seu irmão de 8/9 anos ao técnico da CPCJ, que ficou bastante surpreendido com a afirmação do menor pois este disse que a irmã tinha sido “abusada sexualmente”, disse-o de rompante, sem vir a propósito da conversa que se estavam a ter.

XL. E o técnico da CPCJ, a testemunha L, afirmou que ficou espantado com a afirmação do menor, quer pelo teor da mesma quer pelo facto do menor ter usado uma “expressão de adulto”, desadequada à sua idade, passagens 00:02:15 a 00:005:41 e 00:15:04 a 00:17:07, tendo o seu  depoimento a duração de 00:25:58, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 10 horas e 48 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 14 minutos.

XLI. Curiosamente, neste caso, a douta sentença não considerou que se a criança utilizou palavras impróprias da sua tenra idade, provavelmente, estaria a mentir.

XLII. Resultou provado que o arguido se comportava como um pai para a menor (passagens 00:08:10 a 00:12:53, tendo o seu depoimento a duração de 00:52:51, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 9 horas e 53 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 46 minutos; passagens 00:02:50 a 00:04:15, tendo o seu depoimento a duração de 00:10:32, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 12 horas e 11 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 21 minutos).

XLIII. Resultou provado que a menor adorava estar com o arguido, chorava quando tinha de regressar a casa e ficou com saudades quando houve o afastamento (passagens 00:08:37 a 00:10:30 , tendo o seu depoimento a duração de 00:10:32, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 12 horas e 11 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 21 minutos; passagens 00:12:00 a 00:13:20, tendo o seu depoimento a duração de 00:20:15, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 11 horas e 42 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 02 minutos; e passagens 00:13:29 a 00:14:51, tendo o seu depoimento a duração de 00:14:52, com referência à acta de 08/09/2022 tendo as declarações sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, o seu início ocorreu pelas 12 horas e 22 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 37 minutos).

XLIV. Por tudo o supra exposto, não existem dúvidas de que o arguido não praticou os factos que se deram como provados de 5 a 17 e 27.

XLV. Com a alteração factualidade dada como provada e não provada nos termos expostos, terá o arguido de ser absolvido da prática do crime em que foi condenado, dado que, não se encontram verificados os necessários pressupostos quer ao nível dos elementos objectivos quer subjectivos.

XLVI. E a não se entender assim, terá de se admitir que existem bastantes dúvidas de que o arguido tenha praticado os factos que se deram como provados, pois existe um forte motivo para a criança estar a mentir e existem diversos indícios de que o esteja a fazer.

XLVII. Ao longo do processo, toda a prova testemunhal produzida pela ofendida é tida como verdade e toda a prova produzida pelo arguido é tida como falsa ou “teatral”.

XLVIII. Pela análise da decisão, conclui-se pela violação deste princípio, uma vez que existem motivos suficientes para aplicar o princípio do in dubio pro reo e absolver o arguido, porquanto, concluímos que o Tribunal a quo decidiu contra o arguido quando a matéria de prova não é suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, concluindo pela prova em que assenta a convicção.

XLIX.  Foram manifestamente violados os princípios da presunção de inocência, (n.º 2 do artigo 32º da CRP) e do in dubio pro reo.
L. Pelo que, o arguido terá de ser absolvido e, caso assim não se entenda, deverá concluir-se pela suspensão da pena de prisão aplicada.

LI. Além de que, a pena aplicada ao arguido é manifestamente elevada, pois, apesar das exigências de prevenção geral serem elevadas, face à natureza do bem jurídico em causa e aos efeitos nefastos que a sua violação acarreta.

LII. E o Tribunal a quo na douta sentença proferida reconhece que as “exigências de prevenção especial, revelam-se as mesmas medianas (…)”, pelo que,“(...) há que atender a que o arguido beneficia de integração social”, bem como “O arguido regista um antecedente criminal, relativo a um crime de ofensa à integridade física contra a mãe da ofendida nos presentes autos, o que, no entanto, não revela uma tendência criminosa persistente, uma vez que conta já com 48 anos” e que “Apesar (…) da prática do crime não ter aparentemente deixado sequelas físicas na criança”.

LIII. Além de que considera também “Por fim, é de notar que as necessidades de prevenção especial saem (ligeiramente) atenuadas pelo afastamento entre o arguido e a vítima (há cerca de um ano que não mais voltaram a ver-se, falar ou conviver)” mas, na verdade, desde 28/12/2016 que a criança não esteve mais com o arguido, portanto, volveram quase 6 anos desde o afastamento entre ambos.

LIV. A graduação da medida concreta da pena é efectuada em função da culpa do agente, e das exigências de prevenção no caso concreto (artigo 71.°, n.°1, do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra ele (n.º 2, da mesma disposição legal).

LV. E a pena apenas deve causar ao arguido o mal estritamente necessário à realização das exigências de prevenção especial, promovendo a sua socialização e reintegração na sociedade.

LVI. Pelo que, o arguido terá de ser absolvido e, caso assim não se entenda, deverá concluir-se pela suspensão da pena de prisão aplicada.
LVII.Tendo o Tribunal a quo na fixação da pena violado o disposto nos artigos 40.º n.º 1 e 71.º do Código Penal
Nestes termos,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, absolvendo-se o arguido da prática do ilícito criminal, ou, se assim não se entender, ser a condenação alterada nos termos referidos.

O Digno Magistrado do MP em 1ª instância veio responder, dizendo:

Não assiste qualquer razão ao arguido, pelos seguintes motivos:

A- Do erro de julgamento:
Alega o recorrente que o Tribunal incorreu em erro de julgamento no que respeita aos factos que se deram como provados de 5 a 17 e 27.
Decorre do artigo 412.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPP que, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;”
A propósito desta matéria, refere-se no sumário do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 159/11.5PAPTL.G1, em 23/03/2015, disponível em www.dgsi.pt que: “I. O recurso visa apenas uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente. II. Tem-se entendido que impor decisão diferente quanto á matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. III. Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está. (…)”
Regressando ao recurso interposto pelo arguido A, as razões da sua discordância e as provas que impunham decisão contrária à que foi doutamente tomada pelo tribunal, ou seja a sua absolvição, prendem-se com a prova documental constante nos autos, bem como as declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas F e L as quais, no entender do recorrente, contrariam a versão da ofendida.
Assim, no que respeita à prova documental, o recorrente chama à colação a “documentação clínica” a qual, na sua opinião, evidencia a ausência de vestígios físicos compatíveis com o alegado abuso sofrido pela ofendida: "não foram observadas lesões traumáticas na superfície corporal", "não foram observadas lesões traumáticas na região anal, tendo o esfíncter anal tónus mantido" e "não foram observadas lesões traumáticas recentes na região genital, tendo a examinanda uma membrana himenial anular, com solução de continuidade, não completa e não recente às 1h. A existência de uma solução de continuidade, não recente, nesta localização, é considerada normal e não relacionada com eventual agressão sexual".
Assim é. de facto não foram detectados vestígios físicos, no corpo da menor ofendida, das práticas libidinosas levadas a cabo pelo arguido.
Ora a constatação da ausência de leões físicas não implica que se deva dar como provado que o abuso sexual não tenha existido, e isto pelo simples facto de que não houve penetração do pénis na vagina e /ou no ânus da menor ofendida (cf. a matéria provada sob o n.º 9 “nas mesmas situações, o arguido, aproveitando-se do facto de estar sobre o corpo da menor, efectuava com o seu corpo movimentos oscilantes característicos da relação sexual, tentando inserir o seu pénis erecto na vagina e no ânus da menor, não logrando, porém, atingir os seus intentos, por motivos alheios à sua vontade, pois a menor sempre se queixou com dor.”.
Como bem se refere na douta sentença sob recurso, “em relação às conclusões do relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, de fls. 245 a 247, o Tribunal entende que, embora não tenham sido identificadas lesões físicas traumáticas na criança, a ausência de vestígios físicos não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, tal como assinalado no próprio relatório, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios.
Ademais, considerando o lapso temporal entre a ocorrência dos factos (2016/2017) e a realização do exame (2021), conjugados com as declarações da criança, que referiu que o arguido nunca logrou penetrá-la, nem na vagina, nem no ânus, apesar de ter tentado diversas vezes, tal relatório, por si só, não abalou a crença do Tribunal na ocorrência dos factos imputados.”
Outro aspecto a ter em conta que, segundo o ora recorrente, impunha a sua absolvição é o facto de, segundo o próprio, a menor confirmar os abusos mas, ao mesmo tempo, referir que “o abuso que sofreu foi a agressão sofrida pela mãe às mãos do arguido.”
Tal resultaria desde logo do teor do Relatório da Perícia Médico-Legal, Psicologia que a menor, quando lhe foi solicitado que descrevesse os abusos, referiu o episódio conflituoso entre o arguido e a mãe.
Salvo o devido respeito, é arriscado emitir tal conclusão.
Na verdade, o que resulta do depoimento da menor perante o perito é que ambas as situações, ou seja, os abusos sexuais que sofreu e as agressões físicas à sua mãe por si presenciadas, foram episódios extremamente traumáticos na sua curta vida e ambos envolveram o ora recorrente. É natural, portanto, que quando questionada, dada a sua tenra idade, a ofendida não seja capaz de definir qual o abuso mais grave ou o que a marcou mais.
Como bem se refere na douta sentença sob recurso, “a ofendida apresenta sintomatologia depressiva compatível com os relatos de exposição a maus tratos físicos e emocionais entre a sua mãe e o arguido. Não obstante, tal não exclui a ocorrência dos abusos de que foi alvo, antes significa, no entender do Tribunal, e o que não é de todo incomum nos crimes sexuais contra crianças, que a ofendida, com apenas 11 anos, ainda não dispõe de capacidade ou maturidade suficiente para compreender e processar a dimensão e gravidade dos atos dos quais foi alvo com apenas 6/7 anos (…)”.
Outra questão, relacionada estreitamente com a anterior e que, segundo o ora recorrente é relevante e impunha a sua absolvição é a que se prende com os motivos que o levaram a agredir a mãe da menor.
Segundo o próprio, resulta do Relatório de Perícia Psicológica, do depoimento prestado pela mãe da menor e da testemunha L, das declarações do próprio arguido prestadas em audiência, “o conflito que deu origem a esse processo em que o arguido foi condenado, foi motivado pelo facto do arguido querer proteger os menores de estarem ao cuidado de um cadastrado por abuso sexual de menores, contra a vontade da própria mãe dos menores”.
Nesta sequência, concluiu que “não faz sentido que o arguido denunciasse a situação da exposição destas crianças a uma pessoa condenada pela prática do crime em causa nos presentes autos quando, alegadamente, estivesse a fazer o mesmo, sabendo que essa sinalização viria a conduzir a exames físicos e psicológicos às crianças que o poderiam denunciar”.
E na tentativa de retirar credibilidade ao testemunho da menor ofendida, afirma o ora recorrente que agressão à mãe foi o motivo pelo qual a menor criou a realidade que imputa ao arguido, por forma a mantê-lo longe da sua mãe e de si e que após esse episódio a mesma “passou a ter uma atitude retaliatória e vingativa em relação ao arguido”.
No entender do Ministério Público não se fez, em julgamento, qualquer prova dos motivos ou da intenção que levaram o arguido a agredir fisicamente a mãe da menor, na presença desta e do irmão, também ele menor, até porque tais factos não faziam parte do objecto deste processo, nem estavam a ser julgados.
De todo o modo, sempre se dirá que se porventura tais factos tivessem sido dados como provados e se a supra referida ilação pudesse deles ser retirada, coisa que não aconteceu, ainda assim nunca seriam susceptíveis de impor decisão contrária àquela que foi tomada, face à força de toda a restante prova produzida em julgamento a qual, sem qualquer dúvida, apontou para a culpabilidade do ora recorrente.
Acresce que nada, mas mesmo nada, permite aquelas conclusões.
Em primeiro lugar porque não foi a menor ofendida, mas o seu irmão mais velho, também menor, quem no decurso de uma visita ao agregado efectuada por técnicos da CPCJ denunciou os abusos. Tal afasta, em absoluto, que a menor tenha como objectivo, ao descrever os abusos de que foi vítima, retaliar ou vingar-se pelas agressões sofridas pela mãe.
Por outro lado, a menor, na ocasião em que os abusos foram denunciados, não por si mas pelo irmão, já não tinha quaisquer contactos com o arguido, razão pela qual não necessitava de o manter afastado de si ou da mãe.
E, ao contrário do referido pelo recorrente, não se provou em julgamento que ele era “como um pai” para a menor e que ela “adorava” estar com ele.
Provou-se sim que durante um certo tempo o arguido e a esposa prestaram cuidados à menor e que, aproveitando-se da presença da mesma em sua casa, o arguido acabou por levar a cabo os abusos descritos na douta sentença.
Ora um pai, um verdadeiro Pai, não age deste modo.
Como se refere no sumário do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.º 288/09.1GBMTJ.L1-5, em 29/03/2011 “a ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem[al. b) do n.º3 do citado artigo412.º”.
Em conclusão, as provas e as declarações das testemunhas referidas pelo recorrente não impõem decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal.
Ou seja, analisada e avaliada em conjunto toda a prova produzida, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pela Recorrente não impõem decisão diversa, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada decidida pelo Tribunal a quo.
Em bom rigor, o que o recorrente pretende é pôr em causa a apreciação que o tribunal fez dos meios de prova, limitando-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal dos depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer, pretendendo substituir a convicção do tribunal pela sua.
Porém, a convicção pessoal do recorrente, por contraposição com a convicção do julgador, não pode prevalecer e é, em si mesma, juridicamente irrelevante sempre que a fundamentação daquela convicção é irrepreensível e dela perpassa – como se considera que sucede no caso vertente – uma criteriosa análise crítica da prova no âmbito e limite previstos pelo art.º 127º, do CPP.
É, pois, indubitável que, quanto à matéria de facto, a decisão recorrida não merece qualquer reparo e não padece de qualquer vício devendo, por isso mesmo, ser mantida na íntegra.
B– Da violação do princípio in dubio pro reo:
Nas suas doutas alegações, considera o recorrente que, a não se entender que as provas por si indicadas impõe contrária à da douta sentença, pelo menos deverá admitir-se que existem bastantes dúvidas de que o arguido tenha praticado os factos que se deram como provados, pois existe um forte motivo para a criança estar a mentir e existem motivos suficientes para aplicar o princípio do in dúbio pro reo e decretar a sua absolvição.
É, também aqui, por demais evidente a falta de razão do Recorrente.
A violação do princípio in dubio pro reo ocorre quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, decide “contra” o arguido.
Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstracta ou de uma mera hipótese sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas de uma dúvida assumida pelo próprio julgador.
Temos, pois, que a dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dúbio pro reo não é qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável.
Em primeiro lugar, deverá ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve todo o empenho no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trate de uma dúvida racional e argumentada.
Finalmente, deverá ser objectivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjecturas e suposições.
Não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas.
Ou seja, o princípio “in dubio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Haverá violação do princípio in dubio pro reo se for manifesto que o julgador, perante essa dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece (cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2010 e 15/07/2008, e acórdãos da Relação do Porto de 22/06/2011, 17/11/2010, 02/12/2009, 09/09/2009 e de 11/01/2006, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e resultando esse juízo do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2010, disponível em www.dgsi.pt).
Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o artigo 410.º, n.º 2 do CPP, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que deve decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto.
Ora, conforme já mencionado, no caso dos autos a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127.º do CPP, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo.
Acresce que, da simples leitura da fundamentação da Douta sentença recorrida, é patente que o Tribunal não teve dúvidas sobre os factos que deu como assentes.
Atenta a Douta fundamentação, verifica-se que a decisão tomada quanto à matéria de facto se baseou num juízo de certeza, não em qualquer juízo duvidoso, ou seja, em momento algum a decisão impugnada revela que o tribunal a quo tenha experimentado uma hesitação ou indecisão em relação a qualquer facto e respectiva autoria.
Pelo contrário, o tribunal recorrido afirma convictamente a matéria dada como provada, sendo a mesma linear e objectiva, cumprindo os pressupostos decorrentes do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal) e não acolhe espaço para dúvidas ou incertezas relevantes.
Razão pela qual não se verifica a violação do aludido princípio devendo o recurso, também aqui, improceder.
C– Da medida da pena e da suspensão da sua execução
A Douta sentença condenou o ora recorrente João para além do mais, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão efectiva pela prática de um crime de um crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171 º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea c), por referência ao artigo 69.º-B, n.º 2, todos do Código Penal.
Nas doutas alegações, o recorrente afirma que a pena que lhe foi aplicada é manifestamente elevada além de que deveria ficar suspensa na sua execução.

Estatui o artigo 71.º do Código Penal que a “a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, devendo considerar-se para o efeito todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o agente, designadamente:
-O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
- A intensidade do dolo;
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime”.
O recorrente foi condenado nos presentes autos na pena de 2 anos e 8 meses de prisão pela prática de um crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança.
Uma vez que o Ministério Público fez uso do mecanismo previsto no artigo 16.0/3 do Código de Processo Penal, a moldura penal aplicável é de um ano e quatro meses a cinco anos.
Na determinação da medida da pena, a Mm.ª Juiz teve em conta:
- As necessidades de prevenção geral elevadíssimas, “face à natureza do bem jurídico em causa e aos efeitos nefastos que a sua violação acarreta, sendo evidentes o alarme social e a repulsa comunitária causados por crimes de abuso sexual contra crianças que, por isso, exigem punição exemplar, pois só assim se reafirma na comunidade a validade e vigência da norma violada”;
- O grau muito elevado da conduta do arguido dado que não praticou um acto isolado, mas sim repetido em inúmeras ocasiões, aliado à tenra idade da vítima e o contexto em que os crimes foram praticados, designadamente o facto de nessas ocasiões a mesma se encontrar confiada “aos seus cuidados, na sua casa, sendo o arguido o único adulto presente (…)”;
- As exigências de prevenção especial, medianas, atenta, por um lado, a integração familiar e social do arguido e, por outro, o facto de que não ter contribuído para a descoberta da verdade material, não ter confessado e não ter demonstrado qualquer arrependimento;
- O antecedente criminal registado, relativo a um crime de ofensa à integridade física contra a mãe da ofendida nos presentes autos;
-O facto de o arguido não se encontrar inserido profissionalmente;
- As necessidades de prevenção especial ligeiramente atenuadas pelo afastamento entre o arguido e a vítima;
- O grau de culpa muito elevado, já que o arguido agiu com dolo intenso e directo com o objectivo de satisfazer os seus instintos libidinosos;
- A reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa que encerra uma culpa agravada, considerando o número de condutas e respectiva  ilicitude intensa;
- As consequências psicológicas que a conduta do arguido acarretou para a vítima a qual apresentou, com apenas 11 anos de idade, um quadro de sintomatologia depressiva com significado clínico, sendo que de futuro se ignoram as sequelas que esta actuação poderá vir a acarretar no desenvolvimento emocional, afectivo e sexual da mesma.
Face ao exposto, considerando as circunstâncias que impõem a aplicação da pena ao arguido pela prática do crime, considera-se justa, adequada, e até mesmo benevolente, a aplicação de uma pena de prisão de 2 anos e 8 meses, por ter resultado de uma adequada ponderação de todos os elementos que serviram de base a essa determinação.
Na determinação da medida concreta da pena o Tribunal fez uma criteriosa aplicação do artigo 71.º do Código Penal e a pena imposta ao arguido corresponde a um adequado equilíbrio das circunstâncias, da culpa, da ilicitude e das necessidades de prevenção geral e especial, pelo que não é, de modo algum, exagerada nem
desproporcionada.
Assim, a Douta sentença sob recurso não merece censura, por não ter violado qualquer disposição legal de carácter imperativo, designadamente o artigo 71.º do Código Penal, devendo ser mantida na íntegra e negado provimento ao presente recurso.
Também no que respeita à requerida suspensão da execução da pena deverá ser negado provimento ao recurso.
Na verdade, no caso sub judice, a pena de prisão aplicada ao ora recorrente não pode ser suspensa na sua execução sob pena de, caso assim se determinasse, não se poderem considerar satisfeitas nem as exigências de prevenção geral, nem as exigências de prevenção especial.
De facto, tal como se refere na douta sentença “os elementos ponderados a favor do arguido (inserção social e familiar) não permitem ultrapassar a gravidade e a forma como os factos foram cometidos, as suas consequências e a postura do arguido em audiência, negando veementemente os factos e não demonstrando qualquer arrependimento ou interiorização do desvalor da sua conduta, teatralizando o choro e a sua inocência.”

Os factos praticados pelo recorrente e dados como provados, no âmbito da criminalidade em apreço, estão numa gravidade de patamar superior, dada a sua natureza, a tenra idade da vítima, a sua desprotecção social e familiar, o modo como os abusos foram praticados e a sua reiteração, impondo-se uma tolerância zero quanto a este tipo de comportamento.
Em suma, afigura-se que pelas exigências de prevenção geral assinaladas e atenta a gravidade dos factos que praticou, a suspensão de execução da pena seria defraudar a tutela do bem jurídico que se impõe proteger.
A pena tem inerente um efeito dissuasor, deve transmitir à comunidade um sentimento de Justiça feita, isto é, de que o arguido não ficou impune, e que possa fazer pensar a quem tenha a ideia de atentar contar os bens jurídicos protegidos, não apenas uma ou duas vezes, mas muitas vezes, antes de se decidir se vale a pena tal ousadia.
Na perspectiva das vítimas e da sociedade em que estão inseridas, a simples ameaça com a pena de prisão, ainda com regime de prova, fará senti-los mais inseguros e com o sentimento de que ninguém se preocupa com os mesmos, mas apenas com quem prevarica, o que é de todo, de afastar.
Mas ainda que se pusesse de lado as exigências de prevenção geral, o que não se concede, afigura-se que não é possível fazer qualquer juízo de prognose favorável, privilegiando as necessidades de prevenção especial atenta a total ausência de arrependimento e manifesta falta de interiorização do desvalor da conduta e das suas consequências.
Nestes termos, nada nos permite supor que a simples ameaça com a pena de prisão seja suficiente para que sejam atingidas as finalidades da punição, também pelas exigências de prevenção especial, existindo sérias dúvidas de que o arguido desse modo se afastaria da criminalidade.
Tudo ponderado, a aplicação de uma pena de prisão efectiva revela-se como a única adequada para alcançar todas as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso, e por tudo o acima exposto, não se compagina com os presentes autos a ponderação e aplicação de outros institutos penais.
Assim sendo, e por todo o exposto, dúvidas não podem restar de que o Tribunal não violou qualquer norma legal tendo decidido bem, com elevada Justiça e de acordo com o princípio da livre convicção do julgador.
*

Já nesta Relação o Ex. Sr. Procurador Geral adjunto emitiu Parecer

Como transparece da fundamentação e do exame crítico da prova efectuado na sentença impugnada, para cujo teor, por economia processual, se remete, o Tribunal “ a quo” ponderou todos os elementos de prova produzidos em sede de audiência aquando da formação do sentido da sua convicção quanto à matéria de facto, onde sobressaem a conjugação das declarações para memória futura prestadas pela ofendida menor com os depoimentos / declarações ali enunciados, a prova pericial e documental, tendo sido desconsiderado todas as afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, analisando dialecticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmonizá-los entre si de acordo com os princípios da experiência comum, sem critérios pré-definidores de valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei diversamente o disponha, bem como a conjugação global deste acervo probatório com a lógica e regras da normalidade da vida.
Acompanhando bem de perto o teor da fundamentação da decisão em crise, diremos que o Tribunal “a quo” formou a respectiva convicção alicerçado, primordialmente, nos depoimentos das testemunhas produzidos em sede de julgamento, as quais corroboraram o teor das declarações para memória futura concretizada nos autos ao abrigo do disposto no artigo 271.º do Código de Processo Penal -, conjugando-os em ordem a ser atingida a verossimilhança da factualidade apurada, com o restante acervo probatório disponível, do qual ressalta, entre outros meios de prova com maior relevância no indispensável processo da sua análise crítica e dialéctica: documentação clínica; exames periciais e relatórios sociais.
De facto, da leitura atenta da sentença sindicada imediatamente se conclui que o Tribunal “a quo” ali plasmou o raciocínio subjacente à convicção por si formada.
Para tanto, relatou o modo como alcançou essa convicção, descreveu o processo racional seguido e objectivou a análise conjugada das diversas provas produzidas, indicando, ainda, o peso que determinados meios probatórios tiveram no processo decisório.
Fundamentação que, de resto e a nosso ver, se acha também muito bem alicerçada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se perfilando a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum.
Enfim, a matéria dada como provada (e não provada) é a que resulta da análise da prova produzida, temperada com os princípios de processo penal convergentes na área, com destaque – inevitável e desejável sob o ponto de vista da captação psicológica – para o da imediação e da livre apreciação da prova nos termos plasmados no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Assim sendo, conclui-se que os factos dados como provados são suficientes, correspondem ao resultado da discussão da causa e não enfermam de obscuridade ou contradição, não padecendo a decisão recorrida de qualquer erro na apreciação da prova.
Numa outra vertente, a nosso ver e da incursão feita no texto do acórdão proferido nos autos não se detecta qualquer erro endógeno de julgamento a que se reporta o disposto no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estando, a nosso ver, a decisão bem fundamentada e com  suficiente força lapidar estão explanadas as razões da condenação do arguido/recorrente, razões que aliás assentam em elementos de prova suficientes, mostrando-se o exame crítico da prova feito adequadamente.
Saliente-se, contudo, que o recurso da matéria fáctica dada como assente consubstanciando um duplo grau de jurisdição nesse âmbito não significa no nosso sistema recursivo que se proceda a um segundo julgamento com a nova valoração dos depoimentos prestados. O recurso visa a decisão em concreto e não o julgamento.
Deste modo, a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação só é possível em dois planos distintos. O primeiro tem por objectivo aferir da existência dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só conjugadamente com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos. Trata-se da verificação de erros de julgamento que se infiram do próprio texto da decisão, cujo conhecimento aliás é de conhecimento oficioso, independentemente de haver ou não recurso da matéria de facto.
Um segundo plano existe no qual é possível “atacar” os factos dados como provados, procurando convencer o Tribunal da Relação a modificar a matéria de facto, pressupondo naturalmente uma reapreciação dos elementos probatórios, fundamento que tem por base o tal erro na apreciação da prova, determinativo de erro judiciário. Em tal vertente, porém, a  lei exige na alínea b) do nº 3 do artigo 412º que sejam apresentadas “prova que imponha decisão diversa da recorrida”.
Ou seja, neste segundo plano, a reapreciação da prova está contida dentro dos limites impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, que mais não constitui do que um ónus de especificação que impende sobre o recorrente, sob pena de, não o fazendo, o respectivo recurso fica inviabilizado.
No caso vertente, não se recorta do texto decisório qualquer daqueles vícios, que aliás podem ser conhecidos oficiosamente, nem se mostra minimamente cumprido o procedimento exigido na norma do artigo 412.º do citado compêndio legal.
Acrescente-se que, e como é jurisprudência pacífica do S.T.J. (cfr. por todos o douto Sentença do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 02.03.2016 no Pº 81/12.4GCBNV.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), “(…)
Os vícios decisórios, como vícios da sentença, necessariamente teriam de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo certo que, da leitura efectuada do acórdão impugnado, não descortinamos a existência de qualquer vício, mormente nos moldes alvitrados pelos arguidos na sua motivação de recurso.
Assim, em nossa opinião, com a arguição dos vícios decisórios nos moldes assinalados, o Recorrente pretende, repetindo-nos, é pôr em causa a convicção do Tribunal através da sua própria interpretação da prova produzida, ensaiando impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
Como se vê do Ac. TRL de 18/07/2013, “III – (…) Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o artigo 412º n.º 3 do Código de Processo Penal (…)”.
Em decorrência do que vem de referir-se, e seguindo de perto a fundamentação alicerçada na sentença impugnada no que à subsunção jurídica da factualidade apurada diz respeito, diremos que se concorda, a esse propósito, com o sentido jurídico da decisão proferida, posto que também, a nosso ver, e sempre ressalvando melhor entendimento, apreciados os factos assentes naquela decisão, e correlacionando-os com a previsão normativa, se revelam, in caso, a presença de factos suficientemente aptos a suportar a condenação do arguido pela prática do tipo objectivo e subjectivo do crime em que o recorrente foi condenado.
Os factos assim dados como assentes, que de forma explícita constam da sentença impugnada, foram, a nosso ver, correctamente enquadrados pelo tribunal, sem atropelos das regras processuais, nomeadamente das regras que norteiam a produção de prova, sua apreciação e valoração pelo Tribunal.
Compreende-se, assim, que o recorrente, depois de, no decorrer da sua laboriosa minuta, lavrar naturais e tímidos protestos de inocência quanto ao respectivo envolvimento na verificação da factualidade apurada, acomete-se à tarefa mais difícil, de emprestar alguma conformação com a condenação do seu desagrado e pede, no essencial, a alteração da matéria de facto dada como assente e, finalmente, perspectivando até o recorrente, e pese embora a fundamentação vertida na sentença condenatória, a suspensão da execução da pena de prisão em que lhe foi imposta, à revelia dos pressupostos contidos no artigo 50.º do Código Penal.
É consabido que, e harmonia com o disposto no artigo 71.º do Código Penal, a determinação da pena concreta é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial). Por outro lado, deverá o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente as referidas no artigo 71º do Código Penal. (…)No caso dos autos, o recorrente praticou, em trato sucessivo e nos termos designados na decisão colocada em crise, factos de elevado grau de ilicitude, cometendo grave crime atentatório dos mais fundamentais bens jurídicos, designadamente a liberdade sexual/ autodeterminação sexual.
Assim sendo, as exigências de prevenção geral são elevadas, pois é fundamental a tutela dos bens jurídicos referidos e a satisfação das expectativas da comunidade no respeito das normas violadas.
O modo de execução dos crimes demonstra a baixeza de carácter dos respectivos agentes, os seus sentimentos vis e torpes, a sua frieza e premeditação e a falta de respeito e consideração pelo ser humano.
As consequências que advieram para a ofendida menor, devidamente enunciadas na douta decisão condenatória, assumem bastante gravidade, dado que a mesma sofreu ofensas à sua integridade psicológica e ao saudável desenvolvimento da sua personalidade, mormente na perspectiva da sua autodeterminação sexual, foi humilhada com a actuação do agente e, além do mais, ficou à mercê dos desejos concupiscentes do seu agressor.
O arguido actuou com dolo directo e muito intenso, pois quis fazer o que fez e do modo como o fez, sendo certo que os fins que o moveram foram a satisfação da sua lascívia e do seu desprezo pela vítima menor. Por outro lado, cada um dos agentes demonstrou frieza de ânimo, desprezo pelo próximo e insensibilidade face a uma vítima tão fragilizada, e de cuja idade bem conheciam.
Tudo isto foi ponderado na douta decisão recorrida, tendo sido ainda levada em conta a situação económica e pessoal de cada arguido e o facto de ter, ou não, antecedentes criminais.
Assim sendo, verifica-se que a pena aplicada se encontra dentro dos limites da culpa do arguido e se mostra adequada às necessidades de prevenção especial, não se afigurando excessiva face aos critérios definidos no artigo 71º do Código Penal, mas antes justa e acertada
Numa outra vertente, constata-se que o recorrente não aduziu um único argumento de ordem factual donde fosse possível demonstrar, sem grande esforço, que a pena unitária fixada nos autos foi severa demais e ao arrepio do estatuído nos artigos 71º e 72º do Código Penal.
Ora, considerando a factualidade fixada no douto acórdão impugnado, a ilicitude do facto, o anterior comportamento do R. / ausência de antecedentes criminais, a idade do arguido, a intensidade do dolo, as consequências nefastas do seu comportamento para a vítima, o escasso relevo, senão mesmo ausência, das circunstâncias favoráveis ao recorrente e tudo o mais que a lei manda atender na escolha da medida da pena - artigos 71º 72º do Código Penal - há que concluir que a pena de prisão efectiva imposta ao arguido / recorrente não foi nem demasiado severa nem demasiado branda. Foi justa.
Com efeito, apreciando os contornos dos factos apurados e coadunando-os com a circunstância do arguido não demonstrar qualquer arrependimento e até ser revelada absoluta indiferença ao sofrimento da vítima, entendemos que a sua motivação espelhada na própria conduta que levou a cabo assume também um carácter particularmente agravativo, posto que, para além da mencionada vontade de beliscar o saudável desenvolvimento da personalidade da vítima menor, mormente na perspectiva da autodeterminação sexual da vítima menor - resultado concretizado -, não conseguimos alcançar um único motivo razoável para pelo menos compreender o comportamento assumido pelo agressor.
Deste modo, e considerando todas as envolventes do comportamento do arguido, tendo em conta as exigências de reprovação e prevenção da prática de futuros crimes e os demais factores estabelecidos nos artigos 71º e 72º do Código Penal, somos de opinião que se justificam o quantum da pena de prisão fixada na douta sentença condenatório.
Neste enquadramento, os propósitos preventivos de estabilização contra fáctica das expectativas comunitárias na validade das normas violadas e no contexto em que os factos ocorreram, reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela dos bens jurídicos, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma, da confiança comunitária na prevalência do direito.
Nestas circunstâncias, e sem pretender deter sobre a problemática de medida da pena em sede de escolha de um dos critérios traçados pela doutrina e pela jurisprudência: aquele que toma como ponto de referência inicial a média entre o limite mínimo e máximo (Ac. da Relação do Porto de 7/03/84, in Col. Jur. ano IX, tomo 2, pág. 247 e Ac. do S.T.J. de 19/12/84, in BMJ 342, pág. 233) ou aquele que faz apelo a uma " interpretação rígida" dos princípios traçados pelo artigo 72º do Código Penal como único factor para determinação de medida da pena (Ac. da Rel. de Coimbra de 26/06/85, in Col. Jur., Ano X, tomo 3, pág. 125), a pena fixada nos autos foi justa, atendendo à necessidade de efectiva reacção criminal contra a prática dos ilícitos enunciados e comprovados, numa das suas possíveis formas, quer dirigida ao facto cometido pelo arguido apreciado objectivamente, quer à culpa do próprio agente na formação da sua personalidade.
Nestes termos, e salvo melhor entendimento, afigura-se-nos que a decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, de forma lógica e conforme às regras da experiência comum, sendo fruto de uma adequada e criteriosa apreciação da prova e, em face da qualificação jurídica nela operada, aplicada pena de prisão justa e adequada, não merecendo qualquer censura. 
Em sintonia com o que vem a expor-se, cumpre assinalar que a Digna Procuradora da República junto da 1ª instância respondeu aos recursos, sob referências Citius n.º 34420669, pugnando pela manutenção da decisão impugnada pelos fundamentos de facto e de direito insertos na resposta à motivação de recurso interposto, conforme melhor se alcança do teor da fundamentação inserta na mesma peça processual, para o qual, concordando com a mesma e por uma questão de economia processual, se remete.
Termos em que, e considerando encontrar-se amplamente fundamentado, com objectividade e rigor, a sentença condenatória que, fruto de cabal explicitação acerca do processo de formação da convicção do Tribunal mediante o inerente exame crítico das provas que a sustentou, nomeadamente o raciocínio lógico dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que merecem (ou não mereceram) os elementos de prova apreciados globalmente pelo Tribunal “a quo”, determinou a aplicação ao arguido /recorrente de uma pena de prisão efectiva, justa e adequada, fixada à luz da subsunção jurídica da factualidade nele apurada e das exigências de prevenção geral e especial do caso concreto.
Pelo exposto, subscrevendo na íntegra, com a devida vénia, os fundamentos exarados na douta sentença condenatória, pronunciamo-nos igualmente pela improcedência do recurso interposto e pela manutenção do decidido.
*

Cumprido o art. 417º, n.º, do C.P.P. não houve resposta ao Parecer.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3 al. c), do diploma citado.

1.–Fundamentação
A)-Delimitação do Objecto do Recurso

Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

No caso vertente, em face das conclusões do recurso  há que atentar nas seguintes questões :

- determinar se os factos 5 a 17 e 27 da sentença foram incorrectamente julgados provados (art. 412º nº 3)  levando esta alteração à absolvição do arguido.
- se assim não se entender, se deve considerar-se que existem dúvidas de que o arguido tenha praticado os factos e ser absolvido em nome do princípio “in dúbio pro reu”.
- se assim não se entender, se a pena de prisão deve ser suspensa na sua execução.

B)-Decisão Recorrida

Com vista à apreciação das questões supra enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida.
A, solteiro, desempregado, filho de B e de C, nascido em 04.08.1974, natural de Moçambique, residente na ..., imputando-lhe a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 3, alínea b), e 177.º, n.º 1, alíneas b) e c), e ainda pelo artigo 69.º-B, n.º 2, todos do Código Penal, conforme decorre da acusação (fls. 323vº a 326vº), cujos factos aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*

O arguido contestou, oferecendo merecimento aos autos. Arrolou quatro testemunhas para além das indicadas pelo Ministério Público na acusação. Esteve presente em audiência de julgamento, no âmbito da qual prestou declarações, negando os factos imputados na acusação. Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais.
*

A instância manteve-se regular e o processo válido, não tendo sido arguidas nulidades ou excepções, nem suscitadas outras questões que obstem à apreciação do mérito da causa.
Tudo visto e considerado. Cumpre decidir.
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IIFUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

a)-Matéria de facto provada
1. A menor D nascida em 03.01.2010, é filha de E e de F.
2. No decurso dos anos de 2016 e 2017, a menor, então com 6/7 anos, residia com a progenitora, com a avó materna, G, e com o irmão H, de 9 anos de idade, na ..., no Montijo.
3. A partir de data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2016, a menor D começou a permanecer aos cuidados do arguido, A, por ser um amigo da família há vários anos, e em virtude de sempre se ter disponibilizado, junto da progenitora daquela, para cuidar das crianças, em especial da menor, agindo como se fosse seu padrinho.
4. Nessas ocasiões, a menor ficava em casa do arguido, sita na ..., no Montijo, ora aos cuidados apenas deste, ora aos cuidados do mesmo e da esposa, I.
5. Com o passar do tempo, ainda no ano de 2016, os períodos em que a menor ficava aos cuidados do arguido começaram a aumentar de frequência e de duração, e este, apesar de bem saber que aquela tinha apenas 6 anos de idade e estar ciente de que se encontrava à sua guarda, cuidado e sob a sua assistência e protecção, aproveitou-se desse facto, e passou a procurar a menor para satisfazer os seus desejos sexuais.
6. Nos anos de 2016 e 2017, em datas não concretamente apuradas, quando a menor adormecia em casa do arguido, tanto no período nocturno, como durante a tarde, quando chegava da escola, este aproximava-se da mesma e apalpava o seu corpo com as mãos, em especial a vagina e as nádegas, algumas vezes por cima do vestuário, outras colocando as suas mãos por baixo da roupa, desse modo obtendo prazer sexual.
7. No quadro do descrito comportamento, em datas que não se conseguiram determinar, quando a menor, depois de tomar banho, se deslocava para o quarto para se vestir, o arguido abordava a mesma, encontrando-se apenas em roupa interior e pediu à menor que lhe desse beijinhos na pilinha, o que a mesma sempre recusou.
8. No mesmo quadro, em datas que não se lograram apurar, mas ocorridos nos anos de 2016 e 2017, o arguido, em algumas dessas situações em que a menor se encontrava despida no quarto, depois do banho, colocava-se sobre a mesma e beijava a vagina da menor.
9. Nas mesmas situações, o arguido, aproveitando-se do facto de estar sobre o corpo da menor, efectuava com o seu corpo movimentos oscilantes característicos da relação sexual, tentando inserir o seu pénis erecto na vagina e no ânus da menor, não logrando, porém, atingir os seus intentos, por motivos alheios à sua vontade, pois a menor sempre se queixou com dor.
10. No mesmo período temporal, em datas não concretamente apuradas, o arguido pediu à menor que lhe mexesse no pénis, umas vezes colocando o seu órgão sexual para fora das calças, outras vezes, dizendo à menor para agarrar o seu pénis erecto, colocando as mãos dela dentro das suas calças.
11. No mesmo período de tempo, i.e., no decurso dos anos de 2016 e 2017, em datas não concretamente apuradas, o arguido colocou em exibição no seu computador vídeos de cariz pornográfico obrigando a menor a visualizá-los.
12. Em todas essas situações, num número total aproximado de 13 (treze), ocorridas no decurso dos anos de 2016 e 2017, o arguido sempre pediu à menor para não contar os seus comportamentos à respectiva progenitora, nem à sua esposa, ao que a menor acedeu por ter bastante receio daquele.
13. Ao actuar da forma descrita sobre a menor D, agiu o arguido sempre com o propósito concretizado de obter prazer sexual e de satisfazer os seus instintos libidinosos, estando bem ciente de que aquela tinha à data, 6 (seis) e 7 (sete) anos de idade, e se encontrava à sua guarda e cuidados.
14. Agiu igualmente o arguido, abusando da sua superioridade física bem como da imaturidade e fragilidade da menor, tendo plena consciência da relação de amizade e proximidade que tinha com a menor e com a respectiva família.
15. Ao adoptar as demais condutas acima enunciadas, quis e conseguiu o arguido praticar sobre a menor actos de natureza e conteúdo sexual, com a intenção de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais e com a vontade de dominar a liberdade de autodeterminação sexual daquela, bem sabendo que a mesma, em razão da sua idade, ainda não possuía a capacidade e discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente.
16. Tinha também o arguido pleno conhecimento que as zonas do corpo da menor em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade de D, de que punha em causa o seu são desenvolvimento da consciência sexual e de que ofendia o respectivo sentimentos de pudor, intimidade e liberdade sexual, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, o que também visou e conseguiu, interrompendo o percurso normativo do desenvolvimento psicossexual e erotizando a menor antes de esta dispor de competências cognitivas, sociais e emocional para regularizar a sua sexualidade, bem como para evitar o contacto sexual com um adulto.
17. Actuou sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.
18. Quem efectuou a denúncia que deu origem aos presentes autos junto do Ministério Público, em 24.08.2017, foi a equipa da CPCJ do Montijo, que acompanhava a menor no âmbito da execução de uma medida de promoção e protecção.
19. Em 09.11.2021 D apresentava sintomatologia depressiva com significado clínico.
20. O arguido é electromecânico de elevadores, tendo concluído o ensino secundário na África do Sul.
21. À data dos factos encontrava-se desempregado, situação que se mantém actualmente.
22. Reside com a companheira, I, que trabalha como empregada de balcão, vivendo ambos dos seus rendimentos e com a ajuda dos pais do arguido.
23. Suporta, juntamente com a companheira, € 320,00 mensais com o pagamento da renda da casa.
24. Do relatório social do arguido, que aqui se dá por integralmente reproduzido, consta que A é um indivíduo com um processo de crescimento e socialização que se reconhece que possa ter sido negativamente condicionado pelos longos períodos de frequência de um sistema de ensino em regime de internato, com segregação de géneros, e pouca abertura no seio da família para a integração de temas relativos à sexualidade nas rotinas educativas.
25. No início da idade adulta, A iniciou o consumo de substâncias psicoactivas, tendo o mesmo comprometido a sua capacidade de organização pessoal e, consequentemente, enfrentado dificuldades na manutenção de uma actividade profissional.
26. No plano relacional, não obstante a estabilidade que a actual relação amorosa aparenta ter, o arguido evidenciou alguns comportamentos de instrumentalização das relações, tendo já recorrido à prostituição, bem como alguma desvalorização das convenções, no que aos relacionamentos afectivos diz respeito.
27. Nas entrevistas, e relativamente ao presente processo, A adoptou um discurso de descomprometimento moral, procurando desvalorizar os factos, tendo revelando uma ausência de empatia perante a ofendida e a mãe da mesma.
28. Do certificado do registo criminal do arguido consta uma condenação, no processo comum n.º 11/17.7PAMTJ, do Juízo Local Criminal do Montijo, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, por decisão transitada em julgado em 07.05.2019, pela prática, em 28.12.2016, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.
29. A mãe de D, F, foi ofendida em tal processo.

b)- Matéria de facto não provada
- Que nos anos de 2016 e 2017, em datas não concretamente apuradas, o arguido deu banho à menor esfregando o corpo todo da mesma com as suas mãos, obtendo, por essa via, prazer sexual.
c)-Motivação da decisão sobre a matéria de facto
Segundo o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.
Em linha com tal directriz, a convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica dos elementos probatórios produzidos em audiência de julgamento, bem como das declarações para memória futura da vítima, conjugados com a prova documental junta aos autos. Tais elementos foram apreciados de acordo com as regras da experiência e da livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, não descurando as excepções a que o Tribunal deve atender ao nível do direito probatório.
De forma sistematizada, os elementos de prova analisados e que serviram de base à presente decisão foram os seguintes:
A)-Documental
- Certidão do assento de nascimento, de fls. 204;
- Expediente da CPCJ do Montijo, de fls. 1 e 2vº;
- Cópia do expediente da CPCJ do Montijo, de fls. 72 a 128;
- Informação do Tribunal de Família e Menores do Barreiro, de fls. 20 a 205.
- Relatório Social (ref.ª n.º 33337026, de 10.08.2022).
B)-Declarações para memória para memória futura da menor, D, transcritas a fls. 299vº e seguintes (cfr. fls. 184/185).
C)-Pericial Processo:
- Relatório de perícia médico-legal de sexologia, de fls. 245 a 247;
- Relatório de perícia médico-legal de psicologia, fls. 272 a 276;
D)-Testemunhal
1. F, mãe da ofendida;
2. J, avó materna da ofendida;
3. L, técnico da CPCJ integrante da equipa que acompanhou o processo de promoção e protecção da ofendida e do irmão;
4. M, técnico da CPCJ que realizou uma visita domiciliária à casa em que a ofendida vivia aquando da ocorrência dos factos;
5. N, inspectora da Polícia Judiciária que realizou a inquirição da ofendida e da sua mãe aquando da fase de inquérito;
6. ..., companheira do arguido;
7. O, irmão do arguido;
8. P, amiga do arguido;
9. Q, amigo do arguido e da mãe da ofendida;
10. R, amigo da família da ofendida.

Passando agora para uma análise mais detalhada dos elementos probatórios:
O facto provado 1. resulta da certidão do assento de nascimento da ofendida, de fls. 204.
Os factos provados 2. a 4., decorrem das declarações do arguido, conjugadas com os depoimentos da mãe e da avó da ofendida, bem como da companheira do arguido.
No que respeita aos factos provados 5. a 13., o Tribunal atendeu, em particular, às declarações para memória futura da ofendida – essenciais, pois os factos não foram presenciados por mais ninguém – as quais se encontram gravadas e transcritas, tendo contribuído de forma crucial para a boa descoberta da verdade, porquanto se caracterizaram por coerentes, espontâneas e circunstanciadas.
A ofendida, apesar de ter revelado timidez e vergonha, não resumiu as suas declarações a respostas de “sim” ou “não”, tendo relatado uma série de episódios com bastante detalhe, inclusive negando a ocorrência de certas situações. Por exemplo, afirmou veemente que tomava banho sozinha ou que a “Xana”, companheira do arguido, lhe dava banho quando estava em casa, que este não a importunava durante os banhos, mas apenas quando ia para o quarto vestir-se, tendo mesmo dito “Eu quando ia para o quarto é que ele ia sempre…ou quando ele estava na sala ouvia eu a ir para o quarto e ia para lá”.
Diz a experiência que se tivesse existido qualquer criação fantasiosa por parte daquela, o mais natural, e fácil, seria alinhar na história eventualmente sugerida por outros e responder afirmativamente e com respostas curtas às questões colocadas quando tal oportunidade surgisse. Não foi isso que sucedeu, de facto, a ofendida recordou-se de situações específicas e detalhadas, e utilizou palavras próprias da sua tenra idade, dizendo, sobre o arguido. Afirmou que (o arguido) “Pedia para eu mexer na pilinha”, “Também tentava esfregar a piloca no meu pipi”, “uma vez eu estava a dormir e quando acordei o João estava na sala nu”.
Ao ser-lhe perguntado se o arguido a havia ameaçado, poderia apenas dizer que sim, mas respondeu “Não me lembro se ele me ameaçou. Eu só sei que tinha medo se eu contasse à minha mãe… eu tinha medo que o João fizesse alguma coisa e então nunca contei a ninguém”. Mais a diante, voltou a referir “eu tinha medo que o João fizesse alguma coisa… por exemplo, à minha mãe ou à minha avó”. A verdade é que, em Dezembro de 2016, o arguido agrediu a mãe da ofendida, tendo sido condenado por ofensa à integridade física, por sentença transitada em julgado, o que demonstra que o receio da ofendida não era assim tão infundado.
Nesta matéria, também se valorou o depoimento da testemunha N, inspectora da Polícia Judiciária – que procedeu à audição da menor ainda em 2018 – com extensa experiência na inquirição de crianças e que referiu no seu depoimento que, além da formação específica que detém ao nível da audição de crianças, ouve relatos das mesmas quase todos os dias, tendo desenvolvido, ao longo do tempo e naturalmente, uma maior capacidade para a identificação de discursos manipulados. Apesar de não se recordar de detalhes da inquirição da D, o depoimento da testemunha foi no sentido de confirmar o teor das suas conclusões aquando de tal audição, nas quais referiu que as declarações da ofendida lhe pareceram “bastante credíveis e gravosas” (Conclusão de 23.03.2028, fls. 26 a 30).
Também o relatório de perícia médico-legal de psicologia, fls. 272 a 276, foi tido em conta, no qual se conclui que a ofendida apresenta um desempenho intelectual compatível com o esperado para o grupo etário e que evidencia competências mnésicas e verbais que lhe permitem evocar e reproduzir experiências por si vividas. O Tribunal também valorou a conclusão, muito relevante, do relatório de que “Não se observam indicadores de susceptibilidade para inventar ou fantasiar a ocorrência de acontecimentos” no comportamento da ofendida.
Esta conclusão contraria uma das teses da defesa, designadamente, de que a ofendida teria inventado os abusos dos quais foi vítima como forma de afastar o arguido da mãe, tendo em conta o trauma que ainda guarda por ter assistido às agressões que o mesmo perpetrou contra aquela. Ora, não se nega que tal experiência foi um evento muito traumático na vida da ofendida, o que resulta, aliás, do próprio relatório de perícia psicológica, quando refere que a ofendida apresenta sintomatologia depressiva compatível com os relatos de exposição a maus tratos físicos e emocionais entre a sua mãe e o arguido. Não obstante, tal não exclui a ocorrência dos abusos de que foi alvo, antes significa, no entender do Tribunal, e o que não é de todo incomum nos crimes sexuais contra crianças, que a ofendida, com apenas 11 anos, ainda não dispõe de capacidade ou maturidade suficiente para compreender e processar a dimensão e gravidade dos actos dos quais foi alvo com apenas 6/7 anos, o que não significa que, no futuro, não venha a ser assolada por tal compreensão, e não venha a sofrer as dolorosas consequências que as situações de abuso sexual acarretam ao nível psicológico e no desenvolvimento da personalidade da criança.
Por outro lado, as declarações da mãe da ofendida apenas relevaram para a prova dos factos 2. a 4., no geral coincidentes com o relato do arguido, porquanto nada sabia, ou pelo menos alegou nada saber, acerca dos avanços de cariz sexual do mesmo para com a sua filha. O mesmo se podendo afirmar acerca do depoimento da avó materna da criança, ....
O arguido refutou integralmente o cometimento dos factos que lhe são imputados, apresentando-se surpreso com o processo e com o que lhe deu origem, tendo referido que chegou a cogitar que fosse uma forma de a progenitora da menor conseguir obter da parte deste benefícios financeiros. Tal argumento não colheu a credibilidade do Tribunal. Com efeito, conforme resulta da factualidade provada (facto provado 18.), quem efectuou a denúncia quanto à possível situação de abuso sexual foi a equipa da CPCJ do Montijo que acompanhava regularmente a família, no âmbito da execução de uma medida de promoção e proteção junto da mãe (conforme resulta do registo de visita domiciliária da CPCJ do Montijo, de 23.08.2017, fls. 2vº; e ainda da ficha de denúncia no processo n.º 24/17, junto da CPCJ do Montijo, fls. 74vº e 75vº) tendo sido o irmão da vítima, H, a referir a situação de abuso sexual pela primeira vez, no âmbito de uma visita domiciliária daquela equipa da CPCJ à casa em que as crianças viviam com a mãe e a avó.
Ademais, de acordo com as declarações do próprio arguido, este encontrava-se desempregado à data, sendo a sua subsistência garantida pelos proveitos obtidos através da actividade da sua companheira como funcionária de um café, necessitando da ajuda dos pais para fazer face às despesas (em linha com o referido no relatório social, ref.ª 33337026, de 10.08.2022). Tendo em conta os escassos rendimentos do agregado familiar, tornou-se difícil para o Tribunal crer que a mãe da ofendida lograsse obter vantagens económicas do arguido.
Além do mais, conforme já se referiu acima, o Tribunal não retirou do depoimento da mãe da ofendida qualquer sinal de que estivesse a par do que se passava com a filha quando esta era deixada aos cuidados do arguido. Aquela referiu inclusive que não sabia se ofendida teria inventado os abusos que sofreu como forma de protegê-la (à mãe) do arguido, tendo em conta as agressões de que foi alvo por parte daquele, que a menor presenciou, e que deram origem à condenação do mesmo em Tribunal.
Esta tese, por sua vez, também não surtiu no Tribunal o efeito de descredibilizar as declarações prestadas pela mãe da ofendida. De facto, e apesar de considerar-se uma mãe dedicada e afectuosa, é visível através da informação trazida aos autos (registos de visitas domiciliárias da CPCJ, depoimentos das testemunhas) que F adoptava em relação aos seus filhos uma conduta, no mínimo, negligente, e que a situação das crianças foi sinalizada mais do que uma vez pela CPCJ. No caso do irmão da ofendida a primeira sinalização ocorreu mesmo quando tinha poucos meses (fls. 108vº a 110). Conforme admitido pela própria, por diversas vezes deixava, desde tenra idade, tanto a ofendida, como o irmão, H, aos cuidados de terceiros, inclusivamente de S, que confirmou em sede de audiência já ter cumprido uma pena de prisão de 4 anos e meio de prisão efectiva pela prática de crime sexual contra uma criança, situação que era do conhecimento de F. A precaridade da situação em que tanto D como o irmão viviam à data dos factos foi ainda bastante perceptível no depoimento de Q, amigo da mãe da ofendida e do arguido, que afirmou ter, mais do que uma vez, pago refeições às crianças por reparar que estas teriam fome. Também a testemunha P afirmou ter oferecido um casaco e mais roupa à ofendida por a ter visto, mais do que uma vez, com frio.
Talvez por medo de poder ser afastada dos filhos em consequência do presente processo, talvez por efectivamente não saber, durante grande parte do tempo, o que se passava na vida dos filhos, a verdade é que pouco de relevante se pôde concluir com fiabilidade das declarações de F sobre os factos provados nos autos.
Em relação às conclusões do relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, de fls. 245 a 247, o Tribunal entende que, embora não tenham sido identificadas lesões físicas traumáticas na criança, a ausência de vestígios físicos não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, tal como assinalado no próprio relatório, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios. Ademais, considerando o lapso temporal entre a ocorrência dos factos (2016/2017) e a realização do exame (2021), conjugados com as declarações da criança, que referiu que o arguido nunca logrou penetrá-la, nem na vagina, nem no ânus, apesar de ter tentado diversas vezes, tal relatório, por si só, não abalou a crença do Tribunal na ocorrência dos factos imputados.
No que tange à prova de que o arguido agiu aproveitando-se da ingenuidade, imaturidade, falta de experiência da menor e do ascendente que tinha sobre a mesma, recorreu o Tribunal às regras de experiência comum que determinam que, por norma, uma criança de 6/7 anos não apresenta um grau de maturidade superior ao da sua idade, sendo que, por regra, não tem uma experiência de vida que lhe permita fazer determinadas escolhas de forma adequada. E, ainda, considerou relevante o facto de ter resultado demonstrando o quadro de comportamento carente da ofendida (o que se aferiu do depoimento da mãe da ofendida, bem como do Técnico da CPCJ L e da própria companheira do arguido, I) em muito devido à ausência da figura paterna, acreditando-se que esta circunstância terá sido aproveitada pelo arguido, que chegou a afirmar que era como um pai para a criança, para obter o silêncio daquela quantos aos seus avanços sexuais e, assim, alcançar os seus intentos.
No que se refere aos factos provados 14. a 17., relativos ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, não sendo possível a obtenção de prova directa do mesmo, por o dolo se tratar de um estado subjectivo resultante de um processo interno do agente, socorreu-se o Tribunal da apreciação, à luz das regras da experiência comum, dos demais factos dados como provados, tendo concluído que o arguido agiu sabendo que com a sua conduta não só ofendia o direito à autodeterminação sexual da ofendida, mas também a sua integridade física e psíquica, e ainda assim prosseguiu nos seus intentos. Ademais, não restaram dúvidas que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tanto que ao negar os factos afirmou que nunca seria capaz de adoptar tais condutas.
O facto provado 18., decorre do expediente da CPCJ do Montijo, de fls. 1 e 2vº.
O facto provado 19. resulta do relatório de perícia médico-legal de psicologia, de fls. 272 a 276.
Relativamente às condições económicas e sociais do arguido (factos provados 20. e 23.), o Tribunal atendeu às declarações do mesmo, que pareceram sérias e credíveis, às declarações da companheira I, bem como ao teor do relatório social (ref.ª n.º 33337026, de 10.08.2022).
Os factos provados 24. a 27. decorrem do teor do relatório social elaborado pela DGRSP (ref.ª n.º 33337026, de 10.08.2022).
Os antecedentes criminais do arguido, facto provado 28, resultam da análise do teor do seu certificado do registo criminal (ref.ª 33735219, de 30.09.2022).
O facto provado 29., decorre das declarações do arguido e do depoimento da mãe da ofendida.
No que se refere ao facto não provado, o Tribunal valorou as declarações do arguido e ao depoimento da sua companheira, que negaram que aquele daria banho com regularidade à ofendida, em conjugação com a ausência de descrição de tais episódios nas declarações para memória futura da última. Facto é que ofendida referiu sempre que tomava banho sozinha ou auxiliada pela companheira do arguido e aquele apenas a importunava quando já havia saído do banho e não durante os mesmos.

C)–Apreciação da questão em recurso.

A primeira questão a decidir – saber se os factos 5 a 17 e 29 da sentença foram incorrectamente provados.

Citando o AC RE de 09.01.2018 in www.dgsi.pt A impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP (é esta última norma que o recorrente invoca na sua impugnação).
O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” do acórdão pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre.
No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.
Na verdade, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).
O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.”
Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que, como já se adiantou, hão-de derivar do texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma.
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).
Como já se assinalou, não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento.

Nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Por sua vez, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994).

in casu, os factos provados são suficientes para suportar a decisão de condenação a que se chegou, nas suas diversas vertentes; visionando toda a matéria factual, não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão; também não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra  exposta.

O recorrente pretende sindicar a apreciação da prova produzida em 1.ª instância - 412º, nº3 do CPP.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, de 29 de Outubro de 2008, Processo 07P1016 e de 20 de Novembro de 2008, Processo 08P3269, in www.dgsi.pt., como todos os que venham a ser indicados sem outra indicação).

Entende o recorrente que os factos 5 a 17 e 27 constantes da sentença foram incorrectamente julgados.
- o arguido entende que as suas declarações foram desvalorizadas em face do depoimento da menor D
- que a sua postura de negação veemente dos factos foi erradamente entendida como teatralização do choro e da sua inocência.
- o tribunal não atentou na documentação clínica que evidenciava a ausência de vestígios físicos.
- a menor confirma os abusos. No entanto, muitas vezes refere que o abuso que sofreu foi a agressão sofrida pela mãe às mãos do arguido.
- a sentença não se refere aos motivos que deram origem à existência de um processo crime em que o arguido foi condenado por crime de ofensa à integridade física simples na pessoa da mãe da menor
- a agressão à mãe é o motivo pelo qual a menor criou uma realidade que imputa ao arguido
- o arguido nega os factos relacionados com a visualização, pela menor, de vídeos pornográficos, o que é corroborado por esta “eu jogava no computador do João”
- a primeira vez que surge a afirmação que a menor tinha sido abusada pelo arguido é feita pelo irmão daquela, com 8/9 anos, que afirmou que a irmã “tinha sido abusada sexualmente”

Ouvidas as declarações da menor, do arguido e  depoimentos das restantes testemunhas, o tribunal compreende e concorda com a motivação dada pelo Julgador quanto aos factos provados.

Relativamente a este tema e porque entendemos que o mesmo está tratado de forma clara e compreensível, o tribunal recorrerá ao Relação de Coimbra – Acórdão de 01.06.2008 in www.dgsi.pt.
Neste pode ler-se” O artigo 127.º do CPP. consagra o princípio da livre apreciação da prova, não se encontrando o julgador sujeito às regras rígidas da prova tarifada, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão”, confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º). (…)
Com a alteração do Código de Processo Penal operada pela Lei 48/07 de 29.8, mantém-se actual a jurisprudência supra aludida com a ressalva de que o Tribunal da Relação deve agora proceder ao exame das provas produzidas em audiência pela audição através da audição das passagens indicadas (art. 412º nº 6 do Código de Processo Penal), constantes, no caso dos autos, da gravação magnetofónica efectuada (art. 364º nº 1 do Código de Processo Penal).
Conforme escreve o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão...
Importa recorrer a regras de experiência para se aferir ou não da intenção criminosa e para retirar os elementos confirmativos da sua verificação da matéria fáctica dada como provada.
Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” No mesmo sentido vai a jurisprudência uniforme deste Tribunal da Relação: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”. Transcreve-se aqui parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.08, proc. 07P4198, em www.dgsi.pt], citando Cristina Líbano Monteiro, que explica cabalmente porque é que em casos como o dos autos não ocorre a violação do aludido princípio: “De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade («a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Como dissemos supra, a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º). (…)

Como se pode ler no AC Relação de Guimarães de 25.02.2019 in www.dgsi.pt “ “Sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não impede o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos . De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, dependendo os respectivos funcionamento e creditação da convicção do julgador, a qual, sendo pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável: a sua valoração suscita, num primeiro nível, a credibilidade que merecem ao julgador os meios de prova, que depende substancialmente da imediação e nela intervêm elementos não racionais explicáveis, e, num segundo nível, as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo que, agora, estas inferências já não dependem substancialmente da imediação, uma vez que se baseiam na correcção do raciocínio, que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.”

A motivação do julgador não se forma em função do número de pessoas cujo depoimento vai num sentido ou noutro.

As razões manifestadas pela Sr.ª Juiz estão justificadas, não havendo nenhum elemento objectivo, nem nenhuma regra da experiência comum que nos faça questionar a convicção do tribunal.
O  poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância (cfr. Germano Marques da Silva, in “Forum Iustitiae”, Ano I, Maio de 1999. O recurso de facto não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse.  Ao invés, os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento. (…)o recorrente é livre de fazer a sua própria avaliação dos factos. Não pode, porém, impor a sua versão dos factos como boa, substituindo-se ao julgador, como o pretende com o presente recurso, ao fazer da prova a sua apreciação própria. Por se mostrar coerente, no essencial, o depoimento das testemunhas de acusação, pela segurança demonstrada e por todos os detalhes relatados, o Tribunal conferiu credibilidade ao depoimento destes, conjugando os seus depoimentos com a prova pericial e documental junta aos autos, que não foi posta em crise, considerando provados os factos que constituem os elementos objectivos e subjectivos do crime de condução em estado de embriaguez. Por estes motivos foram considerados, a nosso ver bem, como provados tais factos. Quando está em causa a apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador do tribunal a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode censurá-la se ficar demonstrado que tal opção é de todo inadmissível face às regras de experiência comum, o que o recorrente não logrou demonstrar. São os juízes de 1.ª instância quem, de forma directa e imediata podem observar as indizíveis sensações que se apreendem das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da expressão dos seus rosto  das suas hesitações, sendo incontestável que, perante um mesmo facto, diversas testemunhas ditas presenciais, de boa-fé, reflectem observações e apreensões distintas. A congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas e com outros factos objectivamente comprováveis, em suma, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro, como ocorreu no presente caso, em que foi conferida maior credibilidade ao testemunho das testemunhas de acusação, que não revelaram qualquer propósito persecutório quanto ao arguido, prestando um depoimento isento e em consonância com a restante prova, o mesmo não se podendo dizer do depoimento das testemunhas de defesa, eivado de parcialidade face às relações de cariz pessoal que tinham para com o arguido. Assim, a convicção do julgador em 1ª instância tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por, nesse juízo, optar por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao julgador, este julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art.º 127.º, do Código de Processo Penal). Concluímos este ponto dizendo que, face à prova produzida, que está disponível para audição, face à clareza da sentença produzida, especialmente no que toca à motivação da matéria de facto dada como provada, há motivo bastante para concluir que, no presente caso, não houve qualquer apreciação menos correcta da prova produzida”

Note-se que, conforme vem escrito no AC Relação de Lisboa de 22.09.2020 in www.dgsi.pt  “O princípio in dubio pro reo deve ser entendido objectivamente, não se exigindo a dúvida subjectiva ou histórica, para que possa ocorrer a sua violação. – Nesta perspectiva – que é a nossa -, no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.”.

Ora, como temos vindo a escrever, a Mmª Juiz “a quo” não teve qualquer dúvida na apreciação dos factos que considerou provados e, confrontando este tribunal de recurso essa decisão, com a prova produzida, entendemos que lhe assiste inteira razão.
***

A segunda questão a conhecer prende-se com a possibilidade da suspensão da pena aplicada.

Porém, antes desta, entende o tribunal que há que abordar a questão da qualificação jurídica.

Como é referido na sentença “Ao arguido é imputada a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 3, alínea b), e 177.º, n.º 1, alíneas b) e c), e ainda pelo artigo 69.º-B, n.º 2, todos do Código Penal.
Dispõe o artigo 171.º, sob a epígrafe “Abuso sexual de crianças”, e no que ao caso concreto releva que:
“1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos. (…)
3 - Quem: (…)
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos; (…)
é punido com pena de prisão até três anos. (…)”.
Por seu turno o art.º 177.º n.º1 do Código Penal estipula que “1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.”.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a autodeterminação sexual dos menores de 14 anos, que não têm ainda a capacidade e o discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão no que concerne ao relacionamento sexual e, segundo o pensamento legislativo, podem ser gravemente prejudicados no seu saudável desenvolvimento fisiológico ou psíquico com a prática de condutas de natureza sexual (Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.º edição, pág. 648.).
O crime em causa é um crime de perigo abstracto, na medida em que não é necessário que o correcto desenvolvimento fisiológico ou psíquico do menor seja concretamente posto em perigo ou afectado para que a conduta integre o tipo objectivo de ilícito.
Quanto ao preenchimento do tipo objectivo, o cerne deste ilícito é constituído pelo acto sexual de relevo. Com relevância para o caso concreto, importa ter presente que, desde 2007, a lei penal distingue três categorias de actos sexuais com relevância penal: 1) a cópula, o coito anal, o coito oral e a introdução anal e vaginal de partes de corpo ou objectos; 2) os demais actos sexuais de relevo; 3) os meros contactos de natureza sexual.
A cópula e o coito oral/anal com relevância penal típica agravante consistem, respectivamente, na penetração da vagina e da boca/ânus pelo pénis.
Porém, estes últimos actos sexuais são legalmente equiparados à introdução vaginal ou anal de partes do corpo, nomeadamente à introdução da língua, nariz, mão e dedo da mão na vagina da criança abusada.
Importa convocar a distinção entre os demais actos sexuais de relevo e os meros contactos de natureza sexual.
Neste sentido, acto sexual de relevo deve ser entendido como todo aquele comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica.
Por outro lado, ao exigir que o acto sexual seja de relevo a lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes, mas que investigue do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido, ou seja, que influa objectivamente na autodeterminação sexual da vítima, considerando a idade desta. Igualmente se deve ter em consideração que se afere por tipicamente indiferente que a criança vítima seja ou não capaz para perceber o acto sexual de relevo em questão.
Embora o conceito de “acto sexual de relevo” tenha suscitado alguma polémica na doutrina e jurisprudência nacionais, o Tribunal entende que o mesmo tem de ter uma relação com o sexo (relação objectiva), tem de tratar-se de um comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais, embora possa não haver envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes, e em que haja da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais - esta intencionalidade ou motivação específica do agente não é, porém exigida por um sector minoritário da doutrina e jurisprudência (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12.04.2010, no âmbito do processo n.º 42/06.2TAMLG.G1, disponível em www.dgsi.pt).
O tipo subjectivo deste ilícito criminal pressupõe por parte do agente uma conduta dolosa, em qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14.º do Código Penal.
Outra das especificidades do conteúdo do ilícito em apreço reside no facto de o agente abusar da inexperiência da vítima.
O entendimento do que seja a inexperiência para efeitos do disposto neste preceito legal não é unânime nem na doutrina, nem na jurisprudência, havendo quem faça depender a existência de tal requisito do facto de a vítima não ter ainda tido experiências sexuais.
Certo é que “(…) Para apurar a experiência deve ter-se em conta o nível de maturidade, a condição psíquica e o grau educacional da vítima. (…)”.
Da leitura dos factos provados resulta que o arguido apalpou as nádegas e a vagina da ofendida por diversas vezes, que tentou praticar cópula com a ofendida em ocasiões distintas, tanto vaginal, como anal, não obtendo sucesso por motivos alheios à sua vontade, que beijou a vagina da ofendida em mais do que uma ocasião, tendo ainda pedido à ofendida que praticasse no seu corpo actos (que agarrasse e beijasse o seu pénis) que aquela recusou, sendo certo que quando ocorreram tais episódios a menor apenas tinha 6/7 anos de idade.
Desta forma, resulta inequívoco que a conduta do arguido – descrita nos factos provados 6. a 10.– se subsume na previsão normativa do artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na medida em que praticou actos sexuais de relevo em menor.
Por outro lado, também resultou provado que, em mais do que uma ocasião, no decurso dos anos de 2016 e 2017, o arguido colocou em exibição no seu computador, vídeos de cariz pornográfico, obrigando a menor a visualizá-los, pelo que também se resulta preenchida a previsão do artigo 171.º, n.º 3, alínea b), do Código Penal.
Tendo o arguido agido livre, voluntária e conscientemente, é lícito aferir-se que representou e quis os factos em apreço, os quais preenchem os iter criminis em análise, encontrando-se também preenchido o elemento subjectivo do tipo de crime.
Ademais, tratando-se a vítima particularmente vulnerável, em razão da sua tenra idade à data da prática dos factos (6/7 anos), as penas aplicáveis aos crimes cometidos pelo arguido são agravadas, em um terço dos seus limites máximos e mínimos, por força do disposto no artigo 177.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.
Por outro lado, o Tribunal considerou não verificada a agravação prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 177.º, do Código Penal, por não se verificar no caso concreto a existência de uma “relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho” entre o arguido e a ofendida. “

Desta parte da decisão concordamos com a qualificação jurídica relativamente aos actos sexuais de relevo e que sustentam facticamente a prática do crime de abuso sexual de criança  p. e p. pelo art. 171º nº 1 – cfr. factos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 supra.

O facto constante do ponto 11 constitui igualmente um crime de abuso sexual de menores, mas neste caso, p. e p. pelo art. 171º nº 3 al. b) (actuar sobre menor por meio de objecto pornográfico).
Certamente por lapso referiu-se o tribunal “a quo” ao abuso da inexperiência dizendo “Outra das especificidades do conteúdo do ilícito em apreço reside no facto de o agente abusar da inexperiência da vítima.  O entendimento do que seja a inexperiência para efeitos do disposto neste preceito legal não é unânime nem na doutrina, nem na jurisprudência, havendo quem faça depender a existência de tal requisito do facto de a vítima não ter ainda tido experiências sexuais.
Certo é que “(…) Para apurar a experiência deve ter-se em conta o nível de maturidade, a condição psíquica e o grau educacional da vítima. (…)”.

Esta especificidade só existe relativamente ao crime p. e p. no art. 173º do CP, ou seja, actos sexuais com adolescentes (entre 14 e 16 anos), o que não é seguramente o caso em apreço.

Considerou o tribunal que Ademais, tratando-se a vítima particularmente vulnerável, em razão da sua tenra idade à data da prática dos factos (6/7 anos), as penas aplicáveis aos crimes cometidos pelo arguido são agravadas, em um terço dos seus limites máximos e mínimos, por força do disposto no artigo 177.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.
Por outro lado, o Tribunal considerou não verificada a agravação prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 177.º, do Código Penal, por não se verificar no caso concreto a existência de uma “relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho” entre o arguido e a ofendida. “

Ora, concordando  com o tribunal ao ter afastado a agravação da al. b) do nº 1 do art. 177º do CP pois não existe, de facto, qualquer relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho” entre o arguido e a ofendida, discordamos da agravação que foi efectuada ao abrigo do disposto na al. c) do nº 1 do art. 177º - vítima particularmente vulnerável, em razão da sua tenra idade.

Esta circunstância – a idade da menor e a consequente vulnerabilidade – já consta do tipo legal de crime de abuso sexual de criança (menor de 14 anos), pelo que não pode ser usada, de novo, para agravar o tipo legal que já a pressupunha.

Ver Acórdão o TRP de 26.09.2018 ( que se refere a outra agravante, mas tem o mesmo resultado)” Fazendo parte do tipo de abuso sexual de menores previsto no artigo 172.º C Penal que o menor esteja numa relação de dependência para com o agente, por lhe ter sido confiado para educação ou assistência - o que no caso ocorre por ser o agente o progenitor da menor, com as responsabilidades previstas nos artigos 1878.º, 1901.º e 1911.º C Civil - essa mesma relação familiar, não pode agravar o tipo, sob pena de violação do princípio da dupla valoração.

Acórdão do STJ de 24.10.2006 “- O princípio da proibição de dupla valoração impede que a mesma circunstância agravativa seja valorada por duas vezes, num primeiro momento fazendo-a funcionar como agravante modificativa do tipo de crime, com alteração da moldura da pena abstracta, num segundo momento fazendo-a operar como agravante de natureza geral, para justificar que a pena concreta seja mais elevada do que seria sem ela.”

Deste modo, temos que concluir que as penas não são agravadas pois não se verifica nenhuma das agravantes que vinha imputada ao arguido – art. 177º nº 1 al. b) e al. c)

Diz-se ainda na sentença que. “Da matéria de facto provada, conclui-se que houve uma pluralidade sucessiva de crimes contra a autodeterminação sexual da criança, praticados ao longo de um período de tempo de cerca de um ano — entre 2016/2017 (factos provados 5. a 13.). (…) Para além disso, deveria haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados, são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.
No caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.11.2012, no âmbito do processo n.º 862/11.6TAPFR.S1, disponível em www.dgsi.pt).
No entanto, é importante notar que alguma jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo em sentido negativo quanto à questão atinente à unificação num só crime de trato sucessivo de uma pluralidade de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, cometidos durante determinado lapso de tempo contra a mesma vítima.
Conforme refere a Juíza Conselheira Helena Moniz (in “Crime de trato sucessivo” (?), Julgar Online, Abril de 2018, disponível em www.julgar.pt), a verdade é que há (ou pode haver) alguma dificuldade em determinar de forma exacta todos os factos que estiveram na base do abuso sexual, sendo muitas vezes difícil provar se os actos foram praticados todas as semanas, ou todos os dias, ou todos os meses, e ainda provar o início e o fim da prática de tais actos.
Apesar de tal dificuldade, em linha com alguns acórdãos mais recentes, na sua decisão o Tribunal não se pode bastar com imputações genéricas, devendo, tanto quanto possível, especificar a conduta típica e ilícita praticada, com indicação do tempo, lugar e modo da prática do acto, sendo que imputações genéricas e imprecisas constituem uma possível lesão do contraditório e do efectivo exercício do direito de defesa. Assim sendo, ter-se-á que provar tantos actos quantos for possível, e apenas punir por estes; com a certeza de que não se tratando de um crime de múltiplos actos, ou de um crime continuado, não vale a regra de que o caso julgado abrange todos os actos realizados no período tempo do “crime de trato sucessivo” julgado e pelo qual foi condenado. Assim sendo, o agente deverá ser punido por tantos crimes quantos os actos levados a cabo e provados, em concurso efectivo de crimes.
Neste sentido, deverá sempre tentar apurar-se, tanto quanto possível, quantos actos foram efectivamente realizados. De outro modo, estando a investigação dispensada de determinar (o mais possível) o número de actos singulares que foram praticados, abrindo mão do necessário rigor na investigação, impede-se a valoração jurídico-penal de cada facto relevante praticado pelo arguido.
Porém, se da matéria de facto provada resultar, por exemplo, que o abuso ocorreu por diversas vezes e em número concretamente não apurado então deverá o agente, em atenção ao princípio in dubio pro reo, ser apenas punido por um crime.
No caso concreto, os crimes ocorreram entre 2016 e 2017 e, embora tenha resultado provada a prática dos crimes, não foi possível aferir o número exacto de abusos sofridos pela vítima durante o período indicado, sendo apenas possível aferir de forma aproximada (cerca de 13 vezes), nem as datas exactas em que os mesmos ocorreram.
Ora, tendo em conta a factualidade provada e o ora exposto, o Tribunal, embora considerando e mesmo concordando com os argumentos da jurisprudência mais recente do STJ (vd. Acórdão de 27.11.2019, no âmbito do processo n.º 784/18.0JAPRT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt) entende, em linha com o determinado na acusação do Ministério Público, que no caso concreto estamos perante um crime de trato sucessivo de abuso sexual, devendo a punição fazer-se pelo ilícito mais grave cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais. “.

Não podemos concordar com a posição tomada pelo tribunal “ a quo”.

Neste sentido decidiu o Ac STJ de 29.11.2012 (rel. Santos Carvalho) relativamente a crime de abuso sexual de criança, a que, porém, foi aposto o seminal voto de vencido do senhor conselheiro Manuel Braz, que levou ao entendimento actualmente maioritário no STJ no sentido de “a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupor[or] reiteração, isto é, não se pretender com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo” e que “ A eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP realizada pela Lei 40/2010, de 03.09, que exclui expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais” – nestes termos o Ac STJ de 14.01.2016, rel. Manuel Augusto de Matos e no mesmo sentido, entre outros, Ac. STJ de 22.04.2015, rel. Sousa Fonte, Ac STJ de 10.11.2016, rel. Manuel Braz, Ac STJ de 6.04.2016, rel. Santos Cabral, Ac STJ de 20.04.2016, rel. Helena Moniz, Ac STJ de 13.07.2017, rel. Rosa Tching, Ac STJ de 3.11.2016, rel. Francisco Caetano e, nas Relações, o Ac. do TRC de 09-04-2014, rel. Alcina da Costa Ribeiro e Ac TRE de 07.02.2017, rel. Ana Brito.”

Na verdade, o tribunal “a quo”, não se revendo na figura do “trato sucessivo” acaba por aplicá-la, não só porque assim consta da acusação, mas também porque, de facto, é difícil estabelecer o número exacto de abusos sofridos pela vítima, só se tendo conseguido fazê-lo de forma aproximada.

Ora, entendendo-se que, não obstante a facilidade da acusação e da prova, a “construção” do trato sucessivo  não está de acordo com as exigências do Direito penal, há que tirar daí as devidas consequências.
De acordo com a prova produzida é possível estabelecer, com rigor, quantas vezes ocorreram os factos?
Na verdade, não se consegue saber como se chegou a um número aproximado de 13.
Da prova produzida e que consta assente supra, podemos dizer, sem margem para dúvida, que os factos que integram a prática de um crime de abuso sexual de criança p.e  p. pelo nº 1 do art. 171º ocorreram, pelo menos, 6 vezes. 
Assim:
-Nos anos de 2016 e 2017, em datas não concretamente apuradas, quando a menor adormecia em casa do arguido, tanto no período nocturno, como durante a tarde, quando chegava da escola, este aproximava-se da mesma e apalpava o seu corpo com as mãos, em especial a vagina e as nádegas, algumas vezes por cima do vestuário, outras colocando as suas mãos por baixo da roupa, desse modo obtendo prazer sexual – podemos considerar que, no mínimo, ocorreu por 2 vezes..
No mesmo quadro, em datas que não se lograram apurar, mas ocorridos nos anos de 2016 e 2017, o arguido, em algumas dessas situações em que a menor se encontrava despida no quarto, depois do banho, colocava-se sobre a mesma e beijava a vagina da menor - . (terá ocorrido, pelo menos, 1 vez)
 Nas mesmas situações, o arguido, aproveitando-se do facto de estar sobre o corpo da menor, efectuava com o seu corpo movimentos oscilantes característicos da relação sexual, tentando inserir o seu pénis erecto na vagina e no ânus da menor, não logrando, porém, atingir os seus intentos, por motivos alheios à sua vontade, pois a menor sempre se queixou com dor. (terá ocorrido, pelo menos, 1 vez)
No mesmo período temporal, em datas não concretamente apuradas, o arguido pediu à menor que lhe mexesse no pénis, umas vezes colocando o seu órgão sexual para fora das calças, outras vezes, dizendo à menor para agarrar o seu pénis erecto, colocando as mãos dela dentro das suas calças. (terá ocorrido, pelo menos, 2 vezes)

No que toca ao crime de abuso sexual de crianças p.e  p. pelo art. 171º nº 3 do CP terá ocorrido, pelo menos, 1 vez.
No mesmo período de tempo, i.e. no decurso dos anos de 2016 e 2017, em datas não concretamente apuradas, o arguido colocou em exibição no seu computador vídeos de cariz pornográfico obrigando a menor a visualizá-los.

Aqui chegados poder-se-ia pensar que a solução seria fazer regressar o processo à 1ª instância com vista a determinar de forma mais segura o número de vezes que aqueles factos ocorreram.

Não o vamos fazer.

Em primeiro lugar, o tribunal ouviu a prova produzida, não descortinando que outras diligências seria possível efectuar com vista a essa determinação.
Juiz de Direito:
Repara, eu estou-te a pedir um número. Mas agora vou-te fazer a pergunta de outra maneira: foram mais de dez vezes?
Ofendida:
Acho que sim.
Juiz de Direito:
E mais de vinte?
Ofendida:
Acho que isso já não
Ofendida:
Aí umas treze, catorze vezes.”
Além disso, este processo foi acusado com a utilização, pelo MP, do disposto no art. 16º nº 3 do CPP, ou seja, o limite máximo da pena a aplicar não ultrapassaria os 5 anos.
Pese embora não ser caso de anulação total do julgamento, mas apenas parcial para determinação do número exacto de crimes, o tribunal estaria sempre vinculado ao princípio da proibição da reformatio in pejus, uma vez que não houve recurso por parte do MP.
Veja-se Acórdão do STJ de 14.09.2011 in www.dgsi.pt “ I - O princípio da proibição da reformatio in pejus prescreve que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo MP, no interesse exclusivo do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes. II - Enquanto circunscrito ao direito ao recurso interposto pelo arguido no seu exclusivo interesse ou pelo MP no mesmo sentido, o princípio referido, na sua modalidade directa, é fortemente limitativo do poder decisório do tribunal; porém, concebido, embora com controvérsia, como um princípio geral de direito de processo penal, enquanto direito de defesa, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, o princípio, em nome do direito a um processo justo, actua com maior latitude, e, assim, no caso de anulação ou reenvio do processo para novo julgamento, em 1.ª instância, o princípio não se esvai – é aplicada a reformatio in pejus indirecta –, limitando, igualmente, o poder decisório do tribunal inferior, que não pode em tal caso agravar a situação do arguido. III - O tribunal inferior, diz-se, não há-de ter poderes mais amplos do que o tribunal superior; a proibição de reformatio se limita o tribunal superior, por maioria de razão há-de limitar o inferior, atenta a cadeia hierárquica que se estabelece entre ambos e a íntima conexão entre o decidido nas instâncias, dada a decorrência lógica entre a solução a alcançar. IV -Aliás, sempre que o titular da acção penal não manifesta discordância, não se concebe que o Estado, através dos seus órgãos de administração da justiça, sobrepondo-se ao arguido, lhe possa impor uma reacção penal mais severa do que a cominada do antecedente.”

Tornar-se-ia uma inutilidade a produção de mais prova.

Em conclusão, ao invés da prática de um crime de abuso sexual de crianças com trato sucessivo,  entendemos que o arguido praticou, pelo menos, 6 crimes de abuso sexual de criança. p. e p. pelo artigo 171º nº 1 al a) do CP e 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171º nº 3 do CP.

Como se pode ler no AC Relação de Évora de 14.06.2018 in www.dgsi.pt  “Permanece válida a jurisprudência fixada no AFJ 4/95, segundo a qual «O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus.».

Tal implicaria que, aplicando as penas parcelares e efectuado o cúmulo jurídico certamente a pena única seria superior à aplicada pelo Tribunal “a quo”
           
Porém, como já referimos, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus  (artigo 409.º do CPP 1 - Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes).o tribunal não pode ir além da pena fixada em 2 anos e 8 meses de prisão.

Deste modo, alterar, no caso, a qualificação jurídica do crime é completamente inócua, pelo que não o faremos, atentos os resultados práticos.
*

A última questão levantada pelo arguido prende-se com a suspensão da execução da pena de prisão.

A este propósito diz-se na sentença em crise: “ Conclui-se que não devem ser tidas em conta as considerações de culpa, mas antes o juízo de prognose sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são sérias e justificadas.  No caso sub judice, atendendo à factualidade provada o Tribunal entende que a execução da pena de prisão não pode ser suspensa, em virtude de não se poderem considerar satisfeitas nem as exigências de prevenção geral, nem as exigências de prevenção especial.
De facto, os elementos ponderados a favor do arguido (inserção social e familiar) não permitem ultrapassar a gravidade e a forma como os factos foram cometidos, as suas consequências e a postura do arguido em audiência, negando veementemente os factos e não demonstrando qualquer arrependimento ou interiorização do desvalor da sua conduta, teatralizando o choro e a sua inocência.
Assim, o Tribunal entende que, considerando que a própria personalidade do arguido e o meio familiar e socioeconómico em que se insere, uma pena não restritiva da liberdade não se mostra suficiente para conter o seu comportamento, não permitindo ao Tribunal formular um juízo de prognose favorável e de que a mera censura decorrente da suspensão da pena, mesmo que associada a outras imposições penais, permita considerar a possibilidade de revitalização da sua conduta.
Tudo ponderado, a aplicação de uma pena de prisão efectiva revela-se como a única adequada para alcançar todas as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso, e por tudo o acima exposto, não se compagina com os presentes autos a ponderação e aplicação de outros institutos penais. “

Estamos completamente de acordo. As exigências elevadíssimas em termos de prevenção geral e elevadas quanto à prevenção especial não permitem equacionar a suspensão da execução da pena.

Como mencionam Leal Henriques e Simas Santos,[1] Na base da decisão de suspensão de execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao réu (...), ou seja, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose é negativa.

Com efeito, a ameaça da prisão frequentemente contém em si mesma as virtualidades para assegurar a realização das finalidades da punição, nomeadamente a finalidade de prevenção especial e a socialização, sem sujeição ao regime, sempre estigmatizante e muitas vezes de êxito problemático, da prisão.
   
Esta solução constitui uma decorrência do princípio da humanidade nas penas no seio de uma política criminal orientada para o Estado de Direito. Na medida em que o legislador, em obediência a estes princípios, optou nítida e preferencialmente por uma censura criminal que não implique a privação da liberdade, foi ao ponto de impor a regra de que a pena de prisão aplicada deverá, em certas circunstâncias, ser suspensa, se necessário acompanhada com deveres de regras de conduta, desde que esta sanção assegure de forma eficaz e suficiente as finalidades preventivas da punição.

Posto isto, importa averiguar a possibilidade de realizar essa prognose favorável no caso concreto.

Em primeiro lugar, a pena aplicada foi inferior a cinco anos de prisão pelo que este primeiro pressuposto objectivo encontra-se preenchido.

Porém, a postura do arguido, a negação total dos factos que se vieram a comprovar, “o discurso de descomprometimento moral, procurando desvalorizar os factos, tendo revelando uma ausência de empatia perante a ofendida e a mãe da mesma” não nos permitem efectuar um juízo de prognose favorável, pelo que a pena será efectiva.

Por decorrência obrigatória desta condenação é aplicada a pena acessória p. e p.  no art. 69º-B nº 2 do CP que o tribunal “a quo” fixou em 5 anos e não foi colocada em causa.

Desta forma, temos que concluir que o recurso interposto pelo arguido não merece provimento e, ainda que por motivos diferentes – mantém-se a decisão recorrida.

Tal como já escrevemos supra, como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal).

Da conjugação das normas constantes dos artigos 368.º e 369.º, por remissão do artigo 424.º, n.º 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.

Isto para dizer que, não obstante o tribunal ter detectado, ab initio uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia, de forma deliberada, decidiu deixar tal questão para momento posterior uma vez que o suprimento da nulidade só faria (substancialmente) sentido no caso de haver condenação do arguido e, por outro lado, podia conhecer-se de todas as questões levantadas nos autos ( tal como se fez) e, se fosse caso disso, determinar, de seguida, o suprimento da nulidade, pois tem autonomia relativamente à restante matéria.

Verifica-se que na sentença em causa não foi arbitrada indemnização à vítima nos termos do disposto no  art. 82.º-A, do CPP e número 2 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04.09.

Nos termos do art. 82.º-A, n.º 1, do CPP, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, de acordo com os arts. 72.º e 77.º, do mesmo diploma legal, pode o julgador, arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
Não foi formulado pedido de indemnização cível pela ofendida.
Em audiência de julgamento o Ministério Público não requereu que fosse arbitrada indemnização à vítima pelos danos sofridos e também não foi oficiosamente atribuída pelo tribunal.
O art. 82.º-A, do CPP, prevê a reparação da vítima em casos especiais, nos seguintes termos :«1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham 2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório. 3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização».

No tribunais da Relação tem sido decidido no sentido de que, em caso de condenação por crime de violência doméstica ( mas que se aplica igualmente a este caso, havendo vítima especialmente vulnerável) há sempre que arbitrar uma indemnização à vítima, ou porque ela a pediu ou, não o tendo feito, não se opôs expressamente ao arbitramento e porque tal deriva de imposição legal, a sua falta implica nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP (Ac. do TRC de 28/05/2014- Proc. 245/13.3PBFIG.C1; Ac. de 02/07/2014 – Proc. 232/12.9GEACB.C1 e Ac. do TRC de 20/05/2015 – Proc. 1074/14.0PBVIS.C1, in www.dgsi.pt/jtrc; Ac. do TRE de 19/05/2015 e Ac. do TRP de 16/10/2013, in www.pgdlisboa.pt, Ac. do TRL de 16/9/2015 – Proc. 67/14.4S2LSB.L1.3, in www.dgsi.pt/jtrl e Ac. do TRG de 7/3/2016 – Proc. 697/14.4GAVNF.G1, in www.dgsi.pt/jtrg).
Ver AC STJ de 07.10.2021 in www.dgsi.pt “ Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 2, da Lei 130/2015, de 4 de Setembro.
Da disposição normativa conjugada do art. 67º-A nº 1 al. b) e nº 3, e art. 1º nº 1 als. l) e j), todos do Código de Processo Penal, resulta, em face da matéria fáctica apurada, que a ofendida integra o conceito positivado de vítima especialmente vulnerável pois lê-se no art. 16º nº 2 da lei nº 130/2015 de 4 de Setembro que há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser. Na verdade, o artigo 67.º-A do CPP 1 - Considera-se: (...) b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social; (...) 3 - As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1. E: Artigo 1.º Definições legais Para efeitos do disposto no presente Código considera-se: (...) j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos; l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos”.

Por sua vez o arbitramento de indemnização ao abrigo do art. 82.º-A, n.º 2, do CPP, deverá observar o prévio cumprimento do contraditório, consubstanciando a sua inobservância irregularidade de conhecimento oficioso que acarreta a anulação da sentença nessa parte, determinando a reabertura da audiência para aquele fim (Ac. do TRC de 22/01/2014, www.pgdlisboa.pt).

3DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em
I.–julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido mantendo a decisão recorrida.
II.–considerar  parcialmente nula a sentença, por omissão de pronúncia nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, devendo os autos baixarem à 1.ª instância a fim de, reabrindo a audiência, suprir a nulidade apontada, com observância do contraditório e decidir sobre o arbitramento de indemnização à vítima (a não ser que esta se oponha), de acordo com os art. 82.ºA, n.º 1, do CPP

Custas pelo arguido/recorrente – art. 513º nº 1 CPP, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC



Lisboa, 09 de Março  de 2023


(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelas signatárias e com assinatura digital de todas)


Raquel Correia Lima-(Relatora)
Micaela Pires Rodrigues-(1º Adjunto)
Madalena Caldeira-(2º Adjunto)




[1]Simas Santos e Leal Henriques (1995), Código Penal Anotado, vol I, Rei dos Livros, pág. 443.